Fernando Fabbrini

Discurso do óbvio

Estamos lendo e ouvindo isso mesmo?

Por Fernando Fabbrini
Publicado em 27 de outubro de 2022 | 05:00
 
 
 
normal

De fato, parece que algumas pessoas são dotadas do privilegiado dom da premonição. No século XVIII, o brilhante Chesterton já filosofava sobre a onda de estupidez que ele antevia, assustadora, no horizonte da humanidade. “Chegará o dia em que teremos de provar que a grama é verde” – disse ele. Giorgia Meloni, a nova primeira-ministra italiana, também citou-o num de seus discursos com outra frase semelhante “ainda teremos batalhas com fogo e espadas para provar que dois mais dois são quatro”.

Aqui no Brasil o implacável Nelson Rodrigues já havia denunciado essa coisa ululante e a ela até dedicou um livro. Parece que, por umas décadas, o óbvio permaneceu adormecido em companhia da burrice. Mas eis que, na virada do século, ganhou novas forças e faz grande reestreia.

Revistas no consultório

Meu contato mais recente com os discursos do óbvio ocorreu certa tarde, numa sala de espera. Recepções de consultórios costumam ser depósitos de revistas “Caras” antigas. Na falta de algo melhor para passar o tempo antes do suplício, resta ao cliente folheá-las sem compromisso, correndo os olhos pelas fotos sorridentes de socialites, milionários e celebridades do momento.

Ilustrando tais reportagens o redator da publicação pinça frases ditas pelos referidos entrevistados, espargindo sobre o universo dos leitores pérolas de sabedoria e filosofia profunda. Declarou o ator da TV: “a vida é uma coisa muito bonita”. A jovem senhora que abraçava duas crianças: “meus filhos são muito queridos”. O cirurgião plástico, rodeado de gente: “importante é cultivar as amizades”. Tudo entre aspas e em letras grandes, fazendo o leitor se extasiar diante de tais dádivas sapientes, ponderações originais e fundamentais para os rumos da humanidade.

Numa embalagem de pão – comum – estão impressas três dicas. A primeira: “experimente sua baguete com manteiga. É uma delícia!” Segunda: “Sua baguete com requeijão cremoso fica ainda mais gostosa”. A terceira: “a baguete é perfeita para acompanhar saladas. Já experimentou?” Isso é o que nos agride pelas manhãs.

Óbvio na TV

Enquanto degusto meu café com pão, criei o hábito de deixar a TV ligada como fundo sonoro do amanhecer, inteirando-me dos fatos recentes por meio dos jovens repórteres e apresentadores. Alertado, apuro os ouvidos. Pelo visto, tudo indica que o discurso do óbvio acompanhado de sua fiel amiga platitude arrumou emprego fixo nas emissoras.

Ele se insinua sorrateiro nas falas dos incautos e, como um tiro de canhão, alcança nossas orelhas fazendo um baita estrago. Informando aos telespectadores sobre a circulação nos logradouros públicos – como dizem os burocratas – disse a repórter: “o trânsito está bastante pesado agora na avenida por causa dos automóveis e caminhões”. Suspirei aliviado. Ainda bem: já pensou se fosse por conta de elefantes, hipopótamos e rinocerontes caminhando no asfalto?

Ataque aos ouvidos

Meus ouvidos mal se recuperavam do último ataque quando outro repórter afirmou, convicto que “o aumento de acidentes com motos pode estar relacionado com o aumento de entregas feitas por motoboys”. Puxa! Não teria sido pelas conjunções adversas do zodíaco?

Mudei de canal. Neste, especializado em negócios, o entrevistado coroou sua fala com a frase: “a empresa produziu novos produtos e com eles alcançou alta produtividade”. Quase me engasguei com um pedaço de pão.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!