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São Paulo campeão mundial 2005 - Amoroso conta como Autuori treinou meses para bater Liverpool e lembra cutucada em Teixeira no pódio

Benito Archundia apita forte e autoriza o início da final do Mundial de Clubes, em Yokohama. Era 18 de dezembro de 2005, noite gelada no Japão, quando São Paulo e Liverpool correm atrás da bola e começam uma batalha pelo posto de "melhor time do mundo". Ali, era a largada oficial de um confronto que, na cabeça dos brasileiros, já estava em andamento há meses.

Campeão da Conmebol Libertadores em 14 de julho do mesmo ano, o Tricolor do Morumbi se preparou talvez como nunca para fechar a temporada mágica em dezembro. Foram cinco longos meses treinando especificamente para um propósito: como destronar o poderoso Liverpool, capaz de sair de um 0 a 3 para um épico título de Uefa Champions League contra a seleção de craques do Milan, em maio.

É o que conta Amoroso, em entrevista exclusiva ao ESPN.com.br. Camisa 11 daquele São Paulo, que ele ajudou a levar ao Mundial disputando apenas quatro jogos da Libertadores, o ex-atacante lembrou que a estratégia tricolor que surpreendeu o Liverpool foi treinada minuciosamente a cada dia no centro de treinamento da Barra Funda, desde a postura defensiva para proteger Rogério Ceni até a jogada que culminou com o gol de Mineiro.

"A gente chega no jogo praticamente com tudo que havíamos trabalhado no decorrer pós-Libertadores. Autuori praticamente trabalhou para evitar faltas perto da área, linha de impedimentos, proteger a bola, fazer o Mineiro de surpresa nas costas do adversário. Foi tudo treinado para enfrentar o Liverpool, com sua qualidade e superioridade de franco favorito ao título. São Paulo jogou com inteligência, soube administrar o jogo. Teve três gols impedidos, mesmo se tivesse o VAR hoje, e jogou para garantir o resultado. Os lances de gol do Liverpool foram com bola parada, nenhum em movimento. A gente sabia como neutralizar", lembrou o craque.

Para ter o direito de encarar o Liverpool, o São Paulo antes precisou passar pelo Al-Ittihad, da Arábia Saudita, em uma semifinal bem mais tensa do que o normal. Amoroso abriu o placar a 16 minutos, mas os sauditas empataram com Noor, aos 33. Logo na volta do intervalo, o mesmo Amoroso fez o segundo e teve a chance do hat-trick, em pênalti sofrido por Aloísio. Mas preferiu ceder a honra à referência daquele Tricolor.

"Chego no Mundial como batedor oficial. Quando sai o pênalti, eu pego a bola, olho para trás e vejo o Rogério caminhando. Pensei: ele vai querer bater o pênalti, vou esperar ele chegar. Ele caminha, chega e fala pra mim: 'Artilheiro, posso bater esse pênalti?'. E eu falei: claro, capitão, vai lá e decide o jogo para nós. E ele bateu bem demais".

O São Paulo ainda sofreu o segundo gol, tomou um sufoco no fim, mas garantiu a vaga na decisão. Do outro lado, estava o Liverpool, mais confiante ainda após despachar o Deportivo Saprissa, da Costa Rica, por 3 a 0. Eram 11 jogos sem sofrer gols, o que só aumentava o favoritismo da equipe de Anfield Road, liderada por Steven Gerrard no meio-campo.

Enquanto a aura vencedora imperava do lado inglês, o Tricolor vinha de uma apresentação questionável na semifinal e ainda vivia um problema nos bastidores. Irritados com boatos sobre discussão de premiação, os jogadores são-paulinos fizeram greve de silêncio e pararam de atender a imprensa, a não ser em eventos obrigatórios da Fifa.

"Nada do que foi falado naquele primeiro momento, de premiação, de grupo desunido, de grupo rachado, nunca existiu dentro do elenco. Grupo estava fechado, completamente focado, e o prêmio não passava pela nossa cabeça, até porque não teria como discutir se não ganhasse. Todos estavam focados na conquista, a gente ficou puto para caramba com as inverdades", contou.

No jogo, a estratégia pensada por Autuori durante meses deu resultado. O São Paulo jogou um bom primeiro tempo e saiu na frente aos 27 minutos, em jogada de infiltração tanto trabalhada no Brasil: Fabão quebrou a linha com passe diagonal para Aloísio, que viu Mineiro entrar livre nas costas dos zagueiros, no espaço que deveria ser dele, e lançou para o volante se consagrar.

Depois disso, quem apareceu foi Rogério Ceni, com pelo menos três grandes defesas no segundo tempo - a mais lembrada em falta cobrada por Gerrard, na gaveta. O São Paulo pouco atacou na etapa final, mas, Amoroso lembra, ainda teve um pênalti a seu favor, ignorado pela arbitragem. O Liverpool lamenta até hoje os três gols anulados pelo auxiliar Hector Vergara, mas todos os lances foram marcados de forma correta.

"Aquele era o jeito de ganhar do Liverpool. A gente sabia que teria poucas chances de finalizar de cabeça, então a estratégia era trabalhar bola na maior velocidade possível, voltar para a referência e a bola enfiada entre as linhas. A gente sabia também que nosso goleiro estava em uma noite iluminada. Se tivesse 100 chutes, ele ia defender 200. Se estivesse jogando até hoje com o Liverpool, eles não teriam feito gol no Rogério, mesmo com o joelho machucado".

O sufoco durou até o último tiro de meta de Rogério, quando o árbitro esperou a cobrança para encerrar a partida. O São Paulo sagrava-se tricampeão mundial de clubes, primeiro e único brasileiro até hoje a conseguir tal façanha. Festa para os jogadores, dos titulares a quem nem saiu do banco, e em especial para Amoroso, que pôde soltar algo que estava entalado em sua garganta há anos.

No pódio, enquanto os tricolores recebiam as medalhas, estava Ricardo Teixeira, então presidente da CBF. Amoroso pegou a sua de Marcelo Portugal Gouvêa, mandatário tricolor, e depois ficou frente a frente com o chefe do futebol brasileiro. E não titubeou.

"Fui cumprimentar o Ricardo Teixeira e falei que aquele título tinha o mesmo peso do pentacampeonato de 2002, que eu não fui chamado no momento mais importante da minha carreira. Era campeão alemão, artilheiro da Bundesliga, vice-campeão da Copa da Uefa, tendo jogado eliminatórias e Copa América como titular. Peguei a medalha e mostrei: tem o mesmo peso que em 2002 quando vocês não me levaram. Na Copa de 2002, se você pegar o elenco de meias e atacantes da seleção brasileira, só poderia não ser convocado para três jogadores: Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho. Todos os outros eu teria vaga", disse o atacante, lembrando a passagem pelo Borussia Dortmund.

"Foi o grande título da minha vida. A festa depois foi fantástica. Viemos bebendo de la até aqui, três dias de cerveja. A gente todo comemorando aí percebe: cadê o Mineiro? Ele estava no quarto, rezando com a familia. É um cara que realmente merecia ele ser o dono da festa, por ser o que ele é".

Foi o último ato de Amoroso com a camisa do São Paulo. Após 28 jogos e 16 gols, o atacante não teve a proposta para renovar que imaginava e deixou o Morumbi para atuar no Milan. Até hoje ele pensa como teria sido a temporada 2006 se tivesse continuado. Mas prefere lembrar a última vez em que viveu o clube na pele.

"Não queria que acontecesse, meu planejamento era ficar 3 anos no São Paulo, encerrar minha carreira aqui, ou no São Paulo ou no Guarani. Tinha certeza que não era uma despedida ainda, poderia vir a renovar. Infelizmente não fui atendido e acabou sendo uma despedida num título importante. Torcida pedia 'fica, Amoroso', eu sabia que queria ficar, não tinha porque sair do clube. Depois a gente vem saber que alguns membros da comissão técnica vetaram, e isso infelizmente só foi chegar a mim depois que fui para o Milan".

"Digo que São Paulo parou duas vezes: infelizmente quando morreu Ayrton Senna e felizmente quando a gente chegou de viagem pós-tricampeonato mundial. Foi maravilhoso, já da janela do avião a gente olhou e viu que no aeroporto havia milhares de torcedores. É uma situação que eu vou guardar para o resto da vida".