Maceió nos registros do turista aprendiz Mário de Andrade

Av. Conselheiro Saraiva, futura Av. da Paz, no início do século XX

Por Ernani Viana 
Com Editoria

O modernista Mário de Andrade empreendeu, a partir da década de 20 do século XX, uma jornada pelas regiões Norte e Nordeste do país com objetivo de registrar os traços de originalidade presente nas expressões e manifestações da cultura popular brasileira.

O consagrado escritor, poeta, crítico de arte, musicólogo, fotógrafo, pesquisador do folclore nacional e um dos idealizadores da Semana de Arte de Moderna de 1922 temia as consequências das interferências causadas pelo processo de urbanização iniciado ao final do século XIX.

Mário de Andrade, o primeiro à esquerda, em 1927. Foto de Paulo Duarte

Esta aventura o permitiu produzir a Missão de Pesquisa Folclórica de 1938 e um livro póstumo chamado O Turista Aprendiz (Brasília, DF: Iphan, 2015. 464 p), este escrito na forma de diário de viagem e distribuído em duas partes:

I) Viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega – 1927: Parte do Rio de Janeiro em maio daquele ano e traslada o litoral brasileiro até o Pará. De lá adentra até a Bolívia por via fluvial passando pelos mais conhecidos rios da Amazônia. Esta viagem durou três meses e contou com a companhia de amigas e financiadores do movimento modernista.

II) Notas de Viagem ao Nordeste: Diário 1928-1929: Desta vez sai só do Rio de Janeiro em dezembro de 1928 e retorna em fevereiro do ano seguinte. Conta com a colaboração de amigos, intelectuais e escritores que o recepcionam nos diversos estados do Nordeste, em Alagoas inclusive.

O turista aprendiz Mário de Andrade em Belém

Em Maceió

Mário de Andrade assim registrou sua primeira passagem por Maceió, no dia 14 de maio de 1927:

(…)
Maceió
A noitinha clara paramos ao largo de Maceió, pra um grosso desembarcar. Veio um catraieiro cantando Meu barco é veleiro, um coco lindíssimo, e fincou um arpão no Pedro I. Então desceram tantas malas de correio, mas tantas, que toda a gente de bordo ficou farta de saber que em Alagoas está muito desenvolvida a literatura epistolar.

Em 9 de agosto do mesmo ano, quando retornava da expedição ao Norte, o navio ancorou novamente em Maceió:

(…) Maceió está à vista, são quinze horas. Descemos no barco de vela. Auto [indicando que usou um automóvel]. Vamos ao Bebedouro, bem no alto, contemplar as alagoas, Butantã de Maceió. Não, o Butantã de Maceió, é o sururu provado numa tigelada, a bordo, mais sublime do mundo. Que suavidade meiga no açucarado da came rija e sadia. Maceió, feiosinha…

Antes de escrever qualquer consideração sobre Maceió, Mário de Andrade já a conhecia pelos registros do seu avô, Joaquim de Almeida Leite Moraes, que na obra Apontamentos de viagem: de S. Paulo à capital de Goyaz, desta à do Pará, pelos rios Araguaya e Tocantins, e do Pará à Côrte. Considerações administrativas e politicas (1882) assim anotou a sua passagem pela capital das Alagoas em janeiro de 1881:

26 de Janeiro.
Estamos em Maceió. Esta capital, vista ao longe, é uma pequena garça pousada na praia, prestes a fazer o seu vôo… Saltando em terra, fui almoçar no hotel Leão do Norte, sem ser o de Pernambuco: e, não tendo lugar no bonde que partiu para cidade alta, e não havendo outro meio de transporte, segui a pé, caminhando até lá mais de um quarto de légua, e sai no largo onde estão situados dois belos edifícios, o da Tesouraria Geral, e o da Assembleia Provincial. Percorri as ruas mais importantes: Fui ao mercado: pouco movimento: cidade pequena.
E ao meio dia voltei a bordo: as 3h30 continuamos a viagem: às 8hs da noite passamos o São Francisco; amanhecemos nas águas territoriais de Sergipe.

Av. da Paz em 1932

Em 8 de dezembro de 1928, o escritor paulista voltou a citar Maceió no capítulo Notas de Viagem ao Nordeste: Diário 1928-1929:

Nada. Dormi no tédio dia todo. Pelas 20 e 30 [20h30] passa um navio iluminado do lado de terra. É extraordinário! Um senhor que mora em Belém, italiano, associando as coisas (pelas 24 chegaremos a Maceió) me conta: Em Maceió os pretos têm um costume engraçado: quando transportam um piano, costumam cantar, são oito homens, um puxa, os outros secundam, lento, forte, de longe se escuta. É um canto falado, num som só, diz-que pra não desafinar o piano. Eis o canto que ele me deu:

Solo: – O que vem lá na barra?
Coro: – É um naviu.
Etc. (sempre o mesmo texto)

E eu que tenho pelejado pra pegar uma dessas parlendas de carregadores de piano, por um simples acaso de passar um navio, perto de Maceió, consegui afinal integralmente uma delas.

Na segunda etapa da obra escreveu que em 11 de dezembro de 1928 foi recebido por Jorge de Lima e José Lins do Rêgo, “Almoço bar Alemão com sururu, ostras e camarão; ótimo. Passeios no domingo esplêndido.

Em 21 de fevereiro do ano seguinte encontrou Aluísio Branco e Luís Lavenère Wanderley:

Amanheço em Maceió. Pelas 8 horas me aparecem a bordo Jorge de Lima, Lins do Rego e no trapiche já o dezenove anos Aluísio Branco. Visita à Associação Comercial móde ver os objetos de feitiçaria das macumbas. Interessantes. Depois visita ao Lavenère que me oferece livros dele. Depois almoço no Restaurante alemão, sururu, camarões, ponche de maracujá, salada de frutas. Parto às 12 e estou vogando. Vida de bordo entre sono e leitura. Na janta, o companheiro do lado fala em Macunaíma. Me conhece… Caceteação de ir por toda a parte conhecido, observado, interpretado…

Avenida da Paz no início do século 20

Seu último relato sobre cidade é o mais poético de todos. Poucos descreveriam a capital dos alagoanos com tanta precisão e leveza. O texto a seguir foi publicado no jornal Diário Nacional, do Estado de São Paulo, em 30 de dezembro de 1928.

Maceió, 9 de dezembro.

No longe estão os trapiches compridos chamando, são apenas cinco horas e Maceió já está inteirinha acordada de Sol. O mar tem uma riqueza de verde, maior que Copacabana. E então quando vistos de terra os verdes seccionam-se retos com essa liberdade plástica da natureza que os pintores dela têm vergonha de imitar porque… não é natural.

Um nadador aproveita o domingo, vem lá da praia longe bordejar o navio. O corpo dele é um jacarandá claro movendo por debaixo d’água com a volúpia cinemática dum ralenti. Como é bonita a raça humana!

Depois do ajuntamento dos trapiches impertinentes, chamando que mais chamando, Maceió se estende pra esquerda numa fila de casas praieiras. Uma procissão de casas que a velhice já tornou boas. No meio delas o mal chama a atenção, como sempre…

É uma creio que Associação Comercial em grego, absolutamente intraduzível. Mais pra diante surge outra boniteza uma espécie de casa enfeitada, com ar de rica, onde mora naturalmente algum senhor, a família dele e um zimbório [faz referência à cúpula hemisférica do prédio do atual Museu Théo Brandão]. É uma pena.

Não tive tempo no passeio pra examinar a arquitetura da cidade. Me pareceu comum porém sincera. Distingue-se muito, no meio dela, pela graça discreta, a ausência de empetecamento e um corpo manso, bem equilibrado, a casa nova de Jorge de Lima, poeta da Negra Fulô. Negra Fulô, Jorge de Lima, a casa dele, o amigo nosso Lins do Rego, ponche de maracujá, o sururu das alagoas, são tesouros de Maceió.

No fim da viagem inda passarei uns dias aqui, hei-de contar melhor como é Maceió por dentro. Hoje quase que não vi nada. Fui levado no embalanço dos amigos, por praias, no gradeado dos coqueiros, por morretes colhendo sururu na aba das alagoas, por estradas de rodagem mansas, que não chamam atenção… Fui levado num ritmo dançado de lembranças, de conversas, de olhar feliz deslizando pela boniteza dominical daqueles lugares sem nome inda pra mim…

– Como se chama aqui?

– É Fernão Velho.

Tem feira de domingo em Fernão Velho. O pessoal se espraia na areia clara vendendo coisinhas mansas, cornimboques, cerâmicas recém-nascidas, frutas, e os guaiamuns do azul mais lindo que jamais não vi. Um azul sem céu, feito de vários azuis, azuis humanos, natureza-morta, aliás viva, pra desgraçar o melhor colorista. Em de mais longe, pessoal que veio talvez da banda de lá da alagoa, desce dos cavalinhos de presepe, vai comprar. Maceió é terra de moça bonita. Passam algumas dum sabor popular que sai fogo, alargando o critério da feira até o amor.

E está chegando o tempo de festar. Junto de árvores negras de sol, com paus e barro estão esculpindo uma barcaça de alto-mar. Aí dançarão cantado o fado eterno da Nau Catarineta, é a Chegança… – Sobe, sobe, meu gajeiro… E a caboclada brasileira há-de repisar mais uma feita sem consciência de heranças, brasileira como alagoana, aqueles portugas do fastígio que pra voltar das aventuras passava ano e mais ano buscando terra de Espanha, areias de Portugal…

Tudo isso enche meu peito que nem posso respirar. (Idem. P. 266)

Uma pena que em suas passagens por Maceió, Mário de Andrade não tenha conhecido Maceió por dentro, para assim, com mais contato com a nossa cultura, se somar aos que se empenharam em nos legar suas visões sobre tão rico período da nossa história.

2 Comments on Maceió nos registros do turista aprendiz Mário de Andrade

  1. Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros // 31 de maio de 2021 em 23:03 //

    Bonito trabalho, Ticianeli! Quando a pandemia for embora, voltarei à Biblioteca Nacional, precisamente ao Acervo Arthur Ramos, e lhe remeterei cartas de Mario de Andrade, anos após este turismo, quando ele pede a Ramos que o encaminhe a amigos do Nordeste – estudiosos de folclore, em meados da década de 30. Anos depois Dr. Théo Brandão me relatava ter hospedado Mario de Andrade em sua casa, a pedido de Arthur Ramos, e passado para ele toda a pesquisa já realizada em Alagoas, inclusive as primeiras gravações de folguedos etc.

  2. Ana Guiomar Teixeira Calazans // 2 de junho de 2021 em 13:55 //

    Texto maravilhoso! Obrigada

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  1. Mário de Andrade e o Sururu Alagoano – Ernani Viana – Turismo e Patrimônio Cultural

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