24 setembro 2018 às 06h19

Madalena Matoso: "Era incapaz de fazer livros em piloto automático"

No primeiro semestre de 2018, Madalena Matoso viu o seu trabalho reconhecido em Bolonha e em Nova Iorque e ainda ganhou (pela segunda vez) o Prémio Nacional de Ilustração. Fomos conhecer melhor o seu planeta com sabor a tangerina.

Maria João Caetano

Quando era pequena, Madalena Matoso lembra-se de gostar muito dos livros da Miffy, a coelhinha criada por Dick Bruna. "Ainda antes de saber ler, quando me liam, gostava muito dos livros da Sophia de Mello Breyner, A Fada Oriana, A Menina do Mar, A Floresta, O Cavaleiro da Dinamarca. O meu pai lia-mos em capítulos, um bocadinho em cada noite. É engraçado porque dá-nos muita vontade que o livro continue e é como se fôssemos interiorizando essa maneira de ser leitor", conta. Também gostava do Snoopy e do Winnie the Pooh e, por influência dos avós maternos, que eram ingleses, dos livros de Beatrix Potter e de contos de fadas.

É impossível saber de que maneira esses livros, tão diferentes, acabaram por influenciar os livros que Madalena Matoso cria. Aquilo que sabemos é que Madalena, de 44 anos, faz livros que são pequenas obras de arte. Neste ano, ela ganhou o Prémio Nacional de Ilustração pela obra Não É​​​​​​ Nada Difícil, distinção que já tinha recebido em 2008 pelas ilustrações do livro Charada da Bicharada, com texto de Alice Vieira. Mas, além deste prémio, aconteceram mais coisas boas neste ano. O seu livro Montanhas foi distinguido nos prémios anuais da Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha, que se realizou em março, em Itália. E, em maio, Não É​​​​​​ Nada Difícil, cujos desenhos já tinham sido selecionados para a exposição de Bolonha, foi reconhecido como uma das 30 melhores obras visuais e de ilustração de todo o mundo e esteve em destaque numa feira de negócio livreiro em Nova Iorque, EUA. "Os prémios são bons porque são um estímulo para continuarmos a trabalhar como até aqui", diz Madalena.

Madalena Matoso começou a desenhar, como toda gente, quando era criança. "Todos os miúdos desenham. Depois quando crescem quase todos deixam de o fazer. Talvez tenha que ver com a autoconsciência, começamos a ser muito autocríticos. E a escola também não promove muito esse desenhar só por desenhar", explica. "Eu acho que continuei sempre a desenhar. Apesar de que não sou uma desenhadora virtuosa, sempre gostei de comunicar via desenho. E por isso continuei sempre. Quando eu era pequena, a minha mãe punha-nos numa mesa grande durante a tarde toda a desenhar - mas era uma coisa muito pouco dirigida, dava-nos folhas e canetas e nós desenhávamos. Eram momentos de que gostava muito. Em que me sentia bem."

Quando estava no liceu chegou a pensar seguir Arquitetura mas acabou por ir para Belas-Artes e estudou Design Gráfico. Acabou por se revelar uma boa decisão. "Há países onde há licenciaturas mesmo em ilustração mas até é bom que cá não haja. O que eu gostei mais do curso foram as disciplinas teóricas, história da arte e estética e outras, do que propriamente depois a parte do projeto. Portanto, seja o que for que a pessoa estude, o importante é que seja o mais abrangente possível, não muito afunilado", considera.

Ainda no liceu nasceu a amizade entre Madalena Matoso, Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho. A amizade prolongou-se pela faculdade, tendo todos frequentado Belas-Artes, onde conheceram João Abreu, e continuou quando já estavam a trabalhar, cada um na sua área, juntando-se de vez em quando para alguns projetos. Em 1999 criaram o Planeta Tangerina, que é masculino não só porque é um planeta mas também porque começou por ser acima de tudo um ateliê de design e criação de conteúdos. Primeiro fizeram uma revista semanal. "Era um trabalho muito exigente, com um ritmo muito acelerado, mas que foi muito bom para nos dar prática de trabalhar juntos. Era uma coisa muito efémera, numa semana está feita e na outra está no lixo. Mas isso também nos dava liberdade para experimentar algumas coisas com menos peso em cima."

Até que decidiram começar a fazer livros. "Apeteceu-nos fazer algo que tivesse um período de vida mais prolongado e em que também pudéssemos trabalhar durante mais tempo", lembra Madalena Matoso. "E também porque havia algumas ideias do que deveria ser um conteúdo para crianças, tanto em termos de texto como de imagem. Queríamos uma coisa que não tivesse tanto essas barreiras. A ideia foi fazer os livros sem limitações e logo se via como é que corria."

Correu bem, como sabemos. Os primeiros três livros da editora foram o Pê de Pai (de Isabel e Bernardo, que foi editado em 2006 e ainda hoje continua a ser um dos grandes sucessos do Planeta Tangerina), Obrigado a Todos (também de Isabel e Bernardo) e Uma Mesa É Uma Mesa, assinado por Isabel e Madalena e que "foi um flop". Sem dramas. Desde o início "havia essa vontade de fazer algo mais experimental. Sem pensar se ia resultar ou não. Isso faz parte de nós. É o que nos motiva. O que nos faz querer fazer determinado livro é percebermos que há ali qualquer coisa que vale a pena experimentar ou uma ideia que nós nunca vimos, por isso o testar coisas novas". Por isso também rapidamente começaram a experimentar fazer álbuns ilustrados e ultimamente têm feito muitos "livros de não ficção, maiores, alguns com 300 páginas, e que têm um tempo de pesquisa maior". "Estamos a fazer cerca de seis livros por ano, o que é muito pouco. Mas é como nós sentimos que faz sentido", diz. E conclui: "Acho que era incapaz de estar a fazer livros em piloto automático."

A editora Planeta Tangerina funciona numa vivenda em Carcavelos, com um quintal verdejante onde há galinhas e uma mesa onde, nos dias bons, a equipa se reúne para almoçar e conversar. Apesar de muitos dos livros nascerem de parcerias, eles não estão sempre a trabalhar juntos. Madalena, por exemplo, gosta de trabalhar sozinha e de só mostrar os seus desenhos quando já está numa fase muito adiantada do projeto.

"E aí sim começam mais as conversas e é talvez possível mudar alguma coisa no texto porque se torna redundante ou porque se quer ser mais conciso - também há muito essa vontade de síntese. Não é tornar as coisas mais simples. Mas é peneirar - tanto em termos de texto como de desenho", explica. Mas "quando são aqueles livros maiores, como o Lá Fora, o Cá Dentro e agora o Atlas das Viagens e dos Exploradores, acontece muito aquele tema tornar-se central na nossa vida. E falamos muito uns com os outros, passamos documentos, livros, artigos, conversamos ao almoço. E toda a gente acaba por se interessar pelo tema. É quase como se houvesse um radar comum e os nossos cérebros ficam sintonizados".

Madalena prefere desenhar e fazer colagens antes de passar para o computador. "Ao fazer à mão descubro mais coisas", explica. "O computador é uma coisa mais controlada, dá para mexer ao milímetro ou pôr mais escuro e mais claro. Há um excesso de produção, estamos a afinar durante muito tempo porque há essa possibilidade de estar sempre a corrigir. Quando faço à mão, posso nem ter um objetivo muito fechado, sem saber para onde aquilo vai, depois parece que o caminho vai sendo dado pelo próprio desenho. Gosto muito disso. E gosto das imperfeições e dos acasos, os desenhos são menos controlados."

No seus livros, como o Montanhas ou o Labirintos, Madalena Matoso gosta de "picar o leitor". De ter implícita uma pergunta - e tu o que é que achas sobre isto? "Não é só dizermos como as coisas são, é chamar o leitor para dar a sua opinião. Eu não sou escritora. Os meus livros têm poucas palavras. A palavra aí entra de uma forma mais lúdica. E eu gosto de criar alguns vazios, que permitem a entrada dos leitores. Podemos com a imagem questionar, indicar outras possibilidades. Às vezes imagino um prédio com muitas janelas e é como se imaginássemos as pessoas que vivem dentro dessas casas e as histórias que lá estão - são janelas para outras histórias e outros temas. Um livro é assim. Não é um objeto fechado."