06 fev 2024

Alerta: a reportagem abaixo trata de temas como suicídio e transtornos mentais. Se você está passando por problemas, veja ao final do texto onde buscar ajuda.

Em 1774, o escritor alemão Johann Wolfgang Goethe (1749-1832) publicou Os Sofrimentos do Jovem Werther. No romance, Werther ama Charlotte, que ama Werther, mas se casa com Alberto. Desiludido, Werther tira a própria vida. Reza a lenda que, por ocasião de seu lançamento, o livro teria encorajado uma onda de suicídios entre jovens leitores na Europa. Tanto que foi proibido em países como Itália e Dinamarca.

Ainda no século 18, o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) estreou, em 1791, A Flauta Mágica. Na ópera, Papageno, a exemplo de Werther, também sofre por amor e, por esse motivo, cogita dar fim ao seu sofrimento. No entanto, ao contrário do protagonista de Goethe, é convencido a não tirar a própria vida. Em vez disso, se apaixona por Papagena e dá um novo rumo a sua vida.

Mal sabiam Goethe e Mozart que, séculos depois, suas obras seriam estudadas pela ciência. Em 1974, o sociólogo americano David Phillips cunhou o termo Efeito Werther e, em 2010, o pesquisador austríaco Thomas Niederkrotenthaler criou o conceito de Efeito Papageno. O primeiro defende a tese de que divulgar um ato suicida na mídia teria efeito “contagioso”. Já o segundo argumenta que, ao contrário, teria resultado preventivo. Mas, afinal, publicar matérias sobre suicídio na imprensa previne ou estimula novos casos?

Saída de emergência

Para a psicóloga Karen Scavacini, a resposta à pergunta acima é: “Depende”. Dependendo do jeito como o assunto é tratado, ele pode contribuir tanto para o aumento do número de casos, se for abordado de maneira superficial e apelativa, quanto para sua redução, se o tratamento dado for cuidadoso e responsável. “O ideal é mostrar onde buscar ajuda ou como ajudar a quem precisa”, destaca.

CEO do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio e diretora científica da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção de Suicídio (ABEPS), Karen explica que, se o leitor mais vulnerável se identificar com a pessoa, celebridade ou personagem que cometeu o suicídio, o risco de querer fazer o mesmo é grande. Ela cita os exemplos do ator Robin Williams (1951-2014) e da estudante Hannah Baker, personagem da atriz Katherine Langford na série 13 Reasons Why, produzida pela Netflix.

Ao abordar o suicídio, o ideal é mostrar onde buscar ajuda ou como ajudar a quem precisa Foto: Pixel-Shot – stock.adobe.com

Estudo publicado na revista científica PLOS One revela que, só nos Estados Unidos, a morte de Robin Williams gerou um aumento de 10% no número de casos de suicídio nos cinco meses posteriores à morte do ator, no dia 11 de agosto de 2014. Embora o fenômeno tenha sido observado em ambos os sexos e em todas as faixas etárias, homens entre 30 e 44 anos foram os mais afetados.

No caso da personagem Hannah Baker, de 13 Reasons Why, o aumento foi um pouco maior: 13% nos casos de suicídio de norte-americanos de 10 a 19 anos, entre abril e junho de 2017, os três meses seguintes à estreia do seriado. Em relação ao gênero, o crescimento foi de 12% para os meninos e de 21% para as meninas. O estudo foi publicado na revista JAMA Psychiatry.

“Precisamos conscientizar a população de que suicídio não é saída nem solução. É sofrimento e desespero. Na hora do desespero, o indivíduo acha que o suicídio é a única solução que existe. Mas, há alternativas. O suicídio é um problema de todos”, afirma a psicóloga.

Grito de alerta

Adaptada do livro de Jay Asher, a série 13 Reasons Why foi duramente criticada por especialistas em prevenção e posvenção de suicídio. Entre outros equívocos, apontaram três que consideram graves: a fatídica cena foi exibida com riqueza de detalhes, estudantes foram apontados como culpados e o ato suicida foi romantizado a ponto de alunos transformarem o armário de Hannah numa espécie de altar. “Não se deve romantizar o suicídio, como se fosse um ato de heroísmo ou uma prova de coragem”, adverte a psiquiatra Alexandrina Meleiro.

A coordenadora da Comissão de Estudo e Prevenção ao Suicídio da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) explica que, ao abordar o tema, a imprensa deve destacar os fatores de proteção e alertar sobre os fatores de risco.

Segundo a cartilha Suicídio: Informando para Prevenir, são exemplos de fatores de proteção: autoestima elevada, bom suporte familiar, laços sociais bem estabelecidos, acesso à serviços de saúde, entre outros. Já os principais fatores de risco são tentativa prévia de suicídio e presença de transtorno psiquiátrico, além de condições como perdas recentes, abusos sexuais, desemprego, presença de doenças graves e incapacitantes, pouca resiliência e capacidade de adaptação.

“O suicídio precisa deixar de ser tabu. Trazer essa discussão à tona com responsabilidade pode salvar vidas”, pondera Alexandrina.

Em 2019, após consultar especialistas em saúde mental, a Netflix optou por editar a polêmica cena do suicídio de Hannah Baker na série 13 Reasons Why.

Diretrizes para falar sobre o assunto

Em 2000, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou o manual Prevenção do Suicídio, voltado para profissionais da mídia. Coordenada pelo psiquiatra italiano Diego de Leo, a cartilha lista exemplos do que fazer e do que não fazer.

No primeiro grupo, orienta referir-se ao suicídio como “consumado”, apresentar dados em páginas internas de jornais e revistas e fornecer números de telefones e endereços de grupos de apoio. No segundo grupo, recomenda, entre outros, não publicar fotos do falecido ou cartas suicidas, não informar detalhes do método utilizado e não usar estereótipos religiosos ou culturais.

Em 2020, especialistas líderes em prevenção do suicídio se juntaram a diversas organizações internacionais, escolas de jornalismo, empresas de mídia, jornalistas renomados e experts em segurança na internet para elaborar mais recomendações. Elas foram baseadas em mais de 50 estudos internacionais sobre suicídio. O projeto, chamado Reporting on Suicide, chama a atenção para o fato de que o efeito de contágio é real, mas destaca que as reportagens jornalísticas podem resultar na busca por ajuda quando incluem recursos úteis e mensagens de esperança e recuperação.

“Um dos maiores erros é dar um tom sensacionalista à cobertura”, avisa a socióloga Dayse Miranda, presidente do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES). “Manchetes como ‘epidemia de suicídio’ e informações como ‘a cidade com a mais alta taxa de suicídio do mundo’ devem ser evitadas porque causam impacto na população”.

A recomendação sobre não divulgar detalhes do suicídio faz todo sentido. Em 2020, o pesquisador austríaco Thomas Niederkrotenthaler, o criador do Efeito Papageno, revisou os dados de 31 estudos sobre a associação entre relatos de suicídios na mídia, principalmente os cometidos por famosos, e taxas de suicídio na população em geral. Em geral, o aumento é de 13%. Mas, quando os meios de comunicação divulgam o método utilizado pela celebridade para dar fim à própria vida, o índice tende a saltar para 30%. O fenômeno foi estudado na Europa, Ásia, América do Norte e parte da Oceania (Austrália).

Mito ou realidade?

No Brasil, o Centro de Valorização da Vida (CVV) também lançou um manual, o Como Vai Você?, de 2020. Mas, se o guia da OMS é voltado para jornalistas, o do CVV é direcionado para pais e educadores. Com apoio técnico do psiquiatra Neury Botega e da psicóloga Karen Scavacini, a cartilha ensina a identificar os sinais de comportamento suicida entre atitudes (mudanças de comportamento, desejos de morte e oscilações de humor, entre outros) e expressões (“Quero sumir”, “Não aguento mais”, “Estou cansado de tudo”…).

Também disseca alguns mitos, como “A maioria dos suicídios acontece de repente, sem aviso prévio”, “Quem fala em tirar a própria vida não o faz” e “Tocar no assunto pode dar ideia a quem não estava pensando nisso”. “O suicídio é um fenômeno multifatorial. Em outras palavras, não há uma única razão para uma pessoa decidir tirar a vida. Todas as hipóteses são possíveis. Não nos cabe julgar o que aconteceu, nem culpar ninguém pelo que aconteceu”, explica a psicóloga Maria Júlia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) da Universidade de São Paulo (USP).

Segundo dados do CVV, cerca de 3,5 mil voluntários atendem uma média de 8 mil ligações por dia através do número 188 (ligação gratuita).

O que fazer

  • Trabalhar em conjunto com autoridades de saúde na apresentação dos fatos;
  • Referir-se ao suicídio como “consumado” e não como “bem-sucedido”;
  • Apresentar somente dados relevantes em páginas internas, no caso de veículos impressos;
  • Destacar as alternativas ao suicídio;
  • Fornecer números de telefones e endereços de grupos de apoio e serviços onde se possa obter ajuda;
  • Mostrar indicadores de risco e sinais de alerta sobre comportamento suicida.

O que não fazer

  • Não publicar fotografias do falecido ou cartas suicidas;
  • Não informar detalhes do método utilizado;
  • Não fornecer explicações simplistas;
  • Não glorificar o suicídio ou fazer sensacionalismo sobre o caso;
  • Não usar estereótipos religiosos ou culturais;
  • Não atribuir culpas.

Fonte: Prevenção do Suicídio: Um Manual para Profissionais da Mídia (OMS, 2000)

Mais recomendações ao tratar do tema

  • Em vez de descrever o método (enforcamento) ou mencionar o local (chuveiro), dizer apenas que o indivíduo cometeu suicídio e não entrar em detalhes;
  • Em vez de usar palavras apelativas (“epidemia”), recorrer a fontes seguras de órgãos confiáveis, e contextualizar o aumento de mortes em relação ao ano anterior;
  • Em vez de romantizar ou glamourizar o ato, combater a ideia de que o suicídio está ligado à honra ou à lealdade a um grupo ou a uma pessoa;
  • Em vez de apelar para detalhes sensacionalistas no título ou na matéria, pensar na família enlutada na hora de redigir um texto sensível e empático;
  • Em vez de simplificar o suicídio ou especular sobre o motivo, fornecer sinais de alerta e fatores de risco, como depressão e alcoolismo;
  • Em vez de compartilhar o conteúdo de um bilhete, explicando porque fulano se matou (dívida ou desemprego), dizer que um bilhete foi encontrado e nada mais.

Fonte: Reporting on Suicide, 2020

Orientações especiais para veículos digitais e conteúdos audiovisuais

  • Não poste conteúdo que exponha qualquer pessoa de forma humilhante ou vexatória;
  • Não publique comentários que incitem violências, reforcem preconceitos ou promovam perseguição online;
  • Não compartilhe mensagens alarmistas que possam ocasionar gatilhos de desespero e ansiedade;
  • Não divulgue conteúdos e falas que apresentem ou deixem subentendido que o suicídio é a solução para momentos difíceis ou que transtorno mental é algum tipo de “fraqueza”;
  • Não peça para a pessoa “reagir” e “sair dessa” – acredite, não é tão simples assim; e ela quer “sair dessa” o mais rápido possível, mas não consegue só com a força do pensamento;
  • Não divulgue métodos para se machucar ou para ferir outras pessoas;
  • Não compartilhe ou produza imagens de autolesão e métodos de suicídio;
  • Não faça piadas de pessoas que estão tristes ou passando por dificuldades;
  • Não poste fotos ou compartilhe endereços de locais conhecidos por terem muitos suicídios na cidade (os chamados ‘hot spots’);
  • Não reduza transtornos mentais a comportamentos “problemáticos” ou a “necessidade de chamar atenção”;
  • Não coloque a morte como sendo a saída para o sofrimento;
  • Não promova fofocas ou considerações sobre a saúde mental dos outros, você não sabe pelo que a pessoa pode estar realmente passando;
  • Não fale nome de medicações, dosagens e formas de uso;
  • O transtorno mental e a falta de saúde mental não estão relacionados à falta de coragem, de religião, à fé ou a pecado;
  • Não compartilhe fake news ou mensagens de origem duvidosa;
  • Não promova conteúdo que gere violência, incite massacre ou que coloque a própria vida ou de outra pessoa em risco;
  • Não compartilhe “desafios” perigosos ou que incitem autolesão ou lesão a outras pessoas.
  • Fonte: Como falar de forma segura sobre saúde mental – A internet que a gente faz (Instituto Vita Alere, 2022)

    Onde Saber Mais

    Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio:

    www.vitaalere.com.br

    Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio (ABEPS):

    www.abeps.org.br

    Onde buscar ajuda

    Se você está passando por sofrimento psíquico ou conhece alguém nessa situação, veja abaixo onde encontrar ajuda:

    Centro de Valorização da Vida (CVV)

    Se estiver precisando de ajuda imediata, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV), serviço gratuito de apoio emocional que disponibiliza atendimento 24 horas por dia. O contato pode ser feito por e-mail, pelo chat no site ou pelo telefone 188.

    Canal Pode Falar

    Iniciativa criada pela Unicef para oferecer escuta para adolescentes de 13 a 24 anos. O contato pode ser feito pelo WhatsApp, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h.

    SUS

    Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) voltadas para o atendimento de pacientes com transtornos mentais. Há unidades específicas para crianças e adolescentes. Na cidade de São Paulo, são 33 Caps Infantojuventis e é possível buscar os endereços das unidades nesta página.

    Mapa da Saúde Mental

    O site traz mapas com unidades de saúde e iniciativas gratuitas de atendimento psicológico presencial e online. Disponibiliza ainda materiais de orientação sobre transtornos mentais.

Por: André Bernardo, Estadão, 14/12/2023

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