Estado de Minas GASTRONOMIA

Fomos à Noruega para contar o caminho do bacalhau da pesca ao prato

Viajamos até o país escandinavo, maior produtor mundial do peixe, e acompanhamos todo o processo até o bicho se tornar o ingrediente amado nas mesas brasileiras


postado em 14/09/2023 08:37 / atualizado em 14/09/2023 08:37

Localizada na península da Escandinávia, na Europa do Norte, a Noruega tem 5,46 milhões de habitantes: é considerado o país mais desenvolvido do mundo, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)(foto: Carolina Daher/Encontro)
Localizada na península da Escandinávia, na Europa do Norte, a Noruega tem 5,46 milhões de habitantes: é considerado o país mais desenvolvido do mundo, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (foto: Carolina Daher/Encontro)
Com certeza, o leitor já ouviu a expressão "parece até cabeça de bacalhau". O que se quer dizer com essa frase é que é algo impossível de ser encontrado. Pois bem. Fomos atrás não só da cabeça, mas também da história do tal bacalhau. Durante uma viagem para a Noruega, acompanhamos todo o processo - da pesca à mesa - desse ingrediente tão querido pelos brasileiros.

Antes de tudo vale lembrar que bacalhau não é um peixe. Na verdade, é um processo que pode ser aplicado em várias espécies. O mais nobre, também conhecido como bacalhau da Noruega, é o Gadus Morhua. É lá, nas águas geladas e límpidas do país nórdico, que se concentra a maior parte desse peixe. Suas características são marcantes, como a posta alta em que a carne se desmancha em lascas. Para ser considerado um ingrediente premium, o Gadus é pescado na linha (assim evita que um peixe machuque o outro na rede) e abatido assim que chega ao barco, para garantir uma carne bem branca.

Ingrediente premium: o Gadus Morhua é pescado na linha (assim, evita-se que um peixe machuque o outro na rede) e abatido tão logo chega ao barco, para garantir uma carne bem branca(foto: Carolina Daher/Encontro)
Ingrediente premium: o Gadus Morhua é pescado na linha (assim, evita-se que um peixe machuque o outro na rede) e abatido tão logo chega ao barco, para garantir uma carne bem branca (foto: Carolina Daher/Encontro)
Em seguida, é congelado imediatamente, o que faz com que mantenha seus aspectos originais. A pesca dessa espécie é protegida e só pode ocorrer entre janeiro e abril. Para além dele, existem o Saithe, Zarbo e Ling, que não precisam respeitar um período de defeso. São pescados o ano inteiro. Apesar de menores e com menos valor comercial, são conhecidos como "tipo bacalhau", já que também passam pelo processo de secagem e salga. São perfeitos para serem usados em preparos que pedem uma carne mais seca como bolinhos ou desfiados.

Com isso em mente, vamos entender como é feita a pesca e o preparo do bacalhau, que percorre quase 10 mil quilômetros para alegrar nossas mesas - principalmente na Páscoa e no Natal. Para começar, a Noruega está localizada na península da Escandinávia, na Europa do Norte. Seu território é formado por uma longa linha costeira repleta de reentrâncias onde se formam os fiordes, com saídas para o Atlântico Norte e banhado pelos mares de Barents, da Noruega e do Norte. As geleiras são comuns à paisagem em quase todas as regiões. Possui uma população de 5,46 milhões de habitantes e é considerado o país mais desenvolvido do mundo, segundo seu IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Sua economia é baseada em atividades como exploração petrolífera, pesca, indústria naval e setor de serviços. Mais do que isso: a Noruega é a terra do bacalhau!

O diretor administrativo Carl Johan Pettersen, da companhia Myre Saltfish Group, que beneficia entre 120 e 150 toneladas por dia:
O diretor administrativo Carl Johan Pettersen, da companhia Myre Saltfish Group, que beneficia entre 120 e 150 toneladas por dia: "O processo, da pesca à exportação, leva até um ano" (foto: Carolina Daher/Encontro)
Faz tempo que o país sustenta esse título. A história começa lá na era viking, entre os anos de 793 e 1066 d.C. Em inglês, o bacalhau da Noruega é chamado de clipfish. A palavra clip deriva do nórdico antigo klepper, que se refere a um tipo de formação rochosa muito comum na costa da Noruega. Nessas pedras os peixes brancos eram tradicionalmente espalmados e secos, o que possibilitou as viagens marítimas ao redor do mundo, já que o método de secagem fez com que o alimento durasse mais e eles pudessem ficar muito tempo no mar. Mas foi com a chegada dos portugueses e espanhóis ao país que o bacalhau ganhou o mundo. Exportado para o sul da Europa desde o século XVIII, o pescado tem uma íntima relação com os rituais católicos. Uma antiga tradição da religião cristã é jejuar e se abster de carne "de sangue quente" às vésperas das datas sagradas, causando um aumento da demanda de peixes durante esses períodos. Isso fez com que os países bascos saíssem em busca de exportadores. Foram parar, assim, na Noruega.

Desde então, Portugal é o maior importador de bacalhau na Noruega, que é o maior produtor e exportador do mundo. A paixão pelo pescado parece ter sido herdada por nós, brasileiros, já que somos o segundo maior comprador. São cerca de 15 mil toneladas por ano. "Mas a expectativa é que se chegue a 17 mil toneladas em 2023", diz Randi Bolstad, diretora do Conselho Norueguês da Pesca do Brasil e Caribe.

A adolescente Thilde Sundberg: com 14 anos de idade, ela trabalha com outros jovens como ela na retirada da língua, no período de janeiro a abril(foto: Carolina Daher/Encontro)
A adolescente Thilde Sundberg: com 14 anos de idade, ela trabalha com outros jovens como ela na retirada da língua, no período de janeiro a abril (foto: Carolina Daher/Encontro)
A jornada do bacalhau da Noruega até a mesa de outros países é bem longa e começa antes mesmo de o peixe perder a cabeça. O bacalhau recém-pescado é comprado pelas empresas por meio de um leilão, intermediado pelo governo. A ideia é garantir que o valor seja justo para ambas as partes, pescadores e comerciantes. Apesar de manterem a tradição milenar da pesca, hoje os processos são modernos. Existem empresas especializadas na limpeza, secagem e salga.

Logo depois da pesca, o peixe é congelado, o que faz com que mantenha seus aspectos originais: passa então por uma salmoura de duas semanas. Depois, é lavado e novamente salgado, antes de entrar em uma câmera de secagem com um vento constante de 22 graus(foto: Carolina Daher/Encontro)
Logo depois da pesca, o peixe é congelado, o que faz com que mantenha seus aspectos originais: passa então  por uma salmoura de duas semanas. Depois, é lavado e novamente salgado, antes de entrar em uma câmera de secagem com um vento constante de 22 graus (foto: Carolina Daher/Encontro)
A viagem pela rota do bacalhau começa no porto de Myre, no extremo norte do país. Por lá, é possível, inclusive, pegar um barco - no nosso caso um antigo baleeiro, que também foi usado durante a II Guerra - para viver a experiência de pegar o peixe diretamente no mar. Tarefa nada fácil, já que a temperatura no dia era de - 16º C, com sensação térmica de -20º C, um vento cortante e água agitada do ártico. O porto, no Atlântico Norte, é um dos maiores na recepção do Gadus Morhua. Por ali, cinco empresas recebem os peixes e fazem o primeiro beneficiamento, a salga. Cerca de 95% de toda a produção é despachada para Portugal, onde é dessalgado e revendido para o Brasil.

Uma das delícias feitas com o pescado e provadas na viagem: bacalhau fresco assado, salicórnia, bottarga, crumble de batata, aspargos do mar e veloute de batata com ostra(foto: Carolina Daher/Encontro)
Uma das delícias feitas com o pescado e provadas na viagem: bacalhau fresco assado, salicórnia, bottarga, crumble de batata, aspargos do mar e veloute de batata com ostra (foto: Carolina Daher/Encontro)
A companhia Myre Saltfish Group beneficia entre 120 e 150 toneladas por dia. O processo é quase artesanal. Primeiro, o peixe é aberto e sua espinha dorsal removida, o que permite que ele seja espalmado. Em seguida, eles passam por "chuveiros" de sal por pelo menos três vezes. De lá, o produto segue para as indústrias de secagem, que em sua grande maioria ficam na cidade turística de Alesund, conhecida como a capital do bacalhau. A Brodrene Sperre é uma delas. Depois de passar por uma salmoura de duas semanas, o peixe é lavado e novamente salgado. A partir daí, ele entra em uma câmera de secagem com um vento constante de 22 graus. Outra empresa é a Jacob Bjorge, que envia 70% de toda sua produção de Gadus diretamente para o Brasil. Fundada em 1937, é comandada pela mesma família há quatro gerações. Seu maior diferencial é trabalhar com peixes maiores, o que garante um produto premium. "O processo, da pesca à exportação, leva até um ano", afirma o diretor administrativo Carl Johan Pettersen. Ou seja, o bacalhau que estará na mesa na ceia de Natal, precisou de muito, muito tempo para matar a nossa fome.

Cinco curiosidades sobre o bacalhau da Noruega

1) A técnica mais antiga de preparar o bacalhau pertence aos vikings, que secavam o peixe em cima das rochas como método de conservação. O ato de salgar e curar o bacalhau surgiu com a chegada do povo basco, que habitava a região entre Espanha e França. Hoje, todo o sal usado na salga do bacalhau vem da Tunísia, já que a Noruega não tem salinas.

2) Não só tem cabeça, como tem língua! A retirada da língua do bacalhau é tradicionalmente feita por crianças, que trabalham no período de janeiro e abril e chegam a retirar 50 quilos por dia da iguaria. Thilde Sundberg, de 14, faz isso desde os 6 anos de idade. O dinheiro vai direto para a poupança. Seu sonho quando crescer é ser médica e trabalhar em ambulância.

3) O bacalhau é consumido de diferentes maneiras pelo mundo afora. No Brasil, herdamos dos portugueses a paixão pelo bolinho e bacalhoada. Quando são pescados na Noruega, algumas partes específicas do peixe seguem para destinos determinados de acordo com a demanda. Parte da espinha vai para a China. As cabeças são vendidas em grande parte para a Nigéria, na África. Já a língua, fica em território norueguês é uma iguaria servida fresca.

4) A primeira venda para o Brasil foi realizada em 1841, quando o navio Estrela do Norte trouxe para o Rio de Janeiro toneladas de bacalhau e retornou a Escandinávia carregado de açúcar e café.

5) Do bacalhau, tudo se aproveita. As vísceras e espinhas são usadas na indústria cosmética e na biomedicina em forma de ômega 3, óleo e colágeno; as ovas são consumidas salgadas (caviar) ou curadas (bottarga) e a pele é transformada em couro. 

*A jornalista viajou a convite do Conselho Norueguês da Pesca

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