Roseli Pretinha Brasil 1998Getty

Como uma fuga para o Rio levou Roseli de Belo à Copa do Mundo

"Até hoje eu tenho a camisa do Romário", comenta ela aos risos. O uniforme do Baixinho não é nenhuma recordação de fã, mas sim a lembrança que Roseli de Belo guarda de um período em que a seleção feminina entrava em campo com a indumentária que sobrava do masculino.

Uma das primeiras atletas a defender o país no exterior antes mesmo que a seleção feminina fosse oficial, a ex-atacante lembra que, por quase quinze anos, as mulheres também precisaram devolver as chuteiras usadas em campo. "Nessa época eu não via o uniforme, via só a vontade de vencer e de ajudar a minha família", relata ela durante evento no Museu do Futebol promovido pelo blog dibradoras.

Roseli viajou para o exterior pela primeira vez aos 17 anos, com a equipe do Radar representando o Brasil em um torneio na Itália, em 1986. O sucesso do time foi tamanho que, dois anos depois, a maior parte daquelas jogadoras integrou a primeira seleção só de mulheres no Torneio Internacional da China, em que o Brasil terminou em terceiro lugar. O evento serviu de teste para a primeira Copa do Mundo da modalidade, realizada em 1991 na mesmíssimo país.

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Brasil Seleção Feminina Copa do Mundo 1995Museu do Futebol/AcervoA Seleção de 1995: Roseli com a camisa 11, a décima jogadora da esquerda para a direita (Foto: Museu do Futebol/Acervo)

Da zona leste à zona sul

Nascida e criada na Vila Alpina, bairro da zona leste de São Paulo, Roseli buscou uma peneira do Juventus, aos 15 anos, para iniciar sua trajetória no futebol. A primeira tentativa foi frustrante: mandaram-na correr em torno do gramado, o que a deixou irritada e a fez deixar o teste. Um dos treinadores foi até a sua casa e lhe pediu para retornar e integrar o time. Jogava entre as mais velhas, sem atletas da sua idade, e realizava treinos contra os homens por falta de quorum no feminino.

Se a realidade era dura em campo, fora dele as coisas eram ainda mais apertadas: sua família não aceitava a vida no futebol. Diante das muitas cobranças para largar o esporte e buscar um trabalho, não titubeou: pegou um ônibus rumo ao Rio de Janeiro e se apresentou ao Radar, time considerado um dos maiores da modalidade nas décadas de 1980 e 1990 e sediado em Copacabana, na zona sul da cidade.

"Mandei uma carta para a minha mãe e na outra semana ela já estava no Rio para me buscar", conta.

Roseli bateu o pé e se recusou a retornar a São Paulo, vivendo em um apartamento cedido pelo empresário Eurico Lyra, dono do Radar e apontado como um dos patronos do futebol feminino na época. Com os resultados das primeiras viagens internacionais, a família se amansou e respeitou o futebol na vida da atacante. E foi ao lado das colegas de Radar, com o apoio dos parentes e acompanhada de Eurico como coordenador da seleção que rumou para a Copa de 1991.

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O sonho de Copa

"É a jogadora mais técnica da seleção. Veloz e dribladora, é também artilheira: já fez 32 gols em jogos internacionais", descreveu o repórter Oldemário Touguinhó, do Jornal do Brasil, ao falar sobre a chegada de Roseli à China para a Copa de 1991.  

O time chegava ao Mundial em meio a muita expectativa e grande choque de realidade diante de outras seleções. Enquanto os Estados Unidos carregavam um cozinheiro particular, as atletas brasileiras sofriam com os temperos da comida chinesa e complementavam a alimentação com biscoitos e chocolate. O massagista da seleção improvisava uma vitamina com o liquidificador do hotel e distribuía o alimento em um balde.

A primeira partida terminou com vitória brasileira por 1 a 0 diante do Japão, com gol da zagueira Elane. Na sequência, a goleada de 5 a 0 para os EUA mudou os bastidores da viagem: revoltadas, as jogadoras decidiram assumir o esquema tático da equipe, contrariando as orientações do técnico Fernando Luís, e enfrentaram a Suécia como bem entenderam. A derrota por 2 a 0 levou à eliminação precoce do Mundial.

Roseli Seleção Feminina Olimpiadas Atlanta 1996Getty

Dividida entre o campo e o salão, Roseli ainda ficou cerca de um ano afastada por futebol após realizar uma cirurgia no joelho. Recuperou-se a tempo da Copa de 1995, na Suécia.

Dos três gols anotados pelo Brasil em 95, dois foram de autoria da atacante. O primeiro, contra as anfitriãs, consta como um dos mais belos do torneio. Passou por duas marcadoras para receber um cruzamento de Pretinha, que vinha avançando desde antes do meio-campo com uma sueca na cola. Vestindo a 11, Roseli deu um toque por cima da goleira e mandou a bola direto no fundo do gol.

Assista, no especial da FIFA, ao gol de Roseli contra a Suécia (a 1:07 de vídeo), clicando AQUI

"Aquele gol, às vezes quando falam dele para mim, eu choro", admite.

A vitória por 1 a 0 foi a única do torneio. O Brasil perdeu por 1 a 0 para o Japão e seguiu para o confronto final diante da Alemanha. As adversárias saíram na frente e Roseli igualou o placar, mas não pôde evitar a derrota por 6 a 1. Apesar de outra eliminação na fase de grupos, a atleta atraiu a atenção de clubes no exterior e foi a segunda jogadora brasileira a atuar fora do país. Seu primeiro destino foi o Japão, onde se sentiu “muito bem tratada” apesar das diferenças culturais e dificuldade de comunicação. Depois, rumou para os EUA, onde chegou a jogar com a companheira de seleção Pretinha e a ícone norte-americana Mia Hamm. Integrou, ao longo da carreira, clubes tradicionais como Saad, Vasco, São Paulo, Palmeiras, Corinthians e Botucatu.

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Às voltas com a Seleção

Roseli Seleção Feminina Brasil Olimpiadas Atenas 2004GettyEnfim, a prata: Roseli em duelo contra a Grécia, nas Olimpíadas de Atenas 2004 (Foto: Getty)

Roseli se descreve como questionadora e incisiva no futebol feminino. Sem ser convocada para as Copas de 1999 e 2003, fator que alega ter relação com as desavenças ao tratar da modalidade, também via ameaças de corte na Olimpíada de 2004. A chegada de Renê Simões à equipe garantiu sua vaga no time titular.

Sete quilos acima do peso ideal para jogar, Roseli teve que ser submetida a uma dieta especial com a nutricionista da seleção para retornar à equipe. “Foi a última jogadora que inscrevi”, conta Renê.

A insistência do treinador valeu a pena: Roseli encerrou a carreira na seleção naquele mesmo ano, mas com uma medalha de prata dos Jogos Olímpicos no currículo, após dois ciclos de tentativas (1996 e 2000).

Sua saga dentro das quatro linhas seguiu até 2009, quando passou a atuar com projetos ligados ao futebol feminino. "Achavam que eu não ia chegar a lugar nenhum com o futebol. Cheguei."

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