Saudade na infância: como ajudar as crianças a lidar?

08/07/2022

Ainda que o significante “saudade” só exista na nossa língua, seu significado é universal – afinal, todo mundo sente falta de alguém, alguma coisa, algum lugar ou algum tempo passado. Inclusive as crianças. E é mais difícil para elas entender que as ausências acontecem por motivos e períodos diversos, já que a sua noção de tempo e espaço é muito diferente da dos adultos. As respostas e reações das crianças à saudade podem ser as mais diversas, passando por raiva, curiosidade e até a expressão por meio de cartas e desenhos, como faz o protagonista de A carta de Moussa, recém-lançado pela Brinque-Book.

Para a psicóloga clínica Danielle Rossini, a saudade é um afeto extremamente complexo, que envolve noções de permanência e de tempo. Nas crianças, a percepção de que algo existe mesmo quando ela não vê é um processo simbólico elaborado, que não se dá antes dos dois anos de idade. “Antes disso, a criança é muito concreta: ela só sabe que a coisa existe quando está vendo a coisa”, explica a profissional.

Já a perspectiva de tempo decorrido, de passado e futuro, se consolida aos poucos, sendo que, aos cinco ou seis anos, já está mais clara e se consolida por volta dos sete anos. “Todos esses processos são muito complexos. Então, se já é difícil para o adulto, que tem algumas ferramentas estabelecidas, lidar com a saudade, para a criança nem se fala. Isso porque, para manejar as saudades, ela precisa de uma organização dessas noções mais definidas.”

Como, então, os adultos podem ajudar as crianças a viver com esse sentimento? Quais estratégias podem ser adotadas?

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Saudades da Bahia

Danielle cita a empatia como elemento fundamental nesses momentos. “O adulto, para ajudar nessa organização mental em relação à saudade, pode se colocar no lugar da criança, que ainda não tem esses recursos, ainda não tem a maturidade ou as vivências para lidar com as saudades.  E até mesmo entender que parte de comportamentos irritadiços e reativos podem ser formas dela de lidar, de extravasar um pouco mais um do desconforto que ela esteja sentindo.”

Foi isso o que aconteceu na experiência da psicanalista e escritora Elisama Santos. Ela conta que, depois que sua família se mudou da Bahia para São Paulo, ficou surpresa com a reação do filho mais velho, Miguel, que estava com 7 anos. Ela imaginava que teria de lidar com o choro e com a tristeza manifestos de maneira mais contida, mas as emoções do menino transbordaram na forma de raiva por deixar a família, a escola e os amigos.

“Foi uma surpresa para mim porque, apesar de eu trabalhar com infância e de estudar muito os sentimentos, eu realmente acreditei que o luto e a tristeza viriam em forma de choro, e não foi o que aconteceu com meu filho mais velho. Helena sentiu muito, dizia que não queria ficar longe da avó, da família, mas, na época, com 4 para 5 anos, foi um pouco mais fácil para ela. Para Miguel, que já tinha 7 anos e muitos amigos, foi muito, muito, muito difícil”, lembra a psicanalista.

Como faz para que um desenho ajude alguém a matar a saudade dos cheiros de um lugar?

Ela conta que, apesar de terem conversado sobre a importância da mudança e tentado elaborar juntos a decisão, que já estava tomada, Miguel reagia de forma irritada e contrariada na maior parte do tempo. “Ele falava que não ia. Quando viu as caixas arrumadas, falou que ia rasgar todas aquelas caixas. Não foi nem um pouco tranquilo para ele. Ele me olhava com mágoa, com rancor, dizia que eu tinha acabado com a felicidade dele. Ele estava em sofrimento e me culpava por aquele sofrimento. Então foi um processo difícil pra gente enquanto família.”

Diante desse cenário, Elisama adotou justamente essa postura empática. “Eu mais ouvi do que falei; acho que essa é uma das principais dicas que a gente precisa nesse momento. Porque a gente tende a ficar com medo de ouvir a dor da criança e a querer calar o medo, a angústia, o choro, a chateação com um monte de ’mas’: ‘mas esse lugar é legal’, ‘mas você vai conhecer amigos novos’. Como se esses argumentos fossem suficientes para silenciar os sentimentos”, divide a psicanalista. “E muitas vezes o que a criança precisa não é que a gente resolva o problema, mas da escuta. É só que a gente deixe que eles chorem, que falem, que reclamem.”

Danielle concorda e reforça a importância de permitir que a criança dê voz ao que sente, validando e acolhendo o que ela divide. “Quando ela percebe que há um adulto que a entende e leva em conta o que ela fala, começa a estabelecer estratégias mais seguras e alternativas mais eficientes, mais reguladas, para poder lidar com o desconforto presente causado pela saudade.” 

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A saudade dos pequenos e dos grandes

A bancária Nayara Rodrigues se mudou de Sorocaba, no interior de São Paulo, para Portugal, em janeiro de 2019, quando seus filhos tinham 3 anos e meio e 1 ano e 10 meses. “Eles eram muito pequenininhos, mas tinham uma referência muito forte de família no Brasil. A Isabela principalmente, que é a mais velha, tem muita saudade da família. E o José tem uma coisa de querer saber como é o país, porque ele já não lembra mais”, relata.

Ela conta que, em momentos em que ela mesma sentia mais falta da vida no Brasil, percebia que as crianças também ficavam mais sensíveis à distância. Ela perdeu uma avó e seu marido perdeu um avô de quem eram muito próximos quando já viviam em Portugal, em momentos críticos da pandemia.

“Foram perdas grandes porque eram pessoas que eram referências muito fortes, e o fato da gente estar longe também não foi nada fácil. Não poder se despedir, não poder estar com a família, foi muito triste. E eles viveram isso com a gente e sentiram também. Mas foi também mais um momento para tentar explicar a saudade e que as pessoas que a gente ama uma hora se vão, mas vivem sempre no nosso coração. Foi uma coisa de vamos viver essa saudade, faz parte, e depois vamos pensar nas coisas boas que vivemos com essas pessoas", relembra. "Eu sempre falo para eles que, se a gente sente saudade de alguém ou de alguma coisa, é porque viveu momentos bons juntos.”

Esse modelo que o adulto oferece à criança também é importante, de acordo com Danielle, porque funciona como um termômetro para a regulação emocional da criança. "Enquanto adulto, eu vou sentir saudades, medo, insegurança, mas também posso parar, pensar, me organizar e entender como vou poder lidar e reagir a esses sentimentos. Não vou banalizar, não vou ignorar, mas a tranquilidade com a qual eu posso lidar com as adversidades da vida vai ajudar as crianças a entenderem que adversidades são vividas, mas são passíveis de serem transpostas", esclarece.

Para Elisama, essa também é uma forma de cuidado do adulto com as suas próprias emoções. “Às vezes a gente também está muito soterrado em angústia, saudades, e não tem com quem falar, mas é importante falar. Muitas vezes eu chorei com os meus filhos de saudades da minha irmã, de uma amiga muito próxima. Eu compartilhei a dor, mostrei que também estava sentindo e que essa dor não era só deles.”

Nesse sentido, ela conta que entrou em contato com a escola onde as crianças iriam estudar na cidade nova, pedindo contatos das famílias da mesma sala. Então, ligou para essas famílias, se apresentou e começou a marcar almoços, para aos poucos criar redes de apoio. “Eu vim muito determinada a construir uma rede de apoio e acho que fui muito feliz nisso, porque ajudou demais na criação de vínculos.”

 

Livros para matar a saudade

A psicóloga Danielle também considera que a literatura de qualidade e as artes podem ajudar muito as famílias a abordar a saudade, tanto ao abrir espaços de conversa com as crianças e como ao oferecer caminhos para que o adulto navegue por esse tema.

"Eu ouso dizer que um livro infantil de qualidade é muitas vezes um roteiro para nós, adultos, termos ideias de como abordar, de como apresentar certos temas numa linguagem simbólica, que vai tocar a criança de maneira mais efetiva", recomenda. "O livro Guilherme Augusto Araújo Fernandes (de Mem Fox e Julie Vivas, da Brinque-Book), por exemplo, é fantástico. Dá para fazer um paralelo com a saudade que é muito interessante, apesar de não ser exatamaente sobre isso, mas toca na questão de que as memórias afetivas aquecem e ocupam um pouco esse lugar de vazio, essa sensação amorfa que a saudade deixa." 

E a experiência com a mediação da literatura também tem papel importante na casa de Nayara, como, por exemplo, quando leu com as crianças o livro Amor (de Corinne Averiss, editora Bertranda, não publicado no Brasil).

"É a história de uma menina que vai para a escola e sente falta da mãe, mas a mãe conta que um fio de amor conecta as duas, mesmo que estejam longe. E a menina vai descobrindo que cria vários fios de amor com as pessoas que gosta: com a amiga da escola, com a professora. Logo ela percebe que todo mundo tem muitos fios de amor, coloridos e emaranhados, que acompanham a pessoa em todo lugar. E os dois aqui ficaram encantados e na hora falaram: 'a gente tem fios de amor com a nossa família no Brasil, né'?, se emociona Nayara. 

 

Pandemia e internet

E, claro, a internet foi uma grande aliada das duas mães para lidar com a saudade e a distância quando se mudaram para longe, mas também duarnte a pandemia - que, nos dois casos, começou depois da mudança de cidade e país. Para Elisama, o distanciamento imposto, de certa forma, ajudou a aliviar a raiva de Miguel porque, naquele momento, todos estavam na mesma situação que ele. "Ele já tinha criado vínculos aqui em São Paulo, descoberto coisas boas da nova cidade, e, de qualquer maneira, seríamos nós quatro em casa independente da cidade onde estivéssemos naquele momento."

Nayara também relata esse sentido "equalizador" imposto pela pandemia, que expandiu a experiência do contato intenso pela internet a partir de março de 2020. Mas, mesmo antes, a internet contribuiu (e ainda contribui) para a manutenção do vínculo das crianças com a família brasileira. “Uma preocupação minha muito grande sempre foi essa de mostrar que eles têm uma família, de manter um sentimento de pertencimento, mesmo que a família não esteja fisicamente presente aqui”, conta.

O resultado é que as crianças se adaptaram tão bem ao contato por vídeo com os avós, por exemplo, que agem como se estivessem juntos. “A Isabela já brincou de esconde-esconde com o meu pai por vídeo e vai para o quarto dela quando quer conversar só com a minha mãe. Quando ela começou a ler, quis ligar pra todo mundo pra contar e mostrar. No último aniversário dela, quando já deu para fazer festa presencial com os amigos daqui, ela quis que a família também participasse por vídeo”, relata.

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