Vinho de talha: método milenar é resgatado por vinícolas do Alentejo

Técnica de vinificação em ânforas dos tempos dos romanos renasce no sul de Portugal e honra tradição do vinho na região, mas produto ainda é de nicho

Talhas do século 19 da Adega José de Sousa, em Reguengos de Monsaraz, que possui coleção de 114 talhas de barro
Talhas do século 19 da Adega José de Sousa, em Reguengos de Monsaraz, que possui coleção de 114 talhas de barro Saulo Tafarelo

Saulo Tafarelodo Viagem & Gastronomia

Alentejo, Portugal

A cerca de 1h30 de Lisboa, os típicos sobreiros que conferem identidade ao Alentejo começam a aparecer no horizonte. Mas além dos belos campos verdes e dos vilarejos históricos perfeitamente preservados, outra coisa é cada vez mais comum no dia a dia alentejano: o vinho de talha.

Ele não é necessariamente uma novidade. Sua trajetória remete aos livros de história, à época em que os romanos conquistaram a Península Ibérica. Porém, sua produção vive um renascimento em vinícolas modernas nesta região ao sul de Portugal.

“É uma moda de dois mil anos”, brinca Pedro Ribeiro, enólogo e diretor da Herdade do Rocim. Situada entre as vilas de Vidigueira e Cuba, no Baixo Alentejo, a herdade é tida como a primeira vinícola moderna da região a produzir e a engarrafar o vinho de talha, lá em 2012.

Antes disso, o vinho de talha produzido nos vilarejos do Alentejo tinham um aspecto mais popular, tirado diretamente da ânfora da casa das pessoas e despejado em garrafões para consumo caseiro.

Com a retomada, o vinho de talha é comercializado hoje Portugal afora, parando até na mesa de restaurantes estrelados na Europa e nos Estados Unidos. Tal movimento faz parte de uma forma de diversificar o portfólio das vinícolas e de reviver a história alentejana.

A Cartuxa, por exemplo, conhecida pelo vinho Pêra-Manca, produz hoje vinho tinto e branco a partir de talhas recuperadas do século 19. A produção é bem menor quando comparada aos outros rótulos da adega, mas funciona como uma forma de imprimir identidade.

O que é um vinho de talha

Uma talha nada mais do que é um grande pote de barro poroso destinado a fermentação do mosto vínico e ao seu armazenamento. E o vinho de talha é uma exclusividade do Alentejo: só são chamados vinhos de talha aqueles produzidos em talhas de barro nesta região portuguesa sob regras da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA).

Para obter tal título, o vinho precisa estar dentro da talha de barro em contato com a casca da uva pelo menos até o dia 11 de novembro, o Dia de São Martinho.

A data é uma celebração secular que culmina na prova do novo vinho e que até os dias atuais é regada a festas e cantos. Tome por exemplo a abertura das talhas na Herdade do Rocim em 2022: mais de 1.500 pessoas compareceram ao evento, com direito a música, festividade e, claro, muito vinho. Um evento similar está programado para este ano.

Talhas de barro da Herdade do Rocim, vinícola no Alentejo
Talhas históricas em uso na Herdade do Rocim, no Baixo Alentejo / Saulo Tafarelo

Como o próprio Pedro Ribeiro lembra, apenas Portugal e Geórgia tiveram produções ininterruptas de vinhos em ânforas ao longo do tempo. Na Geórgia, porém, os grandes recipientes recebem o nome de Qvevri, os quais são tipicamente enterrados no solo.

Características do vinho de talha

Paulo Amaral, winemaker da José de Sousa, uma das mais antigas adegas alentejanas que produz vinho de talha, exemplifica que os vinhos de talha brancos podem ter aroma mais puxado para o avelã; já os tintos são caracterizados por especiarias e pelo barro.

Uma das principais características da talha é sua porosidade, o que facilita a oxigenação do vinho. Como tradicionalmente as uvas são colocadas no recipiente para fermentar com suas películas e partes sólidas, o contato do líquido com tais resíduos deixam o vinho com um caráter mais rústico e selvagem.

O consumo do vinho de talha, porém, tem público mais seleto. “É um produto de nicho. É um perfil de vinho que é tudo menos comercial. Ele não tem um lado aromático muito frutado já que possui um perfil mais mineral, seco, austero e rústico”, diz Pedro Ribeiro, da Herdade do Rocim.

E os preços podem ser um pouco mais elevados em comparação aos vinhos que passam por outros métodos. Na José de Sousa, as ânforas são abertas depois do dia de São Martinho, em que o vinho fica por mais tempo em contato com as massas: “Os preços são mais elevados porque desengaçamos à mão, pisamos a pé, enchemos a baldes, esvaziamos a baldes, tiramos as massas manualmente e ficam em estágio em ânfora e cascos de castanho (apenas o tinto) pelo menos 18 meses antes do engarrafamento”, explica Paulo Amaral.

Como é feito o vinho de talha

O vinho de talha esbarra no conceito de mínima intervenção. Após a colheita, as uvas são desengaçadas (tiradas de suas ramificações), esmagadas e colocadas nas talhas com casca e outros resquícios. A fermentação acontece de maneira espontânea e dura entre oito e 15 dias.

Dentro da talha ocorre uma separação das cascas dos frutos, as quais sobem à superfície e formam uma espécie de massa. Nesse período é fundamental mexer o mosto mais de duas vezes por dia para “quebrar” essa massa com um longo objeto de madeira – caso não seja mexido, a pressão é tanta que ocorre risco da talha estourar.

Ao final da fermentação, os sedimentos descem e se depositam no fundo da talha. Do lado externo, uma torneira é colocada em um orifício e o vinho tem que atravessar os sedimentos, que funcionam como um filtro natural. Também há produtores que depositam engaços no fundo da talha, o que ajuda ainda mais no processo de filtração.

Talha de barro com tecido branco no topo destinada a armazenamento de vinho da Adega José de Sousa
Talha da José de Sousa com tecido branco no topo para evitar entrada de ar enquanto vinho estagia no interior / Saulo Tafarelo

Vale destacar que após a fermentação é comum que se coloque tampas de madeira ou um tecido branco nas bocas das talhas para diminuir a chance do ar entrar em contato com o vinho. O curioso é que há produtores que deixam o recipiente aberto, mas que colocam uma camada de azeite para formar uma espécie de tampa líquida, já que vinho e azeite não se misturam.

Assim, após a retirada do líquido, o vinho já pode ser consumido ou direcionado a outra talha para repouso. O processo todo é tradicional tanto para uvas brancas quanto para tintas.

As talhas

Elas não passam despercebidas em uma visita às propriedades mais conhecidas do Alentejo: algumas chegam a ter mais de dois metros de altura e podem armazenar até dois mil litros de vinho, com peso que chega a uma tonelada.

Além de serem ferramentas para fazer vinho, elas são também objetos históricos: a maioria das talhas usadas atualmente são do século 19, algumas com mais de 200 anos de idade.

Não há mais quem as fabrique em abundância hoje em dia, o que faz com que as talhas existentes sejam supervalorizadas e cheguem a valer mais de dois mil euros – um dos projetos da Herdade do Rocim é justamente montar uma pequena fábrica de ânforas.

Atualmente, uma das maiores coleções de ânforas de barro ainda em uso fica em Reguengos de Monsaraz, justamente na Adega José de Sousa. São nada menos do que 114 talhas, as quais ficam cheias de mosto fermentado na época da vindima, que ocorre geralmente entre agosto e setembro. Há até algumas delas quebradas, que não são mais utilizadas, mas que continuam aos olhos dos visitantes.

Conjunto de talhas reunidas em uma sala da adega José de Sousa, no Alentejo
Sala das talhas da Adega José de Sousa; local possui maior coleção de talhas do país / Saulo Tafarelo

Cuidados e tradições

Em geral, as talhas ficam em ambientes frescos e é comum banhá-las com água para baixar as temperaturas durante a fermentação.

Devido à sua porosidade, o interior da talha pode ser impermeabilizado com diferentes materiais, como a resina de pinheiro, chamada de pez louro, uma das mais tradicionais desde os tempos dos romanos, mas não são todas as vinícolas que adotam a técnica.

“O pez oferece a impermeabilização necessária para a vinificação em talhas antigas, onde o barro não se encontra completamente cozido e a absorção de vinho e consequente quebra poderia acontecer caso o pez não fosse utilizado”, explica João Ramos, enólogo de tintos da Herdade do Esporão.

Sua utilização também confere aromas especiais ao vinho. “Notas de resina, cera e mel estão ligadas à utilização de pez, aos vinhos da talha, e são únicas e características destas vinificações, como se pode provar quando se abrem as talhas e se prova o vinho”, detalha o enólogo.

Onde ver e experimentar vinho de talha no Alentejo

Em Vila de Frades, no município de Vidigueiras, o Centro Interpretativo do Vinho de Talha convida os visitantes a mergulharem no mundo do vinho de talha por meio de um espaço expositivo com memórias, vivências e experiências em torno da bebida.

Pode ser um bom começo para entender mais da iguaria, mas é nas vinícolas do Alentejo que o processo – e a prova – se torna mais evidente. Confira 5 vinícolas alentejanas que têm o vinho de talha no portfólio e abrem suas portas para o enoturismo:

Herdade do Rocim

No Baixo Alentejo, a Herdade do Rocim abre suas portas para uma construção contemporânea recheada de obras de arte pelos corredores. A vinícola tem talhas de mais de 200 anos e possui uma coleção de novas ânforas desenvolvidas pela própria equipe, que são utilizadas para estagiar certos vinhos da casa. O local promove visita à adega e degustações, assim como tem wine bar e loja. Há eventos especiais ao longo do ano, como a abertura das talhas no Dia de São Martinho.

As talhas da Rocim deram origem inclusive ao vinho Júpiter, lançado no ano passado com uma série limitada de 800 garrafas, cada uma custando mil euros. O vinho foi fermentado e permaneceu por quatro anos nas talhas.

Herdade do Rocim: Estrada Nacional 387, Apartado 64 7940-909 Cuba, Alentejo, Portugal / Horários e informações no site.

Adega José de Sousa

No centro da cidadezinha de Reguengos de Monsaraz, a Adega José de Sousa mantém viva a tradição do vinho de talha com uma coleção invejável de 114 ânforas de barro, tida como a maior adega de talhas do país. Hoje, elas convivem ao lado de uma adega moderna com 44 tanques de inox.

A adega recebe visitas e também possui lojinha, a qual vende os vinhos que saem das talhas seculares.

Adega José de Sousa: Rua de Mourão nº 1, 7200-291 Reguengos de Monsaraz, Alentejo, Portugal / Horários e informações no site.

Herdade do Esporão

É em uma propriedade de mais de sete séculos em Reguengos de Monsaraz que a Herdade do Esporão produz seus conhecidos azeites e vinhos do Alentejo. Vinhos de talha também estão na produção: são cerca de 10 talhas que produzem em média mais de mil garrafas por ano.

Na visita é possível também ver as vinhas, as adegas com as barricas e os ovos de concreto, o lagar de azeite e ainda realizar provas dos produtos da casa. O restaurante da Herdade do Esporão possui uma estrela Michelin e tem vistas para o lago da propriedade, mas o wine bar do outro lado do salão não perde nada em qualidade, charme e sabor.

Herdade do Esporão: Apartado 31, 7200-999, Reguengos de Monsaraz, Alentejo, Portugal / Horários e informações no site.

Adega Cartuxa

A apenas dois quilômetros do centrinho de Évora, capital do Alentejo, a Cartuxa tem um espaço para visitas que já serviu para fins religiosos no século 16. Hoje conta com loja e tour em barricas, assim como é possível ver antigas ânforas recuperadas do século 19 que servem para fermentação de vinhos brancos e tintos.

A produção dos vinhos de talha é limitada e os rótulos são vendidos na lojinha junto de ícones como o Pêra-Manca, cuja compra é limitada a uma garrafa por pessoa. Aqui ocorrem diferentes tipos de prova que incluem visita à adega.

Adega Cartuxa: Quinta de Valbom, Estrada da Soeira, 7005-003 Évora, Portugal / Horários e informações no site.

Fitapreta

Também próxima de Évora, a Fitapreta ocupa uma propriedade histórica com direito a um paço medieval do século 14 que dialoga com um galpão moderno de 2017 construído inteiro de cortiça. Também ficam aqui a adega e parte das vinhas.

Projeto do winemaker António Maçanita, o enoturismo abrange diferentes visitas e provas, assim como é possível realizar jantares à luz de velas em uma capela do século 14 e promover festas e casamentos. A Fitapreta produz um vinho de talha branco que se distingue da maioria, já que a fermentação do mosto é feita separada das partes sólidas da uva, em um processo chamado de bica aberta.

Fitapreta Vinhos: Paço do Morgado de Oliveira, Estrada M527 km10, 7000-016 Évora, Portugal / Horários e informações no site.

*O jornalista viajou a convite da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA)