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Claude Lévi-Strauss, dono de argumentos intrincados, foi capaz de influenciar até aqueles que não aceitavam suas ideias | Pascal Pavani/AFP
Claude Lévi-Strauss, dono de argumentos intrincados, foi capaz de influenciar até aqueles que não aceitavam suas ideias| Foto: Pascal Pavani/AFP

Nova York - Grande pensador, Claude Lévi-Strauss – antropólogo francês morto na semana passada, em Paris, aos 100 anos – era a própria encarnação do "estruturalismo", a corrente do pensamento segundo a qual "estruturas" universais estariam na base de toda atividade humana, sustentando culturas e criações aparentemente díspares. A obra do pensador francês exerceu profunda influência até mesmo sobre seus críticos, que foram muitos. Não houve, na França, um sucessor que se comparasse a ele. E seu texto – uma mistura de afetação e poesia, rico em ousadas justaposições, argumentos intricados e metáforas elaboradas – pouco se parece com o que até então havia na antropologia.

Nascido numa distinta família de franco-judeus artistas, Lévi-Strauss era a quintessência do intelectual francês, à vontade tanto na esfera pública quanto na academia. Deu aulas em universidades em Paris, Nova York e São Paulo, além de ter trabalhado para as Nações Unidas e o governo da França.

Em suas análises do mito e da cultura, o antropólogo era capaz de contrapor a imagem de um macaco à de um jaguar; considerar as diferenças de significado entre comer assado e cozido (os canibais, sugeriu, tenderiam a cozinhar os amigos e assar os inimigos); e estabelecer conexões entre estranhas narrativas mitológicas e complicadas leis de casamento e parentesco.

Suas interpretações dos mitos oriundos da América do Norte e da América do Sul foram fundamentais para uma mudança no modo como o Ocidente via as chamadas sociedades primitivas. Lévi-Strauss começou a desafiar a sabedoria convencional sobre essas sociedades tão logo foi a campo como antropólogo, na década de 30 – uma experiência que serviu de base para Tristes Trópicos, seu aclamado livro de 1955, espécie de meditação antropológica a partir de suas viagens pelo Brasil e outros lugares.

A visão mais aceita naquele momento era a de que as sociedades primitivas – sem imaginação, no que tangia ao intelecto, e irracionais no temperamento – pautariam suas atitudes em relação à vida e à religião pela satisfação de necessidades urgentes como comida, vestimenta e abrigo. O antropólogo francês resgatou seus sujeitos de pesquisa dessa perspectiva limitada. "A sede por conhecimento objetivo", ele escreveu, "é um dos aspectos mais negligenciados na maneira de pensar daqueles a quem chamamos ‘primitivos’."

Simplificação romântica

Nessa aparente apologia da mente selvagem, Lévi-Strauss inscrevia seus textos na tradição do Romantismo Francês, inspirado pelo filósofo oitocentista Jean-Jacques Rousseau, a quem reverenciava. Foi esse ponto de vista que ajudou a construir a reputação pública de que gozou na época do romantismo contracultural dos anos 60 e 70.

Mas tal simplificação romântica era também uma distorção de suas ideias. Para ele, o selvagem não era, de modo algum, nobre ou "mais ligado à natureza". Lévi-Strauss foi impiedoso, por exemplo, ao descrever as tribos indígenas brasileiras do Mato Grosso: segundo o retrato que fez delas, viviam a tal ponto em revolta contra a natureza – e condenadas a isso – que até recusavam a reprodução natural, escolhendo "procriar" pelo sequestro de crianças das tribos inimigas.

O antropólogo francês rejeitava a ideia de Rousseau de que os problemas do gênero humano decorreriam das distorções da natureza causadas pela sociedade. Na visão de Lévi-Strauss, não haveria alternativa para tais distorções. Cada sociedade deveria se constituir a partir da matéria bruta da natureza, ele acreditava, usando as leis e a razão como suas ferramentas.

A razão assim aplicada, argumentou, criaria características universais recorrentes através das culturas e das épocas. Tornou-se conhecido como um estruturalista por conta dessa convicção de que certa unidade estrutural sustenta toda criação mítica da humanidade, e mostrou como aquelas características universais atuariam nas sociedades, mesmo em atividades como a construção de um povoado.

Para Lévi-Strauss, por exemplo, a mitologia de qualquer cultura se constrói em torno de contrários: quente e frio, cru e cozido, animal e humano. E é a partir dessa oposição de conceitos binários, ele dizia, que a humanidade dá sentido ao mundo.

Era algo bem diferente daquilo com que a maioria dos antropólogos se preocupara até então. Tradicionalmente, a antropologia procurava desvendar as diferenças entre culturas, nunca descobrir características universais. Ocupara-se, até ali, não com ideias abstratas, mas com as particularidades de rituais e costumes, observando-as e catalogando-as. A abordagem "estrutural" de Lévi-Strauss, ao buscar o que haveria de universal na mente humana, rompeu com essa noção de antropologia.

Trajetória e legado

Entre 1927 e 1932, o pensador francês cursou direito e filosofia na Universidade de Paris, passando a lecionar, em seguida, numa escola secundária local, o Liceu Janson de Sailly, no qual teve como colegas Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Mais tarde (ainda na década de 30), tornou-se professor de sociologia na recém-inaugurada e francófona Universidade de São Paulo (USP).

Depois da Segunda Guerra, e de volta à França após um período de estudos nos Estados Unidos, obteve o doutorado em letras na Universidade de Paris, em 1948. Seu primeiro livro importante, As Estruturas Elementares do Parentesco, foi publicado em 1949. (Muitos anos depois, o júri do Goncourt, mais célebre galardão literário francês, declarou que, se fosse ficção, Tristes Trópicos, que ficava na fronteira entre a memória e o relato de viagem, teria sido premiado.) Em 1959, Lévi-Strauss foi nomeado professor do Collége de France e, em 1973, eleito para a Academia Francesa de Letras.

Nos anos 80, o estruturalismo, conforme sua concepção original, havia cedido lugar a outra corrente, capitaneada por pensadores também franceses que ficaram conhecidos como pós-estruturalistas: autores como Michel Foucault, Roland Barthes e Jacques Derrida. Eles rejeitavam a ideia das características universais e atemporais, argumentando que a história e a experiência seriam muito mais importantes na formação da consciência humana do que leis totalizantes.

"A sociedade francesa, especialmente a parisiense, é glutona", respondeu Lévi-Strauss. "A cada cinco anos, mais ou menos, precisa de novidade para enfiar na boca. De modo que, cinco anos atrás, era o estruturalismo, agora é outra coisa. Praticamente não ouso mais usar a palavra ‘estruturalista’, de tão deformada que está. Não sou, certamente, o pai do estruturalismo."

Mas sua versão do conceito pode acabar se revelando mais longeva do que o pós-estruturalismo, assim como ele próprio sobreviveu aos principais nomes dessa segunda corrente. No último dos quatro volumes de sua monumental obra Mitológicas (publicada no Brasil pela Cosac Naify), o pensador francês conclui com a sugestão de que a lógica dos mitos é tão poderosa que os faz quase que ganhar vida autônoma, independente de quem os conta. Na sua visão, os mitos se expressam por um meio, a humanidade, e, por sua vez, se tornam as ferramentas com as quais ela deve lidar com o maior dos mistérios: a possibilidade do não-ser, o fardo da finitude.

Tradução de Christian Schwartz.

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