Walter Carvalho: fotógrafo-autor

Pesquisadora se debruça sobre o estilo de Walter Carvalho em tese de doutorado acerca da importância do diretor de fotografia no cinema

Comunidade

No cinema nacional, poucos nomes têm a relevância de Walter Carvalho (1947 -) quando o assunto é fotografia. Pois este paraibano de 75 anos e mais de 50 de carreira teve parte de sua obra analisada na tese de doutorado de Maria Fernanda Riscali de Lima Moraes, O cinema do diretor de fotografia: traços estilísticos em Walter Carvalho, apresentada em março de 2020 ao Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA) da ECA. 

A pesquisa  se beneficia dos mais de 20 anos de atuação de Fernanda Riscali como fotógrafa de cinema e filmes publicitários e destaca a importância dos diretores de fotografia na realização de obras audiovisuais., Na sua visão, a contribuição autoral dos fotógrafos é pouco considerada pela crítica, estudos acadêmicos e público em geral, sempre em detrimento dos diretores dos filmes:

 

“Muitos pesquisadores que nunca fotografaram, nunca manusearam uma câmera de cinema, não entendem as variáveis de exposição, de codec, sabe? Eu acho que desconhecer como a fotografia é feita prejudica bastante a análise.”

 

Fernanda Riscali, diretora de fotografia e pesquisadora

 

Ainda que a atuação de Walter Carvalho na indústria cinematográfica tenha começado em 1970, pouco tempo depois de radicar-se no Rio de Janeiro, a tese se concentra em 7 filmes de sua extensa obra, começando pelo  longa  Terra Estrangeira (1995), considerado pelo próprio fotógrafo um divisor de águas em sua  carreira. Ele marca o encontro entre o então jovem diretor Walter Salles e Carvalho, uma relação que a autora assemelha à dos  soviéticos Sergei Eisenstein e Eduard Tissé, tema de seu mestrado na ECA

Riscali reforça a criatividade e o estilo próprio da fotografia de Carvalho ao analisar o uso que ele faz dos elementos técnicos de exposição: sensibilidade, obturador e diafragma. “Ele usa esses três elementos de forma que cria visualidades muito diferentes. Por exemplo, seus filmes não têm a mesma profundidade [de campo]. Ele tem elementos ali que eu vou observando em vários desses filmes durante esse percurso da década de 90 até 2010”. 

O desenho de luz - que parte da narrativa e dos personagens -, o enquadramento da ação e a fluidez das imagens, junto “com uma forma particular de trabalhar a profundidade de campo e a correção de foco”, são os recursos mais destacados pela pesquisadora na cinematografia de Carvalho, além do seu vasto repertório cultural, que inclui referências que vão do cineasta soviético Sergei Eisenstein ao western estadunidense, contribuindo de forma decisiva para a assinatura visual de seus filmes.

 

Retomada: virada técnica e estética
 

Terra Estrangeira também é uma das obras emblemáticas da Retomada do Cinema Nacional (período compreendido entre meados da década de 90 e início da década de 2000) após o desmantelamento da Embrafilme no Governo Collor (1990 - 1992).  Com a Retomada, o investimento via leis de incentivo foi a solução encontrada pelo Estado para fomentar o cinema nacional, aumentando a quantidade de filmes produzidos e melhorando significativamente a qualidade técnica das obras  nacionais frente aos últimos anos de Embrafilme (década de 1980). 

Riscali, que começou como profissional à época da Retomada, lembra que as novas fontes de recursos possibilitaram a aquisição de equipamentos de ponta, antes utilizados apenas em filmes publicitários, para a produção cinematográfica:  “Eu identifico na minha atuação ali no mercado de cinema uma divisão mesmo entre o que existia antes da Retomada e depois da Retomada. (...) É muito impactante na visualidade dos filmes”, diz a fotógrafa, ao explicar o porquê de não selecionar filmes anteriores a este período.

Para além de ver semelhanças entre enquadramentos de Terra Estrangeira e O Encouraçado Potemkin (1925), de Einsenstein – imagens organizadas por formas  geométricas ou linhas horizontais, verticais e diagonais – , a autora entende que a fotografia de Carvalho reflete o estado de espírito soturno da Era Collor, ilustrando um fenômeno que começa a ser observado no país naquele momento: a emigração de brasileiros de classe média para o exterior.  

 

insert alt
Exemplos de planos eisensteinianos no filme Terra Estrangeira (1995). Imagem: Reprodução.

 

Em Abril Despedaçado (2002), a parceria entre Salles e Carvalho se ambienta no sertão nordestino do início do século XX, para retratar o banho de sangue que envolve duas famílias num ciclo sem fim de vingança. Riscali vê novamente a influência de Eisenstein no estilo do fotógrafo, na medida que este se inspira na desnatadeira de O Velho e o Novo (1929), outro filme de Eisenstein, para filmar a bolandeira como elemento que simboliza o inexorável tempo. 

O girar da bolandeira é retratado reiteradamente  no longa, como se as personagens não saíssem do lugar que o destino e o tempo lhes impõe, em especial o protagonista Tonho (Rodrigo Santoro), cujos sonhos são ceifados pelas vontades de  sua família, os Breves. Os planos focando objetos não são gratuitos na obra de Carvalho, dado que é formado em Design Gráfico pela Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro (ESDI). Em uma das imagens mais marcantes de Madame Satã (2002), outro filme analisado na tese,  a câmera opta por uma perspectiva na navalha e no corpo do performista João Francisco dos Santos, interpretado por Lázaro Ramos.

insert alt
Abril Despedaçado (2002). Imagem: Reprodução

Voltando a Abril Despedaçado, outro ponto que merece destaque  é a alternância entre as cores ocre e azul, que simbolizam o chão árido e o céu sem nuvens de chuva, paisagem típica do sertão nordestino.  O contraste de cores é gritante, de modo que reflete “a dureza dos personagens e a presença constante da morte”, espelhando o conflito interno que vivem Tonho e seu irmão Pacu, que logo compreende o triste fado a que está submetido. Segundo Riscali, num filme que prima por momentos de silêncio e introspecção, Carvalho imprime através dos enquadramentos e da luz “as características do espaço, mostrando ao espectador a dimensão da falta de perspectivas em que vivem esses indivíduos”.  

O paralelismo entre os homens e a natureza também se dá na figura dos bois, que rodam eternamente ao redor da bolandeira. O uso de planos gerais que contemplam a paisagem do interior da Bahia, à semelhança dos westerns estadunidenses, também contribui para acentuar a pequenez  das personagens enquanto sujeitos, como se fossem a vegetação seca e a fauna local, que nada podem fazer diante do destino imposto, além de reforçar o seu isolamento.  

 

Heleno: ascensão, vertigem, queda
 

Dirigido por José Henrique Fonseca e estrelado por Rodrigo Santoro, Heleno (2012) retrata, com uma narrativa não linear, a vida, auge e ostracismo do icônico jogador de futebol Heleno de Freitas, ídolo do Botafogo  nos anos  1940. Polêmico dentro e fora dos gramados, Heleno é símbolo da passagem do futebol enquanto esporte de elite para um fenômeno de massas no Brasil, sendo figura notória  das colunas sociais da capital da República e um dos destaques da Seleção Brasileira em seu tempo.

Tal qual em Terra Estrangeira, a fotografia em preto e branco aparece como recurso estilístico, tomando partido da época retratada na obra. O gênero noir, que marcou o cinema estadunidense dos anos pós-Guerra, serve de inspiração, com claras referências a obras daquele período, como Gilda (1946) – alcunha dada pelos adversários ao craque devido ao seu excesso de estrelismo.

Além das cenas em campo, o filme investe na vida pessoal de Heleno, que seria um típico personagem de filme noir: anti-herói, de caráter duvidoso e de final trágico  – morreu, isolado, de sífilis cerebral. Algumas cenas reproduzem sua glória e fracasso, como a sequência em que, após entrar em campo com atletas do Botafogo, encontra-se sozinho – uma espécie de prelúdio de sua vida pós-gramados. Em outro momento, o filme retrata sua efêmera passagem no Boca Juniors, em Buenos Aires, com a névoa reforçando seu isolamento e inaptidão ao clima frio e austral da capital argentina.

 

insert alt
Cenas de Heleno (2002). Imagem: Reprodução. 

 

Os momentos em que Heleno, usuário de éter e lança-perfume (principais drogas de sua época),  se encontra perturbado ou em conflito com colegas, treinadores e suas amantes são retratados através de sequências que fazem uso do desenquadramento (quando o principal assunto da imagem aparece nos limites do quadro), reforçando a ideia de desorientação e de isolamento, e do plongée (mergulho, em francês), enquadramento com a câmera posicionada de cima para baixo, causando uma impressão de "achatamento da personagem”

Já  quando Heleno está lúcido, “as linhas do cenário são aproveitadas para criar enquadramentos gráficos e precisos”, de modo que seja possível notar a clareza do ambiente, que simbolizam o feérico Rio de Janeiro dos anos dourados, com sequências incluindo o footing (caminhada) na praia, as pin ups e os modismos da época. Além da fotografia descolorida, Riscali vê outras semelhanças entre este longa e Terra Estrangeira, como o quadro dentro do quadro, recurso usado para enfatizar alguns elementos da imagem. 

Um dos momentos finais do longa retrata aquilo que seria o grande sonho de Heleno de Freitas: jogar no recém-inaugurado Maracanã.  Fora de forma e com os sinais da sífilis aparecendo, o atleta não dura mais que 20 minutos no maior estádio do mundo, sendo expulso por desentendimentos com o árbitro e colegas em campo: “O que vemos ali não é uma reconstituição da partida, mas a derradeira imagem que o jogador deixou para o mundo”, sintetiza Riscali.

 

insert alt
Boquiaberto diante da vastidão das arquibancadas, Heleno (Rodrigo Santoro) é filmado em contre-plongée (contra-mergulho, em francês), ou seja, de baixo para cima. Imagem: Reprodução

 

 

Carvalho nas telenovelas
 

Ainda que seus trabalhos recentes para a TV não tenham sido mencionados na tese, Riscali destaca a contribuição de Carvalho para o modo como a fotografia vem sendo trabalhada nas telenovelas dos últimos anos, ao explorar aspectos como foco e  profundidade de campo e alterando a visualidade padrão desse meio.  Atualmente, Carvalho pode ser prestigiado diariamente no folhetim Travessia, da TV Globo.

 

“Se você assiste Amor de Mãe, você vê cenas completamente desfocadas, isso numa novela das nove, sabe? Eu acho isso um radicalismo muito legal que ele traz  para um meio de comunicação mais tradicional.”

 

Fernanda Riscali, fotógrafa e pesquisadora
 
 

Imagem de capa: reprodução/ Woo Magazine