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Paulo Pontes, A Arte das Coisas Sabidas - Paulo Vieira

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<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>:<br />

A <strong>Arte</strong> <strong>das</strong> <strong>Coisas</strong> Sabi<strong>das</strong><br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Vieira</strong><br />

São <strong>Paulo</strong><br />

1 9 8 9<br />

Trabalho apresentado à Escola<br />

de Comunicações e <strong>Arte</strong>s<br />

da Universidade de São <strong>Paulo</strong><br />

para obtenção do título de Mestre,<br />

sob a orientação do<br />

Prof. Dr. Sábato Antônio Magaldi


Este trabalho só foi possível graças a algumas aju<strong>das</strong> valiosas, às quais expressamos nossos<br />

agradecimentos:<br />

À Capes, através do programa PICD, que concedeu-nos uma bolsa de estudo com a qual pude-<br />

mos adquirir, em diversas hemerotecas e jornais, o material indispensável à nossa pesquisa.<br />

A Carmelinda Guimarães, que cedeu-nos uma cópia de Medeia, de Vianinha.<br />

A <strong>Paulo</strong> Dourado, da UFBA, que localizou e enviou-nos cópia do texto Check-up.<br />

A Débora, pela infinita simpatia.<br />

A Jussara, por tudo que acrescentou e por tudo que lhe subtraí nos longos meses de nossa soli-<br />

dão.<br />

Ao Prof. Dr. Sábato Antônio Magaldi, por quem tivemos a felicidade de ser orientado, sempre<br />

gentil e compreensivo, o nosso mais sincero agradecimento.<br />

Finalmente, ao Prof. Dr. Décio de Almeida Prado e o Prof. Dr. Fausto Fuser, que concedeu-nos<br />

a honra da arguição e aprovação deste trabalho.


Conteúdo<br />

Apresentação ............................................................................................................................................. 4<br />

PRIMEIRA PARTE ................................................................................................................................. 7<br />

RODÍZIO OU O EXERCÍCIO DA PALAVRA .................................................................................... 7<br />

1. Cena Aberta ....................................................................................................................................... 8<br />

2. Rodízio ............................................................................................................................................. 12<br />

3. A Palavra que Gera ........................................................................................................................ 21<br />

4. O Encontro com Vianinha.............................................................................................................. 22<br />

5. O Fio da História ............................................................................................................................. 23<br />

6. Uma outra republiqueta sul-americana ........................................................................................ 26<br />

7. As Intenções do Opinião ................................................................................................................. 32<br />

8. A volta ao lar ................................................................................................................................... 34<br />

SEGUNDA PARTE ................................................................................................................................ 37<br />

PARAÍ-BÊ-A-BÁ OU A LEITURA DE UM DESTINO .................................................................... 37<br />

1. Por que um espetáculo sobre a Paraíba? ...................................................................................... 39<br />

2. O Texto............................................................................................................................................. 41<br />

3. O Palco da Crise .............................................................................................................................. 49<br />

4. A crise no Palco ............................................................................................................................... 52<br />

5. A volta ao Rio .................................................................................................................................. 58<br />

TERCEIRA PARTE ............................................................................................................................... 60<br />

A TELEVISÃO OU A MASSA COMO MEIO.................................................................................... 60<br />

1. Bibi - Série Especial ........................................................................................................................ 66<br />

QUARTA PARTE ................................................................................................................................... 95<br />

TEATRO OU AS COISAS SABIDAS .................................................................................................. 95<br />

1. Teatro ............................................................................................................................................... 96<br />

2. Um Edifício Chamado 200 ............................................................................................................. 97<br />

3. Check-up ........................................................................................................................................ 110<br />

4. Dr. Fausto da Silva ........................................................................................................................ 121<br />

5. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo ........................................................................... 130<br />

6. Gota D'água ................................................................................................................................... 138<br />

O Desfecho da Festa ...................................................................................................................... 173<br />

Cronologia ..................................................................................................................................... 177<br />

Bibliografia .................................................................................................................................... 182


Apresentação<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> foi um homem que teve, em relação à arte, um ponto de vista socialmente<br />

utilitário. A arte para ele (o teatro em particular), antes de ser veículo de fruição estética, era um<br />

meio de transmitir conhecimento, discutir problemas comuns de um povo, de uma região, de<br />

um grupo.<br />

Mas esse caráter talvez pedagógico da arte não era, de maneira alguma, exclusividade de<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>. Ao contrário, pertencia à sua geração cujo talento para a política foi inegável.<br />

Foi a sua geração que criou os CPCs e, através dos quais, um teatro rápido de agitação e<br />

propaganda; foi a sua geração que aprendeu a inscrever no palco a reflexão como ponto deter-<br />

minante do espetáculo. O palco, com ela, perde a aura de um lugar onde o espetáculo é plenitu-<br />

de, e ganha o status de fomentador de uma consciência esquerdizante, politicamente engajada<br />

num projeto nacional e popular, onde, partindo-se de uma idéia de povo e sua cultura, tenta-se<br />

repensar um país e sua história.<br />

Foi sua geração que viu a vitória <strong>das</strong> forças conservadoras em 1964, num momento que<br />

parecia - ao menos para eles - que o país caminhava para um salto qualitativo em termos soci-<br />

ais; foi ela que arcou com o ônus da derrota <strong>das</strong> forças populares; que viu os seus projetos ruí-<br />

rem como cartas de um jogo trapaceado; foi ela que enfrentou as forças repressivas, e de-<br />

sesperou-se nos anos duros do regime autoritário.<br />

Foi sua geração, enfim, que tentou entender nosso país.<br />

Mas, para entender é preciso raciocinar. Daí porque a cena cede lugar à razão. Daí por-<br />

que grupos como o Arena, como o Opinião, formularem projetos onde o palco repensaria a his-<br />

tória política brasileira.<br />

Teatro ou pedagogia? Espetáculo ou sociologia? A cena, como lugar <strong>das</strong> coisas sabi<strong>das</strong>,<br />

ou como escura aventura sobre o insólito? Sobre uma ou outra coisa construiu-se a cena brasi-<br />

leira nos anos difíceis da repressão.<br />

A formação profissional de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> era de comunicador. Dominava a linguagem da<br />

comunicação de massa e, por isso, entendia que o público gosta do que conhece.


<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> não concordava com um espetáculo cujo resultado fosse um mergulho no<br />

imaginário, nas neuroses ou fantasias do artista. O seu objetivo, como se fora um pedagogo, era<br />

instruir; o seu resultado, como se fora cientista, era esclarecer; o seu meio, para isso, era falar<br />

sobre as coisas sabi<strong>das</strong> pelo público, e transformá-las em espetáculo.<br />

Um dia ele disse que é preciso ver a história como continuidade. E porque ele tinha en-<br />

tendimento da história como resultante dos conflitos sociais, entendeu que o melhor espetáculo,<br />

é o espetáculo; que o melhor teatro é o que atrai público; que o melhor público é o que está no<br />

teatro. Política e estética misturavam-se em seu pensamento: com uma, ele apoiava o seu racio-<br />

nalismo; com outra, pensava o teatro pelo gosto do público. As coisas sabi<strong>das</strong>, mas retrabalha-<br />

<strong>das</strong> de modo que o saldo fosse positivo, para o teatro e para o público.<br />

Somar, era esse o seu desejo; nunca perder a perspectiva, era essa a sua visão. E nos<br />

momentos que o artista de teatro cedeu ao desespero e, impotente contra o regime instituciona-<br />

lizado, passou a agredir ao público - embalado por uma vaga idéia de vanguarda - foi a sua voz,<br />

entre outras, que se fez ouvir: teatro não pode prescindir de público. Apontou caminhos e cum-<br />

priu os caminhos que apontou.<br />

Falar de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> é uma maneira de falar de uma geração e de seu modo peculiar de<br />

pensar o teatro brasileiro; é falar de um tempo ainda tão próximo, mas que parece tão distante; é<br />

fazer um esforço para, como sempre lutou <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, não se perder a perspectiva da história.<br />

O desenvolvimento deste trabalho parte de dois planos fundamentais: o primeiro, a biografia de<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>; o segundo, a história como pano de fundo, delineando um cenário onde a pessoa<br />

de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> se postar em destaque. No cruzamento da biografia com a história, encontra-<br />

remos a obra de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, e aí nos deteremos, objetivando extrair dela to<strong>das</strong> as informações<br />

que digam respeito a ele e a seu pensamento sobre a história, a estética e o momento político<br />

em que o país vivia, revelando assim, a unidade de sua obra, como também somando num<br />

mesmo universo de significações, estética e ideologia, como resultante da história.<br />

Dois Pontos a ressaltar: nos prefácios que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> escrevia apresentando a base te-<br />

órica de cada obra, está contido o seu pensamento. Todos os prefácios acompanham o estudo<br />

que fizemos dos seus textos para teatro. São partes importantes para a compreensão da obra e<br />

do problema geral em que cada uma está situada.<br />

Segundo: uma parte dos textos que apresentaremos não está editada ou é de difícil aces-<br />

so. Por isso, para que se possa usufruir melhor a obra de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, resolvemos transcrever<br />

cada texto citado, inclusive para pôr ao critério do leitor textos que nunca foram reunidos em<br />

estudo.


Por fim, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> escreveu muito em companhia de outras pessoas. Por isso, para<br />

que a essência de seu pensamento não se perdesse, limitamo-nos a apresentar apenas as obras<br />

que escreveu individualmente, ou em companhia de uma única pessoa, em teatro e televisão.


PRIMEIRA PARTE<br />

RODÍZIO OU O EXERCÍCIO DA PALAVRA<br />

"Onde começa a história de um povo?<br />

Em que túmulos, em que tumultos está ela oculta? O<br />

que está exposto à luz do sol, o que é subterrâneo?<br />

Qual a verdade dos textos didáticos? Qual o valor da<br />

cultura acadêmica, universitária, oficial? Qual a his-<br />

tória mal contada, perdida, obscurecida? Quem faz a<br />

história?"<br />

Marcos Faerman


1. Cena Aberta<br />

"Meus amigos, boa noite. O negócio é o seguinte..."<br />

Conta o professor Elpídio Navarro que foi assim que começou a carreira teatral do garo-<br />

to Vicente de Paula de Holanda <strong>Pontes</strong>, num dia qualquer do ano de 1956. Naquele ano, o Tea-<br />

tro do Estudante da Paraíba estreara a peça Beata Maria do Egito, de Raquel de Queiroz e, co-<br />

mo era de praxe na estréia, alguém, quer do elenco, quer convidado, deveria fazer um discurso<br />

de apresentação do espetáculo para a platéia. Naquele dia, o velho teatro Santa Roza, em João<br />

Pessoa, estava lotado. Nas coxias o elenco discutia quem, dentre eles, deveria fazer o discurso<br />

de apresentação. O certo é que, tímidos, ninguém se dispunha. Foi quando apareceu o garoto<br />

magricela insistindo para que fosse ele, não outro, o orador. O professor Elpídio Navarro, na<br />

época diretor do Teatro do Estudante da Paraíba, diz que aquele rapazinho oferecido, vivia bis-<br />

bilhotando em volta do grupo teatral e era considerado um chato, metediço ou, como se diz na<br />

Paraíba, intrometido. Vê-se que o garoto não era bem visto. Foi quando, por pura sacanagem<br />

juvenil, resolveram, um pouco também para livrar-se daquele chato de galocha, metê-lo no fo-<br />

go: já que ele insistia tanto, concederam ao magricela a graça de apresentar ao público o espetá-<br />

culo que ora estreava. O moço, decidido, atravessou a coxia e, no palco, fez a sua oração. O que<br />

o pessoal do Teatro do Estudante da Paraíba não esperava era que, dez minutos depois, a platéia<br />

aplaudisse o garoto desajeitado com tão grande entusiasmo que, eles próprios, antes desconfia-<br />

dos, fizessem fila nas coxias para abraçar aquele fenômeno de magreza e intromissão.<br />

Aquele fenômeno de magreza intromissão foi também um fenômeno de capacidade de<br />

resistência, física e cultural de alguém que, nascido literalmente pobre, soube enfrentar os desa-<br />

fios de uma vida interioranamente medíocre e transformar a falta de perspectiva num projeto de<br />

vida. Não é à toa que ele, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, considerava que um povo como o nosso, que faz da<br />

miséria samba, seria um grande povo, se pudesse dispor de um pouco de feijão no fundo do<br />

prato. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, com o pouco que tinha, soube semear em seu espírito o fruto de uma cultu-<br />

ra sólida, plena de um saber que ele captou no meio da gente humilde: o entender a vida como<br />

um eterno exercício de sobrevivência. Sem metafísica. Concreta. Dura como a realidade de al-<br />

guém que não dispõe de outra coisa a não ser a sua capacidade de trabalho para sobreviver. Di-<br />

fícil como a tarefa que se impôs de instruir-se sem poder contar com ninguém.


<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, ao mesmo tempo em que lia a vida nos papos, nas ro<strong>das</strong> de calça<strong>das</strong>, nas<br />

ruas, na poética determinista da gente humilde, lia também o outro lado, o que estava escrito<br />

nos livros guardados na biblioteca pública de João Pessoa, aquele mundo mágico e distante,<br />

mágico e transcendente, como é o mundo contido nas linhas de um livro.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, desde pequeno, era chegado à leitura do que lhe caísse nas mãos. Talvez o<br />

corpo mignon, a saúde pequena, os pés tortos de sua infância, não o aju<strong>das</strong>sem suficiente quan-<br />

do garoto, que até gostaria de provar a destreza com a bola, a resistência de um corpo são que<br />

corre. Então, restavam-lhe os livros, a leitura, o refúgio de quem é incapaz de enfrentar, no<br />

músculo, o desafio da existência.<br />

João <strong>Pontes</strong>, seu pai, no livro que escreveu biografando a vida de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, disse<br />

que <strong>Paulo</strong>, quando criança, era um garoto triste, introvertido, um tanto desligado do mundo e,<br />

às vezes, até esquecido; mas, quando adolescente, passou a ser extrovertido, comunicativo, ad-<br />

quiriu inclusive uma enorme capacidade de relacionamento social 1 . Isto parece absolutamente<br />

verdadeiro, se comparado com o depoimento de pessoas que conviveram com <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong><br />

quando adolescente e quando adulto.<br />

Estas pequenas coisas parecem não significar quando se trata de estudar um autor. Mas a<br />

obra de um homem é como o seu caráter, que se constrói pela acumulação dos acidentes de per-<br />

curso. Os detalhes se somam num conjunto e vão determinar o perfil do autor e o de sua obra.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, em criança, era tímido. Sobre os pés tortos via o mundo pela moldura de uma<br />

janela, e o quadro que via era a paisagem da pobreza sobre a Serra da Borborema, no interior da<br />

Paraíba, na cidade de Campina Grande, onde nascera, no dia 8 de novembro de 1940. Filho de<br />

João <strong>Pontes</strong> Barbosa, soldado da então Força Policial da Paraíba, e de Laís Carvalho de Holan-<br />

da, enfermeira. Por força de necessidade, no ano de 1941/2, a família transferiu-se para a cidade<br />

de Mamanguape, na Paraíba e, posteriormente, foi morar em João Pessoa onde <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong><br />

cresceu e descobriu o mundo. O mundo real, vivido nas ruas da capital, e o mundo virtual, vivi-<br />

do sobre as tábuas do palco do Santa Roza. Antes, a família morara um tempo na cidade de Rio<br />

Tinto, próxima a Mamanguape, onde o pai conseguira emprego para si e sua mulher, no hospi-<br />

tal da única fábrica existente no lugar. João <strong>Pontes</strong> como enfermeiro, desempenhando serviço<br />

externo. Dona Laís, na sala de partos 2 .<br />

1 PONTES, João. Eu e Meu Filho <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>. Rio de Janeiro: Livraria Eu e Você, 1982, P. 47<br />

2 Idem, ibidem, p. 43.


<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> já residindo em João Pessoa, ainda pequeno, sofrera a primeira intervenção<br />

cirúrgica de sua vida. Nos pés. O médico, Dr. Napoleão Laureano, pelo que conta seu pai, em<br />

vista da pobreza da família, deixou de cobrar os honorários referentes à operação. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong><br />

estava livre dos pés tortos, embora com um pequeno defeito no caminhar 3 .<br />

Jório Machado, professor da Universidade Federal da Paraíba, foi amigo de copo e mesa<br />

de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>. Jório era também proprietário do semanário de oposição na Paraíba, o jornal O<br />

Momento. Quando <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> morreu, Jório dedicou um número especial do seu jornal à<br />

memória do amigo desaparecido. No artigo que escreveu para esse número, ele conta como<br />

<strong>Paulo</strong> virou notícia de jornal aos onze anos de idade. Segundo ele, <strong>Paulo</strong>, já desde os nove anos,<br />

leitor de "grossos volumes" na Biblioteca do Estado, encontrou num jornal que apanhou entre<br />

papéis velhos na rua da Areia, a notícia da campanha levantada pelo Dr. Napoleão Laureano<br />

contra o câncer, sendo ele próprio, Dr. Napoleão Laureano, vítima da doença, e como tal, con-<br />

clamava o povo para um combate sistemático ao câncer. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, ao ler a notícia, comovi-<br />

do pela luta de um homem condenado e que o livrou dos pés tortos, tomou do lápis e papel e<br />

escreveu uma carta ao Diário Carioca exortando a população para que integrasse a cruzada con-<br />

tra a doença empreendida pelo médico paraibano 4 . Mas João <strong>Pontes</strong> diz que a idéia da carta<br />

partiu dele, João <strong>Pontes</strong> 5 , que, naquele ano, por conta da sua profissão, servia no Rio de Janeiro,<br />

enquanto a família permanecia em João Pessoa. Chamado às pressas à Paraíba por motivo de<br />

doença de seu outro filho, tivera a idéia de agradecer, publicamente, ao Dr. Napoleão Laureano,<br />

incentivando o filho a escrever a carta que seria publicada no jornal carioca, onde a entregou. A<br />

carta teria sido publicada juntamente com duas fotos de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, antes e depois da opera-<br />

ção. João <strong>Pontes</strong> diz que a carta começava com a seguinte frase: "Dizem que sou uma criança<br />

inteligente..."<br />

No ano de 1956, antes ou depois da proeza na estréia da peça Beata Maria do Egito, não<br />

importa, João <strong>Pontes</strong> teria matriculado <strong>Paulo</strong> no Colégio Diocesano de Patos, sertão da Paraíba,<br />

na 3a série ginasial, em regime de internato, juntamente com Ipojuca, seu irmão. Eles não qui-<br />

3 Idem, ibidem, p. 50.<br />

4 MACHADO, Jório. "Da rua da Areia a ribalta do Rio". João Pessoa: O Momento, 31.12.76.<br />

5 Op. cit. p. 53.


seram ficar. Em João Pessoa, <strong>Paulo</strong> estudou como interno no Instituto Alice Azevedo, no grupo<br />

Thomaz Mindelo e no Colégio Solon de Lucena 6 .<br />

Jório Machado afirma que <strong>Paulo</strong>, ainda garoto e dono de um raciocínio ágil e de uma<br />

argumentação brilhante, circulava entre os grupos teatrais da época, onde ia impondo a sua pre-<br />

sença e a paixão pelo teatro. Foi, segundo Jório, sem saber precisar a data, depois de 1956 que<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> fez o seu único papel como ator, numa peça de Hermilo Borba Filho, Apenas<br />

Uma Cadeira Vazia 7 .<br />

Mas o debate cultural na província, sobretudo para quem tem ambições mais ousa<strong>das</strong>,<br />

logo se esgota. Jório diz que <strong>Paulo</strong>, por volta dos vinte anos (1960), era dono de inegável matu-<br />

ridade intelectual, e, por causa disso, adotava um certo ceticismo com relação aos fatos e à vida<br />

numa cidade pequena. João <strong>Pontes</strong> diz que em 1959, separado da família e morando em Natal,<br />

onde era 1º Sargento do 16ø Regimento de Infantaria, recebeu a visita de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, que lhe<br />

pedia ajuda para morar no Rio de Janeiro. Conta João <strong>Pontes</strong> que com enxoval modesto e pouco<br />

dinheiro, <strong>Paulo</strong> embarcou quase à meia-noite no Aeroporto Parnamirim, num avião da FAB, em<br />

direção ao Rio de Janeiro. Mas, continua, num dia de 1962, <strong>Paulo</strong> apareceu em sua casa, vindo<br />

do Rio, dizendo que a sua situação não era a desejada, e que pretendia voltar ao Rio, "em futuro<br />

próximo" 8 .<br />

A vida de um homem se constrói também por mitos.<br />

O espaço que sobra entre os mitos, os fatos e a memória, para a história, é um espaço de<br />

ficção, onde a arte atua refazendo o tempo perdido. Depois daquela noite de estréia da peça<br />

montada pelo Teatro do Estudante, em que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, garoto de 16 anos de idade, ganhou a<br />

admiração dos atores, sobra um espaço que se segue, e que, por falta de suficiente informação<br />

só poderia ser preenchido pela ficção. Não é o caso. Mas, seguindo os passos cronológicos de<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, em busca dos seus sinais, como um caçador decifrando as marcas da trilha, va-<br />

mos dar um salto de seis anos na sua história e encontrá-lo em 1962, trabalhando na Rádio Ta-<br />

bajara da Paraíba, onde fazia locução, escrevia e apresentava um programa que obtinha grande<br />

audiência no horário do meio-dia.<br />

6 PONTES, João. Op. cit. p. 66.<br />

7 MACHADO, Jório. Op. cit.<br />

8 PONTES, João. Op. cit. p. 69.


2. Rodízio<br />

Era este o nome do programa que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> escrevia e apresentava.<br />

Mary Ventura dedicou a <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, depois de sua morte, uma página no Jornal do<br />

Brasil, em que reproduzia trechos de entrevistas de <strong>Paulo</strong>. A certa altura do artigo, Mary abre<br />

aspas em seu texto e cita a fala de <strong>Paulo</strong> sobre o programa Rodízio: "Era uma comediazinha de<br />

costumes que ia ao ar de segunda a sábado ao meio-dia. As personagens ficaram conheci<strong>das</strong> na<br />

cidade inteira. Falavam sobre o custo de vida, o preço dos remédios, problema de educação dos<br />

filhos. Eu colocava tudo isso no ar, brincando..." 9 .<br />

Porém, mais completo do que o texto acima, é o do jornal Última Hora cuja página de-<br />

dicada a <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> trazia o título geral de "Cai o Pano". No artigo "Paulinho, por <strong>Paulo</strong> Pon-<br />

tes", o Última Hora reproduziu artigo de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, onde ele não só se referia ao seu pro-<br />

grama Rodízio, como ainda falava da influência que recebera, quer dos radialistas que admira-<br />

va, quer dos autores que amava, deixando transparecer uma eclética influência de autores, a<br />

descoberta <strong>das</strong> possibilidades do texto, a mecânica da linguagem narrativa: "A minha formação<br />

profissional é muito esquisita. A minha escola de teatro foi o rádio. Eu via aqueles programas<br />

que se faziam aqui no Rio, numa época muito criadora do rádio brasileiro, a ponto de terem<br />

inventado programas de humorismo que eu não conheço em lugar algum do mundo. Haroldo<br />

Barbosa, Max Nunes, Sérgio Porto, Chico Anísio, Antônio Maria. Eu ouvia essa gente toda.<br />

Havia personagens brasileiras, a favela, o subúrbio, o Nordeste, o caipira, o interior de Minas, e<br />

com uma agilidade narrativa encantadora. Eu era vidrado nesse troço e comecei a reproduzir a<br />

experiência dessa gente com o pessoal lá na Paraíba. Ao mesmo tempo eu lia muito Shakespea-<br />

re, Bernard Shaw, Ibsen, Tchecov, e me lembro que essa leitura e meu trabalho em rádio tinham<br />

como centro um amor muito grande pelo jogo narrativo. Eu lia Shakespeare dando berro a cada<br />

descoberta narrativa" 10 .<br />

9 VENTURA, Mary. "<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, as coisas sabi<strong>das</strong> e não conquista<strong>das</strong>". Jornal do Brasil, 28 de dezembro de<br />

1976.<br />

10 "PAULINHO, por <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>". Rio de Janeiro: Jornal Última Hora, 28 de dezembro de 1976.


O Brasil é um país de muitos países, já foi dito isso tantas vezes. E hoje, cada vez mais,<br />

a despeito do grande avanço tecnológico que representou a televisão nas comunicações, o Brasil<br />

tornou-se um país de dois países: o do sudeste, rico (apesar dos pesares) e gerador de imagens,<br />

e o restante do país, pobre (sobretudo norte e nordeste) e receptor da imagem gerada no sudeste.<br />

A televisão, e aqui não vai nenhum preconceito a priori, destruiu a imagem que o Brasil poderia<br />

ter de si, e fez <strong>das</strong> areias de Ipanema o espelho onde o "outro" país busca em vão a sua imagem.<br />

Em 1962, ainda não era assim. O rádio permitia, como sempre permitiu, que uma emissora nu-<br />

ma cidade produzisse programas para aquela cidade. As rádios locais chegavam muitas vezes<br />

ao ponto de produzirem suas rádio-novelas, como foi o caso da Rádio Tabajara da Paraíba, em<br />

João Pessoa que, na década de cinquenta, formou uma significativa geração de atores que, por<br />

muitos anos, tocou para a frente a arte de fazer teatro.<br />

Praticamente, sem outro meio de comunicação para inibi-lo na concorrência, o rádio vi-<br />

veu no Brasil a sua época de ouro, naquela década. Os cantores do rádio, na Rádio Nacional,<br />

mobilizavam multidões de fãs para os programas de auditório. E num país como o nosso, onde<br />

o analfabetismo é menos do que uma fatalidade histórica e muito mais um projeto político <strong>das</strong><br />

classes dominantes, um país que por isso mesmo pouco podia (e pode) ler jornais, num país<br />

assim, o rádio acabava por ser o grande veículo de comunicação de massas, mais do que a tele-<br />

visão, ainda no seu início, mais do que a imprensa escrita, por conta do óbvio analfabetismo.<br />

Walter Benjamin, no artigo "Observações básicas sobre uma radio-peça", afirma que an-<br />

tes do aparecimento do rádio, quase não se conheciam os meios de divulgação que fossem pro-<br />

priamente populares ou correspondessem a finalidades de educação popular 11 . Nem mesmo o<br />

teatro, que deve somar um número razoável de pessoas num mesmo espaço, nem mesmo o ci-<br />

nema, já tão popular em 1932, ano em que Walter Benjamin escreveu o seu artigo, conseguiam<br />

concorrer em popularidade com o rádio, uma engenhoca que, na sala da sua casa, girava-se o<br />

botão e ele o punha em contacto direto com o mundo. O rádio veio para revolucionar a comuni-<br />

cação, e, consequentemente, intermediar o saber popularizando o conhecimento. É Walter Ben-<br />

jamin quem diz: "Existia o livro, existia a palestra, existia o periódico: todos, no entanto, eram<br />

formas de comunicação que não se distinguiam em nada daquelas, através <strong>das</strong> quais a pesquisa<br />

científica transmitia seus progressos para os especialistas. A popularização se realizava, portan-<br />

to, dentro <strong>das</strong> mesmas formas que a apresentação científica, e por isso estava privada de origi-<br />

nalidade metodológica. Bastava-lhe revestir o conteúdo de certas áreas do saber de uma forma<br />

11 BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. São <strong>Paulo</strong>: Cultrix, 1986, p. 85.


mais ou menos atraente, talvez também procurar elementos de motivação na experiência cotidi-<br />

ana, no bom-senso <strong>das</strong> pessoas: porém, o saber que ela oferecia era sempre de segunda mão. A<br />

popularização era uma técnica subordinada, o que ficou comprovado pela sua avaliação públi-<br />

ca" 12 .<br />

O rádio, portanto, abriu caminho para a popularização do conhecimento. Mas a divulga-<br />

ção do saber tinha as suas leis próprias, diferentes em tudo <strong>das</strong> leis de transmissão de conheci-<br />

mento científico ou acadêmico. Era preciso descobrir essas leis de popularização do rádio, mui-<br />

to mais abrangentes, mas também muito mais intensas, segundo Walter Benjamin. Isso exigia a<br />

reorganização do material comunicativo, do ponto de vista da popularidade, j que a populari-<br />

dade, no caso do rádio, orienta o saber em direção ao público, mas também orienta o público<br />

em direção ao saber.<br />

Para Walter Benjamin, o rádio, antes de ser um instrumento de comunicação de massa, é<br />

instrumento de divulgação do conhecimento humano. Sua função seria, antes de mais nada,<br />

educativa.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, ainda muito jovem, tinha descoberto o poder comunicativo do rádio, e<br />

como homem essencialmente comunicante que era, ouvia o rádio e ouvia os seus ídolos, bus-<br />

cando apreender a especificidade de sua linguagem. Era no rádio, como posteriormente seria no<br />

teatro e na televisão, um autodidata.<br />

Então, qual é a linguagem do rádio? A resposta a esta pergunta pode trazer elementos<br />

que melhor esclareçam o poder comunicativo do rádio e a linguagem que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> apren-<br />

deu a desenvolver no início da sua vida profissional.<br />

É preciso saber que o rádio busca o que há de mais humanamente comum entre as pes-<br />

soas. O fator determinante para a comunicação através do rádio é, em primeiro lugar, a necessi-<br />

dade <strong>das</strong> massas. Mas, apesar disso, nada autoriza a pensar-se que o rádio seja instrumento de<br />

comunicação coletiva, a exemplo do cinema que transmite a mesma imagem para to<strong>das</strong> as pes-<br />

soas que o assistem. O material comunicativo do rádio se compõe de som (ruído), de músicas e<br />

de palavras. Os ruídos provocados pela sonoplastia, no caso <strong>das</strong> radio-peças, têm o objetivo de<br />

fazer o ouvinte imaginar a imagem que ele não vê. Nesse sentido, o rádio apela para a capaci-<br />

dade de imaginação do ouvinte, estabelecendo com ele uma comunicação direta e individual.<br />

Mas a força maior da comunicação através do rádio é a palavra, que vai direto ao enten-<br />

dimento do homem que escuta a voz do locutor do outro lado, que lado?, o lado de lá. "A pala-<br />

12 Idem, ibidem, p. 85.


vra é, em si, a expressão mais imediata e primária do espírito em sua esfera consciente. É a pon-<br />

te entre o espiritual e o material, entre o sujeito do conhecimento, "eu", e o mundo que o cir-<br />

cunda. Guiada pela vontade, é o estágio criativo prévio, que leva a força da imaginação para as<br />

formas materiais de expressão". Quem escreveu isto foi Richard Kolb, na Alemanha, no ano de<br />

1931, no artigo intitulado "O desenvolvimento da peça radiofônica artística a partir da essência<br />

do rádio" 13 . E mais: "A palavra - assim como o ruído - só pode evocar a representação da reali-<br />

dade se esta for bem conhecida pelo ouvinte por tê-la visto antes. Por isso, a comicidade causa-<br />

da pela situação exclui-se a si mesma, pois consiste, em geral, numa situação externa surpreen-<br />

dente, isto é, inesperada, que quase sempre vai de encontro ao desenrolar normal da ação" 14 .<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> conheceu o rádio em seu melhor momento no Brasil, e ouvia com admira-<br />

ção os programas de humor que se fazia. Ouvia e, curioso, tentava apreender o mecanismo des-<br />

sa linguagem. Esse tipo de linguagem, segundo Richard Kolb, é, sobretudo, a palavra que, saída<br />

de uma caixa receptora, adquire um poder de convencimento tamanho, a ponto de, como acon-<br />

teceu em 1938, Orson Welles parar, e mais do que isso, pôr em pânico a cidade de Nova York<br />

com a radiofonização de A Guerra dos Mundos, de H. G. Welles. Palavra e convencimento.<br />

Palavra e realidade. Palavra e comédia. A palavra palavra é um dos fundamentos b sicos do<br />

comportamento artístico de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, sobretudo nos fins dos anos 60, quando ele, junta-<br />

mente com Vianinha, combatendo a vanguarda de 68 e a sua estética agressiva, faz a defesa da<br />

palavra, a palavra como antídoto contra o desespero pelo fechamento de um regime político já<br />

em si duro.<br />

E não deveria ser difícil para <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, garoto ainda, a julgar-se pelo episódio com o<br />

grupo de Teatro do Estudante, deixar-se encantar pelo rádio e pela possibilidade de, nele, usar a<br />

sua linguagem, a palavra.<br />

Aceitando a versão de seu pai, João <strong>Pontes</strong> 15 , <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, em 1959, teria ido morar no<br />

Rio de Janeiro. Em 1962 estava de volta à Paraíba. É outra vez Jório Machado 16 quem diz que<br />

13 Apud George Bernard Sperber. Introdução à peça radiofônica. São <strong>Paulo</strong>: Editora Pedagógica e Universitária,<br />

1980, p. 114.<br />

14 Idem, ibidem, p. 115.<br />

15 PONTES, João. Op. cit. p. 67.<br />

16 MACHADO, Jório. Op. cit.


em 1962 a Rádio Tabajara da Paraíba era dirigida por um grupo de intelectuais e, por causa<br />

disso, faziam-se programas de alto nível cultural e artístico. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, então com 22 anos,<br />

voltando do Rio de Janeiro, onde ouviu e curtiu os seus ídolos no rádio, fora convidado para<br />

participar da equipe de criação da Rádio Tabajara onde, como já foi dito, criou Rodízio, o pro-<br />

grama que monopolizou de segunda a sábado o horário do meio-dia.<br />

Como era esse programa? Restou um texto que alguém, em João Pessoa, fez a gentileza<br />

de ceder-nos. Um texto, quando se trata de rádio, não significa muita coisa porque, nesse caso,<br />

é para ser ouvido. Mas esse é muito curioso, não apenas por fornecer dados biográficos pelo<br />

próprio <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, como também por antecipar (em termos) a linguagem teatral que ele mais<br />

tarde desenvolverá.<br />

Em Rodízio é possível perceber um texto inteligente, embora nos pareça imaturo ainda,<br />

o que não é de estranhar-se num autor iniciante, apesar de já prenunciar grande talento para esse<br />

tipo de escrita, rápida e engraçada. Aqui, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> mistura pia<strong>das</strong> autobiográficas, histórias<br />

populares, o seu ponto de vista em relação ao rádio, ao jornalismo artesanal da província e, ain-<br />

da, a sua preocupação com os movimentos sociais.<br />

O texto não tem o que se poderia chamar de "espinha dorsal", ou seja, a evolução, enca-<br />

deada, de uma idéia, de uma personagem. A sua semelhança é de um sketch, onde piada lembra<br />

piada que se conta para os amigos em roda de bar. A abertura do texto é uma variação em torno<br />

da palavra graça:<br />

"LOCUTOR - Os autores mais célebres do mundo têm utilizado a s tira para fazer graça com os<br />

outros, de uma maneira que se pode considerar gratuita. Instituições sérias já foram derruba<strong>das</strong><br />

por obra e... graça... de talentos voltados exclusivamente para a pândega. Sendo eu uma voca-<br />

ção irrecuperável para a gracinha (não podendo conter, numa oportunidade como esta a<br />

des...graça dessa minha irresponsabilidade), dei um tom meio galhofeiro a este programa, para<br />

que Rodízio não fique uma série sem graça. Como seria leviano e temerário fazer graça com os<br />

outros nessa audição, faço graça comigo mesmo. Devo advertir, ainda, que esse programa ape-<br />

sar do conteúdo sério, foi escrito... de graça. E se eu estou trabalhando aqui sem ganhar dinhei-<br />

ro, é graças a minha amizade com o produtor do Rodízio. Minha graça: <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>.<br />

TÉCNICA - TRANSIÇÃO.


SPEAK - Como o programa é de graça, o autor se achou com o direito de fazer autobiografi-<br />

a" 17 .<br />

A partir daí, o texto desenvolve-se baseado num trocadilho popular, uma daquelas jóias<br />

da filosofia de bodega, tão comum de ouvir-se nos botequins, nas esquinas, nos papos do dia-a-<br />

dia, verdadeiros axiomas etílicos, a exemplo de "A vida começa aos quarenta", ou "O mundo é<br />

dos vivos".<br />

A partir da primeira frase ("A vida começa aos quarenta"), <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> desenvolve o<br />

seu texto "autobiogr fico". Entre trocadilhos, elastecendo a idéia da frase popular, chega à con-<br />

clusão de que, se a vida começa aos quarenta, então, para ele, faltavam dezoito anos para come-<br />

çar a viver...<br />

"LOCUTOR - E isso se eu acertar na bolsa de valores, for eleito a qualquer coisa, arranjar em-<br />

prego no Banco do..., herdar uma grande propriedade ou, em última hipótese, conseguir um em-<br />

prego de Oficial de Gabinete. Pra começar, serve".<br />

Um texto que joga com a ideologia subserviente da classe média, com frases de efeito<br />

torna<strong>das</strong> verdades dogmáticas, que mal disfarçam o seu conteúdo conservador e, subrepticia-<br />

mente, incrustam no espírito do homem comum a ilusão, tornada certeza, de que "tempo é di-<br />

nheiro", de que "o trabalho engrandece o homem", de que "Deus ajuda a quem trabalha", enfim,<br />

uma coleção de anexins da qual é rica a prosódia popular e, em nível superestrutural, não pas-<br />

sam de sofismas que legitimam, em idéia, a preservação do status quo da classe dominante 18 .<br />

Desenvolvendo o seu texto por entre esse emaranhado de frases de efeito, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong><br />

vai brincando com essas frases, conduzindo o ouvinte a pensar que, se a vida começa aos qua-<br />

renta, então não vai começar nunca, porque as oportunidades estão fecha<strong>das</strong> e, por isso mesmo,<br />

dificilmente alguém poderia "vencer na vida". Todavia, não deixa de ser uma reflexão de um<br />

jovem de 22 anos, buscando o seu espaço profissional. Mas, um anexim leva a outro, assim<br />

como um papo leva a outro:<br />

17 RODÍZIO. Texto em apostila. Arquivo do autor. Como não se trata de texto editado, não daremos referência de<br />

página ao fazermos as citações.<br />

18 <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> sempre teve grande admiração pelas comédias de costumes. Vale lembrar, sem querer vincular<br />

diretamente uma coisa a outra, que Artur Azevedo tem uma peça, Amor por Anexins, em que a personagem,<br />

Isaías, tem como mania falar por frases feitas.


"LOCUTOR - Mas os habitantes sabidos deste planeta - os que constroem alegre e sensual-<br />

mente a sua vitalidade, o seu bem-estar, às custas da desgraça do próximo - fundaram outra<br />

escola filosófica <strong>das</strong> mais atuantes nos dias de hoje, que só aparentemente contraria a primeira:<br />

VOZ - (JOVEM) O mundo é dos vivos...<br />

VOZ 2 - (GAIATO) E dos muitos vivos!"<br />

De piada em piada, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> vai introduzindo, no texto, a sua visão material do<br />

mundo, o mundo concreto, as suas vicissitudes, e a vida material, orgânica, com seus carbonos,<br />

seus carboidratos, cedendo lugar ao que seria metafísico, espiritual, numa leitura abstrata da<br />

vida. Nesse ponto, vamos encontrar outro elemento que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> desenvolver , mais tarde,<br />

em suas melhores peças, mais maduro, como homem e como escritor, o tema da subsistência,<br />

em obras como Para-í-bê-a-bá ou Um Edifício Chamado 200.<br />

"LOCUTOR - Certo. É a voz do além. Esta é a voz de qualquer um dos milhões que não estão<br />

englobados nas duas correntes filosóficas menciona<strong>das</strong>. Quer ver uma coisa? Eu vou explicar<br />

melhor. â doutor, o que significa viver?<br />

DOUTOR - Nosso organismo é uma m quina. Como tal, necessita de combustível para funcio-<br />

nar. Os combustíveis do nosso organismo são os alimentos: vitaminas, proteínas, sais minerais,<br />

que podem ser encontrados no leite, ovos, carne e verdura...<br />

LOCUTOR - Chega. O senhor, seu advogado. Para o senhor, o que é que significa viver?<br />

ADVOGADO – É pertencer a uma sociedade cujas leis garantam igual padrão de dignidade<br />

humana a todos os seus membros.<br />

LOCUTOR - Dra. Assistente Social, o que é que a senhora entende por viver?<br />

ASSISTENTE - No meu entender, é todo mundo ter uma casa, com privadinha, água encanada<br />

e os filhinhos na escola...<br />

LOCUTOR - Basta. Depois dessas três afirmativas - a do médico, a do advogado e a da assis-<br />

tente social - quando nós quisermos saber em que ramo trabalha um operário, por exemplo,<br />

deveremos fazer a seguinte pergunta:<br />

VOZ - Escuta, velho, você morre de quê?"<br />

Já tinha a base do artista engajado que ele era. Mas o texto segue com pia<strong>das</strong> curtas, que<br />

levam de um assunto a outro com a tranquilidade de quem conversa uma conversa à-toa. E co-<br />

mo esse é um texto "autobiográfico", <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, curiosamente, conta a sua participação co-


mo ator na peça de Hermilo Borba Filho, confirmando o que Jório Machado dissera no tópico<br />

anterior:<br />

"LOCUTOR - /.../ Cheio de gram tica - talvez o único sintoma do bom car ter da minha perso-<br />

nalidade - tentei o teatro. A minha estréia no palco foi na peça Apenas uma cadeira vazia, de<br />

Hermilo Borba Filho. Eu fazia uma ponta, anunciando a morte de duas velhinhas que moravam<br />

ao lado. Era esta a minha fala. Entrava no palco e largava:<br />

VOZ - As duas velhinha do lado acabam de morrer. Foram encontra<strong>das</strong>, as duas, mortas, na<br />

cadeira.<br />

LOCUTOR - No dia da encenação, entrei no palco. Teatro cheio. Larguei:<br />

VOZ - As duas cadeirinhas do lado acabaram de morrer. Foram encontra<strong>das</strong>, coitadinhas, tão<br />

bonitinhas, as duas senta<strong>das</strong> em cima <strong>das</strong> velhinhas.<br />

TÉCNICA - TRANSIÇÃO.<br />

LOCUTOR - Não precisa ser pitonisa para perceber que estava encerrada a minha carreira de<br />

ator".<br />

A partir daí, o texto segue contando a sua "autobiografia", quando, para finalizar, <strong>Paulo</strong><br />

<strong>Pontes</strong> conta duas historinhas, muito conheci<strong>das</strong> do imaginário popular e que acabam como<br />

sempre, nas fábulas populares, deixando para o público a título de reflexão ou exemplo, a sua<br />

moral: a primeira é a história da formiguinha que carrega uma folha de abacate pela estrada,<br />

versus um burro que carrega uma carga d'água no lombo. Na discussão sobre o trabalho reali-<br />

zado pelo burro e pela formiga, sobra a constatação de que o trabalho da formiga é para si, para<br />

sua alimentação. Moral da história: o que cansa não é o peso, é a burrice. A outra história é a de<br />

um homem desempregado que busca trabalho no circo. Incapaz de fazer qualquer coisa, o ho-<br />

mem não é aceito. No dia seguinte, adoece o leão, e o dono do circo corre em busca do homem<br />

desempregado. Veste-lhe uma roupa de leão, prende-o na jaula, e quando o desempregado fan-<br />

tasiado de leão vê à sua frente o outro leão, fica desesperado e põe-se a gritar. Ao que o outro<br />

leão lhe diz, baixinho, para ele calar a boca, senão os dois perderiam o emprego. Ao que reza a<br />

moral da história: com fome todo homem vira fera.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, então, encerra o seu texto:<br />

"LOCUTOR - Aos ouvintes deste programa que, porventura sejam dotados de bom nível inte-<br />

lectual, eu peço desculpas por não ter radiofonizado uma tragédia de Shakespeare. Como sou


contra o rádio para a literatura, procurei fazer literatura para o rádio. Se foi "para" ou "sub" lite-<br />

ratura, eu não sei..."<br />

Eis a mensagem final:<br />

"LOCUTOR - Ofereço este programa, principalmente as duas histórias, aos camponeses da<br />

Paraíba que, enfim, despertam".<br />

Ele referia-se às ligas camponesas que já se organizavam no Nordeste.<br />

Não sobraram muitos exemplares dos textos escritos para o rádio. Aliás, temos a im-<br />

pressão de que esse é o único, a não ser que outros existam nas mãos de particulares, o que é<br />

sempre possível. Mas, para a intenção do nosso trabalho, o texto que temos já nos serve, e mui-<br />

to.<br />

Serve porque nos permite perceber elementos em germinação que, posteriormente, mar-<br />

carão a personalidade artística de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>.<br />

Primeiro elemento: o exercício da palavra. O rádio, vimos atrás, tem na palavra a sua<br />

linguagem básica. O teatro engajado de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> também. Quando <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, posteri-<br />

ormente, passa a defender a volta da palavra ao palco, ele estar defendendo, mesmo que mistu-<br />

rado a um projeto político, o seu projeto estético, a sua linguagem que o rádio lhe ensinou a<br />

pronunciar.<br />

Segundo elemento: a construção do texto. Sem personagem psicologicamente definido,<br />

sem trama ou trauma que envolva conflitos, mas com episódios curtos e anedóticos. Este aspec-<br />

to formal seria o mesmo que o Grupo Opinião iria desenvolver logo depois em alguns dos seus<br />

espetáculos.<br />

Terceiro elemento: a fome como tema de sua obra para teatro.


3. A Palavra que Gera<br />

Mas não é só no radio que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> vai fazer o seu exercício da palavra. O uso co-<br />

municativo da palavra como sentido gerador de idéias e de opiniões, em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, tem ou-<br />

tra raiz. Esta vinda do Recife, na forma do Movimento de Cultura Popular e, ainda, no Método<br />

<strong>Paulo</strong> Freire de Alfabetização.<br />

Em Recife, no ano de 1962, o Movimento de Cultura Popular j estava implantado com<br />

apoio do governador Miguel Arraes. Era um movimento amplo, ousado, que buscava arrancar o<br />

homem nordestino da sua mais profunda ignorância e dar-lhe, mesmo que de pincelada, um<br />

certo verniz de civilização, uma educação básica para uma vida um pouco mais consciente e<br />

saudável. Havia todo um trabalho voltado para a noção de higiene, saúde, educação básica. O<br />

professor <strong>Paulo</strong> Freire começou a testar o seu Método de Alfabetização em uma casa que o<br />

MCP conseguiu na periferia do Recife. E em que consistia esse método revolucionário de alfa-<br />

betização de adultos? Sem descer a detalhes, é preciso dizer que o Método buscava no alfabe-<br />

tizando, em seu imaginário ou no imaginário de sua comunidade, a palavra geradora. Ou seja,<br />

as palavras que estavam intimamente liga<strong>das</strong> ao trabalho do alfabetizando, ao seu mundo, ao<br />

modo de compreender o mundo, a sua linguagem para explicar o mundo. A partir daí, o traba-<br />

lho do alfabetizador seria o de estimular a geração de idéias no sentido de que essas idéias pu-<br />

dessem interferir no mundo do alfabetizando, pelas suas próprias mãos, e pudessem, então,<br />

conscientizá-lo da possibilidade concreta de interferir no mundo, modificando-o. Em outras<br />

palavras, o educador não levava ao povo o seu discurso pronto e assimilado, mas procurava no<br />

povo a construção do seu próprio discurso.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, por volta de 1962, trabalhava na CEPLAR (Campanha de Educação Po-<br />

pular), em João Pessoa, onde, segundo Marcus Vinicius, músico e amigo de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> desde<br />

aquele tempo, ele era um dos líderes. A CEPLAR era em João Pessoa uma reprodução do MCP


de Pernambuco. A CEPLAR, inclusive, a exemplo do MCP, era apoiada pelo governador Pedro<br />

Gondim, e tinha os mesmos objetivos básicos do MCP. Marcus Vinícius (em entrevista que nos<br />

foi concedida) relembrando a CEPLAR, ressaltou a disponibilidade, a entrega dos jovens artis-<br />

tas aos trabalhos, a qualquer dia, a qualquer hora; era só subir no primeiro caminhão à disposi-<br />

ção e dirigir-se à primeira comunidade camponesa ou periférica que fosse preciso.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, locutor da Rádio Tabajara da Paraíba, era um jovem ativo, participante,<br />

engajado em todo aquele frenesi que parecia anunciar a aurora de um novo tempo.<br />

Feita a primeira experiência do Método de Alfabetização do professor <strong>Paulo</strong> Freire, em<br />

Recife, partiram, então, para experiências mais amplas em Angicos e Mossoró, no Rio Grande<br />

do Norte, e em João Pessoa com o pessoal da CEPLAR.<br />

A partir desse momento, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> pode somar ao seu trabalho em rádio, um outro,<br />

mesmo que de passagem, em educação popular. Ele pode apreender agora duas linguagens: a do<br />

rádio, que organizava de modo que o seu discurso pudesse ser comunicativo, e a linguagem de<br />

uma nova educação que era, por sua vez, pensada de modo a que o outro fosse o comunicador.<br />

E em tudo estava a preocupação com a palavra gerativa, que de alguma forma, ao ser enuncia-<br />

da, pudesse intervir na práxis do mundo e fosse um instrumento que contribuísse para modificar<br />

a face desse mesmo mundo.<br />

4. O Encontro com Vianinha<br />

Em 1962, a UNE volante chegava a João Pessoa. E com ela o ator e j dramaturgo Odu-<br />

valdo Vianna Filho, o Vianinha.<br />

Em João Pessoa, Vianinha pôde ouvir uma locução do programa Rodízio.<br />

Entusiasmado com a qualidade do programa, Vianinha procurou conhecer pessoalmente<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>. Foi encontrá-lo em uma cama de hospital. Conversaram longamente, e dessa


conversa teria nascido o convite para que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> fosse viver no Rio, onde vivia e traba-<br />

lhava Vianinha.<br />

No final do mês de março do ano de 1964, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> desembarcou no Rio de Janeiro.<br />

No Rio, foi surpreendido, como todo mundo, com a notícia de que o Presidente João<br />

Goulart fora deposto.<br />

Surpreendido pelo golpe na incipiente democracia brasileira, na esperança de tantos jo-<br />

vens de fazer um país dinâmico à sua imagem, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, mesmo que quisesse, não poderia<br />

voltar para a Paraíba. Estava no Rio e aí ficaria. Tinha 24 anos e seria testemunha ocular de um<br />

dos mais brilhantes períodos que o teatro brasileiro viveria. Se no curto espaço que conheceu de<br />

democracia relativa, pôde exercitar no rádio e na CEPLAR a linguagem da palavra, esta pala-<br />

vra, a partir da nova conjuntura política imposta ao país, assumiria paulatinamente um outro<br />

discurso, o da resistência, do comprometimento moral do homem com a liberdade, o discurso<br />

abundante e lógico de um homem que chega a usar a palavra como veículo de educação, mes-<br />

mo que seja a educação incerta em um tempo ruim, um discurso que vai ressaltar a necessidade<br />

teimosa da sobrevivência por cima de pau, por cima de pedra. A palavra pela pedra.<br />

5. O Fio da História<br />

O período que vai de 1960 até 1964 foi de muito conflito para a sociedade brasileira.<br />

Primeiro, político, gerando uma espécie de atordoamento da sociedade diante da renúncia de<br />

Jânio Quadros, sete meses após ter sido eleito com um número expressivo, para a época, de seis<br />

milhões de votos.<br />

Segundo, econômico, gerado pela necessidade de um país tão grande crescer à altura de<br />

suas potencialidades, desenvolvendo a sua economia, a sua indústria, os seus bens de consumo<br />

para uma crescente classe média (nesse sentido, o governo Juscelino Kubitschek teria dado os<br />

primeiros passos, com a implantação da indústria automobilística).


Terceiro, social, gerado pela crescente pressão da mão-de-obra desqualificada que aban-<br />

donava o campo, de onde era expulsa, para a cidade, onde seria subempregada, além dos pro-<br />

blemas de sempre - desemprego, baixos sal rios, corrupção em todos os escalões da administra-<br />

ção pública, partidos políticos inoperantes, tudo isso temperado com a conspiração nos quartéis<br />

para a derrubada do Presidente João Goulart, identificado pelas forças repressivas, senão como<br />

agente, ao menos como simpatizante do comunismo internacional.<br />

Para as forças reacionárias que sempre governaram o país, qualquer postura que não<br />

fosse canhestramente retrógrada, seria imediatamente identificada como comunista. Era o que<br />

diziam do Vice-Presidente João Goulart quando da renúncia do Presidente Jânio Quadros em 25<br />

da agosto de 1961. Para delícia <strong>das</strong> forças reacionárias, João Goulart encontrava-se na China,<br />

em visita oficial, quando Jânio Quadros (não se sabe se movido pelo seu temperamento esqui-<br />

zóide ou se pelas misteriosas "forças ocultas" que levaram Getúlio Vargas ao suicídio em 1954)<br />

renunciou.<br />

Da China, Jango articulava a sua volta ao país. Os militares não o queriam como Presi-<br />

dente. O Congresso se rebelou contra os militares e exigiu o cumprimento da norma constitu-<br />

cional. Leonel Brizola, cunhado de João Goulart, preparou-se para enfrentar o conflito com as<br />

forças arma<strong>das</strong> e, surpreendentemente, recebeu o apoio do III Exército sediado em Porto Ale-<br />

gre. Estava estabelecido o conflito. Os políticos, como de costume, negociaram com os mili-<br />

tares a vigência da ordem constitucional e a aceitação, por conseguinte, de João Goulart como<br />

Presidente da República, desde que a forma de governo fosse a parlamentarista. Venceram os<br />

políticos. João Goulart assumiu. Mas estava evidenciada a falência do sistema político-<br />

administrativo. João Goulart governa, mas não tem como realizar as reformas básicas que a<br />

sociedade necessitava. O tempo do seu governo foi marcado pelas lutas no campo, pelas greves<br />

nas cidades, pelas passeatas organiza<strong>das</strong> pela igreja, pela insubordinação dos marinheiros à hie-<br />

rarquia militar, pela irreverência e ousadia dos estudantes organizados em torno de sua entidade<br />

nacional.<br />

Ao lado disso, uma determinada vanguarda intelectual também se aliava a um tempo in-<br />

quieto como aquele. No cinema, Glauber Rocha, a partir da experiência da nouvelle vague, so-<br />

bretudo influenciado pela linguagem de Godard, lançava a pedra fundamental do que seria um<br />

cinema pobre, embora moderno - a Estética da Fome, onde se propunha que cinema seria uma<br />

câmara na mão e uma idéia na cabeça. Na música, a Bossa-Nova dava o tom da bossa. Na poe-<br />

sia, o grupo Noigrandres (desde a década anterior) desancava o verso e instituía a forma plástica<br />

e concreta. No teatro, inaugurou-se a era dos grandes grupos que vieram na cola do TBC. Pri-<br />

meiro, o Arena e sua estética engajada; depois, o Oficina e sua busca de uma estética existenci-


al, após o contacto com Sartre (esses nasceram na década anterior). Isso sem esquecer os CPCs<br />

que proliferaram dentro da União Nacional dos Estudantes, onde se fazia de tudo um pouco:<br />

teatro, cinema, poesia, sempre a partir do que eles consideravam cultura popular. Além <strong>das</strong> di-<br />

versas companhias de teatro que se formaram com atores oriundos do TBC (embora estas não<br />

oferecessem nada de inovador, no que diz respeito à linguagem teatral).<br />

Foi um período da história muito rico em inquietações de toda ordem. A impressão que<br />

dá, lendo os depoimentos, é de que, para os artistas engajados, vivia-se como o amanhecer de<br />

uma nova história no país. As tarefas que eles se impunham e realizavam, hoje, com a perspec-<br />

tiva da história, dão a sensação de um trabalho monstruoso, onde uma enorme quantidade de<br />

energia, de força, de juventude, soma<strong>das</strong> a uma generosa - e generalizada - utopia, aliavam-se<br />

no desejo de projetar um país que, como eles, era também jovem e que podia ser generoso com<br />

os seus habitantes. Para isso, seria preciso que o homem aju<strong>das</strong>se a natureza, ajudando a si, ofe-<br />

recendo ao outro infortunado um pouco da sua cultura, um tanto do seu conhecimento.<br />

Talvez por aí se possa compreender, sem desconsiderar a causa político-ideológica, a lu-<br />

ta que se travou até março de 1964 em prol de uma sociedade moderna, e dessa maneira, mais<br />

humana. Não se pode também alienar a crítica dos erros cometidos. Mas erros, no calor da luta,<br />

são comuns. Além do mais, e isto parece a constatação do óbvio, constrói-se a história com os<br />

instrumentos disponíveis no seu momento. E eles foram, afinal, usados.<br />

O teatro engajado praticado pelo CPC foi um dos instrumentos usados pelos artistas pre-<br />

sentes nessa história. E a trajetória de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> está, por semelhança, paralela à história do<br />

CPC.


6. Uma outra republiqueta sul-americana<br />

Quando Vianinha chegou à Paraíba em 1962, encontrou <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> numa cama de<br />

hospital. Nessa ocasião, Vianinha convidou-o para juntar-se a eles no Rio, no trabalho do CPC,<br />

uma vez que as suas idéias sobre arte, sobre política, tanto se pareciam.<br />

Viajando com a UNE-volante, Vianinha continuou seu caminho. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, no seu<br />

trabalho em rádio e na CEPLAR<br />

Tanto o CPC quanto a CEPLAR são originários do MCP do Recife, que se pretendia<br />

"uma universidade popular, onde o saber seria construído a partir de um intercâmbio dinâmico<br />

entre forças complementares: intelectuais, estudantes e povo" 19 . É certo que se diga que Viani-<br />

nha foi um dos que idealizou o CPC. Mas deve-se dizer que a experiência do CPC já existia<br />

alguns anos antes no Recife 20 . Todos, no fundo, tinham o mesmo objetivo e trilhavam caminhos<br />

mais ou menos parecidos. Fora assim com outros grupos, que assumiram outros nomes, mas<br />

que tinham a mesma finalidade político-cultural, como o Movimento de Educação de Base -<br />

MEB - organizado por um setor menos ortodoxo da Igreja Católica; assim também fora com a<br />

campanha De pé no chão também se aprende a ler, realizada pela prefeitura de Natal. Todos<br />

esses organismos, quer tivessem o apoio dos governos menos conservadores dos Estados, de<br />

um setor mais politizado da Igreja Católica ou da União Nacional dos Estudantes, todos, sem<br />

exceção, misturavam educadores, estudantes e profissionais de diversas áreas com o objetivo<br />

comum de alfabetizar, politizar e comunicar ao povo a sua cultura, buscando transmitir ao outro<br />

a sua visão do mundo, ao outro que era analfabeto, que era maioria, ao outro que era sem dúvi-<br />

da o mais oprimido numa sociedade estreita, num país que trata a massa assalariada como se<br />

fosse menos do que escrava, como se fosse apenas mercadoria.<br />

Enquanto os militares se organizavam e conspiravam, apoiados por uma parcela expres-<br />

siva da sociedade civil, os artistas que fazem parte dessa história lutavam a sua luta, crentes que<br />

19 MOVIMENTO DE CULTURA POPULAR - MEMORIAL. Recife, Fundação de Cultura Cidade do Recife, p. 29.<br />

20 "Antes de 64, havia um movimento aqui no Rio de Janeiro e no Brasil inteiro, que começou em Pernambuco,<br />

aliás no governo Arraes". Augusto Boal, Ciclo de Palestras Sobre Teatro Brasileiro. Rio de Janeiro, INACEN (Ibac),<br />

p. 8.


contavam com o apoio da população para os seus projetos cheios de uma utopia que não tinha<br />

correspondência alguma com a realidade que o país vivia. E a realidade é que a massa, ao con-<br />

trário do que pensavam, não é revolucionária. A revolução também exige uma cultura revolu-<br />

cionária. E esta só a tem quem dispõe de tempo para adquiri-la. Não é o caso do povo.<br />

Carlos Estevam Martins, primeiro presidente do CPC, disse que o maior problema que<br />

enfrentavam, não era montar espetáculos que levariam à massa (isto eles faziam com imensa<br />

facilidade). O problema era encontrar "estruturas de conexão entre o grosso da população e os<br />

grupos culturais politizados que queriam sair fora dos circuitos elitistas" 21 . O problema que<br />

enfrentavam era entrar em contacto com o povo, encontrar qual a linguagem do povo. Carlos<br />

Estevam Martins cita um exemplo da tentativa de encontro entre o intelectual e o povo: "Uma<br />

vez, fomos com a carreta para o Largo do Machado, estávamos fazendo um espetáculo em um<br />

dos lados da praça, enquanto que no outro havia um sanfoneiro e um sujeito tocando pandeiro.<br />

Apesar de todo nosso equipamento de som e luz, o sanfoneiro e o pandeirista juntavam mais<br />

gente do que nós" 22 . Como compreender que um pandeiro atraísse a atenção do povo mais do<br />

que um carro teatralmente aparelhado? O que é mais teatral, o que resulta melhor na comunica-<br />

ção artística com o povo? O som tímido do pandeiro ou o som potente dos amplificadores? Es-<br />

te, talvez, fosse um problema para a estética. Mas o teatro do CPC não estava interessado em<br />

estética. O seu interesse era a política e de como, usando a arte como álibi, fazê-la instrumento<br />

da transformação política que se desejava.<br />

Enquanto não se adquiria a consciência da arte como mediadora entre mundos opostos 23 ,<br />

o CPC tocava o barco à sua maneira, com os artistas escrevendo peças de teatro em cima de<br />

uma notícia de jornal, por exemplo; apresentando o espetáculo na primeira favela, na primeira<br />

esquina, no primeiro sindicato que aparecesse. Acreditavam que o povo estaria ao lado deles, e<br />

eles, por sua vez, ao lado do povo em marcha para a revolução que viria. Não tinham consciên-<br />

cia da gravidade do momento que viviam e da dimensão da tragédia que estaria por acontecer<br />

ao país. Carlos Alberto de Oliveira (Caó), que fora Vice-Presidente da UNE no biênio 1962/63,<br />

afirmou que tinham eles muitas ilusões quanto à sua própria força política naquele momento de<br />

21 MARTINS, Carlos Estevam. "História do CPC". S. <strong>Paulo</strong>, <strong>Arte</strong> em Revista, nº 3, p. 78.<br />

22 Idem, ibidem, p. 78.<br />

23 Ferreira Gullar afirmou que Vianinha (só para citar um expoente) compreendera (na fase Opinião) que o melhor<br />

teatro político tinha que ser, ao mesmo tempo, o melhor teatro. - Apud Sérgio Kraselis. S. <strong>Paulo</strong>, revista<br />

Problemas nº 9, p. 18.


adicalidade: "imaginávamos que tínhamos muito mais força do que realmente dispúnhamos<br />

/.../ À medida que não soubemos estabelecer uma aliança firme e sólida com os liberais, nós<br />

permitimos que as forças da direita assustassem os liberais e eles passassem para a direita” 24 .<br />

Então, ele conta o que ouvira de Vianinha, um dia, passados os idos de março de 64: "Eu, no<br />

CPC, falava de operários, escrevia sobre os sentimentos, as aspirações e valores dos operários e<br />

na realidade eu não conheci o operário" 25 .<br />

Eis, então, o núcleo do problema, o que talvez tenha impedido que os artistas engajados<br />

na luta política avançassem na descoberta da linguagem que intermediasse o universo do inte-<br />

lectual e do operário. Ferreira Gullar, solicitado a fazer a sua avaliação, falou do problema que<br />

impediu o encontro do artista engajado com o seu objeto de trabalho: o fato de serem eles, do<br />

CPC, artistas, estudantes e intelectuais jovens 26 . A juventude, então, teria sido a pedra no meio<br />

do caminho.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, na Paraíba, realizava o seu trabalho de agitador político na CEPLAR. Um<br />

dia, ele teria ido com uma equipe de reportagem da rádio Tabajara fazer cobertura da morte de<br />

um camponês, num desses intermináveis conflitos de terra. Quando chegou ao lugar, um vilare-<br />

jo próximo à capital, não conseguiu resistir à sua indignação, subiu numa pedra próxima ao<br />

corpo do camponês morto, e discursou ao povo, a favor dos camponeses na luta pela terra, pela<br />

reforma agrária.<br />

No outro lado do país, na história que vai continuar a de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, o CPC mantinha<br />

o seu ritmo de trabalho, agora construindo um teatro dentro do prédio da UNE, na praia do Fla-<br />

mengo, 132.<br />

Nos bastidores do poder, o golpe se armava. Carlos Lacerda no antigo Estado da Gua-<br />

nabara, juntamente com Magalhães Pinto, no Estado de Minas Gerais, eram os governadores<br />

que mais apoio davam à conspiração militar que dia-a-dia se tornava mais aberta.<br />

A classe média saía em multidão para rezar na rua, pedindo a Deus que salvasse a Pá-<br />

tria. As esquer<strong>das</strong>, concentra<strong>das</strong> nos partidos, os intelectuais e estudantes no CPC, acreditavam<br />

que a vitória da democracia estaria próxima, que uma vez unido, o povo jamais seria vencido.<br />

24 Apud Fátima Saadi. Rio de Janeiro, revista Ensaio nº 3, p. 38.<br />

25 Idem, ibidem, p. 37.<br />

26 Apud Dejair Cardoso. Rio de Janeiro, revista Ensaio nº 3, p. 45.


Segundo Deocélia Vianna, mãe do Vianinha, a inauguração do teatro da UNE estava<br />

marcada para o final do mês de março de 1964. A festividade de inauguração duraria um mês,<br />

com uma programação variada que iria desde a Noite do Samba, organizada por Sérgio Cabral,<br />

passando pela Noite da Nova Música Brasileira, organizada por Carlos Lyra e Sérgio Ricardo,<br />

até a exibição de uma peça do próprio Vianinha, Os Azeredos mais os Benevides 27 .<br />

A única coisa que não estava programada era o golpe.<br />

Na madrugada do dia 31 de março, as tropas de Minas saem dos quartéis e marcham em<br />

direção ao Rio de Janeiro. Naquela madrugada o prédio da UNE foi metralhado. Nesse momen-<br />

to, começou a morrer o sonho de construir-se um país livre. O depoimento do sociólogo Luís<br />

Werneck Vianna, transpira o clima que se viveu, de medo, de impotência, ante as armas que<br />

atiravam numa fortaleza que, afinal, era de sonhos: "/.../ Mas, certamente, depois da meia-noite<br />

foi que a UNE começou a ser metralhada. A UNE cheia. Houve um momento de pânico. Mas,<br />

pânico duro, porque nesse momento as pessoas viram inclusive que a UNE estava desprotegida,<br />

que nós estávamos despreparados para reagir. Ninguém tinha arma. Algo que a gente vinha<br />

acreditando há muito tempo, isto é, a capacidade de avanço e resistência <strong>das</strong> forças democráti-<br />

cas e populares, não era verdadeira. O que fazia com que esse pânico ainda se alastrasse mais.<br />

Era como se você estivesse diante do desconhecido, do imponderável, do que você não compre-<br />

ende. A partir desse metralhamento, a UNE esvaziou-se bastante e, madrugada alta, já o dia<br />

amanhecendo, Vianna, eu, Armando Costa e algumas pessoas, saímos /.../ Pelo telefone (ao<br />

sogro, comandante da 3ª. Zona Aérea), pela primeira vez, tive uma confirmação de que o que se<br />

passava ali não era coisa comum ao nosso cotidiano, quando o meu sogro me disse que só po-<br />

deria mandar três pessoas para guardar a UNE e que a situação estava muito complicada, que<br />

estavam já sem controle da situação" 28 . O sogro em questão fazia parte do dispositivo militar de<br />

Jango.<br />

No dia seguinte, 1º de abril, a UNE foi invadida e incendiada. É o mesmo Luís Werneck<br />

Vianna quem continua o seu depoimento: "/.../ Começou o quebra-quebra, o incêndio. As pes-<br />

soas que estavam lá dentro não estavam prepara<strong>das</strong> nem para uma reação romântica de barrica-<br />

<strong>das</strong>, nem para morrer lá dentro. Isso não havia. E realmente não fazia o menor sentido imolar<br />

dez pessoas por uma coisa que, do ponto de vista nacional, estava absolutamente perdida. Isso<br />

mostrava o despreparo de todos nós e de como não havia condições de termos um enfrentamen-<br />

27 VIANNA, Deocélia. Companheiros de Viagem. S. <strong>Paulo</strong>: Brasiliense, 1984, p. 165.<br />

28 Apud Deocélia Vianna. Op. cit. p. 167.


to com o país. Não tínhamos uma proposta efetiva para o país dos anos 60. Isso ficou muito<br />

claro" 29 .<br />

Mas o pior não fora o fato de descobrirem, na última hora, a sua impotência diante do<br />

poder <strong>das</strong> armas. O pior, talvez, foi descobrir que o povo aplaudia o golpe, que a cidade do Rio<br />

de Janeiro virara uma festa; fora perceber que o golpe assumira o papel de "Redentora" no ima-<br />

ginário popular. O golpe, afinal, viria para livrar o povo da ameaça cruel dos comunistas, os que<br />

bebiam o sangue <strong>das</strong> criancinhas. Passemos a palavra outra vez ao sociólogo Luís Werneck<br />

Vianna: "/.../ Chego à UNE (no dia seguinte, 1º de abril). Já muito pouca gente. A UNE vaiada<br />

pelas pessoas do prédio ao lado. As pessoas jogavam coisas, vaiavam. E todo esse sentimento<br />

nosso ainda se complicava porque fomos percebendo que havia clima de festa, como se a cida-<br />

de tivesse sido libertada de um domínio, uma coisa assim que fez com que a nossa impotência,<br />

a nossa sensação de não compreensão <strong>das</strong> coisas ainda fosse agravada pelo isolamento político<br />

e moral, que nós víamos que estávamos levantando" 30 .<br />

Só para completar esta imagem de desolação, vamos pedir o reforço do ator Carlos Ve-<br />

reza, ex-membro do CPC: "Aos poucos foram chegando carros e mais carros em frente a UNE<br />

com rapazes da então classe média da época, bronzeados, comendo cachorro-quente com coca-<br />

cola e dizendo que os comunistas haviam sido derrotados, que o Jango já havia fugido /.../ E<br />

nós não sabíamos, ainda, que o movimento militar já era naquele momento vitorioso" 31 .<br />

Não houve resistência ao golpe. Em todo o país, o que aconteceu foi a entrega do poder<br />

aos militares, o alívio do povo que via nas idéias esquerdizantes um martírio. O grande erro <strong>das</strong><br />

esquer<strong>das</strong>, parece-nos, fora o de acreditar que o povo está sempre ao lado da liberdade, da justi-<br />

ça e da verdade, como se esses termos não remetessem a conceitos extremamente subjetivos,<br />

longe da compreensão do homem comum.<br />

O fato estava consumado. O projeto esquerdizante, naquele momento, derrubado. Res-<br />

tava, então, a saída estratégica. Carlos Vereza: "Saímos pelos fundos da UNE, e uma imagem<br />

muito forte ficou na minha cabeça. Nós saímos pelo quintal, que era ladeado por dois prédios e<br />

dos dois lados pessoas gritavam. Enquanto um deles dizia: foge que eu quero ver, comunista;<br />

do outro lado diziam: não foge não, menino, nós estamos do lado de vocês /.../ E nós, enquanto<br />

29 Idem, ibidem, p. 166.<br />

30 Idem, ibidem, p. 170.<br />

31 Apud Deocélia Vianna. Op. cit. p. 171.


víamos o prédio ser tomado, pulamos o muro dos fundos e saímos numa tinturaria. Pegamos um<br />

t xi, que deu a volta pelo Aterro, e em lágrimas, vimos o nosso prédio pegando fogo - eu, Via-<br />

ninha, João <strong>das</strong> Neves e acho que Milani - e um verdadeiro piquenique da classe bem alimenta-<br />

da, dos jovens rapazes da classe média que comemoravam entre urras o incêndio do CPC e da<br />

UNE" 32 .<br />

Hélio Silva, no livro O Poder Militar, diz que o movimento de 64 marcou o fim do papel<br />

tradicional dos militares na política e o aparecimento de novos padrões. Até então, os militares<br />

limitavam-se a derrubar presidentes, mas não ousavam assumir o poder, por não confiarem em<br />

sua própria capacidade política. Tinham até aí o papel de poder moderador. Diz-se que a morte<br />

de Getúlio Vargas retardou por dez anos o golpe dado em 64. Hélio Silva cita uma palestra do<br />

general Castelo Branco em 19 de setembro de 1955, na Escola Superior de Guerra, quando ele<br />

aconselhou que não se aceitasse a tese do golpe de Estado como salvação política para o país<br />

(devido à incapacidade <strong>das</strong> instituições políticas para resolver os problemas da Nação). Naquela<br />

ocasião, dizia o general: "As forças arma<strong>das</strong> não podem, se são fiéis à sua tradição, fazer do<br />

Brasil uma outra republiqueta sul-americana. Se nós adotarmos esse regime, entraremos nele<br />

pela força, haveremos de mantê-lo pela força e sairemos dele pela força" 33 .<br />

No dia 1º de abril de 1964, o general Castelo Branco assumia o poder apoiado pelas for-<br />

ças militares. O Brasil, assim, continuava a ser uma simples republiqueta sul-americana.<br />

32 Idem, ibidem.<br />

33 SILVA, Hélio. O Poder Militar. Porto alegre: L&PM, 1984, p. 29.


7. As Intenções do Opinião<br />

João <strong>das</strong> Neves, um dos protagonistas da história do grupo Opinião e, posteriormente, o<br />

herdeiro da firma, é quem vai revelar o dia e o que levou <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> para o Rio de Janeiro.<br />

Segundo ele, teria sido no dia 31 de março, ou primeiro de abril de 1964. E o motivo? Afirma<br />

João <strong>das</strong> Neves: o CPC estava realizando mais uma discussão a respeito de suas atividades, e<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> teria ido ao encontro como representante da Paraíba 34 .<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> teria chegado no Rio de Janeiro no dia em que as forças repressivas teriam<br />

posto em ruínas o teatro da UNE.<br />

Atordoados pelos fatos que julgavam jamais pudessem acontecer, os integrantes do<br />

CPC, num primeiro momento, trataram de observar que mudanças significativas ocorriam no<br />

cotidiano do país.<br />

João <strong>das</strong> Neves afirma que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, para sobreviver, teria conseguido emprego<br />

numa assessoria de Roberto Campos. Não diz que tipo de assessoria seria esta 35 .<br />

Mas daquela discussão que os ex-membros do CPC realizavam, numa tentativa de com-<br />

preender o momento em que viviam, começava a nascer o grupo Opinião. Armando Costa, jun-<br />

tamente com Oduvaldo Vianna Filho e <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, escrevia o show de onde sairia o nome do<br />

grupo.<br />

O show Opinião estreou no dia 11 de dezembro de 1964, no teatro do Super-Shopping<br />

Center da rua Siqueira Campos, em Copacabana. Era uma realização conjunta do grupo Opini-<br />

ão e do Teatro de Arena de São <strong>Paulo</strong>, com a direção de Augusto Boal. Na verdade, o Teatro de<br />

Arena emprestava a firma para que o Opinião pudesse, naquele momento, existir.<br />

O grande problema que se colocava para aqueles artistas era o de como continuar de-<br />

senvolvendo o seu trabalho. Expulsos do CPC, marginalizados no processo político, não lhes<br />

restava outra saída senão reconsiderar suas críticas ao teatro empresarial. Concluíram que agora<br />

34 DAS NEVES, João. "A retomada de um caminho". In <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> - a arte da resistência. S. <strong>Paulo</strong>: Versus, p. 18.<br />

35 Idem, ibidem.


tanto fazia falar à classe média quanto ao operariado, uma vez que o regime ditatorial fazia-os<br />

todos, sem exceção, seus inimigos políticos.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, em entrevista à Associação Pró-Teatro Tijuca, falou desse período: "Era<br />

necessário abrir-se uma frente ampla contra a onda de autoritarismo que existia". E mais adian-<br />

te, na mesma entrevista: "O Opinião precisava encontrar uma brecha de atuação. E descobriu.<br />

Achou, à medida que viu e formulou uma política, onde entendia que a marginalização do pro-<br />

cesso político tinha-se estendido a quase todos os setores da sociedade brasileira. E ao mesmo<br />

tempo teve muita habilidade para procurar seus próprios aliados na sociedade brasileira e na<br />

categoria teatral, sem sectarizar ninguém" 36 .<br />

Mas não mudou só a clientela do teatro. Mudou também a sua estética. Agora, não se<br />

tratava de fazer proselitismo político. Mas uma outra preocupação se apresentava, a de que o<br />

teatro deveria ter um certo acabamento estético, algo que o aproximasse mais de uma lingua-<br />

gem artística e lhe desse a feição de uma obra de arte, diferentemente do que se fazia antes,<br />

onde teatro mais parecia tribuna de denúncia ou cartilha de consciência política. Vianinha, em<br />

um dos seus muitos momentos de reflexão, disse numa entrevista em 1967: "Não é fácil passar<br />

de panfletário a artista. Desde 1960 venho escrevendo, são 7 anos de tentativa. Dentro disso<br />

tem cinco anos de sectarismo irascível dentro do CPC e da UNE" 37 .<br />

João Das Neves, falando sobre as principais idéias desenvolvi<strong>das</strong> pelo Opinião, disse:<br />

"Houve uma maior preocupação, em primeiro lugar, por um entendimento mais aprofundado da<br />

cultura popular espontânea. Absorver, entendendo suas formas não apenas estratificadoras, mas<br />

também o que há de revolucionário nessa forma de cultura. Portanto, uma valorização a nível<br />

de cultura. Em segundo lugar, uma preocupação muito maior com o acabamento artístico do<br />

espetáculo. Quer dizer, o espetáculo já não seria mais pretexto para veicular idéias políticas, ao<br />

contrário, seria um fundamento em si. E as idéias políticas seriam tanto mais eficazmente veicu-<br />

la<strong>das</strong> quanto mais artisticamente se realizasse o espetáculo. Em relação ao documento do CPC,<br />

representa um giro de 180 graus. E o caminho do Opinião é pautado por essas diretrizes" 38 .<br />

36 In <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> - a arte da resistência. Op. cit. p. 39.<br />

37 Apud Carmelinda Guimarães. Um Ato de Resistência. S. <strong>Paulo</strong>: MGM Ed. Associados, 1984, p. 62.<br />

38 In "Grupo Opinião: A Trajetória de uma Rebeldia". Entrevista a Sérgio Kraselis. Revista Problemas nº 9. S. <strong>Paulo</strong>,<br />

Ed. Novos Rumos, p. 56.


Só assim se pode compreender melhor um show que misturava três tendências radical-<br />

mente diferentes da música popular brasileira: Nara Leão, ligada à Bossa Nova, trazia para o<br />

show algo semelhante ao gosto da classe média do Rio de Janeiro, com os seus temas românti-<br />

cos, a sua voz educada e uma certa boemia bem comportada. Zé Keti era a voz do morro, en-<br />

quanto João do Vale completava o quadro, emprestando a sua voz áspera de retirante nordesti-<br />

no, os seus temas rurais, a poética dolorosa de uma gente semi-escravizada pela estrutura fundi-<br />

ária. Eram estes os três componentes que, misturados e montados, formaram a primeira versão<br />

do show Opinião. Pouco depois da sua estréia, Nara Leão afasta-se, e em seu lugar, aparece<br />

Maria Betânia, que a substitui com estrondoso sucesso.<br />

"A música popular - dizia o texto de apresentação – é tanto mais expressiva quanto mais<br />

tem uma opinião, quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores necessá-<br />

rios para a evolução social; quando mantém vivas as tradições de unidade e integração nacio-<br />

nais. A música popular não pode ver o público como simples consumidor de música; ele é fonte<br />

e razão de música" 39 .<br />

As intenções do Opinião, em suma, eram de continuar, em outro nível, agora mais a-<br />

brangente, mais aprofundado, as discussões sobre cultura popular, como forma de criar-se uma<br />

adequada identidade dos oprimidos contra os seus recém instalados opressores.<br />

8. A volta ao lar<br />

Em 1967, o Opinião sofre um racha de onde saem <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, Vianinha e Armando<br />

Costa. Segundo João <strong>das</strong> Neves 40 , os problemas acumulavam-se geometricamente, até não ser<br />

mais possível concentrar tanta gente em um espaço tão pequeno. Esses problemas, no fundo,<br />

resumiam-se a um: a folha de pagamento do grupo. Além dos líderes fundadores do Opinião,<br />

haviam os técnicos para a manutenção do teatro, os atores e as estrelas que eram contrata<strong>das</strong><br />

39 PONTES, <strong>Paulo</strong> & outros. Opinião. Rio de Janeiro: Edições do Val, 1965.<br />

40 Entrevista exclusiva a nós concedida em 09.01.86.


para as produções ambiciosas. João <strong>das</strong> Neves revelou que em alguns momentos a folha de pa-<br />

gamentos chegava a ter quarenta nomes.<br />

No período entre sua criação em 64 e o racha sofrido em 67, o Opinião, como toda vida<br />

inteligente do país, enfrentava a ação da Censura Federal, que com a sua imprevisibilidade dita-<br />

torial gerava instabilidade no interior dos grupos teatrais, desorganizando as produções, desori-<br />

entando as buscas tem ticas, as pesquisas formais, uma vez que nada garantia a vida do espetá-<br />

culo, nem em sua fase de ensaio, nem durante as apresentações. O poder da Censura tirava um<br />

espetáculo de cartaz por qualquer motivo, ou por motivo nenhum.<br />

Apesar disso, esse curto período do golpe à sua institucionalização em 68, foi uma fase<br />

de grande inquietação para o teatro brasileiro, que teve no Arena, Oficina e Opinião, a expres-<br />

são mais vigorosa desse período. Esses três grupos foram responsáveis por espetáculos antoló-<br />

gicos, onde a criatividade, a força de vontade de realizar o seu trabalho e a recusa sistemática<br />

em concordar com um regime embrutecedor, somavam-se para um saldo estético qualitativo, a<br />

cada passo aprofundando a sua diferença com o regime que, em consequência, também fechava<br />

o cerco. O teatro, naquele momento que os partidos políticos dissolvidos reduziam-se a duas<br />

siglas cria<strong>das</strong> pela ditadura, em que alguns idealistas procuraram, na clandestinidade, lançar as<br />

bases de uma guerrilha que pudesse desestabilizar o regime, o teatro transformou-se num dos<br />

poucos canais que aglutinavam os insatisfeitos, sobretudo os estudantes.<br />

No espaço do teatro eram realizados debates, palestras, cursos ou simplesmente concen-<br />

trações políticas anima<strong>das</strong> por uma massa estudantil crescente cada vez mais. Luiz Carlos Ma-<br />

ciel relatou uma dessas reuniões, logo após a morte do estudante Edson Luís no restaurante Ca-<br />

labouço, em 1968: "Logo na primeira assembléia, realizada a partir de meia-noite do dia que o<br />

estudante Edson Luís foi morto, no Teatro Opinião, o pau quebrou. Os participantes dividiam-<br />

se, a grosso modo, em três grupos principais: o pessoal do Partidão, que era muito organizado;<br />

os chamados "representativos", artistas e intelectuais de renome, sem compromissos ideológi-<br />

cos, contrários aos métodos do governo; finalmente, os porra-loucas ou meninos de Marcuse,<br />

como os outros os chamavam, isto é, a esquerda jovem e independente que, disposta a levar a<br />

imaginação ao poder, ficava sempre tumultuando tudo, com suas idéias e propostas des-<br />

vaira<strong>das</strong>" 41 .<br />

Em outros teatros também se realizavam reuniões que eram embala<strong>das</strong> pelo mesmo ca-<br />

lor e revolta contra o regime. Luiz Carlos Maciel fala da vocação política da sua geração, que<br />

41 MACIEL, Luiz Carlos. Anos 60. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 83.


atuou fortemente na década de 60. Segundo ele, o impulso para a rebelião tinha na política ape-<br />

nas um canal externo. E o canal interno, qual seria? - o inconformismo existencial 42 .<br />

João <strong>das</strong> Neves 43 informou que, apesar do trabalho diário e constante, o grupo Opinião,<br />

num determinado momento, já não conseguia se pagar. Outro problema era a concentração,<br />

como ele disse, de muitas "cabeças pensantes" num mesmo espaço, que, por mais que fizessem,<br />

não conseguiam dar vazão a tudo o que queriam fazer, além da censura e dos conflitos internos<br />

do grupo, somados à crescente tensão social e até mesmo, quem sabe, não ao inconformismo<br />

nos termos empregados por Luiz Carlos Maciel, mas ao desencontro de pessoas que liam a vida<br />

pela cartilha da razão, da racionalidade (num tempo que a racionalidade perdia espaço para as<br />

emoções explosivas), resultou, nesse imbróglio de coisas conflitantes, a necessidade de alguns<br />

membros do grupo parar um pouco, repensar o caminho do seu trabalho.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> volta para a Paraíba. Três anos em contato íntimo com o grupo Opinião,<br />

cuja formação era essencialmente teatral, participando de to<strong>das</strong> as montagens, ou como co-autor<br />

dos textos, ou como produtor, divulgador ou qualquer coisa que fosse necessário fazer, lhe deu<br />

uma visão do palco e da possibilidade de trabalho nele, que o marcou para sempre. Ao sair do<br />

Opinião, em 1967, estava completa a sua formação profissional. Era, enfim, um homem de tea-<br />

tro.<br />

42 Idem, ibidem, p. 8.<br />

43 Entrevista citada.


SEGUNDA PARTE<br />

PARAÍ-BÊ-A-BÁ OU A LEITURA DE UM DESTINO<br />

“Construía por cima da morte uma ponte de palavras,<br />

como se a formulação nítida e lúcida do futuro pu-<br />

desse iludir o abismo. Deixá-lo para trás”.<br />

Antônio Callado


Os motivos que o levaram a voltar para a Paraíba nunca foram suficientemente esclare-<br />

cidos. Talvez uma certa nostalgia. Marcus Vinícius, num texto escrito para a Folha de São Pau-<br />

lo, deixa uma pista sobre o sentimentalismo de <strong>Paulo</strong>: “Era um paraibano nostálgico de pessoas<br />

e de lugares /.../ Ele tinha especial predileção por bares da barra pesada, principalmente por um,<br />

o Tabajara, onde certamente encontrava algumas <strong>das</strong> figuras populares da cidade. Então, ficava<br />

sabendo dos últimos “causos”, <strong>das</strong> últimas histórias e <strong>das</strong> últimas anedotas sobre aquelas figu-<br />

ras” 44 .<br />

Voltando para a Paraíba, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> retornou ao berço de sua profissão, o rádio. É Bi-<br />

bi Ferreira quem fala: “Depois de sua saída do grupo Opinião em 1967, Paulinho voltou ao<br />

Nordeste. Começou a fazer uma série de trabalhos no rádio lá na Paraíba. Era um trabalho sim-<br />

ples, didático, que aproveitava muito do que ele tinha aprendido nos anos passados no Rio. S-<br />

cripts de programas cômicos” 45 .<br />

O importante era que a experiência acumulada no Opinião o fazia enxergar a possibili-<br />

dade de se expressar através do teatro, mesmo que fosse numa cidade como João Pessoa, que<br />

tinha (e tem) um público muito limitado, por uma série de razões que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> passou a<br />

compreender muito bem. Inclusive razões de mercado.<br />

E o teatro, todos sabem, não pode prescindir do público. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> compreendeu es-<br />

se problema no seu tempo de Opinião, e entendeu que é possível também, em cidade de porte<br />

menor, a existência de um público razoável. O problema, para ser solucionado, precisava ser<br />

encarado de frente: “E falava-nos da grande necessidade de fazermos um teatro baseado, antes<br />

de tudo, na realidade que se conhecia. Surgiu, então, não se sabe quem deu a idéia, a possibili-<br />

dade de fazermos um espetáculo sobre aquilo que mais conhecíamos, o tema que estava mais ao<br />

alcance da nossa mão: a realidade do lugar onde vivíamos. Foi daí que surgiu Paraí-bê-a-bá /.../<br />

<strong>Paulo</strong> arregaçou as mangas, assumindo plenamente as precárias condições de trabalho vigentes<br />

no ambiente teatral da província. Convocou uma equipe de escritores, poetas e músicos e, com<br />

eles, roteirizou e escreveu o espetáculo. Com sua extraordinária vocação de liderança e seu no-<br />

44 VINICIUS, Marcus. “O Amigo <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Folha de S. <strong>Paulo</strong>, 30 de janeiro de 1977.<br />

45 FERREIRA, Bibi. “Ontem eu vi uma estrela cair do céu”. In <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> - A <strong>Arte</strong> da Resistência. Op. cit. p. 13.


tável senso de observação do real, realizou um trabalho que constituiu verdadeiro marco no<br />

teatro nordestino. E dizia: eu aposto com vocês que o público daqui não vem ao teatro porque o<br />

teatro não está falando de coisas que ele conhece ou pelas quais se interessa. Se a gente numa<br />

peça falar do Ponto de Cem Réis 46 , tenho certeza de que esse teatro vai lotar”.<br />

Continua o depoimento: “E lotou. Paraí-bê-a-bá foi a única produção teatral da Paraíba<br />

que conseguiu ficar em cartaz durante toda uma temporada - e sempre mantendo cheia a platéia<br />

do velho Teatro Santa Roza” 47 .<br />

Além do sucesso de público que foi Paraí-bê-a-bá serviu para <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> como um<br />

primeiro e decisivo teste de sua dramaturgia, do amadurecimento <strong>das</strong> coisas aprendi<strong>das</strong> nos<br />

seus anos com o Opinião.<br />

1. Por que um espetáculo sobre a Paraíba?<br />

É este o título do prefácio que acompanha a edição do texto Paraí-bê-a-bá 48 . Nesse pre-<br />

fácio, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> demonstra a sua completa maturidade como pensador da cultura, inclusive<br />

emitindo uma frase que é a expressão mais acabada de tudo que ele fez até aí e, sobretudo, de<br />

tudo o que ele faria a partir de então. Diz a frase: “O teatro ter de sujar-se da realidade do seu<br />

público, para tê-lo atento, para fazê-lo gostar e necessitar de teatro” (p. VII). Se tivéssemos de<br />

eleger uma frase que traduzisse em poucas palavras o homem <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e a sua práxis de<br />

intervenção no mundo, esta seria a mais clara, a mais contundente, a mais sincera. E é a frase-<br />

núcleo de um texto cujas intenções são cristalinas e não pretende esclarecer sobre a peça que se<br />

vai ler ou assistir; antes, o motivo de sua existência é dimensionar o conflito entre arte e públi-<br />

co, entre artista e receptor: as razões da interferência na sua comunicação.<br />

46 Tradicional praça no centro de João Pessoa.<br />

47 VINÍCIUS, Marcus. Op. cit.<br />

48 PONTES, <strong>Paulo</strong>. Paraí-bê-a-bá . João Pessoa, 1968. Sem editora. Arquivo do autor. Daqui para a frente to<strong>das</strong> as<br />

citações desse texto terão apenas a indicação de página.


ção.<br />

E são duas as razões; ou como quer <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, são dois os impasses nesta comunica-<br />

O primeiro impasse: o público não vai ao teatro. E ele se pergunta: “Como fazer com<br />

que um público pouco acostumado a ver teatro, um público cuja vontade e necessidade de emo-<br />

cionar-se é inteiramente consumida pela cultura glamourosa e de ótimo nível de acabamento<br />

industrial dos grandes veículos de comunicação de massas, como fazer com que esse público se<br />

sinta atraído pelo espetáculo teatral?” (p. V).<br />

Lançada a questão, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> aponta imediatamente o segundo impasse: “Como rea-<br />

lizar um espetáculo de teatro cujo nível seja capaz de interessar ao público, num Estado onde<br />

não há escolas de arte dramática, não se editam livros de teatro, onde não há técnicos etc?” (p.<br />

V).<br />

Posto o problema em termos especificamente regionais, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, logo a seguir, o<br />

amplia com o intuito de torná-lo nacional. Ou seja: os impasses por ele detectados em João Pes-<br />

soa, estão muito além dela, são problemas estruturais do país, problemas de política cultural, ou<br />

até, brincando com as palavras, de cultura política: “Na verdade, a cultura e, particularmente o<br />

teatro, do ponto de vista do interesse social, enfrenta problemas, hoje no Brasil, que só podem<br />

ser resolvidos pela ação governamental. Nenhum governo, no entanto, poder investir na quali-<br />

dade da cultura antes de investir na sua extensão; nós somos um país metade analfabeto. A<br />

composição de Poder que tiver interesse político em investir maciçamente na cultura, ao atacar<br />

os seus problemas básicos, está ajudando a solucionar os problemas específicos de cada ativi-<br />

dade cultural” (p. VI).<br />

A partir da constatação de que o problema da cultura é muito mais abrangente, ele volta<br />

a polarizar a discussão especificamente no teatro feito na província e de como pode esse teatro<br />

oferecer uma resposta adequada ao problema de sua subsistência num lugar de poucos recursos.<br />

É quando, no prefácio, ele oferece a resposta que é o fundamento do impasse inicialmente pro-<br />

posto: “Como fazer o público ter interesse pelo espetáculo teatral? Consultando o público; se o<br />

homem para quem o nosso teatro se destina é paraibano, façamos do homem paraibano o espe-<br />

táculo” (p. VI).<br />

E justifica: “O que resulta de uma peça de Garcia Lorca montada por um grupo despre-<br />

parado é sempre um espetáculo incompleto, no qual as intenções não chegam à platéia, as per-<br />

sonagens não adquirem contornos nem força. Aí o público - que é o dado fundamental da ques-<br />

tão, que não fruiu o espetáculo, entre outras razões porque as relações da peça não lhe foram<br />

mostra<strong>das</strong> com clareza, passa a confundir cultura com chatice, teatro passa a ser linguagem de<br />

gente muito culta, música vira soporífero. E, temeroso de ofender a cultura, o homem médio


atribui à sua ignorância o diálogo dos surdos que travou com o teatro. E foge <strong>das</strong> casas de espe-<br />

táculo” (p. VII).<br />

Ou ainda: “O teatro da província que tiver a consciência de que a capacidade perceptiva<br />

do seu público é pouco exercitada /.../ ter de ir buscar na consciência coletiva da comunidade<br />

para a qual representa os motivos, os elementos de sua dramaturgia” (p. VII).<br />

Mas é preciso esclarecer que para <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> não se trata de desprezar Lorca ou<br />

Molière (os autores tomados como exemplo no prefácio). O que importa mesmo é que, qual-<br />

quer que seja o texto, qualquer que seja o autor, seja bem dito, e estabeleça comunicação com o<br />

público, uma vez que, segundo ele, ao público ninguém engana.<br />

Então, qual seria a solução para o impasse criado por um teatro que, do ponto de vista<br />

técnico está defasado e cujo público está culturalmente despreparado? <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> diz: “Se o<br />

que eu sei - e posso - fazer é contar bem uma piada, então que eu conte a piada, e o público, em<br />

resposta, vai gostar da piada, e do teatro” (p. VIII).<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> se dá ao trabalho de esclarecer que essa postura não pode ser tomada como<br />

um critério para a criação artística, uma vez que, segundo ele, qualquer artista tem o direito e o<br />

dever de tentar uma formulação cada vez mais complexa, cada vez mais rica e profunda de sua<br />

obra. Ele então considera que, do ponto de vista estético, corre um risco calculado. Mas avisa<br />

que faz assim porque respeita demais o público, e porque estabeleceu também, como centro de<br />

sua atividade, a comunicação com ele, e não o exercício da expressão pura. Avisa ainda que<br />

quem fizer como ele estar duplamente certo, porque “só é verdadeiramente expressivo, nos<br />

diversos níveis em que se dá a criação artística, o que comunica” (p. VIII).<br />

2. O Texto<br />

A primeira coisa a chamar a atenção em Paraí-bê-bá é a inexistência de individualidade<br />

para as personagens. Ou por outra: elas não têm psicologia que as caracterize. As dezenas de<br />

personagens que intervêm nas cenas possuem uma existência meramente nuclear: aparecem,<br />

compõem a cena e desaparecem. Os coros e cantores, segundo Anatol Rosenfeld 49 , são um dos<br />

49 ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. S. <strong>Paulo</strong>: Perspectiva, 1985, p. 159.


ecursos mais importantes de distanciamento pelo teatro épico brechtiano. Estes mesmos recur-<br />

sos foram largamente utilizados nas montagens do grupo Opinião. Paraí-bê-a-bá mantém a<br />

mesma linha de teatro cantado. Há um Coro que conduz à narrativa e empresta do seu elenco os<br />

atores que assumirão papéis nas pequenas cenas que vão compondo o corpo do texto. Nesse<br />

sentido as personagens não têm nomes que as identifiquem. São grafa<strong>das</strong> meramente por “A-<br />

tor” e seguem um número que as diferencia: “Ator 1”, “Ator 2”, “Ator 3”, e por aí em diante.<br />

As poucas personagens que possuem nomes são tira<strong>das</strong> de outros textos. Paraí-bê-a-bá é uma<br />

colagem. E o principal texto colado é A Bagaceira, de José Américo de Almeida. Por isso, apa-<br />

recem personagens com nome como “Dagoberto”, “Soledade”, “Xenane”, que são personagens<br />

do romance.<br />

Mas esta mistura de textos, ao invés de comprometer o corpo da peça, envolve-a em um<br />

organismo novo que é capaz, inclusive, de redimensionar a obra colada, de arrancá-la de um<br />

contexto geral de um romance sobre a seca, por exemplo (no caso de A Bagaceira), para parti-<br />

cularizá-la em outro contexto (a investigação antropológica do homem paraibano), sem que a<br />

obra do outro autor perca a sua característica. Com isto <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> consegue, quando menos,<br />

o efeito de, atomizando cada cena, ressaltar com mais nitidez o perfil do homem paraibano que<br />

ele se propõe a desvendar. E o consegue até com certa dialética quando, na soma <strong>das</strong> diferenças<br />

apresenta<strong>das</strong>, há, subjetivamente, não um homem, uma personagem, mas o caráter de um povo<br />

e a sua cultura específica.<br />

Para chegar a esse resultado, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> lançou mão do que as ciências humanas pode<br />

oferecer-lhe, tudo o que pudesse lançar luzes sobre o tema e clarificá-lo, a ponto de torná-lo<br />

límpido, sem subterfúgios, sem dubiedades, sem dúvi<strong>das</strong>. Para isso fez constar em seu texto um<br />

pouco de cada coisa, a saber:<br />

2.1 História<br />

Abertura da peça. Há em cena um Coro que canta o tema que costura a peça. Entra um<br />

play-back que fala da posição geográfica do Estado da Paraíba, para, em seguida, completar<br />

com uma informação histórica:


“PLAY-BACK - /.../ Sua conquista, fundamental para a expansão do território brasileiro ao<br />

norte, deu-se em 1585, depois de quase oitenta anos de luta penosa, no decurso do qual cinco<br />

expedições bem arma<strong>das</strong> foram praticamente arrasa<strong>das</strong> pelo gentio. O índio da Paraíba nunca<br />

sofreu cativeiro. Misturou-se com o branco e, dessa fusão, saiu o homem paraibano, cabeça<br />

chata, cabra macho que pegou do bacamarte e ajudou a expulsar os holandeses, o caboclo so-<br />

rumbático da roça, curvado ao cabo da enxada” (p. 1).<br />

Ou, então, esse trecho do discurso de posse do Presidente João Pessoa, quando governa-<br />

dor do Estado, em 1928:<br />

“ATOR 1 - O cangaceiro é o produto da falta de justiça e da nossa viciada educação política,<br />

feita em gerações sucessivas. Façamos, portanto, a sua reeducação, persistindo na sua persegui-<br />

ção sem preferência, mas também sem crueldade” (p. 43).<br />

E foi espalhando ao longo do texto referências históricas que são bem concretas para o<br />

público a que ele visava.<br />

2.2 Economia<br />

Posto, na abertura da peça, os dados históricos que fundamentam a identidade do públi-<br />

co com o texto, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> imediatamente introduziu um novo dado, o econômico, onde o<br />

espectador ser informado sobre a geração de riquezas no Estado:<br />

“ATOR 1 - A Paraíba produz e exporta algodão em pluma, fibras de sisal, bucha de sisal, cana<br />

de açúcar.<br />

ATOR 2 - A Paraíba produz e exporta milho, farinha de mandioca, óleo de baleia.<br />

ATOR 3 - A Paraíba produz e exporta óleo bruto de caroço de algodão, óleo alimentício de al-<br />

godão e cimento.<br />

ATOR 4 - A Paraíba produz e exporta batatinha, abacaxi, semente de mamona e açúcar.<br />

ATOR 5 - A Paraíba produz e exporta fava, feijão, peles e couros em bruto e prepara<strong>das</strong>” (p. 2).


E segue ainda uma lista de produtos que a Paraíba produz e exporta. Esses dados, apa-<br />

rentemente soltos dentro do texto são retomados para discussão posteriormente:<br />

“ATOR - Em 1935, o algodão, um dos principais produtos da Paraíba, custava /.../ 50 . Em 1967<br />

foi vendido a NCr$ 1,80.<br />

ATOR 2 - Em 1950, o sisal, outro grande produto da Paraíba, custava NCr$ 3,60. Em 1967 foi<br />

vendido a NCr$ 0,23.<br />

ATOR 1 - Os compradores industrializados lançam-se, atualmente, à fabricação de fibra sintéti-<br />

ca, que substituirá, gradativamente, o sisal da Paraíba no mercado.<br />

ATOR 3 - A economia paraibana se baseia na produção agrícola para exportação. Por isso é<br />

uma economia permanentemente sujeita às oscilações do mercado externo. Como os produtos<br />

agrícolas têm caído de preço, a Paraíba tem vendido cada vez mais para alcançar a mesma ren-<br />

da real. Por outro lado, voltada para o comprador externo, a agricultura especializa-se em al-<br />

guns produtos que monopolizam as melhores terras e os escassos recursos financeiros e hu-<br />

manos disponíveis. As pequenas propriedades e as terras semi-ári<strong>das</strong> são as que ficam para a<br />

produção de alimentos” (p. 24).<br />

O texto acima, a fala específica do Ator 3, é um trecho do relatório do então Secretário<br />

de Agricultura, José Joffily.<br />

Paraí-bê-a-bá é um texto sem situação dramática definida. Nesse sentido, lembra Rodí-<br />

zio, sendo que no caso de Paraí-bê-a-bá há um texto seguro, de um autor maduro que, no en-<br />

gendramento de uma obra sem ação dramática, à maneira de uma peça ideal para teatro, os te-<br />

mas básicos que interessam a <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> discutir, são introduzidos logo no início, diluído<br />

dentro de outros assuntos para voltarem à luz em outro plano, em outro nível de percepção da<br />

platéia.<br />

A ação imediatamente após o discurso de José Joffily é uma sequência de cenas curtas,<br />

ágeis e engraça<strong>das</strong>, capaz de desfazer a sensação de este ser um texto pesado pelo seu didatis-<br />

mo:<br />

“ATOR 1 - Como e seu nome?<br />

50 Há uma lacuna no texto original.


ATOR 2 - Zé Gonçalves, seu criado.<br />

ATOR 1 - Paraibano?<br />

ATOR 2 - Paraibano.<br />

ATOR 1 - O que é que o senhor faz na vida?<br />

ATOR 2 - Sou plantador de algodão.<br />

ATOR 1 - O que é que o senhor acha do desenvolvimento?<br />

ATOR 2 - Acho que do jeito que as coisas estão, a gente tem de correr um bocado para ficar no<br />

lugar onde está” (p. 25).<br />

E ainda se seguem outras cenas curtas como esta que compõe uma espécie de mosaico<br />

cuja figura de fundo é mais cruel do que a miséria: é a incapacidade, o desânimo, a falta de<br />

perspectiva para combater uma situação sem aparente solução. Nesse sentido, há uma cena an-<br />

tológica sobre um homem que resolve morrer:<br />

“ATOR - Boa noite, está aqui um que perdeu as esperanças de melhorar. Pensando muito na<br />

minha vida, eu descobri que passo o tempo todo pra poder ficar em pé e continuar trabalhando.<br />

COMEÇA A ARRUMAR A REDE NO CHÇO. Trabalho, recebo dinheiro, compro todo de<br />

comida, pra poder trabalhar no outro dia. Nunca fico rico, não tenho mulher, não danço, não<br />

bebo, não viajo, não nada. Tudo o que eu faço é pra continuar em pé. Aí, eu cheguei à conclu-<br />

são: vou morrer. SENTA-SE EM CIMA DA REDE. Me deito aqui nesta rede, me estiro, come-<br />

ço a dormir e não acordo mais nunca. Em vez de ficar a vida toda em pé, eu fico deitado a eter-<br />

nidade. Os senhores que ficam, boa noite, obrigado pela atenção dispensada e sigam meu exem-<br />

plo” (p. 28 e ss).<br />

O homem deita-se na rede para morrer. Chega um grupo de pessoas, observa o homem<br />

deitado, examina se está vivo, se está morto, quando o homem se pronuncia; aí, então, dá-se um<br />

diálogo onde os outros vão querer tirá-lo daquela situação:<br />

“ATOR - Eu conto e vocês me deixam sossegado?<br />

OS TRÊS - Deixamos.<br />

ATOR - Eu não aguento mais trabalhar para comer. Trabalho, como, trabalho. Durmo, trabalho<br />

e como. De tardezinha me d uma tristeza!<br />

DOIS - Homem, deixe de trabalhar...<br />

ATOR - Aí eu não como.


TRÒS - Então, deixe de comer.<br />

ATOR - Aí eu não trabalho.<br />

DOIS - Então, nem trabalhe nem coma.<br />

ATOR - Foi o que resolvi fazer”.<br />

Segue o diálogo sobre aquela situação sem saída, quando alguém resolve tirar o homem<br />

do sol. Pegam a rede, levam-na para a sombra, quando alguém se lembra:<br />

“UM - Olhe aqui, eu tenho umas três cuias de arroz, lá em casa. A gente podia oferecer a ele,<br />

dava para passar umas duas semanas sem trabalhar. Aí ele pensava na vida.<br />

ATOR - DENTRO DA REDE. O arroz é com casca ou sem casca?<br />

UM - Ainda tá com a casca.<br />

ATOR - Então leva o enterro”.<br />

Esta falta de perspectiva tem a sua raiz num problema anterior, o fundiário. E é neste<br />

ponto que conflui o terceiro aspecto, digamos, “científico”, do texto.<br />

2.3 Sociologia<br />

É onde se vai encontrar explicação para tanto desalento. Uma vez expulso da sua terra<br />

pela seca ou pelo latifúndio, o retirante erra de lugar em lugar, e ainda enfrentando, sem o sa-<br />

ber, uma organização social cujo objetivo é alienar o homem por inteiro, não só apropriando-se<br />

de sua terra, como também do seu corpo, ou, como diria um marxista, de sua força de trabalho<br />

e, por consequência, da riqueza que o seu trabalho possa gerar. Para trazer o foco da explanação<br />

para esse ponto, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> lançou mão de um famoso romance:<br />

“ATOR - José Américo de Almeida, A Bagaceira. Durante as secas, os retirantes afluem, como<br />

on<strong>das</strong> humanas, para o brejo, estabelecendo o conflito entre a mão-de-obra local e a que chega<br />

disposta a trabalhar por um prato de comida.


CAPATAZ - ESCOLHENDO; Você, você, você. EXAMINA OS DENTES, MEDE O TA-<br />

MANHO. Você, não... você... levanta o rosto. ENTRA DE REPENTE DOGOBERTO.<br />

DAGOBERTO - O que é isto, Manuel Broca? Quem mandou ocupar retirante? O que eu disse<br />

está dito. VAI SE RETIRANDO. Mande esse pessoal embora.<br />

SOLEDADE - A UM CANTO, TÍMIDA. Se o senhor pudesse me arranjar um copo d'água... eu<br />

estou morrendo de sede...<br />

DAGOBERTO - PÁRA, VOLTA-SE, FITA A MOÇA. UM TEMPO. EXAMINA-A. Broca,<br />

manda dar água a essa gente. A SOLEDADE. Estes dois homens que estão com você são seus<br />

irmãos? SOLEDADE BAIXA A CABEÇA. O PAI RESPONDE ENVERGONHADO.<br />

PAI - Não senhor. Mas são como se fosse.<br />

DAGOBERTO - VOLTA-SE. FITA A MOÇA. UM TEMPO. VAI EM SUA DIREÇÃO.<br />

Quem é esse homem?<br />

SOLEDADE - Meu pai.<br />

DAGOBERTO - Bom, depois da água não quero ver mais ninguém aqui. AO SAIR CHAMA O<br />

FEITOR. Broca, arranche a moça com os dois” (p. 9 e ss.).<br />

A cena continua, mas para não a tornar muito extensa, vamos cortá-la para o trecho em<br />

que Dagoberto expulsa um morador de nome Xenane de suas terras, para abrigar a família de<br />

Soledade, que acabara de chegar ao engenho:<br />

“XENANE - Patrão, eu não me sujeito. O patrão sabe que eu não enjeito parada, sou burro de<br />

carga. Mas nascer pra estrebaria eu não nasci.<br />

DAGOBERTO - Pois por ali, cabra safado. Você não nasceu para estrebaria, que é de cavalo de<br />

sela, você nasceu pra cangalha.<br />

XENANE - A gente bota um quinquingu, quando é agora o patrão sem mais nem menos... Pa-<br />

trão, e a minha roça atrás do rancho, e a rebolada de cana?<br />

DAGOBERTO - O que está na terra é da terra. Vá embora.<br />

PAUSA.<br />

XENANE - Patrão, mande as ordens. Dá licença que eu leve os troços”.<br />

Ao final da cena volta à personagem Ator e a conclui com a sentença de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>:<br />

“ATOR - Esta cena se reproduz nos círculos mortais <strong>das</strong> secas: o retirante faz o marginal do<br />

brejo e este se transforma, por sua vez, em marginal <strong>das</strong> cidades”.


É a visão do ciclo macabro da fome.<br />

2.4 O Épico<br />

O gênero épico, pelo que dele nos fala Anatol Rosenfeld, é a base estética de Paraí-bê-<br />

a-bá: “Segundo a concepção marxista, o ser humano deve ser concebido como o conjunto de<br />

to<strong>das</strong> as relações sociais e diante disso a forma épica é, segundo Brecht, a única capaz de apre-<br />

ender aqueles processos que constituem para o dramaturgo a matéria para uma ampla concep-<br />

ção do mundo. O homem concreto só pode ser compreendido com base nos processos dentro e<br />

através dos quais existe. E esses, particularmente no mundo atual, não se deixam meter nas<br />

formas clássicas” 51 .<br />

O fim principal do teatro épico, em sua formulação brechtiana, é a revelação de que as<br />

desgraças humanas não são eternas e sim históricas. Esta revelação é o móvel que também in-<br />

centiva <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, particularmente no texto em questão, a debruçar-se sobre o tema da imo-<br />

bilidade e dele extrair, usando como recursos textos já existentes, um painel sobre o homem<br />

tragicamente abandonado à sua própria sorte, vitimado por uma prática social imobilista. Mas<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> cortou e costurou o tema até descobrir o que dentro do tecido cultural forma aque-<br />

la sociedade:<br />

“ATOR 4 - Ninguém tolera a verdade. Quem disser a verdade eles chamam de louco. Mas na<br />

Paraíba não tem louco. Pra ser louco na Paraíba é preciso ter muito juízo” (p. 48).<br />

Em Paraí-bê-a-bá, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> buscou desvendar uma entidade subjetiva chamada<br />

“homem paraibano”. Mas para alcançar o nervo mais sensível desse homem, ele procurou-o não<br />

em sua subjetividade, mas nas relações sociais que o homem paraibano for capaz de engendrar,<br />

por bem ou por mal:<br />

51 ROSENFELD, Anatol. Op. cit. p. 147.


“ATOR - Mas, apesar de to<strong>das</strong> as adversidades mostra<strong>das</strong> até agora, o paraibano resiste. A des-<br />

confiança, a mordacidade, uma generosa capacidade de auto-ironizar-se, o humor violento, são<br />

armas que a realidade brutal alojou em seu espírito”. (p. 48).<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, como um detetive, debruçou-se sobre o objeto de sua matéria, e o fez ga-<br />

nhar a dimensão de um problema conflituoso.<br />

Paraí-bê-a-bá estreou no dia 29 de janeiro de 1968, no Teatro Nacional de Comédia,<br />

Rio de Janeiro. Apresentou-se pela primeira vez na Paraíba no dia 16 de fevereiro daquele ano,<br />

no Teatro Santa Roza. O grupo reponsável pela apresentação trazia o nome de Teatro de Arena<br />

da Paraíba.<br />

3. O Palco da Crise<br />

O historiador José Joffily, em artigo publicado no jornal Diário de Pernambuco, relem-<br />

brando <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, disse que no período entre 1967 e 1968 o mundo viveu dias agitados:<br />

“Nos Estados Unidos eram assassinados Luther King e Robert Kennedy. Rebentava no Oriente<br />

Médio a Guerra dos Seis Dias. Enquanto em Portugal começava nova etapa de luta pela recupe-<br />

ração da democracia, em nosso país eram estrangula<strong>das</strong> as liberdades democráticas com o AI-5<br />

silenciando as lideranças que tinham escapado da fogueira de 64” 52 .<br />

O ano de 1968 foi de profun<strong>das</strong> inquietações no mundo, tanto no bloco Leste quanto no<br />

Oeste, tanto no Hemisfério Norte quanto no Sul. O que aconteceu em 1968, passados tantos<br />

anos, faz parte da especulação da história: Revolta? Revolução? Reforma? São palavras que<br />

pertencem ao espólio com que a história busca justificar um fato tão complexo, um fenômeno<br />

de inquietação internacional que, quase simultaneamente, explodiu em países os mais variados<br />

e cujas histórias são as mais dessemelhantes. Todo o mundo de repente fora agitado por uma<br />

onda de protesto. As barrica<strong>das</strong>, na sua já gloriosa luta contra o Leviatã do Estado, voltaram às<br />

52 JOFFILY, José. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, 10 anos depois”. Diário de Pernambuco, 13 de fevereiro de 1987.


uas de Paris, arma<strong>das</strong> por uma multidão de jovens estudantes que exigiam a devolução ao ci-<br />

dadão de um bem que não se sabe com certeza se algum dia existiu: liberdade.<br />

Toda a inquietação do mundo; todo o repúdio contra o poder que erige a morte como<br />

culto num tempo pulsante de vida; to<strong>das</strong> as injustiças sociais postas a nu por uma horda de jo-<br />

vens que, quase num átimo, perceberam que era a sua força e a sua juventude que o Estado exi-<br />

gia para poder perpetuar a morte; a contradição interna dos regimes Capitalistas e Comunistas<br />

que não conseguiam fazer da felicidade (uma idéia utópica) um valor social possível de ser<br />

conquistado com o trabalho e com a justiça; as idéias de pensadores como Marcuse, Marx,<br />

Freud, Sartre, além de Reich; os exemplos de líderes como Mao Tsé Tung e Che Guevara, mor-<br />

to na Bolívia; as ditaduras. To<strong>das</strong> essas coisas somavam-se no espírito dos jovens naquele ano<br />

de 1968, criando ao mesmo tempo a resposta impulsiva da revolta e as teorias que se traduziam<br />

em palavras de ordem: é proibido proibir: frase inscrita nos muros de Paris.<br />

No Brasil (desde abril de 1964), a repressão ia estabelecendo um espaço de liberdade<br />

cada vez menor. As inquietações dos estudantes marchavam para as ruas, e nas ruas se trans-<br />

formavam em pedras e coquetéis molotovs sobre a polícia.<br />

O General Castelo Branco esperava que após noventa dias do direito governamental de<br />

cassar mandatos e suspender políticos, depois da vitória de abril, viesse uma pacificação relati-<br />

va. Mas o que aconteceu foi diferente, e vieram as medi<strong>das</strong> restritivas: Ato Institucional nº 2, a<br />

extinção dos partidos políticos, recesso no Congresso, eleições indiretas para Presidente, Vice-<br />

Presidente e Governadores de Estados, a Lei de Segurança Nacional, a Lei de Imprensa, a com-<br />

pressão salarial, a proibição de greves, a intervenção nos sindicatos etc. Todo um elenco de<br />

medi<strong>das</strong> que caracterizava a ditadura que, por fim, se institucionalizaria em 13 de dezembro de<br />

1968, com o Ato Institucional de número 5 e Ato Complementar de número 38. Por eles, o<br />

Congresso Nacional fora posto em recesso por tempo indeterminado e ficava assegurado ao<br />

Presidente a possibilidade de sanções políticas, independente de qualquer controle judiciário. E<br />

o que motivou o governo militar a tomar essas medi<strong>das</strong>? Aparentemente o discurso do deputado<br />

carioca Márcio Moreira Alves, no qual protestava contra a invasão da Universidade de Brasília,<br />

por tropas do Exército e da Polícia, na manhã do dia 29 de agosto. Dizia o deputado: “Quando<br />

pararão as tropas de metralhar nas ruas o povo? Quando uma bota, arrebentando uma porta de<br />

laboratório, deixar de ser a proposta de reforma universitária do Governo? Quando teremos,<br />

como pais, ao ver nossos filhos saírem para a escola, à certeza de que eles não voltarão carrega-<br />

dos em uma padiola, esbordoados ou metralhados? Quando poderemos ter confiança naqueles<br />

que devem executar e cumprir as leis? Quando não será a polícia um bando de facínoras?<br />

Quando não será o Exército um valhacouto de torturadores? Quando se dará o Governo Federal


a um mínimo de cumprimento do dever, como é para o bem da República e para a tranquilidade<br />

do povo brasileiro?” 53 . A linha dura do Exército reclamava punições contra o deputado. Mas, na<br />

verdade, o discurso candente e emocionado do deputado Márcio Moreira Alves estava mergu-<br />

lhado na mais pura realidade, na mais monótona rotina de tensão e medo que acompanhou a<br />

vida do país naqueles meses.<br />

Esse ano - 1968 - marcou a crise onde se evidenciava a falência do Estado e de to<strong>das</strong> as<br />

teorias salvacionistas. As velhas regras de comportamento não importavam mais e, como con-<br />

sequência, diante da recusa do mundo (ou <strong>das</strong> forças políticas permanecerem obstina<strong>das</strong> em seu<br />

medo de mudanças), a juventude procurou uma nova forma de libertar o imaginário: as viagens.<br />

Em gotas de ácido ou pelas estra<strong>das</strong>; com os cabelos longos e desalinhados como estatuto de<br />

uma nova tribo; seu corpo como dádiva primeira e última da liberdade, altar de todos os praze-<br />

res e fonte de todos os desejos, a juventude encontrou no psicodelismo a forma alternativa com<br />

a qual se poderia lutar contra as ditaduras políticas, contra o acomodamento burguês às regras<br />

do jogo social, e contra também o american way of life, o sistema de vida americano. Contra a<br />

caretice, somente éter na mente. Acreditavam nas flores vencendo canhões.<br />

Claro que esse comportamento psicodélico não era regra geral na juventude. No Brasil,<br />

por exemplo, existiam dois tipos de jovens: o hippie, tido como alienado, e o engajado na luta<br />

política. A propósito, vem-nos à lembrança a peça do Vianinha, Rasga Coração, cujo painel da<br />

vida brasileira mostra, no fim de tudo, aqueles dois jovens em pólos opostos.<br />

A Linguagem artística, de comum acordo com as mudanças de comportamento, também<br />

passou a exprimir-se de uma forma pouco racional, onde a experiência estética adquiriu valor<br />

em si, e não mais uma forma programática de intervir no mundo. Não foi à toa que Caetano<br />

Veloso fora pesadamente vaiado quando cantava, refletindo os anseios da rebeldia de 1968, “É<br />

proibido proibir”, pelo público de Geraldo Vandré, aquele de “Pra não dizer que não falei <strong>das</strong><br />

flores”.<br />

A postura sintonizada com a rebeldia pertencia à arte de vanguarda. A sintonizada com a<br />

resistência pertencia aos já conhecidos artistas engajados.<br />

lores.<br />

Entre um e outro grupo pairava, na sociedade e no campo da arte, profunda crise de va-<br />

53 Apud Hélio Silva, op. cit. p. 437.


4. A crise no Palco<br />

M. Berthold afirma que o lema do teatro em crise não é nenhuma invenção do século<br />

XX 54 . O teatro carrega consigo todos os anseios dos homens e <strong>das</strong> sociedades. O teatro é a arte<br />

da permanência da crise. E como tal, como nenhuma outra arte, é capaz de refletir com clareza<br />

a crise que as sociedades atravessam.<br />

No ano de 1968, em que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> escrevera e montara Paraí-bê-a-bá, o teatro brasi-<br />

leiro refletiu profundamente a crise que então a sociedade atravessava. A crise vivida pelo tea-<br />

tro era, sobretudo, de linguagem. O problema era encontrar a linguagem adequada ao público, a<br />

que viria em resposta à angústia do público naqueles anos difíceis.<br />

Citando Ionesco, Berthold deduz que a nossa época perdeu a consciência profunda do<br />

seu destino 55 . Esse fenômeno moderno, em termos formais, tratando-se de linguagem especifi-<br />

camente teatral, traduz-se em textos cuja organização é profundamente hermética, chegando<br />

mesmo a constituir-se como uma espécie de código para iniciados. Muitas vezes esses textos,<br />

refletindo as conquistas do teatro do Absurdo, são uma soma de referências culturais as mais<br />

diversas do que exatamente texto previamente organizado para o palco. A esse tipo de texto,<br />

hermético, muitas vezes até incompreensível, dá-se o nome de “vanguarda”. O curioso, atual-<br />

mente, é que as “vanguar<strong>das</strong>” perderam seu papel histórico, esvaziaram-se de conteúdo e passa-<br />

ram a repetir fórmulas já consagra<strong>das</strong> de outras vanguar<strong>das</strong>. O nosso tempo perdeu a noção do<br />

novo e, consequentemente, do revolucionário.<br />

Mas se chegamos a uma crise, especificamente em termos de linguagem teatral, a raiz<br />

desse problema, para nós, no Brasil, já se delineava desde meados da década de 60, quando<br />

parte do teatro eliminou do palco a palavra e instituiu a agressão como a linguagem capaz de<br />

atingir o público como uma bofetada. Aliás, “Dar uma, duas, três, muitas bofeta<strong>das</strong>” é o título<br />

do artigo de Tite de Lemos (um dos encenadores do chamado Teatro Agressivo), na Revista<br />

Civilização Brasileira, de julho de 1968, na qual consta um famoso artigo de Vianinha, “Um<br />

54 BERTHOLD, M. Historia social del teatro/2: Madrid, Guadarrama, 1974, p. 281.<br />

55 Op. cit. p. 283.


pouco de pessedismo não faz mal a ninguém”, onde ele analisa a posição do teatro brasileiro<br />

naquele momento, a postura dos dois “setores” - como ele bem frisa: o “engajado” e o “desen-<br />

gajado”, ou simplesmente “esteticista”, que é o teatro que vê com ceticismo a participação con-<br />

creta na vida social e política do país: “Os desacertos e a descontinuidade estéticos - diz Viani-<br />

nha - parecem-lhe produto de uma posição a priori, de uma parcialidade, de uma posição dou-<br />

trinária, estranha à arte. Prefere pesquisar e trabalhar no sentido de cada vez mais dominar os<br />

segredos da fluidez estética, sem se preocupar com o mundo significativo que elaboram” 56 .<br />

Vianinha, como todo o teatro engajado, estava profundamente preocupado em elaborar<br />

uma linguagem que falasse com clareza ao público.<br />

Anatol Rosenfeld, analisando a posição <strong>das</strong> vanguar<strong>das</strong> naquele momento, publicou um<br />

artigo intitulado “Teatro Agressivo”, em que, procurando entender os motivos estéticos da a-<br />

gressividade, disse: “Quando a tensão entre as metas e a realidade, entre a verdade e a retórica,<br />

entre a necessidade de transformação e a manutenção do status quo, entre a urgência de ação e o<br />

conformismo geral torna-se demasiado dolorosa, é inevitável a “ira recalcada” e a violência <strong>das</strong><br />

manifestações artísticas” 57 .<br />

Comentando o artigo de Vianinha, Fernando Peixoto disse que aquele foi “um instante<br />

marcado por certa radicalização do pensamento e projeto e/ou por um anárquico e desenfreado<br />

espírito de negação, de auto-destruição”. E completou: “Parte do teatro acompanha a radicaliza-<br />

ção do único público que lhe permanecia razoavelmente fiel: estudantes secundários e princi-<br />

palmente universitários. As manifestações e lutas de protesto estão nas ruas, a violência da re-<br />

pressão faz vítimas. Alguns encenadores não aceitam a aparente passividade do espetáculo en-<br />

quanto ato de contemplação: a impaciência e o impulso de revolta atingem a própria linguagem<br />

cênica” 58 .<br />

Nesse debate, entra <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, naturalmente que ao lado da corrente “engajada”, para<br />

fazer a defesa da palavra, da racionalidade contra o desespero, enfim, a defesa do bom-senso<br />

como arma de luta contra uma situação agravantemente opressiva.<br />

56 VIANNA FILHO, Oduvaldo. “Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém”. In Vianinha. S. <strong>Paulo</strong>, Brasiliense,<br />

1983, p. 120.<br />

57 ROSENFELD, Anatol. “Teatro Agressivo”. In revista Teatro Paulista. S. <strong>Paulo</strong>, 1967, sem editora, sem página.<br />

58 PEIXOTO, Fernando. “Nota XIV”. In Vianinha, op. cit. p. 128.


Analisando esse problema, Anatol Rosenfeld reconheceu que a agressividade precisava<br />

de uma tradução estética adequada para cumprir o seu fim, caso contrário, seria inócua: “A vio-<br />

lência pode certamente funcionar - e tem funcionado - no caso de peças e encenações excelen-<br />

tes ou ao menos interessantes /.../ Mas fazer da violência o princípio supremo, afigura-se con-<br />

traditório e irracional. Contraditório porque uma violência que se esgota na “porrada” simbólica<br />

e que /.../ tendo de limitar-se ao lançamento de palavrões e gestos explosivos, é em si mesma,<br />

como princípio abstrato, perfeitamente inócua. Contraditório ainda porque a violência em si,<br />

transformada em princípio básico, acaba sendo mais um clichê confortável que cria hábitos e<br />

cuja força agressiva esgota-se rapidamente” 59 .<br />

O Brasil - como de resto, o mundo - vivia momentos de extremada violência. Os estu-<br />

dantes, a sociedade civil, enfrentavam com pedras e slogans a força dos urutus. A revolta pro-<br />

vocada por uma ditadura que sufocava os anseios e as reivindicações populares, acrescentava a<br />

agressividade no espírito de um tempo já perturbado por tantas radicalizações repentinas e es-<br />

pontâneas. A força da ditadura é capaz de provocar o medo, o sentimento de impotência, mas,<br />

ao mesmo tempo, não é capaz de destruir certo sentimento utópico de liberdade e, juntamente<br />

com esse sentimento, a reação contra as forças que o oprimem. O ser humano precisa ter a ilu-<br />

são da liberdade. A ditadura destrói esta ilusão. Então, só resta lutar contra a ditadura.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> era daqueles que pensava que essa luta necessitava de clareza. Daí por que<br />

fazia a defesa da palavra. É preciso entender que ele nunca fora contra a forma <strong>das</strong> vanguar<strong>das</strong><br />

que, até mesmo por tradição, subverte a linguagem já assimilada por outra a ser (ou não) assi-<br />

milável. Algumas vezes ele próprio se considerava vanguarda.<br />

A luta contra o chamado “teatro agressivo”, em nome da “defesa da palavra”, muitas<br />

vezes se confundiu como se fora contra as vanguar<strong>das</strong>, mesmo porque o “teatro agressivo” pro-<br />

clamava-se de vanguarda, assim como o “engajado” também se proclamasse. Esse foi um perí-<br />

odo em que a palavra “vanguarda” esteve em moda. E essa vanguarda tanto podia ser “estética”<br />

(como se dizia <strong>das</strong> “vanguar<strong>das</strong>”), como ser “política” (como se dizia da turma da “palavra”).<br />

Tudo era uma questão de interpretação.<br />

João <strong>das</strong> Neves, num artigo relembrando <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, marcou datas precisas em que<br />

ocorreram a luta “contra” versus “pela palavra”: “Quando a cultura brasileira nada pode dizer,<br />

59 ROSENFELD, Anatol. Op. cit.


ela voltou-se contra si mesma, contra o ato de dizer. Entre 68 e 76, no teatro brasileiro, há um<br />

brutal combate à palavra” 60 .<br />

Tânia Brandão, num artigo publicado pela revista Ensaio, já tinha uma visão bastante<br />

negativa do valor da palavra no palco: “Gerada a partir desta base histórica, a “estética da pala-<br />

vra” eclodiu após a grande crise teatral iniciada em 1968, marcada pela necessidade institucio-<br />

nal de erigir um sistema oficial de teatro. A essência da crise é o desejo de estabilização do tra-<br />

balho artístico, consolidação mínima <strong>das</strong> conquistas de linguagem efetua<strong>das</strong> a partir dos anos<br />

cinquenta. Crise cultural em que o sistema teatral brasileiro revelou-se incapaz para sustentar o<br />

aprofundamento de suas questões específicas. É o momento da “diluição”, em que desaparecem<br />

os grandes grupos, surgem às montagens por ator, e não se compreende mais (ou não se deseja<br />

mais) qualquer questionamento do palco. Iniciou-se uma luta declarada contra a inquietude -<br />

não importa definir-se o que, neste quadro de caricatura, “inquietude” significa. A cena em que<br />

a palavra predomina é um objeto de eleição cômodo. Pensava-se que aí estaria mesmo a possi-<br />

bilidade de construir um Teatro do Brasil” 61 .<br />

Esse texto da Tânia Brandão colocava o teatro diante de pelo menos três problemas:<br />

Primeiro: consolidação mínima <strong>das</strong> conquistas de linguagem efetua<strong>das</strong> a partir dos anos cin-<br />

quenta.<br />

do palco.<br />

Segundo: não se compreendia mais (ou não se desejava mais) qualquer questionamento<br />

Terceiro: a cena em que a palavra predomina é um objeto de eleição c”modo.<br />

Não é bem assim. A conquista de linguagem efetuada a partir dos anos cinquenta já es-<br />

tava absolutamente concretizada pela própria história. Ninguém pode negar a importância que<br />

grupos como Arena, Oficina e Opinião, além dos CPCs e sem esquecer o TBC (e é possível<br />

juntá-los todos aqui, porque todos, de diferentes modos, à sua maneira, contribuíram profunda-<br />

mente com a consolidação da cena nacional), e outros tantos grupos menores que a história mal<br />

registra, tiveram fundamental papel na construção da cena, da escritura do texto e numa inter-<br />

pretação muito própria. Em 1968, as linguagens adquiri<strong>das</strong> na década anterior e ao longo da<br />

década de 60, já estavam perfeitamente estabiliza<strong>das</strong>, e a luta travada dentro do teatro com a sua<br />

linguagem não passava naquele momento pela consolidação de coisa nenhuma, mas sim, e isto<br />

60 DAS NEVES, João. “A retomada de um caminho”. In <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> - a arte da resistência. Op. cit. p. 20.<br />

61 BRANDÃO, Tânia. “A estética da palavra”. Ensaio - Teatro nº 5. Rio de Janeiro, Achiamé, p. 17.


é o que nos parece importante, pela permanência da cena aberta. A luta era pela existência do<br />

teatro e contra a sua destruição, contra a sua morte, uma vez que estava o teatro totalmente cer-<br />

cado pela ditadura e pela pressão econômica, que, aliás (não mencionada por Tânia Brandão),<br />

foi o que conseguiu destruir a experiência do Arena, do Oficina e do Opinião, os três grupos<br />

mais importantes da década de 60. Para só ficarmos em alguns poucos exemplos, vale a pena<br />

lembrar que Augusto Boal, líder do Arena, teve que se exilar do país, depois de preso e tortura-<br />

do; José Celso Martínez Correa, líder do Oficina, teve que se exilar do país e o Opinião, entre<br />

outros problemas, não suportou a pressão econômica e houve, então, uma ruptura no seu elen-<br />

co, inclusive com o exílio de Ferreira Gullar. São apenas alguns poucos exemplos da pressão<br />

com a qual o regime ditatorial fechava o cerco contra o teatro. A luta travada era pela sobrevi-<br />

vência do artista no seu lugar de trabalho: o palco. E, para isso, era preciso estabelecer alianças.<br />

A luta pela “palavra” significava solidariedade com o público pelo momento difícil que todos<br />

atravessavam, e não seria agredindo o público que se conseguiria a necessária solidariedade,<br />

mesmo porque, um espectador agredido é um espectador a menos no teatro. É sabido também<br />

que o “Teatro Agressivo”, o teatro supostamente influenciado pelas vanguar<strong>das</strong> internacionais,<br />

era agressivo com o público, e não com as forças opressivas da sociedade. Era lutando contra<br />

um comportamento que dividia o teatro, afastava o público e enfraquecia a resistência contra a<br />

opressão, que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e tantos outros se debatiam.<br />

Foi pensando nisso que ele falou a Márcia Guimarães: “A nossa história parece que se<br />

dá aos saltos. Parece que a gente não tem memória. É difícil a gente ver em desenvolvimento,<br />

por exemplo, a história do teatro brasileiro. E por quê? Porque em consequência dessa depen-<br />

dência cultural, aparecem sempre fenômenos de fora, exógenos, que perturbam, que fincam<br />

uma cunha, que seccionam um momento do outro. E o processo nunca se faz, nunca se comple-<br />

ta. Então, são raros os momentos que a gente tinha realmente condição de ver um século de<br />

vida brasileira /.../ É preciso aprender a perceber em cada instante da história, aquilo que ela<br />

tem de permanente. Aprender a ver o passado de uma forma histórica. Aprender a tirar do pas-<br />

sado aquilo que ele pode dar. Aprender a fazer com que o passado se contente no presente. A<br />

história não é um constante nascer do nada. É desenvolvimento. É acrescentar alguma coisa ao<br />

que já foi feito. É assim que o processo se desenrola e se enriquece. Se você estiver permanen-<br />

temente derrubando o passado e inventando o novo, você não está fazendo história. Está fazen-<br />

do um jogo de quebra-cabeças. Então, porque não tivemos direito à nossa história, de repente,<br />

não tivemos meio de evitar que o nosso teatro se desligasse de seu povo” 62 .<br />

62 GUIMARÃES, Márcia. “Em vez do banquete, a “Gota D'água”. In jornal Última Hora. Rio de Janeiro, 28.11.76.


Os outros dois pontos problemáticos destacados do texto de Tânia Brandão pecam tam-<br />

bém pelo excesso da afirmação. Recorremos outra vez a <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> para conflituar com o<br />

segundo ponto: “Porque o que não é possível é continuarmos como estávamos há um ano: ou o<br />

teatro meramente comercial, o vaudeville importado ou o teatro bem intencionado, combativo,<br />

mas esteticista, formalista, transplantando para cá, erroneamente, o vanguardismo americano ou<br />

europeu, que não tem nada a ver com nossa vanguarda. A vanguarda de um país subdesenvol-<br />

vido tem que sair <strong>das</strong> consultas às necessidades mais profun<strong>das</strong> da sua sociedade” 63 .<br />

Finalmente, o terceiro ponto. Outra vez recorremos a <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, num texto muito in-<br />

teressante em que o autor apresenta o seu material de trabalho, o aparentemente “cômodo” que<br />

vai à cena, como quer Tânia Brandão: “Tudo o que eu escrevo é muito simples. O material que<br />

eu uso é de lixo, é a rua, é o material pobre. Agora, o que é sofisticado é a elaboração do conte-<br />

údo. Demoro meses e meses nessa elaboração, tomando conhecimento da complexidade do<br />

fenômeno. Mas só trabalho com a temática da maioria. A dramaturgia confessional <strong>das</strong> perso-<br />

nagens de exceção não me interessa. Acho que o teatro não é a arte da perplexidade. O teatro é<br />

a arte <strong>das</strong> coisas sabi<strong>das</strong>” 64 .<br />

63 Apud Sérgio Fonta, “O teatro não vai ao povo nem o povo ao teatro”. in Livro de Cabeceira do Homem/1. Rio<br />

de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 81.<br />

64 “PAULINHO, por <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Rio de Janeiro, jornal Última Hora, 28 de dezembro de 1976.


5. A volta ao Rio<br />

O “teatro agressivo”, por trás de sua formulação teórica, manifestava certo desejo quase<br />

religioso de catarse, de uma grande purgação coletiva, como percebeu Anatol Rosenfeld 65 . Pau-<br />

lo <strong>Pontes</strong> e a turma da “palavra”, por outro lado, propunham outra coisa: certa aliança com a<br />

classe média (que muitas vezes chamaram de simplesmente “povo”); e que o teatro não perdes-<br />

se a perspectiva histórica do país; o não desespero; a não dissolução do poder de luta.<br />

Não cremos que esta postura fosse melhor ou pior do que a outra: eram os problemas<br />

postos à mesa no momento: ou se exercitava uma agressividade primal ou um convencimento<br />

racional. A primeira postura, profundamente mergulhada em um determinado esquema de van-<br />

guarda, desmanteladora de mitos, escatológica, em algum ponto beirando o misticismo. A se-<br />

gunda, herdeira da racionalidade do realismo, ou, como quer Tânia Brandão, do materialismo<br />

dialético. Só não é verdade que operando a palavra no nível do saber, esta segunda corrente<br />

empobreceria qualquer poesia, como afirmou Tânia Brandão.<br />

O que nos parece importante assinalar é que, para aquela geração de artistas formados<br />

dentro do CPC - ou de movimentos semelhantes - continuava a prevalecer à arte como princípio<br />

didático. Não é por acaso que Boal, ao estruturar o seu método, o chame precisamente de Tea-<br />

tro do Oprimido, título tirado do livro em que <strong>Paulo</strong> Freire demonstra o funcionamento do seu<br />

método de alfabetização, Pedagogia do Oprimido.<br />

Nem é preciso dizer que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> também via a arte com o mesmo propósito.<br />

Paraí-bê-a-bá foi a sua primeira peça, a rigor, sendo que ele um ano antes se desligara do grupo<br />

Opinião.<br />

Bibi Ferreira conta que em 1968, depois da estréia de Paraí-bê-a-bá, Nadia Maria, vol-<br />

tando de uma viagem pelo Nordeste, conversou com Almeida Castro, então diretor artístico da<br />

TV Tupi, sobre “um rapaz muito novo que tinha feito alguns trabalhos no Opinião do Rio e<br />

estava trabalhando numa rádio em João Pessoa. Fazendo uma programação muito inteligente.<br />

Almeida Castro decidiu conhecer esse “fenômeno” que havia trocado o Rio pelo Nordeste. Via-<br />

65 ROSENFELD, Anatol. Op. cit.


jou até João Pessoa. Ouviu um programa ao vivo realizado pelo rapaz. No dia seguinte, trazia<br />

<strong>Paulo</strong> ao Rio, para a equipe de criação da TV Tupi” 66 .<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, então, apontou outros nomes de pessoas com as quais trabalhara no Opi-<br />

nião, e que poderiam, juntamente com ele, dinamizar a equipe de criação da Tupi: Vianinha e<br />

Armando Costa.<br />

66 FERREIRA, Bibi. “Ontem eu vi uma estrela cair do céu...” in <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> - a arte da resistência. Op. cit.


TERCEIRA PARTE<br />

A TELEVISÃO OU A MASSA COMO MEIO<br />

“O mais importante que eu aprendi com ele foi<br />

exatamente lutar. E uma luta difícil contra o como-<br />

dismo”.<br />

Chico Buarque


“Quem pretende visitar Itamaracá (Pernambuco) deve incluir em seu roteiro turístico,<br />

para meditar alguns minutos, antes ou depois de atravessar a ponte que une o continente à ilha<br />

onde se encontra o Forte Nassau, uma rápida parada num estranho santuário. Está localizado<br />

num ponto de fácil acesso; no centro da pequena vila de poucas ruas. Um santuário que, aliás,<br />

existe, sob diferentes aspectos, em inúmeras vilas e pequenas cidades do interior do Nordeste<br />

brasileiro. É constituído por uma estaca, tendo em cima uma pequena caixa, cor-de-rosa no ca-<br />

so, fechada com um cadeado. Nesta vila em frente à ilha de Itamaracá, região histórica marcada<br />

pela invasão dos holandeses, o novo invasor está escondido dentro da caixa: à noite todos os<br />

moradores vem para a praça trazendo cadeiras ou sentando no chão, o cadeado é aberto e dentro<br />

está um aparelho de televisão” 67 .<br />

Fernando Peixoto não foi o primeiro e nem provavelmente ser o último a lamentar que<br />

a televisão, com o seu olho mágico, enfeitice a consciência rural do país e sub-repticiamente vá<br />

decalcando a velha cultura tradicional uma outra que lhe é estranha; ao velho pensamento patri-<br />

arcal - um outro que lhe é diferente. Sem dúvida esse fenômeno existe. Cacá Diegues, há alguns<br />

anos atrás, realizou Bye Bye Brasil, um filme que aponta para as “espinhas de peixe” (as ante-<br />

nas dos aparelhos de televisão) e as identifica como inimigas da cultura popular, quando mostra<br />

uma companhia de artistas mambembes que cada vez mais busca as pequenas vilas do interior<br />

brasileiro, lugares onde as antenas não estejam presentes, e não constituam, portanto, o impe-<br />

dimento para que seu espetáculo se realize.<br />

A televisão muda o comportamento. Muda também o pensamento. Molda uma outra<br />

cultura; revela outro universo; amplia a visão do mundo; acrescenta novos valores; ao mesmo<br />

tempo que pode tudo aumentar, pode também reduzir: mudar o comportamento sem mudar o<br />

pensamento; moldar outra cultura sem revelar outro universo; ampliar a visão do mundo sem<br />

acrescentar novos valores. A televisão é apenas um instrumento, e, assim sendo, a sua eficiência<br />

para melhor ou pior só depende dos interesses em jogo. Não é a besta eletrônica do Apocalipse,<br />

como às vezes aparenta, diante dos depoimentos dos que querem “salvar” (embora não se duvi-<br />

de <strong>das</strong> boas vontades) a cultura popular. Não é também um anjo de candura, inocente e desinte-<br />

67 PEIXOTO, Fernando. Teatro em Pedaços. S. <strong>Paulo</strong>: Hucitec, 1980, p. 91.


essado. É um instrumento e, como tal, submetido às leis de mercado, às ideologias e, no Brasil<br />

em particular, ao controle do Estado que a transformou numa espécie de sesmaria moderna,<br />

transformando-a em “latifúndios”.<br />

A televisão é uma realidade presente na vida cotidiana de milhões de pessoas. Ou como<br />

já o notou Umberto Eco, a televisão é um serviço 68 . E como serviço, presumivelmente à popu-<br />

lação, o seu problema primordial não é o que ela exibe, mas - disse Vianinha - o que ela deixa<br />

de exibir: “A revista TV Guide (americana, com tiragem de 6 milhões de exemplares) fez uma<br />

análise da programação mundial de televisões. Chegou à conclusão de que, praticamente em<br />

todo o mundo, no chamado horário nobre, predomina a produção americana, as séries para TV:<br />

a mentalidade do policial, de um perseguindo o outro. A revista notava, porém, com indulgente<br />

estranheza que, num país da América do Sul, a televisão não seguia essas normas mundiais.<br />

Era o Brasil. No Brasil, <strong>das</strong> 6 da tarde até 10 e meia da noite - uma faixa bem mais extensiva do<br />

que o “horário nobre” - só existe produção de autor nacional, só produção nacional. The novels,<br />

como eles dizem. Ser que este simples fato não justifica a participação de um homem de cultu-<br />

ra na TV brasileira, ou o preconceito exige mais justificativas? Nada tenho contra o que é exi-<br />

bido na TV. O problema da TV não é o que ela exibe, mas o que ela deixa de exibir. Esse pro-<br />

blema foge à alçada decisória da própria TV. A emissão fatual da grande realidade é uma cons-<br />

tante de todos os meios de comunicação. No plano da informação, portanto, a televisão não é<br />

criadora - é extensiva, é democratizadora, difusora de valores vigentes socialmente e também<br />

difusora de valores espirituais conquistados pela humanidade ao longo de sua grande aventura<br />

espiritual” 69 .<br />

No momento que fala da televisão como democratizadora dos valores conquistados pela<br />

humanidade, Vianinha toca num ponto que é também muito caro a Umberto Eco, quando estu-<br />

dou o assunto da cultura de massa, da qual a televisão é um braço. Ele considera que a nossa<br />

época é de alargamento da área cultural, onde se realiza, a nível mais amplo, a circulação de<br />

uma arte e de uma cultura popular 70 , com o que concorda <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>. Ele mantém-se sempre<br />

obstinado em encontrar a linguagem adequada para falar à massa: “Televisão é por natureza um<br />

veículo democrático. Interessa a milhões de pessoas, pode ser ligada por qualquer um. O grande<br />

68 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. S. <strong>Paulo</strong>: Perspectiva, 1987, p. 335.<br />

69 Apud Carmelinda Guimarães. Op. cit. p. 97.<br />

70 ECO, Umberto. Op. cit. p. 9.


tema da TV é aquele que diz respeito à maioria da população /.../ O autor não pode escolher um<br />

tema que só interessa a uma minoria, como também não pode usar, para a maioria, uma lingua-<br />

gem de minoria. Seria destruir a própria natureza da televisão: democrática, ampla, social, feita<br />

para milhões. Isso não quer dizer que haja qualquer contradição entre qualidade e TV. Existe<br />

contradição entre linguagem aristocrática e TV” 71 .<br />

Mas se o fator positivo da televisão é alargar o domínio da informação e da cultura para<br />

uma ampla camada da população, existe, por outro lado, o fator negativo de, num país como o<br />

nosso, dotado de uma diversidade cultural acentuada, receber a imagem de apenas um lado,<br />

uma região, menos do que isso, duas cidades de um país, conforme já frisamos anteriormente 72 .<br />

A televisão, a princípio, é um veículo democrático de difusão da informação e cultura, mas não<br />

num país como o nosso, cujos canais de televisão são concessões do governo, atendendo a inte-<br />

resses de grandes grupos econômicos que disputam, agressivamente, todo o território nacional.<br />

A televisão brasileira não expressa a imagem do Brasil, mas sim de dois centros produtores, até<br />

mesmo quando põe no ar programas que buscam retratar a vida ou a cultura interiorana, por<br />

exemplo, ou de outras regiões do país. Frequentemente, o interior é apenas cenário, e a fala do<br />

apresentador (ou dos atores), macaqueamento da fala regional, transformando em ridículo o que<br />

é específico de uma cultura, ou de uma região.<br />

Nesse sentido, tem razão Fernando Peixoto quando afirma: “A televisão produzida no<br />

sul, invade o norte, levando imagens que, pouco a pouco, passam a determinar o comportamen-<br />

to e os valores sociais e éticos de populações desprotegi<strong>das</strong>. O vídeo mata os valores regionais e<br />

a cultura popular, ao mesmo tempo em que entrega a esta população, um mundo de sonho e<br />

fantasia, mentira e ilusão. As perspectivas da vida em pequenas cidades e vilas do interior de<br />

Pernambuco ou da Paraíba não são radicalmente altera<strong>das</strong>. Padrões morais e condicionamentos<br />

coletivos são fundamentalmente modificados. Em certo nível existe uma modernização dos<br />

costumes que pode ter uma dose de elementos positivos. Mas o preço pago é bastante alto. Atu-<br />

almente, folhetos de cordel analisam fatos mostrados pela televisão. E muitos heróis populares<br />

71 Apud Alex Santos, “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>: viver da máquina de escrever eu sempre vivi”. In jornal O Norte. João Pessoa,<br />

25 de janeiro de 1977.<br />

72 Ver tópico Rodízio.


do sertão do Nordeste passam a ser substituídos pelos “ídolos” fabricados nos estúdios de São<br />

<strong>Paulo</strong> e Rio” 73 .<br />

A cultura é fruto da existência da sociedade. E como tal também se submete a modifica-<br />

ções, cujos resultados podem ser positivos ou negativos. Não se pode esquecer de que a televi-<br />

são existe e exerce enorme poder sobre o comportamento dos grupos sociais. De uma certa<br />

forma, lamentar que o comportamento, a cultura, a visão de mundo de determinada comunidade<br />

esteja sendo modificada pela imagem projetada na telinha, significa um certo conservadorismo,<br />

algo assim como lamentar a morte de velhas civilizações com as suas culturas, seus exotismos<br />

aos olhos de hoje.<br />

Qualquer cultura que nos seja estranha é vista com certo exotismo. Passamos a vê-la<br />

com os olhos do estrangeiro que pensa descobrir naquilo que lhe é diferente uma aura perdida.<br />

Não foi à toa que Fernando Peixoto descobriu naquele lugar um “santuário” ameaçado pelo<br />

invasor eletrônico. Mas a televisão, assim como a cultura de massa (que ao vulgarizar a fruição<br />

do produto cultural possibilitou o acesso dos bens de cultura a um maior número de pessoas), é<br />

conquista definitiva dos nossos tempos. É inútil lamentar. Melhor é compreender que a cultura,<br />

assim como as pessoas, assim como as civilizações, morrem e são substituí<strong>das</strong> por outras. É a<br />

vida. É a fome de Cronos, o Tempo, devorando os seus filhos. É a dialética da natureza. É a<br />

aventura humana: “Talvez a TV nos esteja levando unicamente para uma nova civilização da<br />

visão, como a que viveram os homens da Idade Média diante dos portais <strong>das</strong> catedrais. Talvez<br />

passemos a impregnar, gradativamente, os novos estímulos visuais de funções simbólicas, e nos<br />

encaminhemos para a estabilização de uma linguagem ideográfica”, conforme Umberto Eco,<br />

prenunciando o surgimento de um novo tempo 74 .<br />

Mas nada disso resolve o problema daquela vila em Itamaracá, Pernambuco. O proble-<br />

ma daquela vila é político. E é anterior à instalação da caixa cor-de-rosa no centro da praça.<br />

Aquela vila, talvez, precisasse de uma emissora sua, assim como outras vilas possuem os seus<br />

jornais e as suas emissoras de rádio. Mas parece que ao poder interessa mostrar a vida como<br />

uma vitrine, onde a felicidade está quase ao alcance da mão, do outro lado da redoma de vidro.<br />

E como uma vitrine, a felicidade desejada não se conquista, se compra. Do outro lado da vitrine<br />

h a vida pseudamente glamourosa dos artistas e as suas roupas impecáveis, seus carros do ano,<br />

73 PEIXOTO, Fernando. Op. cit. p. 91.<br />

74 ECO, Umberto. Op. cit. p. 353.


seus dramas sentimentais, e uma grande cidade aconchegante. A televisão, já alertava Umberto<br />

Eco, tem a capacidade de tornar-se um instrumento eficaz de pacificação e controle social, ga-<br />

rantindo a conservação da ordem estabelecida 75 . Tem ainda o poder sugestivo de uma hipnose,<br />

como ele próprio demonstrou, a propósito de uma pesquisa realizada na cidade de Chicago 76 .<br />

O homem daquela vila, hipnotizado pela felicidade estampada no vídeo, emigra para a<br />

cidade grande. Vai compor a imensa mão-de-obra reserva necessária ao capitalismo, à manu-<br />

tenção dos baixos salários. O seu problema, com certeza, não é a perda de uma cultura aurática<br />

(aos olhos de quem é estrangeiro).<br />

O problema é outro. E já que os grupos econômicos são poderosos, e o governo (e to<strong>das</strong><br />

as forças sociais que o apóiam) é o governo desses grupos, fica difícil quebrar o monopólio <strong>das</strong><br />

concessões de canais de TV. Mas sempre é possível trabalhar a sua linguagem no interesse con-<br />

trário ao dos grupos dominantes. Vianinha depõe: “Como linguagem técnica ou artística, a tele-<br />

visão não é boa nem má. Depende do uso que se faz dela. A serviço de interesses econômicos e<br />

políticos de uma cultura emancipada, é contestatória. A televisão torna-se, como acontece diari-<br />

amente, um tóxico incontrolável que atua diretamente no cérebro do espectador, moldando<br />

consciências e entravando o raciocínio criativo, impedindo a reflexão crítica, promovendo com<br />

violência e agressividade um tipo de massificação que resulta útil e necessário à dominação<br />

cultural e outras dominações. Mas nada existe sem contradições internas. Produzida por ho-<br />

mens, a televisão existe em função do que os homens pensam e da postura que estes assumem<br />

diante do trabalho que realizam. Depende portanto do nível de astúcia de alguns, capazes de<br />

encontrar brechas numa parede aparentemente intransponível” 77 .<br />

Umberto Eco, por outros caminhos, chegou à mesma conclusão: “Por trás de toda dire-<br />

ção da linguagem por imagens, sempre esteve uma elite de estrategos da cultura, educados pelo<br />

símbolo escrito e pela noção abstrata. Uma civilização democrática só se salvar se fizer da lin-<br />

guagem da imagem uma provocação à reflexão crítica, não um convite à hipnose” 78 .<br />

75 Op. cit. p. 346.<br />

76 Op. cit. p. 345.<br />

77 VIANNA FILHO, Oduvaldo. Vianinha. Op. cit. p. 157.<br />

78 ECO, Umberto. Op. cit. p. 353.


1. Bibi - Série Especial<br />

Era o nome do programa com o qual <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> estreou na TV Tupi, no ano de 1968.<br />

Foi o início de sua fase verdadeiramente criativa, e que o acompanhou até os momentos finais<br />

de sua existência. A televisão estimulava-o enormemente. Escrever para um público grande era<br />

sua ambição desde muito no teatro. No programa, ainda no tempo da Rádio Tabajara, conseguia<br />

obter a maior audiência para o horário; com a peça Paraí-bê-a-bá, conseguiu provar, como era<br />

o seu propósito no prefácio ao texto, que o público para teatro existia em qualquer lugar, em<br />

qualquer cidade, e que todo o problema era de linguagem.<br />

Agora, na TV Tupi, outra vez ao lado de Vianinha, teria condições de continuar as suas<br />

pesquisas de uma linguagem popular, a que atrairia multidões para dentro do teatro, como de<br />

fato acabaria acontecendo. E essa linguagem tão criteriosamente procurada, tão persistentemen-<br />

te perseguida, não tinha, na verdade, segredo algum: era a linguagem da rua, e ele nunca se can-<br />

sou de repetir o caminho que atrairia o público: “Se você não representa a tem tica da multidão,<br />

você representa uma tem tica abstrata, e aí você não tem a cara do público, as tendências do<br />

público revela<strong>das</strong> para pesquisar em torno delas. Quando o teatro brasileiro era <strong>das</strong> massas,<br />

apesar de termos uma dramaturgia pobre, tínhamos comediantes populares aos montes, de ex-<br />

traordinária qualidade. Por quê? Porque representavam para a multidão que respondia com seu<br />

aplauso, seu silêncio, seu riso, sua emoção, sua cara e sua temática /.../ Se você tira essa huma-<br />

nidade variada, complexa e buliçosa do artista, tira a sua fonte de pesquisa. Então, vai pesquisar<br />

em torno do quê? De coisas abstratas. Vamos fazer laboratórios sofisticados, burilados, requin-<br />

tados e cada vez menos eficazes, porque não há base social” 79 .<br />

Impressionou-o muito quando uma comédia como A Gaiola <strong>das</strong> Loucas, de Jean Poiret,<br />

conseguiu levar um público de trezentas mil pessoas ao teatro. Ele não gostava da peça, mas<br />

não deixou de observar que um público enorme telefonou, fez reserva, saiu de casa, enfrentou<br />

79 SANTOS, Alex. Op. cit.


trânsito e fila para assistir a um espetáculo teatral. Era um fenômeno que não podia passar em<br />

branco. Era preciso estudar o comportamento daquele público, a sua motivação para assistir a<br />

um espetáculo teatral. E com tenaz persistência, consegui-o, sendo sempre fiel a si mesmo, ao<br />

seu pensamento, ao seu ponto de vista, à sua consciência sobre o que é teatro e sobre a matéria<br />

que o alimenta.<br />

Adotava, para a televisão, o mesmo critério que tinha para o teatro. Certa vez, ele decla-<br />

rou como são suas personagens: “Nunca criei um tipo abstrato. Nunca usei apenas os recursos<br />

da minha imaginação para as personagens. Todos os tipos quase sempre eu vi, conversei com<br />

eles, conhecendo bem a todos. Das características da personagem na vida real é que seleciono<br />

as características que vão fazer o tipo” 80 .<br />

Com a observação dos tipos reais, do homem comum da rua, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> compunha a<br />

galeria <strong>das</strong> suas personagens, que ia ao ar pelas antenas da TV Tupi. Junto com Vianinha, con-<br />

seguiu realizar alguns belos momentos para o programa Bibi - Série Especial. São obras que se<br />

caracterizam pela ação compacta, pelo denso conflito, pela tensão que se instala desde a primei-<br />

ra sequência.<br />

Os temas giram em torno do medo e da injustiça, bem de acordo com a época em que<br />

foram escritos. No resultado final de cada trabalho está contido um indisfarçável humanismo,<br />

uma certa solidariedade com a dor que era de todos. São como depoimentos sobre o terror e a<br />

miséria da ditadura, sob o ponto de vista do homem comum, o que vive o terror e a miséria sem<br />

se dar conta de que a sua causa está instalada no poder de plantão.<br />

Carmelinda Guimarães, no livro sobre Vianinha, apresentou a relação <strong>das</strong> peças que eles<br />

criaram juntos naquele período 81 . Daquela relação selecionamos alguns textos, o suficiente para<br />

ter-se um painel mais amplo sobre a visão de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> nessa fase de sua vida. Carmelinda<br />

cometeu um pequeno engano quando disse que as obras foram ao ar pela TV Globo. As obras<br />

foram apresenta<strong>das</strong> pela TV Tupi 82 .<br />

80 Idem, ibidem.<br />

81 GUIMARÃES, Carmelinda. Op. cit. p. 96.<br />

82 Todos os textos citados são encontráveis na Biblioteca do INACEN - CENACEN (hoje Funarte) - Rio de Janeiro,<br />

em forma de apostilas. Analisaremos cada obra como texto (esquecendo o seu fim como obra televisiva). Como<br />

não são textos editados, não faremos referência de página.


1.1 - Sem Saída<br />

Sem saída é a situação proposta pelo texto. É o seu tema. Personagens pobres postos di-<br />

ante da vontade implacável de um homem que, mais do que um simples homem, é uma verda-<br />

deira instituição informal, dedicada ao contrabando, ao comércio de drogas, à exploração do<br />

jogo do bicho, enfim, todo tipo de contravenção possível. Esse homem controla uma área da<br />

cidade. E dentro dessa área, não permite que outros marginais trabalhem sem lhe pagar o im-<br />

posto devido pelo direito de trabalhar ali. Ele é o senhor absoluto daquele lugar. A sua vontade<br />

é lei.<br />

Logo na abertura do texto o problema (a vontade imperial de Nelsinho) está proposto,<br />

através de uma personagem satélite que aparece para compor a imagem: a rubrica diz que Rai-<br />

mundão (a personagem satélite) está preso numa cadeira, seguro por três homens. Entra Nelsi-<br />

nho, e com ele uma mulher (ainda não identificada), mas também segura por um homem. A<br />

rubrica caracteriza Nelsinho, reforçando a imagem do chefão absoluto: impecavelmente vestido<br />

de branco, óculos escuros, anéis, muito colar de umbanda - ou quimbanda. Raimundão, naquela<br />

situação, e antes de Nelsinho aparecer, tenta se impor:<br />

“RAIMUNDÃO - Me deixa ir embora... Estão pensando o quê... Me larga... Também tenho<br />

amigo importante, hein? Não é só o Nelsinho, não! Vocês vão se dar mal comigo... Não tenho<br />

medo do Nelsinho, não...”<br />

Entra Nelsinho, e Raimundão, diz a rubrica, fica um tempo em silêncio, e depois, quan-<br />

do fala, está muito mais afável:<br />

“NELSINHO - (DEPOIS DE TEMPO) Fico feliz de saber que você não tem medo de mim...<br />

Muito calor. Não está muito calor?<br />

RAIMUNDヌO - Está... Está, sim...<br />

NELSINHO - Toma um copo de cerveja. (RAIMUNDÃO BEBE UM GOLE) Bebe tudo, Rai-<br />

mundão. Estou te oferecendo. (RAIMUNDÃO BEBE. NELSINHO ENCHE OUTRO COPO).<br />

RAIMUNDÃO - Não, Nelsinho, quero ir embora...


NELSINHO - Bebe mais, Raimundão. (NELSINHO ENCHE OUTRO COPO) Vamos de novo<br />

que o calor está demais.”<br />

Assim Raimundão vai bebendo sucessivos copos de cerveja, até não suportar mais. Ain-<br />

da assim, Nelsinho obriga-o a beber um último copo.<br />

Esta sequencia inicial tem uma dupla finalidade: apresentar Nelsinho e a sua vontade<br />

implacável, como também o seu poder sobre a área. Raimundão foi levado à sua presença por-<br />

que cobrou aluguel em barraco de favela, coisa que só Nelsinho se permite fazer. Nelsinho po-<br />

deria, se quisesse, matá-lo. Mas como aquele era o dia de Omulu, seu protetor, ele o perdoaria<br />

desta vez. Para reforçar o poder de vida e morte de Nelsinho, em outra sequência mais adiante,<br />

aparece uma outra personagem satélite, de nome Sujeito:<br />

“NELSINHO - Então, você vende os “pacáu” e queria ficar com o dinheiro só pra você.<br />

SUJEITO – É freguesia minha que eu arrumei sozinho.<br />

NELSINHO - Essa zona é minha. Pra tudo. Quem te arranja proteção pra vender erva sou eu.<br />

Quem arranja advogado sou eu. Já é mais de meia-noite. Não é mais dia de Santo Lázaro, meu<br />

protetor. Pode matar ele.”<br />

Apresentada a personagem e a sua vontade poderosa, na continuidade da sequência do<br />

Raimundão (alternada por cortes que mostram a mãe de Terezinha em casa, preocupada com a<br />

demora da filha, detida em casa de Nelsinho), é posto em foco o conflito representado pela fra-<br />

gilidade de uma moça diante do desejo do bandido:<br />

“NELSINHO - Eu escolhi você Terezinha. Já te disse. Você é a menina mais bonita que tem<br />

por essa zona. Vou casar com você. Olha seu vestido de casamento... Enxoval... Olha essa toa-<br />

lha felpuda. Tudo pra você. Essa casa é tua! Quero ter um filho teu. Pra quando eu morrer con-<br />

tinuar a ser dono da zona inteira.<br />

TEREZINHA - Não quero, não quero, sou noiva, eu...<br />

NELSINHO - Não quer? Não quer essa riqueza toda? Prefere continuar vivendo em barraco?<br />

Olha aí. Tenho dois ventiladores. Colchão de mola. Jóia. O banheiro tem bidê. Olha lá!<br />

TEREZINHA - Não quero. Me deixa em paz, por favor.<br />

NELSINHO - Juro, não vai ter nenhuma outra mulher dentro dessa casa. Só você, Terezinha.<br />

TEREZINHA - Me trouxeram à força aqui, quero ir embora (TENTA SAIR. NELSINHO A<br />

SEGURA FORTE).


NELSINHO - Não entendo. Não entendo uma mulher se recusar querer ser rainha! Com abajur<br />

de cetim! Pensa Terezinha, mas pensa depressa. Quero me casar no mês que vem no dia de São<br />

Bento. Quero a resposta daqui a dois dias, nessa mesma hora. Te espero sozinho aqui na nossa<br />

casa daqui dois dias.<br />

TEREZINHA - Se eu disser que não quero?...<br />

NELSINHO - Nem me fale assim, Terezinha. Foi meu pai de santo que disse que você é a mu-<br />

lher da minha vida. Já avisei os amigos. Nem pense em dizer que não, Terezinha, se você quer<br />

sossego pra você... E pra sua família...”<br />

Diante da vontade de Nelsinho, não há saída para essa personagem. O conflito consiste<br />

em Terezinha não aceitar a sua imposição. Mas ela sabe que não há outro jeito de solucionar o<br />

problema. E mesmo sem querer, vai cedendo, consciente de que não há saída. Conta para a mãe<br />

o que houve, mas não conta para o pai. Desfaz o noivado, para proteger a integridade do noivo.<br />

A mãe, Amália, enxerga uma única possibilidade de evitar o casamento indesejável: dirige-se<br />

ao posto policial:<br />

“POLÍCIA - Não posso fazer nada com o Nelsinho, dona. Querer casar com sua filha não é<br />

crime.<br />

AMÁLIA - O senhor não diga pra ninguém, por favor.<br />

POLÍCIA - Digo não. Não gosto de me meter também com coisas do Nelsinho Bicheiro.<br />

AMÁLIA - Vocês não podem prender esse sujeito? Ele é contraventor. Todo mundo sabe.<br />

POLÍCIA – É difícil pegar prova, dona. Bem que eu queria. Ele já pegou um irmão meu. Ma-<br />

tou.<br />

AMÁLIA - E vocês não podem pegar ele?<br />

POLÍCIA - Ele tem muita costa quente, dona. Muita amizade. Muita trança.”<br />

Então, está justificado o poder de Nelsinho. Há influências externas, poderosas, que o<br />

mantém. Mas isso só agrava o quadro do conflito posto. Não há saída, não há solução.<br />

Na sequência seguinte a do posto policial, Nelsinho está distribuindo dinheiro junto à<br />

população, como se fosse um verdadeiro ponto de assistência social. Ele, o contraventor que<br />

explora a área também protege os habitantes do lugar, atendendo-os em suas necessidades. Esta<br />

é a sua outra base de apoio. O bandido que protege a favela é protegido por ela.<br />

Há todo o tempo dentro da ação uma personagem muda: o avô de Terezinha. Se esta es-<br />

conde do pai o conflito colocado por Nelsinho, quando fala com a mãe não se preocupa de es-


condê-lo do avô figura enigmática, calada, que testemunha tudo o que acontece com a neta. O<br />

avô se dirige à casa do bicheiro e pede duzentos contos. Nelsinho percebe que o avô não fala.<br />

Lê o bilhete que o velho lhe apresenta.<br />

Enquanto isso, Terezinha, percebendo que a situação não tem saída, resolve ceder para<br />

salvar a família. Sua mãe resiste. Mas ela sabe que não há outra solução.<br />

O avô, de posse do dinheiro dado pelo bicheiro, compra um revólver, volta à casa do<br />

bandido. Nelsinho está se perfumando, preparando-se para sair com Terezinha. O avô toca a<br />

campainha. Nelsinho vai atender. O velho descarrega no bicheiro o revólver que comprara com<br />

o dinheiro que ele lhe dera, julgando que seria para compra de remédios.<br />

O velho avô, no seu mutismo, também percebeu que a situação era sem saída.<br />

O texto é curto, como todos os outros dessa série. Mas tem uma sequência de corte e<br />

montagem da ação muito ágil, muito rápida, definindo em pouco tempo personagens, situação e<br />

conflito, e no caso deste, cumprindo, ironicamente, uma situação que o título já diz sem saída.<br />

1.2 - O Justiceiro<br />

Esta é uma história de Western no sertão da Paraíba. Narrada em tom épico, mostra uma<br />

situação em que pessoas alugam o seu sangue-frio para matar.<br />

A sensação criada, desde o início, é de que aquele profissional só existia antigamente,<br />

num tempo muito remoto. Tanto assim que o clima criado pelos autores, mais lembra velhos<br />

filmes de cowboy com seus indefectíveis bandidos e mocinhos do que propriamente uma cida-<br />

dezinha do interior.<br />

Logo no início, uma voz vai pondo o espectador dentro da situação que ser proposta.<br />

Ao contrário de Sem Saída, este texto não apresenta imediatamente os pólos de conflito, mesmo<br />

porque aqui não há conflito algum, não entre personagens. O que acontece neste texto é uma<br />

expectativa gerada pela presença do Justiceiro na cidade. Expectativa que se avoluma a medida<br />

que as diversas personagens vão se definindo. Em contraposição ao movimento <strong>das</strong> demais per-<br />

sonagens, o Justiceiro passa todo o tempo impassível, imobilizado, concentrado na sua função<br />

de justiceiro. Mas é exatamente esta posição de repouso, do ponto de vista dramatúrgico, em<br />

que ele se encontra, que gera, não o conflito de objetivos ou idéias, mas o medo entre as diver-<br />

sas personagens que pensam que o Justiceiro está ali para matá-las. Esse medo é o eixo da ação.


Na abertura da peça, a câmera abre sobre o interior de um pequeno hotel de uma peque-<br />

na cidade. É um bar, com mesas e balcão velho. Há pessoas no lugar. Entra um homem corren-<br />

do, fala com o dono do estabelecimento, e este se assusta. O homem fala com outras pessoas<br />

que estão no local. Todos se assustam. Esse homem, que entra correndo no bar, ser a persona-<br />

gem encarregada de juntar os vários pontos do texto, diversas personagens a quem ele, correndo<br />

como sempre, noticia o que está acontecendo na cidade. A câmera mostra a entrada do Justicei-<br />

ro no bar, acompanhado por uma mulher vestida de preto e um menino, filho da mulher. Ao<br />

entrar no bar, clima de Western: todos param, imóveis. A mulher de preto dirige-se ao balcão,<br />

preenche ficha de entrada no hotel. Sai. O Justiceiro senta e pede, não um uisque, mas um café.<br />

Enquanto se desenvolve essa sequência muda, uma voz faz a narração da cena, pondo o teles-<br />

pectador diante do clima de medo vivido pelas personagens no bar, e, consequentemente, diante<br />

do clima da peça, já devidamente ambientada.<br />

“VOZ - Antigamente, no sertão, no imenso interior brasileiro, muito mais do que hoje - existia<br />

o matador profissional. A inexistência de juízes suficientes nos grandes confins do país fazia<br />

com que as questões de honra, de terra, de vingança, fossem resolvi<strong>das</strong> com a contratação de<br />

um matador. Entre eles houve um que matava por dinheiro, mas só aceitava o trabalho se o mo-<br />

tivo fosse justo. Criou fama também porque nunca pode ser preso, pois sempre matava em legí-<br />

tima defesa, provocando os adversários, esgotando seus nervos, até fazê-los tomar a iniciativa<br />

de dar o primeiro tiro. Cada vez que ele chegava numa cidade, to<strong>das</strong> as pessoas com a consci-<br />

ência culpada, sentiam-se ameaça<strong>das</strong>. Esta é uma <strong>das</strong> suas inúmeras estórias. Seu nome: Estre-<br />

la. Seu apelido entre o povo: O Justiceiro.”<br />

Numa sequência de cortes rápidos, depois da introdução do problema feita por essa voz<br />

épica, o homem que anunciou a chegada do Justiceiro à cidade, continua o seu ofício da contar<br />

a m novidade. Avisa ao dono do banco que, naturalmente, se assusta e se pergunta o que ser<br />

feito dele, Banqueiro. Depois, ao Coronel, que se põe a perguntar se foi atrás dele, Coronel, que<br />

o Justiceiro veio. Mas o tom mais tenso e patético é o de um homem (identificado como Nervo-<br />

so) que considera que o Justiceiro veio procurá-lo, a mando do ex-marido de sua mulher. De<br />

arma em punho, o homem relata a sua desconfiança à mulher, que lhe diz que o seu marido,<br />

sovina como é, não gastaria uma bala num pobre coitado como o Nervoso. Ele fica ainda mais<br />

nervoso, quando na contra-regra ouvem-se passos e uma voz que anuncia, simplesmente, que o<br />

jantar está pronto.


Outro corte na sequência e a cena é conduzida para dentro do bar, onde o Justiceiro está<br />

imóvel e um jovem Doutor conversa com um velho, justamente a propósito do Justiceiro. Esta<br />

sequência compõe definitivamente o perfil do Justiceiro, sem que a personagem até então tenha<br />

pronunciado uma única palavra:<br />

“VELHO - Não tem um pobre que vá perder o sono porque Estrela está na cidade, doutor. A<br />

última vez que cruzei com Estrela foi em 16, no Remígio 83 . Ele tinha a mesma fama que tem<br />

hoje: caboclo sofreu injustiça, era só botar dinheiro na mão dele que ele vingava.<br />

DOUTOR - Você quer dizer que ele nunca matou gente limpa, gente honrada?<br />

VELHO - Nunca. Não tem perigo. Pra Estrela aceitar serviço você tem que provar muito bem<br />

provado a safadeza que lhe fizeram... E ele fica daquele jeito, parado, bolindo com os nervos de<br />

todo mundo. Até que o desgraçado que ele veio procurar não aguenta mais e vem enfrentar ele.<br />

Aí ele mata em legítima defesa.”<br />

Tudo está dito. Não há mais surpresas. O Justiceiro vai ficar naquela posição até que o<br />

culpado venha procurá-lo. A expectativa que se cria é de que apareça o culpado.<br />

Além disso, porém, o coronel, a exemplo da mãe de Terezinha em Sem Saída, busca a<br />

autoridade policial. Em vão. O policial em Sem Saída não tem condições de enfrentar o bichei-<br />

ro porque há uma rede de corrupção que o apóia. Mas aqui não é o caso. O Justiceiro não se<br />

envolve com corrupção e, principalmente, não mata qualquer um, mata justamente os corruptos.<br />

“CORONEL - Se quer continuar sendo delegado daqui, bote esse homem fora da cidade já.<br />

DELEGADO - Estrela?<br />

CORONEL - Faz doze horas que esse homem implantou o terror na cidade. Moça de família<br />

não pode sair de casa... Não tem um cidadão decente que se sinta tranquilo.<br />

DELEGADO - Coronel... Ele está sentado lá no hotel... Não ameaçou ninguém... Pela lei...<br />

CORONEL - Que lei, Delegado? Aquilo é matador profissional.<br />

DELEGADO - Ninguém nunca conseguiu provar. Só matou até hoje em legítima defesa...<br />

CORONEL - Porque ele sempre arranja uma artimanha, provoca, humilha... Aí mata em “legí-<br />

tima defesa”... Põe ele fora da cidade ou eu ponho você fora dessa delegacia.”<br />

83 Cidade do interior da Paraíba.


seu caráter.<br />

O Delegado tem, portanto, medo. O Justiceiro, ao contrário de Nelsinho, se impõe pelo<br />

Mas os autores conduzem a narrativa para outro ponto, em um corte rápido: a mulher de<br />

preto, ninando o garoto, seu filho, conta-lhe uma história pouco infantil, uma verdadeira histó-<br />

ria de horror, que é o ponto central do texto, o núcleo da narrativa que coloca to<strong>das</strong> as outras<br />

personagens sob suspeição, sobretudo quando se sabe que, dentre eles, alguém matou o seu<br />

marido. Esta é justamente a história que a mulher conta ao filho, enquanto o garoto adormece:<br />

“MULHER DE PRETO - Aí São Pedro perguntou: “O senhor aí, morreu de quê?” Teu pai res-<br />

pondeu: “Onde eu estava, São Pedro, o ar era pouco, comida ruim, frio de manhã à noite numa<br />

cela pequena, me deu uma pneumonia, eu morri”... Que lugar era esse? A cadeia. São Pedro:<br />

“Por que o senhor foi pra cadeia?” Aí, teu pai respondeu: “Não sei, São Pedro, pode mandar<br />

seus anjos investigar. Eu tinha minha mulher, minha terra, só vivia pro meu trabalho. De re-<br />

pente, eu estava num tribunal e cinco desconhecidos juraram pela Bíblia que eu tinha matado<br />

um homem”. Aí, São Pedro falou pra teu pai: “Acredito na sua história. Você vai ficar aqui no<br />

céu e o teu filho lá na terra vai ficar contente de saber que você está aqui no céu...”<br />

Nervoso é a personagem que, junto com a mulher, dá o toque de comicidade em v rios<br />

cortes da narrativa. Nervoso quer, embora ainda não tenha coragem de cometer o gesto suicida,<br />

desafiar o Justiceiro, tirar a limpo a diferença, já que ele considera que é a si que o Justiceiro<br />

espera. O Coronel e o Banqueiro querem expulsar o Justiceiro do lugar, temendo que fosse a<br />

algum deles que o assassino espera. Num outro corte o Coronel e o Banqueiro se acusam mutu-<br />

amente de corrupção. Até que o jovem Doutor apresenta-se diante do Justiceiro, acompanhado<br />

de sua namorada, para pedir-lhe que deixe a cidade. Ao mesmo tempo o Coronel, o Banqueiro e<br />

um número de capangas apresentam-se diante do Justiceiro. Ele concorda em deixar a cidade,<br />

mas antes, quer conversar com a namorada do Doutor. A sós, bate na moça, rasga-lhe o vestido<br />

e foge. Corte.<br />

Enfim, Estrela, o Justiceiro, dirige-se com a Mulher de Preto para a casa do Juiz. Era es-<br />

te o culpado e que não tinha aparecido ainda na história, mas, por sua vez, já esperava o Justi-<br />

ceiro em casa. O Justiceiro provoca o juiz, mostrando-lhe pedaços de roupa de sua filha, a na-<br />

morada do Doutor. O Juiz, que sabia que ia morrer, esperava ao menos que o crime fosse inicia-<br />

tiva do Justiceiro, para que ele pudesse ser preso. Diante da provocação do Justiceiro, perde a<br />

calma, tenta matá-lo com a sua espingarda. O Justiceiro atira primeiro, só que para o alto. O<br />

velho Juiz morre do coração. O Justiceiro cumpriu sua função.


1.3 - Um Homem Chamado 320<br />

Talvez exista um ponto na psique humana em que lucidez e loucura se misturem. Este é<br />

um problema para a psicologia. O problema para a arte é encontrar o ponto em que a loucura,<br />

como negação da lucidez, derrame luz sobre a lucidez negada.<br />

320 é o nome de um homem reduzido a qualquer coisa. Um homem que atende pelo<br />

número que lhe deram, não tem individualidade. Está condenado ao denominador comum dos<br />

mortos em vida: os lugares para onde são mandados os p rias, os criminosos ou os indesejados<br />

sem crime.<br />

O quadro é ainda mais sombrio quando um homem chamado 320 vem, não de um lugar<br />

qualquer, mas de um manicômio judiciário.<br />

Eis tudo o que é possível saber sobre ele.<br />

Qual o seu crime? Não se sabe. Por que enlouqueceu? Não se sabe. Um homem que se<br />

chama 320 não possui identidade, portanto, não pode ter história.<br />

Este parece ser o problema a priori desse texto. Como sempre, por economia de ação, a<br />

situação é posta logo na abertura. A rubrica diz que um garoto brinca com um carrinho, enquan-<br />

to come doce de leite na lata. Um rádio está ligado e o locutor avisa que a polícia está interdi-<br />

tando toda a área do Alto da Boa Vista e Barra da Tijuca, para tentar localizar alguns evadidos<br />

do manicômio judiciário. Um corte é dado, e a avó do garoto aparece na mercearia fazendo suas<br />

compras. Outro corte. 320 surge no apartamento do garoto, pedindo um copo d'água. A avó<br />

volta para casa. Encontra a porta fechada. O garoto denuncia a presença do homem estranho. A<br />

avó retorna à mercearia. Lá, já se encontra a polícia. A babá do garoto, adoecida, dorme. A avó<br />

liga. Ela atende. Diz para a avó não se preocupar. Seu pai também terminara num manicômio<br />

judiciário. Enquanto isso 320 e o garoto brincam na sala. O garoto não esconde o medo daquele<br />

estranho invasor. 320, como se fora um menino, simplesmente brinca com o carrinho de bom-<br />

beiro do outro. Fragmento de diálogo entre eles:<br />

“GAROTO - Você não vai andar no meu carro?<br />

320 - Espera, puxa, estou tomando água.<br />

GAROTO - Você toma muita água.<br />

320 - Eu quero ver se nunca mais tenho sede.<br />

GAROTO - Ah, isso é besteira...


320 - Olha, menino, não fale assim de mim. Não lhe dei essa liberdade de falar assim de mim.<br />

Estou fazendo uma visita. Faça o favor de respeitar as visitas. Teu pai não te ensinou isso, não?<br />

GAROTO - Ensinou.<br />

320 - Então?<br />

GAROTO - Estou com medo de você...<br />

320 - Medo de mim? Você tem medo de mim? Eu vim te fazer uma visita... Eu sou amigo...<br />

Sou bom, sabe? Lá no meu emprego, tudo que mandavam fazer eu fazia... A Sandra caçoava de<br />

mim... Eu não ligava...”<br />

Ou então este outro:<br />

“320 - Está com medo de mim?<br />

GAROTO - Estou...<br />

320 - Toma... Toma teu automóvel...<br />

GAROTO - Minha avó vai trazer gente pra te pegar...<br />

320 - Eu sou teu amigo... Você me deu água... Eu sou teu amigo... Porque é que você tem medo<br />

de mim?... Eu sou teu amigo... Te protejo... É só pedir minha ajuda. (TIRA DO BOLSO UM<br />

BONECO DE FANTOCHE. PÕE AS MÃOS DENTRO. FAZ O BONECO SE MEXER) Olha<br />

aí... Esse boneco é pra você (FAZ A VOZ DO BONECO) Rubinho, por que você tem medo<br />

dele? Ele é amigo... Ele é amigo de todo mundo... Pode caçoar dele... Todo mundo caçoa de-<br />

le...”<br />

320 é um louco manso. Mas é um louco que tem profunda consciência de sua diferença.<br />

Não gosta que caçoem dele. Estabelece de fato uma simpatia com Rubinho, e abre a exceção<br />

para que o menino ria dele, com o objetivo de afugentar o seu medo, de afastar a distância entre<br />

eles.<br />

É quando entra a empregada, babá do garoto. Ele tenta correr para ela. 320 o segura. Em<br />

alguns momentos a sensação é de que alguma coisa grave vai acontecer. Nada acontece. O lou-<br />

co é verdadeiramente manso. A babá sabe lidar com ele e ganha a sua confiança. 320 percebe<br />

que a multidão l embaixo era sinal de sua captura próxima. A babá lhe diz que não; a multidão<br />

procura-a, porque ela teria roubado remédio na farmácia. A polícia invade o apartamento.


“320 - Calma... Calma, meu pessoal... Vocês vieram buscar a Sandra, não é?... Mas olha... Não<br />

vão levar, não... Ela roubou o remédio da farmácia porque estava doente... Isso não é crime...<br />

Pode confiar em mim... No que eu estou dizendo... Não levem a Sandra não, que...”<br />

de força:<br />

A babá empurra-o. Ele cai nos braços de dois policiais que o prendem em uma camisa<br />

“320 - Sandra... Por quê, Sandra? Eu estava protegendo você... Por que você fez isso comigo...<br />

Por que?<br />

BABÁ - Desculpe, 320... Desculpe, meu amigo... Eu...<br />

320 - Você é malvada, dona Sandra... A senhora é malvada...”<br />

Quem é Sandra? A babá? Não. Alguém que caçoava dele, no seu trabalho. Mais do que<br />

isso não é possível se conhecer dessa personagem meio bobo, meio bandido, meio infantil. Mas<br />

ao mesmo tempo profundamente humana em sua impotência. A ponto de fazer de um fantoche<br />

a representação de si e se caçoar, para afastar o temor do garoto de quem ele já se dizia amigo.<br />

Ou, então, de esquecer que era ele o perseguido e, diante da polícia, fazer-se de escudo para<br />

proteger a babá que ele julgava procurada.<br />

A lucidez e a sociedade são os lugares dos fortes. o manicômio, reduto dos fracos, dos<br />

que foram reprovados no teste de força que a vida em sociedade impõe. É a regra do jogo. Para<br />

320, que não soube impor-se, restava o degredo.<br />

A rubrica do texto diz que a babá, depois que o atirou para os policiais, desconsolada<br />

com a traição, chora.<br />

1.4 - A Ferro e Fogo<br />

Eneida é uma cantora de muito sucesso. Dolores é uma mulher simples, do interior de<br />

Minas, que resolve repentinamente bater à porta de uma estrela. Esta é a situação inicial.<br />

A segunda situação: Eneida é prepotente. A mulher simples é humilde. Eneida abre-lhe<br />

a porta a contragosto. Tem uma gravação a fazer na TV. Tem pressa. Mas ao mesmo tempo não


consegue resistir ao assédio de uma fã. A mulher entra. Ato contínuo aponta para Eneida um<br />

revólver.<br />

Exercício proposto pela mulher: Eneida dispõe de cinco minutos para lembrar-se de um<br />

mal muito grande que fez. Cinco minutos. Caso não se lembre, ela a mataria.<br />

“ENEIDA - /.../ É por causa da Oriana?... A senhora é fã da Oriana? Queriam fazer um contrato<br />

com ela na televisão e eu fui contra. /.../ É por causa do Maestro Serpa? Ele passou um tempo<br />

enorme fazendo os arranjos pro meu disco... Depois eu fiz o disco com o Eliseu. Mas isso foi<br />

conveniência da gravadora... Eu também gosto mais do Eliseu... Está bem... Fui eu que mudei<br />

de idéia... O Eliseu é mais moderno...”<br />

E segue por aí chutando uma coisa ou outra: o garçom do restaurante, despedido por sua<br />

causa, o contra-regra do teatro que ela despediu. Não era nada daquilo.<br />

A mulher que lhe aponta o revólver conta os minutos que faltam. Eneida não consegue<br />

lembrar-se e vai perdendo o equilíbrio. Da postura prepotente inicial, Eneida, colocada diante<br />

de um problema sem solução aparente, vai-se afundando em angústia, desequilibrando-se psico-<br />

logicamente e, consequentemente, entrando num transe de desequilíbrio mental. Mas a mulher<br />

que lhe aponta o revólver não a quer sem razão:<br />

“DOLORES - Vou ajudar. É uma música que você gravou de muito sucesso.<br />

ENEIDA - Sei, sei. O Bobi tinha prometido a música pra Cíntia gravar, mas a música era muito<br />

boa e eu gravei... Eu não podia dar essa música pra Cíntia... A gente vive de sucesso e é tão<br />

difícil descobrir um... A senhora é mãe da Cíntia?”<br />

Não. A mulher era mãe de um garoto que sonhava viver de sua música. Viajou para o<br />

Rio de Janeiro, bateu na porta de Eneida, procurou, insistiu, esperou, ficou sem dinheiro, dei-<br />

xou a música gravada num cassete, se desiludiu, voltou para Minas, e um dia, comprando o<br />

último disco de Eneida, de quem era fã, escutou a sua música, mas o crédito no disco era de<br />

outro:<br />

“DOLORES - Ouviu a música dele sem parar umas duas semanas. Eu dizia: “Vai lá falar com a<br />

mulher, Nozinho. Vai pra lá, vai no jornal, põe a boca no mundo”. Mas ele era muito assim.<br />

Muito quieto. Triste. A solidão daquela cidade deixa as pessoas com derrota na alma... Ele era


desequilibrado, não é assim que se diz?... Subiu o rio... Andando, andando... Lá em cima, foi<br />

pra margem e deu um tiro na cabeça.”<br />

Mas, antes de fazer a revelação do problema por ela proposto, Dolores (que forçou E-<br />

neida a revelar sua carreira feita de oportunismos) resolve que vai cumprir o que prometera:<br />

matar Eneida se ao final de cinco minutos ela não adivinhasse a razão de sua atitude. Este é o<br />

ponto máximo de desmontagem da soberba anterior que Eneida demonstrava. Mas a mulher<br />

puxa o gatilho e, afinal, o revólver está descarregado.<br />

O motivo que levou Dolores a propor aquele problema para Eneida: ela queria que E-<br />

neida sofresse em cinco minutos a dor que o seu filho sofrera em duas semanas antes de matar-<br />

se.<br />

Eneida, arrependida, corre atrás da mulher que se vai sem querer ouvir a sua desculpa e<br />

a sua promessa de reparar o dano. Em cinco minutos uma postura feita de máscaras vai ao chão.<br />

E o que diz a canção do garoto?<br />

“A ferro e fogo<br />

você vai pagar<br />

cada pedaço de mim<br />

que você me fez roubar.”<br />

1.5 - Balanço parcial: uma justiça moral<br />

Parece-nos que entre os textos vistos até agora há como ponto em comum, um certo sen-<br />

timento de justiça que cobre a existência <strong>das</strong> personagens. Não a justiça legal, jurídica. Mas<br />

uma outra que não cabe em um código de leis. Algo como uma justiça “moral”, se isso é possí-<br />

vel.<br />

Olhando com cuidado, vamos ver que não existem nesses textos forças sociais em con-<br />

flito, à exceção de Sem Saída, assim mesmo bastante atenua<strong>das</strong> pelo fato de o conflito se con-


centrar entre a força de um homem e o direito de uma mulher, que não pode ser exercido. Nesse<br />

caso, o velho avô, mudo, toma para si a tarefa de exercitar a justiça “moral”, que se traduz pela<br />

defesa do mais fraco. A figura do Justiceiro, no texto O Justiceiro, enigmática como o velho<br />

avô (ele passa grande parte do texto calado), também exerce a defesa do grupo oprimido. Nos<br />

dois casos esta justiça “moral” se repara pela morte. Mas em Um Homem Chamado 320, como<br />

também em A Ferro e Fogo, não é a morte, mas o reconhecimento do dano causado que provo-<br />

ca a reparação. Esta reparação é passiva em Um Homem Chamado 320, no momento em que a<br />

babá do garoto, pela indicação da rubrica, chora por ter traído a confiança ingênua do louco,<br />

atirando-o de encontro à polícia, depois que ela o fizera crer que a polícia viera para prendê-la.<br />

Em A Ferro e Fogo, a mãe do garoto que se matara, teria to<strong>das</strong> as condições de exercitar, à ma-<br />

neira de O Justiceiro, a sua vingança. Mas tudo que ela queria era que Eneida sentisse, durante<br />

cinco minutos, a angústia do momento que a vida se fecha e a morte está por um fio, ou pelo<br />

simples gesto de apertar-se o gatilho de um revólver. O fato de não ter concluído a ameaça feita<br />

no começo do texto, faz com que Eneida comova-se e queira reparar o seu comportamento que<br />

levara um simples garoto, possivelmente talentoso, alma fraca, à morte. Mas o que Eneida não<br />

sabia era que os cinco minutos em que a sua estudada postura de estrela veio ao chão, todo o<br />

seu pavor diante da morte iminente já estava previsto nos versos que ela roubara do garoto. Ao<br />

não concretizar o gesto de matar a cantora, a mãe do garoto instalou em seu espírito a culpa.<br />

O limite em que as personagens exercem a sua justiça “moral” permeia o fato social, mas não<br />

chega a ser por ele determinado. As situações expostas por <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Vianinha, mais pare-<br />

cem flashes da vida real sob o intuito de ressaltar a dignidade necessária ao exercício da exis-<br />

tência.<br />

1.6 - De Repente, uma Visita<br />

No texto De Repente, uma Visita vamos encontrar o mesmo problema de justiça “mo-<br />

ral”: um homem invade a casa de uma mulher para vingar-se do fato de sua mulher tê-lo aban-<br />

donado. O homem chama-se Rúbis. A mulher, Milena. Ele, mecânico. Ela, milionária, que<br />

comprara um anel no valor de cinquenta milhões (não importa no caso a moeda).<br />

Milena vai dar um jantar para os amigos com o propósito de apresentar o seu anel.<br />

Quando Rúbis invade a casa. Então, expõe os motivos que o fez tomar o gesto violento:


“MILENA - Diz logo o que você quer e vai embora!<br />

RÚBIS - Digo o que quero e quando quero...<br />

MILENA - Me solta...<br />

RÚBIS - Me solta devia dizer eu. Você nunca me largou! Todo dia no jornal, provocando, rin-<br />

do, não é? Vim aqui acabar com você, mulher, sou um ladrão, sou assassino, mato! Sou de ma-<br />

tar gente!”<br />

Para, em seguida, completar:<br />

“RÚBIS - Chama a polícia, chama bombeiro, chama assistência... Não me importa... Minha<br />

mulher foi embora... Me largou... Deixou nosso barraco no morro do Quinto... Não importa<br />

mais nada...”<br />

Depois ele exige que ela lhe entregue o anel caríssimo. De posse do anel, ele desenvolve<br />

a exposição do seu gesto:<br />

“RÚBIS - Cinquenta milhões... Foi por causa dele que a minha nega Carmosa me largou... Ela<br />

olhava o jornal e dizia sempre - “Essa mulher, Milena Monteiro, que vive, Rúbis! Ela é que tem<br />

as coisas que faz a gente ter sabor de viver...” - Aí me saiu a notícia de você comprando o anel<br />

por cinquenta milhões, ela não falava noutra coisa... Tinha um sujeito que faz tempo oferecia<br />

até capa de pele pra ela. O sujeito é casado e oferecia o mundo e fundo pra minha Carmosa... Aí<br />

ela leu a notícia do anel... Não adiantou eu roubar, levar ela pra comprar vestido em Copacaba-<br />

na... Ela foi embora com o sujeito que é casado.”<br />

Mais adiante Rúbis vai completar o raciocínio, fechando a sua exposição:<br />

“RÚBIS - /.../ Ela te adorava muito... Ela me largou por tua causa, porque você é feliz, entende?<br />

Porque você ri nas fotografias.”<br />

A partir daí, ele obriga Milena a fazer todos os trabalhos que sua mulher fazia, como se<br />

fosse um gesto de reeducação social a que ele submetia à milionária, para que ela sentisse em<br />

sua pele a dureza do trabalho que a sua esposa era obrigada a suportar, e de como também a<br />

exposição de sua riqueza humilhava-o e enchia de fantasias a cabeça da ex-mulher.


Milena, então, é obrigada a carregar água, lavar roupa de joelhos, depois fazer comida,<br />

isso tudo enquanto espera que cheguem os seus convidados para o jantar. No final, quando o<br />

primeiro convidado, desconfiado, chama a polícia, Rúbis explica para Milena, como se fora um<br />

professor aplicando a lição:<br />

“RÚBIS - E agora, o pior de tudo isso, é se acostumar com essa vida, entende? Minha mulher<br />

não se acostumou... Me largou...”<br />

Milena entendeu, sim. Quando chega a polícia, ela nega que Rúbis seja ladrão. Desfaz o<br />

jantar marcado para os amigos, mesmo porque estava toda transtornada. Despede o amigo e o<br />

policial, e dirige-se ao mordomo:<br />

“MILENA - Rafael, por favor, v até a cozinha. Acalme Ivete. E sirva o jantar.<br />

MORDOMO - Só a senhora vai jantar?<br />

MILENA - Não. Somos dois. Eu e o senhor do morro do Quinto.<br />

MORDOMO - Pois não, madame.<br />

MILENA - Não quer sentar, senhor Rúbis.<br />

RéBIS - Obrigado, dona.<br />

MILENA - Obrigada você, Rúbis.”<br />

Rúbis, assim como a mãe do garoto em A Ferro e Fogo, teria condições de realizar a sua vin-<br />

gança. Mas não o fez. Ele, assim como a mãe do garoto, preferiu submeter à personagem opo-<br />

nente a uma forte humilhação que geraria, no final, o seu gesto de correção “moral”. Embora,<br />

no caso de Milena, ela não tenha culpa da mulher de Rúbis tê-lo abandonado. A sua culpa não é<br />

individual, é de classe.<br />

1.7 - A Testemunha<br />

Célia um dia sofrera um acidente e ficou muda. Célia, da janela de sua casa, presencia<br />

um crime. É a única testemunha. Os jornais anunciam em manchetes que há uma testemunha do<br />

crime cometido contra o jornalista Nélson.


O marido de Célia, Magalhães, não quer que ela testemunhe. É perigoso. Célia escreve<br />

dizendo que quer testemunhar: conhecera, desde pequena, o jornalista assassinado. O marido<br />

concorda, elogiando a coragem de sua mulher.<br />

Já existe um suspeito do crime: <strong>Paulo</strong> Mãozinha, rei da Baixada, e que perdera uma mão<br />

num tiroteio entre marginais, em 1958.<br />

O marido sente medo de deixar Célia sozinha. Mas precisa sair. É médico e tem duas<br />

operações marca<strong>das</strong> no hospital. Antes, avisa que ir passar no Distrito Policial e pedir para um<br />

soldado montar guarda em sua casa, até a sua volta. Sai.<br />

Entra um homem vestido de policial. Muito gentil, pede para que Célia examine algu-<br />

mas fotografias, a fim de identificar o criminoso. Célia se recusa. Só o faria diante de testemu-<br />

nhas. O policial insiste. Toca o telefone. É o marido dizendo que só agora teria chegado ao Dis-<br />

trito, que ela ficasse tranquila, um policial já iria para lá. Célia tenta comunicar-se batendo com<br />

um lápis no fone. Célia volta para a sala. Aponta para o policial o homem que ele lhe mostra,<br />

entre outras fotos. O policial tem um couro preto envolvendo o seu punho. Célia compreende<br />

tudo: aquele é <strong>Paulo</strong> Mãozinha, rei da Baixada, que mandara matar o jornalista por causa de<br />

umas reportagens que ele fizera.<br />

Célia corre para o quarto. Tranca a porta. Liga para a polícia. Só consegue bater com o<br />

lápis no fone. <strong>Paulo</strong> Mãozinha força a porta. Célia com muito esforço consegue encostar à porta<br />

um pesado móvel. <strong>Paulo</strong> Mãozinha aos poucos força a abertura da porta. Célia está desespera-<br />

da. Do lado de fora, o policial que veio a mando, bate à porta. Célia está acuada em sua angús-<br />

tia muda. <strong>Paulo</strong> Mãozinha consegue abrir a porta do quarto onde Célia se refugiara. Célia grita.<br />

O policial ouve o grito de Célia, e força a porta. Célia tenta enfrentar <strong>Paulo</strong> Mãozinha, atraca-se<br />

com ele numa luta corporal. O policial ouve os gritos de Célia, tira o revólver, atira na fechadu-<br />

ra, entra na casa, vai ao quarto, vê Célia numa luta impotente contra <strong>Paulo</strong> Mãozinha. O polici-<br />

al, com a coronha do seu revólver, acerta na cabeça do bandido, que cai desfalecido. Célia corre<br />

ao telefone, liga para o hospital, chama o marido. Célia, no desespero de sua luta, perde o trau-<br />

ma da fala. Conta ao marido o que acabara de acontecer.


1.8 - A Vida Por Um Fio<br />

Ana Maura é paralítica. É noite. Está sozinha em casa. Liga para o escritório tentando<br />

falar com o marido. D linha cruzada. Ela entra, sem querer, neste diálogo:<br />

“HOMEM 1 - (FALA BAIXO, DEVAGAR, SOMBRIO) Alô?...<br />

ANA MAURA - (UM POUCO SURPRESA) Alô... Dr. Walter está?...<br />

HOMEM 1 - (CONTINUA COMO SE NADA TIVESSE ACONTECIDO) Alô... (MAIS AL-<br />

TO) Alô?...<br />

HOMEM 2 - (VOZ BONITA, CIVILIZADA) Alô.<br />

HOMEM 1 - Sou eu, pode falar.<br />

ANA MAURA - Alô... Alô... Quem está falando? Qual é o número aí?<br />

HOMEM 1 - (CONTINUA. NÃO OUVIU NADA) Olha. O desenlace é hoje. O desenlace é<br />

hoje.<br />

HOMEM 2 - Entendido.<br />

HOMEM 1 - Onde está você?<br />

HOMEM 2 - Não estou longe do lugar. Num telefone público...<br />

HOMEM 1 - Você tem o endereço... Vai haver movimento maior... Hoje tem ensaio da escola<br />

de samba... Onze e quinze... Vai haver muita gente... Espero num carro naquele ponto as 11 e<br />

20... Lembra do ponto a três quarteirões...<br />

HOMEM 2 - Perfeito.<br />

HOMEM 1 - Vai haver muito barulho para o caso de haver gritos... Mas é melhor não haver<br />

gritos, não é colega?<br />

HOMEM 2 - Tenho um estilete. Aço fino. É muito rápido.<br />

HOMEM 1 - Não esqueça de apanhar as jóias. To<strong>das</strong> as jóias que você encontrar por perto. O<br />

nosso cliente quer que tudo fique parecendo que foi um roubo.”<br />

Ana Maura descobre que se está planejando um assassinato. Liga para a telefonista, para<br />

tenta interceptar a ligação. Não é possível. Liga para a polícia. Ela tem como dado para resolver<br />

o problema somente a hora e o lugar onde dever ocorrer o crime: próximo a alguma escola de<br />

samba. Tenta convencer a polícia a interceptar a ligação. É impossível. Insiste que vasculhem<br />

as áreas próximas às escolas de samba. Impossível também. Existem mais de cem escolas de


samba que pediram permissão para ensaiar naquela noite, quando estão há uma semana do iní-<br />

cio do carnaval, isso sem contar os inúmeros blocos etc.<br />

Ana Maura tenta esquecer. Não consegue. Tenta falar com o marido. Não consegue. Li-<br />

ga o rádio: toca sucessos do carnaval e anuncia um desfile de escolas de samba na Av. <strong>Vieira</strong><br />

Souto, onde mora Ana Maura.<br />

Ana Maura é uma mulher carente. Casada há vinte anos e paralítica há dez, vive na casa<br />

que herdou da família, em Ipanema. O marido tem problemas financeiros na sua indústria e<br />

quer vender a casa para cobrir os déficits de caixa. Vender a casa e um asilo de menores. Ana<br />

Maura não concorda. Mas naquela noite, pressionada pelo marido, resolve vender a casa, não o<br />

asilo, obra de sua mãe. Liga para o marido insistentemente naquela noite. Inclusive para dizer<br />

do crime que se planeja.<br />

Tenta dormir. Não consegue. Encontra o Registro de Identidade do marido. Ligar para<br />

uma amiga, para pedir que o marido dela, homem influente, tente junto à polícia evitar que o<br />

crime aconteça. A mulher diz-lhe que o marido viajou, e ela própria teria viajado, se não tivesse<br />

esquecido sua Identidade em casa.<br />

Um rapaz que trabalha no escritório do marido de Ana Maura liga para ela, dizendo que<br />

o Dr. Walter viajou a negócios para São <strong>Paulo</strong>, não ir dormir em casa naquela noite.<br />

Ana Maura se angustia com a sua impotência por não poderá evitar o crime. Já está qua-<br />

se na hora marcada. Uma escola de samba começa a entrar na <strong>Vieira</strong> Souto. Ana Maura, que<br />

não sabia do desfile, liga o rádio para confirmar esse desfile em sua rua. Confirmou. Ela pensa<br />

no marido que viajou para São <strong>Paulo</strong>. Mas como, se ele esqueceu a sua Identidade em casa, e a<br />

sua amiga lhe dissera que sem a identidade não se pode viajar.<br />

Ana Maura começa a desconfiar que ela é a vítima marcada para morrer naquela noite.<br />

Tenta falar com a polícia. Está ocupada a linha. Liga para a empresa telefônica. Fala com a tele-<br />

fonista. Pede que a moça entre em contacto com a polícia. Está ocupada a linha. Ela desliga.<br />

Toca o telefone. É o marido. Dr. Walter pede que ela saia correndo dali. Ela é paralítica. Ele<br />

está arrependido. Está na hora marcada para o sacrifício. Ela lhe diz que já tinha concordado<br />

em vender a casa. Ele insiste para que ela corra. A escola de samba entra na avenida. Um ho-<br />

mem surge na casa. Ela grita. O fone fica pendurado. O homem pega o fone e ouve o marido<br />

insistindo: “Ana... Ana... Levanta... Ana... Levanta...” O homem muito cortês responde: “Liga-<br />

ção errada, cavalheiro. Desculpe”.<br />

Esse texto, como também A Testemunha, apresenta uma situação de suspense que se<br />

mantém com uma intensidade em crescendo, embora Célia tenha uma trajetória mais simples,


mesmo porque pode resistir ao agressor, quando foi necessário; Ana Maura, mesmo que qui-<br />

sesse, não poderia.<br />

Mas na morte de Ana Maura há qualquer coisa de ironicamente trágico: ao querer evitar<br />

o crime, ela foi sendo conduzida cada vez mais para dentro do crime que gostaria de evitar.<br />

To<strong>das</strong> as evidências levavam a concluir-se que não havia solução para ela. A sua vida, como diz<br />

o título, estava por um fio: pelo fio do telefone, sua única forma de se comunicar com o mundo<br />

e de evitar sua morte, como também, metaforicamente, no fio de um novelo que ela acabaria<br />

por tecer, ao desvendar.<br />

1.9 - Uma Noite de Terror<br />

Dois homens invadem uma casa, onde estão uma estenografa e um senhor idoso. Ele di-<br />

ta uma carta. O senhor idoso, ao perceber a presença dos bandidos, corre para pegar o seu re-<br />

vólver. O bandido moço, Juventude, derruba o senhor idoso, que bate com a cabeça em algum<br />

lugar quando cai, e morre. O outro bandido, Miguelão, quer matar a estenografa, única teste-<br />

munha daquele crime.<br />

Juventude se opõe. Tem dezessete anos e não quer outro crime, apesar de sua vida ban-<br />

dida. Miguelão insiste. Brigam. Juventude leva a melhor. Miguelão consente em esperar algum<br />

tempo, para que Juventude reveja sua posição. Na briga, Miguelão perdeu seu talão de cheque.<br />

A estenografa, Edite, o recolhe. Um pouco antes da briga dos dois bandidos, eles falam sobre a<br />

possilibidade de fuga, para evitar a morte da moça.<br />

Miguelão sai. Vai montar guarda na parte de cima da casa. A estenografa conversa com<br />

Juventude. Ela tem irmão na polícia e sabe o mecanismo da malandragem: como os bandidos<br />

lançam mão de garotos como Juventude; como os envolvem em crimes; como passam a explo-<br />

rá-los depois de iniciados. Juventude não acredita: Miguelão é o seu amigo. Pelo menos é isso o<br />

que Miguelão lhe diz.<br />

Noite alta. Edite está presa numa cadeira. No sofá Juventude dorme. Miguelão entra sor-<br />

rateiro. Esfaqueia Juventude. Mas não era Juventude. Edite o avisara de que Miguelão iria eli-<br />

miná-lo. Juventude previne-se. Arma uma arapuca para Miguelão. Ele cai. Os dois brigam outra<br />

vez. Juventude mata-o. Depois solta Edite e aceita o conselho dela: o de entregar-se à polícia,<br />

cumprir alguns anos de pena e, depois, livre, arranjar uma profissão. Edite prometera depor a<br />

seu favor.


1.10 - Balanço Parcial: Em Favor da Esperança<br />

Apesar do título, Uma Noite de Terror não causa tanto terror quanto A Vida Por Um Fio<br />

ou A Testemunha. As três têm o mesmo núcleo tem tico: uma mulher presa em uma casa, en-<br />

frentando a sanha dos marginais. Pode-se incluir também De Repente, Uma Visita entre este<br />

núcleo temático. Como intenção, Uma Noite de Terror aproxima-se bastante <strong>das</strong> duas primeiras<br />

peças. Como resultante moral, está mais próxima da última, pela conversão do bandido ao final.<br />

Milena, em De Repente, Uma Visita, também se deixa converter pelo marginal inofensivo Rú-<br />

bis.<br />

Essa mudança de comportamento <strong>das</strong> personagens ao final <strong>das</strong> peças, parece mensagem<br />

cifrada dos autores para o momento: é possível haver mudança (no comportamento humano, na<br />

sociedade), apesar de tudo.<br />

Esse salto qualitativo (em sentido positivo) <strong>das</strong> personagens, faz-nos pensar que, por<br />

volta de 1971, quando esses textos foram escritos, o medo e o negror da vida no Brasil sufocado<br />

pela ditadura fosse desesperador. Nos faz pensar que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Vianinha procuravam in-<br />

centivar a esperança de que as coisas podem mudar. O que não devia ser fácil de imaginar-se,<br />

naquele momento, quando a ditadura, em tudo vitoriosa, dava início à campanha do “Brasil:<br />

ame-o ou deixe-o”; em que as oposições estavam totalmente silencia<strong>das</strong>, pela morte, pelo medo,<br />

pelo exílio ou pela censura. E a luta armada agonizava: sem apoio popular, não poderia ir longe.<br />

Era preciso ter esperança em alguma coisa. Pelo menos, quando não resta mais nada, isto ainda<br />

pode servir como capital para manter-se o ânimo. Não foi em vão que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> por essa<br />

época escreveu um show, montado com <strong>Paulo</strong> Gracindo e Clara Nunes cujo título não poderia<br />

ser mais revelador: Brasileiro, Profissão Esperança.<br />

Essa esperança da qual o brasileiro faz profissão de fé, parece-nos que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e<br />

Vianinha apresentavam-na pela televisão para todo o Brasil, do modo como era possível trans-<br />

miti-la. A mudança de comportamento <strong>das</strong> personagens, do ponto de vista dramatúrgico parece<br />

sem sentido. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Vianinha, muitas vezes, sacrificaram o encadeamento formalmente<br />

lógico, em função de algo que lhes parecia maior, a qual os seus textos, os seus trabalhos, deve-<br />

ria servir. A arte posta a serviço da vida. Ou pelo menos da esperança. Apesar da arte.


1.11 - Por Favor, Moça, não morra<br />

Helena resolve morrer. Liga o gás e telefona para Mariano, animador de um programa<br />

de televisão, de quem ela é fã. Liga para dizer que vai morrer. Mariano percebe a sinceridade da<br />

moça. Pede para ela, por favor, não morrer. A moça está decidida. O tempo é curto. Mariano<br />

pede ajuda à polícia, através dos seus assistentes. Vai conversando com ela, procurando saber o<br />

motivo do gesto. O marido deixou-a, ela se sente só, foi demitida do emprego. A vida lhe mos-<br />

trou a face da inutilidade. Nada lhe interessa mais. A morte é o caminho. Mariano força a moça<br />

a falar. Aos poucos, descobre seu nome, sua profissão, seu endereço. A polícia acompanha toda<br />

a conversação dos dois. Descobertos os dados básicos de sua identidade, a polícia entra em a-<br />

ção: localiza o apartamento, arromba a porta e salva a moça da morte no instante final.<br />

Como resolução, este texto assemelha-se com ATestemunha, com a polícia invadindo o<br />

apartamento e salvando a moça.<br />

2. Balanço Geral: Violência e Mistério<br />

No Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande, realizado entre os dias 7 de abril e 26 de<br />

maio de 1975, no Rio de Janeiro, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> falava da televisão brasileira e fazia a avaliação<br />

crítica do que acontecia com a TV naquele momento: “A televisão brasileira é, atualmente, um<br />

veículo quase fundamentalmente projetado para falar com a chamada classe média compradora<br />

/.../ Ela, à medida que se foi implantando industrialmente, que foi desenhando diante de si a sua<br />

fisionomia, se justapôs àquela classe que tinha condições de consumir os produtos que anuncia-<br />

va a tal ponto que a programação da TV Globo, por exemplo, é de um bom gosto, de um tim-<br />

tim-tim, de um rosinha, de um empacotadinho, de um bonitinho, e de tudo gravadinho, tudo<br />

assexuadozinho, tudo muito asséptico, é aquela coisa tão de bom gostinho, que eu já não reco-<br />

nheço na televisão brasileira um veículo de comunicação de massa” 84 .<br />

84 PONTES, <strong>Paulo</strong>. Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. Rio de Janeiro: Inúbia, 1976, p. 132.


Ao lado da mudança qualitativa em processo, percebida por <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, existia, como<br />

elemento de complicação, a censura, que impedia a veiculação de uma imagem diferente da vi-<br />

trine em que então se transformava a televisão brasileira. Walter Avancini, no mesmo debate,<br />

explicou o que a censura não permitia que se levasse ao ar: “O código é explícito: não se pode<br />

colocar conflito de gerações, não pode colocar pais e filhos conflitando, não se pode colocar<br />

nenhuma menção de adversário, não se pode colocar nenhum descontentamento social, não se<br />

pode colocar nenhum conflito religioso, nenhum conflito racial. A verdade é que há uma série<br />

de limitações impostas por esse código de censura, que nos impossibilita um exercício maior<br />

dentro do veículo” 85 .<br />

É possível que em tão pouco tempo, isto é, do início de 1968 (quando <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> co-<br />

meçou a escrever para a televisão), até 1975 (quando aconteceram os debates sobre cultura bra-<br />

sileira no teatro Casa Grande), a TV tenha mudado radicalmente, a ponto de diminuir o trabalho<br />

que gente como <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Vianinha desenvolvia tão bem.<br />

Mas enquanto isso não aconteceu, a televisão brasileira viveu dias de conquista de uma<br />

linguagem tão bela quanto dramática, como a que vimos em fragmentos nos textos apresenta-<br />

dos. E no caso dos nossos autores, profundamente inserida no contexto da cultura de massa que,<br />

afinal, é por excelência o fenômeno cultural do nosso século.<br />

2.1 - A Violência<br />

A violência é o tema comum de to<strong>das</strong> as obras vistas. É o ponto de tensão a partir da<br />

qual se desenvolve a história. Ela pode ser anterior ao início da ação, mas está sempre presente<br />

de alguma forma.<br />

No primeiro volume do seu estudo sobre a cultura de massa, cujo subtítulo é O Espírito<br />

do Tempo - Neurose, Edgar Morin fala da violência que está presente em grande parte da pro-<br />

dução cultural de massa. Uma violência organizada em grupos, junto aos vagabundos, ladrões e<br />

85 AVANCINI, Walter. Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. Op. cit. p. 128.


gangsters que habitam o mundo da noite e, pela sua própria condição de outsiders, transgridem<br />

o mundo do homem civilizado, isto é, o homem regulamentado, burocratizado, que obedece aos<br />

agentes, aos editais de interdição e não ousa matar ou roubar como os bandidos que obedecem à<br />

sua própria violência. Aquele mundo da transgressão é o que exerce fascínio sobre o homem<br />

comum. Por isso se faz tão presente no imaginário do nosso tempo. Além disso, diz Edgar Mo-<br />

rin, “a gang exerce uma fascinação particular, porque responde a estruturas afetivas elementares<br />

do espírito humano: baseia-se na participação comunitária do grupo, na solidariedade coletiva,<br />

na fidelidade pessoal, na agressividade em relação a tudo que é estrangeiro, na vindita, para a<br />

realização dos instintos predadores e depredadores” 86 .<br />

A gang, ou pelo menos o crime organizado, está presente nas obras vistas, desde a pri-<br />

meira, Sem Saída, ou A Testemunha, A Vida Por Um Fio, Uma Noite de Terror.<br />

venção.<br />

Em Sem Saída, o crime está organizado na figura do seu líder, Nelsinho, o bicheiro.<br />

Em A Testemunha é o bandido <strong>Paulo</strong> Mãozinha, rei da Baixada, quem lidera a contra-<br />

Em Uma Noite de Terror é o Miguelão. A estrutura do crime organizado é revelada pela<br />

estenografa Edite.<br />

A Vida Por Um Fio já não apresenta nenhum líder de gang, mas, em compensação, mos-<br />

tra como homens fazem da morte a sua mercadoria, ao apresentar dois assassinos profissionais<br />

cuja técnica de matar, pelo que comentam ao telefone, é impecável.<br />

Nesse sentido, A Vida Por Um Fio tem alguma semelhança com o texto O Justiceiro. A<br />

diferença está em O Justiceiro apresentar outro tipo de assassino, mas não do tipo qualquer, e<br />

sim uma espécie de herói, cheio de bom-mocismo e de senso de justiça que transcende a lei<br />

ordinária. Não esquecer que Estrela, o Justiceiro, não é um pistoleiro que mata na surpresa da<br />

tocaia, sem chance para o adversário. Ele provoca o adversário. Lembrar também que o Juiz, o<br />

oponente a qual o Justiceiro deveria matar, morreu não de bala, mas de susto, uma morte espe-<br />

tacularmente épica. Também este tipo de outsider está prevista no código da cultura de massas<br />

que os nossos autores manejavam tão bem. Sobre essa personagem, fala Edgar Morin: “O herói<br />

do Western é o Zorro, o justiceiro que age contra uma falsa lei corrupta, e prepara a verdadeira<br />

lei, ou o xerife que, soberano, instaura, de revólver em punho, a lei que assegurar a liberdade.<br />

Essa ambiguidade opera uma verdadeira síntese entre o tema da lei e o tema da liberdade aven-<br />

turosa. Ela resolve existencialmente o grande conflito entre o homem e o interdito, o indivíduo<br />

86 MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX/1. Rio de Janeiro, Forense-Universitária: 1987, p. 112.


e a lei, aberto desde o Prometeu de Ésquilo e a Antígona de Sófocles. A isso se acrescenta o<br />

tema do herói fundador - Rômulo moderno - que opera a passagem do caos à ordem. A riqueza<br />

mitológica em estado nascente do Western explica sua ressonância universal” 87 .<br />

Charles J. Rolo, no ensaio “A Metafísica do Assassínio para Milhões”, tratando de as-<br />

sunto semelhante ao de Edgar Morin, diz, num determinado momento, que, talvez, a mais pro-<br />

funda frustração do nosso tempo “seja exatamente a sensação de que o indivíduo encontra-se<br />

reduzido à impotência num mundo em que o princípio da organização em larga escala impreg-<br />

nou irremediavelmente os assuntos humanos, legítimos ou ilegítimos” 88 . No caso da cultura de<br />

massa, interessam muito os assuntos ilegítimos. E para resolvê-los, já que o homem comum<br />

para isto é impotente, somente o herói, o homem estranho, o justiceiro.<br />

Edgar Morin, ao concluir o capítulo que trata da violência no nosso tempo, o tempo da<br />

neurose, diz que a cultura de massa, embora nos entorpeça, nos embriague com barulhos e fú-<br />

rias, não nos cura de nossas fúrias fundamentais. E o que são essas fúrias? - Mistérios.<br />

2.2 - Mistérios<br />

Eis outro pólo em que assentam os textos ora analisados. Violência e mistério, tempera-<br />

dos de modo a criar expectativas.<br />

Em O Justiceiro, o mistério é a própria figura do Justiceiro, quase todo o tempo calado.<br />

O que se sabe sobre ele é dito pelas outras personagens. Cria-se uma certa curiosidade sobre<br />

como vai agir aquela personagem tão calada. E quando ela age é exatamente conforme o que se<br />

dizia. A curiosidade seguinte, então, é saber quem ele vai matar: o Banqueiro, a cômica perso-<br />

nagem de nome Nervoso, o Coronel. Nenhum deles. O homem marcado para morrer era o Juiz,<br />

que até então não constava da história.<br />

Em, Eneida, ameaçada por um revólver, é posta diante de uma charada. Rememora tudo<br />

o que pode em tão pouco A Ferro e Fogo tempo. Quando, por fim, esclarecida, deseja reabili-<br />

tar-se. Mas não percebe que a música que roubou já anunciava a sua humilhação.<br />

87 MORIN, Edgar. Op. cit., p. 112.<br />

88 Apud Bernard Rosemberg e David Manning White. A Cultura de Massa. São <strong>Paulo</strong>, Cultrix: 1973, p. 201.


Em Um Homem Chamado 320, o mistério permanece na figura do louco que chega e sai<br />

sem se revelar, mas deixando dados impossíveis de resolver, tais como: quem é Sandra (alguém<br />

de importância em sua ação anterior ou simplesmente um nome de referência para configurar a<br />

sua confusão mental)? Quem é ele, o louco? A expectativa gira em torno da violência que se<br />

insinua, mas não acontece.<br />

Em A Testemunha, o clima é dado inicialmente pelo marido de Célia, quando confessa o<br />

seu temor de deixá-la só, sabendo que ela é a única testemunha do crime ocorrido em frente ao<br />

seu apartamento. Depois, a entrada do mandante do crime, <strong>Paulo</strong> Mãozinha, disfarçado de poli-<br />

cial, gera o mistério que só se desfaz quando ela puxa a capa que esconde o braço manietado do<br />

bandido.<br />

Em A Vida Por Um Fio, o mistério é a própria trama da obra. Ana Maura, paralítica,<br />

tentando evitar um crime que depois descobre ser contra ela.<br />

Em Uma Noite de Terror não há propriamente mistério, porém, o fato da ação desenro-<br />

lar-se à noite, numa rua deserta, numa casa invadida por dois bandidos, já cria um clima algo<br />

semelhante.<br />

De modo direto, o mistério só é parte intrínseca da ação em A Vida Por Um Fio. Em A<br />

Testemunha, ele faz parte da ação até o momento em que Célia descobre a identidade do pseu-<br />

do-policial. Com exceção de Um Homem Chamado 320, cujo anonimato deixa algo a desejar da<br />

personagem, além do fato de sabê-lo louco, e de A Ferro e Fogo, os demais textos têm como<br />

suporte de mistérios elementos extrínsecos ao texto, não necessariamente ligados ao seu tema.<br />

Eis os elementos:<br />

O silêncio da noite: A Testemunha, A Vida Por Um Fio e Uma Noite de Terror.<br />

A vida solitária, ou a solidão de um apartamento: A Testemunha, A Vida Por Um Fio, e<br />

até mesmo Uma Noite de Terror, embora Edite, a princípio, não estivesse só, mas trabalhando<br />

com o seu patrão, o clima indicado é o da mais completa solidão.<br />

A solidão é tema de outro texto: Por Favor, Moça, Não Morra. Não há propriamente<br />

mistério, mas um quebra-cabeça para desvendar-se, à feição de uma novela policial, em que os<br />

dados do quebra-cabeça conduzem à novela policial: a solução visa evitar a morte por suicídio.<br />

O mistério compõe um forte elemento para prender a atenção do telespectador (ou do leitor),<br />

nesses textos. De alguma forma, está presente na maioria deles.<br />

Pensando a linguagem da televisão e os padrões da cultura de massa, T. W. Adorno<br />

chega ao ponto em que o mistério torna-se um álibi da linguagem televisiva: “Todo espectador<br />

de programa de mistério da televisão sabe exatamente, com absoluta certeza, como é que ele vai<br />

acabar. A tensão se mantém apenas superficialmente e já não é provável que exerça um efeito


sério. Pelo contrário, o espectador sente que está pisando chão firme durante o tempo todo. Esse<br />

anseio de “sentir-se em chão firme” - que reflete uma necessidade infantil de proteção, muito<br />

mais do que o seu desejo de um frêmito de emoção - é satisfeito. Só ironicamente se preserva o<br />

elemento da excitação” 89 .<br />

Charles J. Rolo diz que a história de mistério é um jogo cheio de suspense em que o es-<br />

pectador não pode perder. Se o espectador imagina a resposta, sente-se diabolicamente inteli-<br />

gente, e se não a imagina, encontrar a satisfação de uma agradável surpresa 90 . E se T. W. A-<br />

dorno considera que há alguma “necessidade de proteção familiar” no fato de mistérios em his-<br />

tórias gerarem tensão superficial no espectador, a conclusão de Charles J. Rolo, em contraposi-<br />

ção, é surpreendente: a solução para o mistério do fascínio <strong>das</strong> histórias de mistério ter de apli-<br />

car-se a todos os tipos em todos os tempos. Ter de ser alguma coisa muito fundamental para<br />

explicar uma atração que se tem mostrado tão persistente, tão vigorosa e tão difundida: “Essa<br />

alguma coisa, cremos nós, tem escassa relação com a concatenação <strong>das</strong> pistas ou acúmulo de<br />

cadáveres, e profunda relação com o maior de todos os temas de ficção - a explicação do desti-<br />

no do homem. Segundo nossa hipótese, a história de mistério, na essência, é uma história meta-<br />

física de sucesso” 91 .<br />

Muniz Sodré revela os mecanismos da comunicação de massa: quanto menor é a taxa<br />

matem tica de informação de uma mensagem, maior a sua capacidade de comunicação: “Quan-<br />

to mais o signos da mensagem (os elementos culturais de um programa de televisão, por exem-<br />

plo) forem familiares ao público, por já constarem de seu repertório, maior ser o grau de co-<br />

municação” 92 .<br />

Muniz Sodré fala-nos de teoria da comunicação: os signos da mensagem são decifráveis<br />

segundo o repertório de quem os recebe. No caso dos textos que vimos mapeando até aqui, os<br />

signos básicos são a violência e o mistério, alternados ou compostos no mesmo texto. A deci-<br />

fração pode-se dar em vários níveis: sociológico, político, psicológico, como insinua T. W. A-<br />

dorno, ou metafísico, como o quer Charles J. Rolo.<br />

89 ADORNO, T. W. “A Televisão e os Padrões da Cultura de Massa”. Apud Bernard Rosemberg. Op. cit. p. 548.<br />

90 Apud Bernard Rosemberg. Op. cit. p. 197.<br />

91 Idem, ibidem, p. 198.<br />

92 SODRÉ, Muniz. A Comunicação do Grotesco. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 63.


3. Uma Última Palavra<br />

Para <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, o trabalho na televisão foi profundamente estimulante. Alguns desses<br />

textos se constituíram em motivos para outros textos maiores que ele faria posteriormente para<br />

o teatro. Texto como Sem Saída, com a vida ambientada no morro, já traz em idéia a raiz do que<br />

será o Gota D'água. A Ferro e Fogo e Por Favor, Moça, Não Morra, a nosso ver, juntos, são o<br />

gérmen do Dr. Fausto da Silva. Um Homem Chamado 320 apresenta, pela figura do louco, a<br />

profunda simpatia de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> (no caso, também Vianinha) pelos desvalidos, como a per-<br />

sonagem Eugênio, na peça Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que ele escrever em<br />

companhia de Alfredo Zemma, como também O Homem de la Mancha, de Dale Wasserman,<br />

que ele traduziu e produziu em 1972.<br />

Ainda uma última palavra: <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> ganhou, em 1969, o primeiro prêmio do Festi-<br />

val Internacional de Cultura de Tóquio com um programa de alfabetização de adultos pela TV<br />

Tupi. Setenta países concorreram ao Festival.


QUARTA PARTE<br />

TEATRO OU AS COISAS SABIDAS<br />

“L'ultime heros tragigue est tout simplemente se<br />

peuple brelisien”.<br />

Richard Roux<br />

“Triste, o povo brasileiro não é, por mais desgraçado<br />

que seja”.<br />

Chico Buarque


1. Teatro<br />

Enquanto desenvolvia seu trabalho na televisão, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, paralelamente, escrevia<br />

para teatro. A postura de homem de teatro, de pensador da cultura, de estudioso do fenômeno<br />

teatral e sua história, a defesa intransigente do teatro e do autor nacional, a sua luta contra a<br />

censura, já o apontavam como um dos líderes da classe teatral, aquele que muitas vezes era<br />

chamado para discutir os seus problemas.<br />

Era intensa sua atividade profissional no início da década de 70. Ao lado da constante<br />

atividade, e para atormentá-lo, agravavam-se os problemas de saúde que, aliás, sempre fora o<br />

seu ponto fraco.<br />

Bem sucedido na televisão e no show business, faltava, contudo, a <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> firmar-<br />

se em outra área do seu interesse: o teatro. Até então tinha conseguido experimentar o valor de<br />

suas teorias aplica<strong>das</strong> ao teatro, embora dominasse a linguagem e defendesse os seguintes pres-<br />

supostos:<br />

Primeiro: existe um grande público para o teatro.<br />

Segundo: esse público carece ser conquistado.<br />

Terceiro: para isso, o teatro precisa falar uma linguagem de fácil compreensão.<br />

Quarto: essa linguagem tem, necessariamente, de estar adequada ao momento histórico<br />

que o país vivia.<br />

Quinto: finalmente, ligada à tradição do teatro brasileiro, ou seja, à comédia de costu-<br />

mes, ou de sua tendência em lidar com o conhecido.<br />

A montagem de Paraí-bê-a-bá serviu como ensaio para formulação de sua teoria, ou de<br />

seus princípios básicos. Acontece que aquela peça fora montada em 1968 e na Paraíba. <strong>Paulo</strong><br />

<strong>Pontes</strong> vivia no Rio de Janeiro, e era aí que se encontrava, consideravelmente, o grande público<br />

que ele ambicionava para o teatro e, em particular, para o seu teatro.<br />

A oportunidade aconteceu quando Milton Morais foi procurá-lo para encomendar uma<br />

peça. Milton Morais, depois de uma marcante atuação em Pedro Mico, de Antônio Callado,<br />

estava há algum tempo parado. Mas tinha idéia sobre um texto que gostaria de ver escrito, um<br />

tema muito em moda o qual pensava apresentar. Foi a <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e aí nasceu Um Edifício<br />

Chamado 200.


2. Um Edifício Chamado 200<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> contou como erigiu o texto: “Quando Milton me procurou eu estava doen-<br />

te, em véspera de ser operado e só aceitei fazer uma peça para ele por causa da sua insistência.<br />

Ele tinha até bolado uma personagem e eu comecei a escrever, sobretudo porque acreditava<br />

nele como ator” 93 .<br />

Acreditava em Milton como ator, mas via também na sua proposta a possibilidade de<br />

pôr em prática, finalmente, as suas idéias a respeito de teatro: “Hoje, no Brasil, nós, artistas, so-<br />

mos seres maravilhosos, com uma compreensão e uma visão do mundo cheias de belezas, dis-<br />

tantes, muito distantes, de um público engravatado, fedorento, careta e burro. Por isso é que eu<br />

acho que a comédia de costumes, por ser próxima deste público, conseguindo fazer da experi-<br />

ência do artista e do público um discurso claro, passou a ser vanguarda neste momento” 94 .<br />

O ponto de partida para a criação de Um Edifício Chamado 200 era o mesmo do seu<br />

programa de rádio, o mesmo do Paraí-bê-a-bá , o mesmo de Bibi - Série Especial, enfim, o<br />

mesmo de sempre: a busca exaustiva de uma linguagem clara, direta, mas sem abrir mão da<br />

qualidade, em primeiro lugar e, em segundo, sem esquecer a reflexão como ponto de apoio à<br />

percepção da vida, do cotidiano. O seu, era o teatro <strong>das</strong> coisas sabi<strong>das</strong>, e não tinha outra preten-<br />

são. Mas as coisas sabi<strong>das</strong> como ponto de luz na consciência, e como tal, instrumento crítico<br />

para um corte dialético na apreensão da realidade: “parece que vivemos em uma sociedade, ou<br />

em um país, em que as coisas sabi<strong>das</strong> já foram leva<strong>das</strong> à prática, e já são domina<strong>das</strong> porque<br />

partimos então para sondar o desconhecido. Eu acho que a posição política do homem de teatro,<br />

de arte, de cultura é, ao contrário, esfregar as coisas sabi<strong>das</strong> na cara do mundo para que a socie-<br />

dade as conquiste na prática. E a gente tem uma porção de coisas sabi<strong>das</strong> mas não postas em<br />

prática para revelar, para fazer disso o conteúdo permanente do nosso produto cultural. Assim,<br />

nós conseguimos fazer com que a nossa arte tenha uma identificação preliminar, que passa a ser<br />

a experiência comum do artista e do povo. Mas, por incrível que pareça, não é isto que tem a-<br />

contecido” 95 .<br />

93 <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, apud Helena Christina, “A Comédia Redescoberta”, in Jornal do Brasil, 19 de setembro de 1972.<br />

94 <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, apud Helena Christina. Op. cit.<br />

95 <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, Idem, ibidem.


2.1 - O Texto 96<br />

A ação acontece num apartamento de solteiro, modestamente mobiliado. Dentro dele<br />

mora Alfredo Gamela (ou Gamelão) e a sua companheira de nome Karla.<br />

Ouve-se o famoso hino de Miguel Gustavo para a seleção brasileira de futebol na copa<br />

de 1970. Acompanha em BG a voz de um locutor transmitindo um jogo em que Gamelão apa-<br />

rece como goleador da seleção tri-campeã do mundo. É só um sonho.<br />

Alfredo Gamela está desempregado. Vive do sonho de ganhar na loteria: essa é a sua<br />

paixão. E também o seu trabalho. A fé posta no jogo, para Alfredo Gamela, é o capital com o<br />

qual ele defende a vida, é o investimento no futuro, antes de qualquer coisa, inquestionável: ele<br />

vai acertar na Loteria Esportiva.<br />

Karla, a companheira de Gamelão, também está desempregada. Mas, ao contrário do<br />

companheiro, tenta conseguir emprego. Os dois não têm dinheiro para nada. Por isso, apesar do<br />

desejo de Karla de arranjar emprego, os dois vivem trancados num apartamento, abandonados a<br />

mais completa lassidão, numa vida cuja monotonia cria barreira de difícil transposição: Alfredo<br />

Gamela sonha com a Loteria e Karla, diante da impossibilidade de mudar o quadro, aceita o<br />

sonho do companheiro, embora dele não participe.<br />

Para mudar essa situação, entra Ana, namorada do Gamelão.<br />

Karla e Ana se conheciam pelo que Alfredo Gamela falava de uma para a outra. Uma<br />

julgava que a outra fosse milionária. Alfredo Gamela mentia para as duas. Mas, diferentemente<br />

do que diz o velho ditado popular, onde não comem dois não comem três. Por isso, com a<br />

mesma indiferença com que vivem Karla e Gamelão recebem Ana em casa, ela que tinha aca-<br />

bado de chegar de sua cidade e que vinha pedir abrigo no apartamento de Gamelão.<br />

Esta é a situação inicial. O desenvolvimento é muito simples: Ana tem cinquenta contos.<br />

Os outros dois não têm nada. Ela é aceita na casa e Gamelão ainda festeja o aparecimento ines-<br />

perado daquele dinheiro, o seu “capital de giro” para o negócio de jogar na Loteria.<br />

Surge outra personagem. Uma voz que se identifica como Byh2 Barra 29.530 e que vi-<br />

nha de outra galáxia muito distante. Gamelão imediatamente o batiza de Bororó. Esta persona-<br />

gem só aparece em off, uma voz que dá a Gamelão o jogo do próximo fim de semana da Loteria<br />

96 Texto em apostila. Arquivo do autor. Não daremos referência de página.


Esportiva. É com a introdução desta personagem off que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> conduz o especta-<br />

dor/leitor ao núcleo do seu texto:<br />

“VOZ - Bem, ouça: nós da minha galáxia estamos já muito tempo examinando a terra. Sabemos<br />

que é um planeta confuso, sem paz. Nossas esperanças estavam volta<strong>das</strong> para a América Latina,<br />

principalmente o Brasil. Sabemos que vocês são um povo bem e que, quando chegasse sua vez,<br />

vocês consertariam a terra. Ultimamente, um fato vem perturbando a vida do homem brasileiro.<br />

Ele tornou-se, de repente, ambicioso, desconfiado. O fato: a Loteria Esportiva... Um jogo pri-<br />

mário, qualquer criança do meu planeta faria os treze ponto com um cálculo simples...<br />

GAMELÃO - Leva o papo, Bororó, tou sentindo...<br />

VOZ - E esse jogo tão primário está desviando as energias de um povo...<br />

GAMELÃO - Segue...<br />

VOZ - Calma, Alfredo: eu tenho uma missão a cumprir. Examinar o que se passa na mente de<br />

um ganhador da Loteria Esportiva. Quero registrar cada uma de suas emoções. Descobrir o mo-<br />

tivo de tanta ambição...<br />

GAMELÃO - Falou e disse. Eu estou solidário com a sua missão. Vamos marcar juntos aqui o<br />

teste 59. A gente racha...<br />

VOZ - Um momento, Alfredo, calma. Você vai acertar na Loteria Esportiva. Eu o escolhi. A-<br />

certarei os treze pontos para você e em troca...<br />

GAMELÃO - Dou tudo, absolutamente tudo. Construo uma igreja, passo a me chamar Sebasti-<br />

ana amanhã, o que Bororó quiser...<br />

VOZ - Só quero que você comporte-se tal qual um ganhador da Loteria. Fique descontraído.<br />

Jogue pra fora to<strong>das</strong> as suas emoções. Eu o estarei examinando.<br />

GAMELÃO - Bororó, você caiu do céu. Venha cá, meu anjinho, diga lá o jogo número um,<br />

Fluminense e Botafogo.”<br />

Assim a Voz vai preenchendo todo o cartão de Alfredo Gamela. Não há surpresa alguma<br />

ao saber-se posteriormente que Gamelão ganhou sozinho na Loteria Esportiva. Ganhou mas não<br />

levou: as duas mulheres, para quem Alfredo Gamela, preenchido o cartão, pede que o registrem,<br />

não jogaram. Preveni<strong>das</strong>, elas preferiram comprar comida com o pouco dinheiro trazido por<br />

Ana, do que acreditar nas sandices de Gamelão.<br />

A personagem misteriosa é clara na sua proposição: quer estudar o comportamento de<br />

um ganhador da Loteria. No fundo é o que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> se propõe a fazer nesse texto.


Lançado o problema, vem a resolução: Gamelão, desiludido porque perdeu com a mes-<br />

ma facilidade com que ganhou o jogo, pronuncia o discurso que é a resposta do problema lan-<br />

çado pela Voz. Só que ela vai muito além do registro de emoções de quem ganha na Loteria. A<br />

resposta é o lampejo de consciência que toma conta de Gamelão, ao saber-se vencedor e perde-<br />

dor. É a consciência de uma vida massacrante que Gamelão recusa ao não querer trabalhar e é,<br />

finalmente, o motivo pelo qual ele faz de sua vida um sonho atrás de Loteria, uma mentira, ao<br />

invés de enfrentar a realidade dos fatos:<br />

“GAMELÃO - Calma, fique aí... Ouve. Ouve. Fica aí quietinha que ta falando um cara que<br />

manja da vida. Escuta. Falando sério. Vocês já deram uma panorâmica da vida que tá aí fora?<br />

Nego acorda 5 da manhã, com medo de abrir os olhos. Veste um ataúde de tergal, passa no pes-<br />

coço uma forca de seda, engole o pão que o Diabo amassou com margarina, fecha a porta de<br />

sua gaiola, salta na rua com medo na cara e um bando de dívi<strong>das</strong> na pasta 007. Caminha desvi-<br />

ando <strong>das</strong> minas, <strong>das</strong> trincheiras e <strong>das</strong> barrica<strong>das</strong> arma<strong>das</strong> pela guerra do trânsito. Encaixa o seu<br />

cansaço no rabo de uma fila, aloja seu nariz debaixo do sovaco da multidão dentro do ônibus.<br />

Transporta sua agonia até o 14º andar, onde está colocado o ponto. Bate um cartão que registra<br />

a partir de que hora ele começou a morrer naquele dia. Larga pro lado seus sonhos, sua vontade,<br />

sua pessoa, e vira um azougue que sobe, desce, senta, levanta, vai prum lado, vai pro outro,<br />

corre, pára, conta, vira-se e mexe e baixa a cabeça. Engole um filé frito no suor e na intolerân-<br />

cia. Fecha de novo o cadeado de sua cela e recolhe seu sangue, os nervos, sua energia, enfeixa<br />

tudo com arame farpado e joga dentro de um fogo de papel de faturas, projetos que irão quei-<br />

mar mais energias, mais sonhos, mais vontades. Depois abre a cela da prisão, o ponto registra,<br />

ca<strong>das</strong>tra, e prova pra quem duvidar que você, naquele dia, morreu a quantidade prevista pelos<br />

códigos e regulamentos que governam a vida dos homens. Recolhe o que sobrou de humano no<br />

teu corpo e entra no cinema, onde lhe vão oferecer numa tela uma fatia de vida cor-de-rosa,<br />

amarela, azul, que eles recolheram não sei onde, mas que vai reconciliar o nego de novo com o<br />

sonho, de novo com a vontade, de novo com o dia seguinte, de novo com a escravidão. E eu<br />

sabendo disso tudo, vou perder meus dezenove bilhões? Vou não. Não vou de jeito nenhum...”<br />

Claro está que a longa fala de Gamelão é no final da peça, quando ele cai no vazio de<br />

sua existência, que seria remediada pelo prêmio da Loteria.


2.2 - Um texto de auto-referência<br />

Um Edifício Chamado 200 é um texto rápido e pleno de auto-referências a dois textos<br />

anteriores: o do seu programa de rádio, Rodízio e o Paraí-bê-a-bá .<br />

Vejamos como ele vai projetando suas experiências anteriores nesta peça:<br />

2.2.1 - Rodízio<br />

A idéia de abertura do Rodízio tinha como base a máxima popular que diz que a vida<br />

começa aos quarenta anos. Isso, diz <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, “se acertar na bolsa de valores, for eleito a<br />

qualquer coisa, arranjar financiamento no Banco do... 97<br />

É curioso que esta mesma idéia v aparecer outra vez no texto presente: em uma <strong>das</strong> ce-<br />

nas iniciais da peça, Gamelão e Karla discutem. O autor expõe a situação <strong>das</strong> duas personagens.<br />

Karla tem contacto para arranjar emprego. Gamelão, notório rebelde contra o trabalho, lhe a-<br />

conselha a desistir do emprego, que ela fosse ler, já que queria fazer alguma coisa:<br />

“KARLA - Você não leu tanto?, de que adiantou? Tá aí duro, não tem nem pro café.<br />

GAMELÃO - Quem, eu? Minha filha, eu sou um dos poucos caras do Brasil que ganhou a vida<br />

aos trinta e oito anos. O imbecil olha, não me vê com dinheiro na mão e pensa: é um pobre coi-<br />

tado. Ele não sabe que tudo o que eu ganhei em todos esses anos transformei em ações. Vai ver<br />

quanto que eu tenho de ações no Banco do Brasil, na Brahma... na... Rio Doce... Vai. Eu não<br />

sou trouxa para ficar aí botando dinheiro fora. Resultado: sou um homem tranquilo.”<br />

Não é. Gamelão, assim como a personagem de Rodízio, nutre a esperança de ter seus<br />

problemas financeiros resolvidos até os quarenta anos. E como deixa claro a personagem de<br />

Rodízio, as perspectivas do homem comum estão fecha<strong>das</strong>. Não há oportunidade possível den-<br />

tro do sistema político-econômico, do modo como ele está organizado. A personagem de Rodí-<br />

zio dizia-se esperançosa, ainda tinha 22 anos, faltando-lhe 18 para “vencer na vida”, ou por ou-<br />

97 Vide Rodízio.


tra: para não viver a vida de rotineira mediocridade que Gamelão descreve no seu delírio, por<br />

não levar o prêmio da Loteria. A personagem de Rodízio ainda tinha esperança de que o jogo na<br />

bolsa de valores poderia redimi-la da vida massacrante do homem comum. Gamelão tem 38<br />

anos e expressa a mesma idéia. Só que, no caso, sua fé está posta na Loteria Esportiva.<br />

A postura irônica e malandra de Gamelão, nessa primeira fala, cede lugar à desolação,<br />

quando ele toma consciência de que não levar o prêmio, já nas últimas cenas da peça:<br />

“GAMELÃO - O professor Malba Tahan... é um cobra em matemática, física, ciências naturais.<br />

Também um grande poeta e prosador... Mas isso não importa. Outro dia ele falou numa entre-<br />

vista, eu li... Ele falou que a Loteria Esportiva são quatrocentos e oitenta mil combinações. Pela<br />

lei <strong>das</strong> probabilidades o cara precisa de cem anos para ganhar, jogando um duplo. Três triplos,<br />

pelas minhas contas, precisa de uns setenta anos. Agora, eu vou ter saco para passar setenta<br />

anos jogando? Não tenho. Tou com trinta e oito, mais setenta são cento e oito. Quer dizer,<br />

quando eu ganhar de novo já tou pra lá de brocha e o que é que adianta?”<br />

No já citado apoteótico discurso final de Gamelão, há uma frase que diz: “Bate um car-<br />

tão que registra a partir de que hora ele começou a morrer naquele dia”. Esta frase aponta uma<br />

idéia que também está presente no texto Rodízio. É quando a personagem Locutor entrevista<br />

diversos profissionais que devem responder à pergunta “o que significa viver?”. E to<strong>das</strong> as res-<br />

postas levam à conclusão de que o significado mais primário do viver é o se alimentar, morar,<br />

trabalhar, estudar e pertencer, por fim, a uma sociedade que garanta igual padrão de dignidade<br />

para todos os seus membros. Ao que o Locutor conclui que quando se quiser saber em que ra-<br />

mo trabalha um operário deve-se fazer a seguinte pergunta: “Escuta, velho, você morre de<br />

quê?”.<br />

Nos dois textos estão presentes a idéia de que os estímulos consumistas como fator de<br />

felicidade jamais serão sentidos pela grande maioria do país. Esta idéia fundamentará Gota<br />

D'água. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> vai descobrindo a contradição básica do capitalismo nacional: o princípio<br />

do sistema é o estímulo ao consumo. A contradição é negar a possibilidade de consumo à maio-<br />

ria da população.


2.2.2 - Paraí-bê-a-bá<br />

Por ser-lhe negado o consumo, uma imensa população vive às voltas com o fantasma da<br />

fome. Para os operários sem qualificação, os trabalhadores da indústria civil, os que recebem<br />

sal rio mínimo, os camponeses não proprietários, a fome é uma realidade presente na vida de<br />

todo dia. Está na cara de todo mundo, está estampada nas ruas, nas figuras desola<strong>das</strong> que va-<br />

gueiam pelas cidades. É só olhar.<br />

Um dos temas do Paraí-bê-a-bá é justamente a fome, apresentada em diversos quadros,<br />

de diversas maneiras. Em Um Edifício... ela é consequência natural da recusa de Gamelão em<br />

participar do mercado de trabalho. Gamelão tem a consciência de que viver não é só comer.<br />

Mas a fome é condição primeira de sua vida, embora ele, repleto de auto-ironia, faça pouco de<br />

sua presença constante. Na abertura da peça, Gamelão e Karla estão dormindo. Gamelão sonha<br />

ser o goleador da seleção tri-campeã. Acerta alguns chutes na sua companheira:<br />

“KARLA - Fica aí curtindo que tá jogando com Pelé e na hora do gol quem paga é minha bun-<br />

da...<br />

GAMELÃO - Jogando com Pelé... Que besteira é essa? Você acha que sou menino para ficar<br />

sonhando com bobagem. Menina, eu já lhe avisei que o organismo humano tem que digerir o<br />

que come antes de dormir. É só ler Dr. Fritz Khan - O Bom Metabolismo - página 843. Enche a<br />

barriga antes de dormir, fica sonhando e depois vem dizer que sou eu que estou com pesadelo.<br />

KARLA - Gamelão, deixa de ser cínico. Você sabe que eu não comi nada.<br />

GAMELÃO - Não comeu porque não tinha comida. Se tivesse, comeria feito uma louca.<br />

(KARLA SE LEVANTA, VAI A UM ESPELHO E COMEÇA A SE OLHAR, DESEMBA-<br />

RAÇA OS CABELOS. GAMELÃO FICA SENTADO NA CAMA).<br />

KARLA - E pra que serve comida?<br />

GAMELÃO - Pra nada. Que sentido tem comer? Nenhum. A única coisa que me faz lembrar<br />

que o homem é animal é comida. Os comunistas vivem dizendo que o problema da humanidade<br />

é a fome... Eu sou contra. A humanidade está morrendo de comida. Os maiores inimigos do<br />

homem são esses caras que vivem dando injeção aos frangos...”


A partir daí segue uma deliciosa discussão sobre os pratos que os dois gostam, ou gosta-<br />

riam, de comer.<br />

A fome não é só um quadro de profunda injustiça social. É também um tema constante<br />

em comédia, desde a velha Commedia dell'<strong>Arte</strong>. O tema da fome, como impulso ao riso, repete-<br />

se através da história. Está presente tanto em Goldoni quanto em Chaplin, para tomarmos e-<br />

xemplos extremos. Em Arlequim Servidos de Dois Amos, de Goldoni, Arlequim consegue um<br />

jeito de trabalhar para dois patrões simultaneamente. Com isso ele poderia comer em dobro. A<br />

fome é um dado importante na composição do histrionismo de Arlequim. Por outro lado, na<br />

personagem do vagabundo de Chaplin, a fome é um elemento que ajuda a compor a tristeza da<br />

personagem. E nem por ser triste, a personagem deixa de ser cômica.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> somou o tema da fome como tradição da comédia à tradição da comédia de<br />

costumes no Brasil, temperando-a com uma pitada de investigação sobre a condição do homem<br />

brasileiro. Eis a receita básica desse texto.<br />

Mas há uma outra cena em Um Edifício... que é citação de uma cena já apresentada no<br />

Paraí-bê-a-bá 98 : é a do homem que, cansado de trabalhar para comer, e cansado de comer para<br />

trabalhar, resolve estender a rede no chão e morrer.<br />

A citação dessa cena em Um Edifício... acontece logo depois que Gamelão toma conhe-<br />

cimento de que as mulheres não fizeram o jogo milionário:<br />

“GAMELÃO - /.../ Eu confesso, não suporto mais tanta realidade (TEMPO. APANHA O<br />

LENÇOL). Eu vou morrer (FORRA O LENÇOL NO CHÃO). A partir deste instante eu me<br />

considero um homem morto (DEITA-SE NO PALCO). Deito aqui e não acordo numa mais (SE<br />

BENZE. OLHA PRO ALTO). Que Deus me perdoe (ESTICA, CRUZA OS BRAÇOS. TEM-<br />

PO LONGO. ELAS SE APROXIMAM LENTAMENTE. KARLA PÕE SEU OUVIDO NO<br />

CORAÇÃO DE GAMELA. FAZ UM GESTO POSITIVO COM OS DEDOS PARA ANI-<br />

NHA).<br />

KARLA - Coitadinho...<br />

ANA - Não morra, Gamela...<br />

KARLA - Gamelão... Você foi o melhor homem que eu conheci em minha vida... Você não<br />

existe, meu Gamela... Olhe... Gamela, você é bom paca... Você tem um corpo tão lindo... Uma<br />

cara... Sei lá, você tem o coração bom... É bom de cama, Gamela. É ou não é, Aninha?...<br />

ANA - É...<br />

98 Vide Paraí-bê-a-bá


KARLA - Como é que você pode dar uma de morrer, meu Gamela. Escuta uma coisa. Fui eu a<br />

culpada... Eu que não deixei Aninha jogar tudo... Foi uma besteira da minha parte, tá certo, mas<br />

veja o seguinte: você fica o tempo todo a sonhar. Sonhar é bacana, Gamela... Eu gosto <strong>das</strong> coi-<br />

sas que você sonha... Não é te pixando não... Eu gosto... Tá aqui minha bunda, pra você ganhar<br />

a copa... Mas olhe... Tem uma hora que sonhar é ruim, Gamela. A gente estava há quase dois<br />

dias sem comer direito... Ana apareceu... A gente tinha que escolher entre comer e sonhar... Tá<br />

ouvindo, Gamela? Falei certo? Hein?...<br />

ANA - Perdoe a gente, Gamela...<br />

KARLA - (UM TEMPO. MUDA O TOM). Deixa de charme, homem. Morrer porra nenhuma.<br />

Levanta, vamos, levanta, Gamela, dá a volta por cima, cara... Olhe aqui, quer desabafar? Dá<br />

uma surra na gente, não é Aninha...<br />

ANA - Isso, boa idéia, a gente merece... (APANHA O CINTO) Tá, Gamela, bate na gente, bate,<br />

a gente merece... Bate... (GAMELA LEVANTA O OLHO. UM TEMPO. MOSTRA O CAR-<br />

TÃO).<br />

GAMELÃO - Pela última vez... é mentira?<br />

KARLA - Não, homem. Mete na cabeça...<br />

GAMELÃO - Então segue o enterro...”<br />

2.3 - A Opinião da Crítica<br />

O sucesso de Um Edifício Chamado 200 mobilizou a opinião pública carioca, a ponto de<br />

ser mudado o número do prédio mais famoso de Copacabana, justamente o de número 200 da<br />

rua Barata Ribeiro 99 .<br />

Quando Um Edifício... estreou, os teatros e as casas de espetáculos no Rio estavam to-<br />

talmente ocupa<strong>das</strong> por shows. O teatro declamado, como dizia <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, encontrava-se<br />

quase falido. O autor brasileiro praticamente desaparecera.<br />

99 O título da peça era Barata Ribeiro 200. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> foi obrigado pela censura a mudar o título.


Vianinha, refletindo sobre a dificuldade de exercer a profissão, disse: “A profissão de<br />

autor teatral não existe. O próprio teatro brasileiro é marginal. Ora, dentro do teatro, o autor é<br />

ainda mais marginal. É o marginal do marginalismo” 100 .<br />

Guarnieri ilustrou bem a impossibilidade de se viver de teatro, quando escreveu Um<br />

Grito Parado no Ar, texto que conta a história de um grupo que, enquanto ensaia uma peça, vê<br />

os seus instrumentos de trabalho sendo confiscados.<br />

Refletindo sobre o mesmo assunto, disse <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>: “O teatro de autor brasileiro não<br />

existia, e essa peça (Um Edifício...) recuperou o teatro declamado. No outro dia estava tudo<br />

quanto é dramaturgo tirando texto da gaveta” 101 .<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> tinha certeza de que havia alguma possibilidade de contornar-se o policia-<br />

mento estético, ideológico e econômico que a ditadura exercia sobre o teatro. Vianinha, tentan-<br />

do equacionar o mesmo problema, teria dito: “Ainda que eu passe anos buscando o que pode<br />

ser dito, escrito, não pretendo parar. É uma decisão, um compromisso que assumi responsavel-<br />

mente. Ainda é possível falar de alguns problemas contemporâneos /.../ Ainda existem possibi-<br />

lidades de se batalhar contra a opressão e contra a injustiça. Agora, é claro que fica cada vez<br />

mais difícil. Pode ser que um dia não seja mais possível e aí eu não sei que posição vou tomar.<br />

Mas escrever para a gaveta ou outro lugar qualquer, isso eu sei que não farei” 102 .<br />

Para conseguir encontrar a solução para o problema, Vianinha buscava os temas mais<br />

próximos ao gosto popular. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> também. Daí porque preferia os temas ligados à vida<br />

de todo dia, ou, como preferia dizer, à multidão: “A temática tem que ser extraída da vida <strong>das</strong><br />

pessoas - e ela desapareceu do teatro brasileiro. De tal forma que, de repente, quando você se<br />

propunha a tratar um tema da multidão, isso já parecia vulgar. Ora, um tema não é vulgar só por<br />

interessar à maioria. Pode tornar-se vulgar se servir para mistificação desses problemas” 103 .<br />

Pensando assim, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> escolheu a comédia de costumes como o estilo que mar-<br />

caria Um Edifício Chamado 200. Tinha certeza de que a sua pesquisa de linguagem para equa-<br />

100 VIANNA FILHO, Oduvaldo. “Defesa da Cultura Brasileira”. Publicação sob o patrocínio da Empresa Bonfiglioli,<br />

julho de 1983, p. 20. Plínio Marcos, por volta do ano de 73, passara a dizer, dentro do mesmo espírito de protesto,<br />

que era um “autor morto”.<br />

101 PONTES, <strong>Paulo</strong>. Defesa da Cultura Brasileira. Op. cit. p. 22.<br />

102 Apud Carmelinda Guimarães. Op. cit. p. 64.<br />

103 PONTES, <strong>Paulo</strong>. Idem, ibidem.


cionar o momento difícil do teatro, no começo dos anos 70, encontraria resposta do público:<br />

“Eu escolhi esta linguagem de comunicação com o público, tenho as condições básicas para me<br />

comunicar com ele, graças ao que aprendi em rádio, em televisão e em teatro mesmo. Pode ser<br />

que haja alguém que torça o nariz, ache que eu estou sendo servil ao gosto do público, mas eu<br />

tenho muita certeza <strong>das</strong> razões que fazem do meu tipo de experiência teatral uma experiência<br />

importante, inquestionável e, sobretudo, digna” 104 .<br />

E não se enganara. O sucesso de público e crítica apontava como correto o raciocínio de<br />

<strong>Paulo</strong> para aquele momento. Yan Michalski, por exemplo, após a morte de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, co-<br />

mentou: “Como autor ele explodiu em Um Edifício Chamado 200, e acho que foi uma abertura<br />

muito significativa, pois levantou o nível da comédia de costumes carioca, aprofundou o seu<br />

alcance. É curioso que em tão pouco tempo e em tão pouco texto ele tenha conseguido inserir<br />

tantas informações sobre as personagens, a sua vida, as suas aspirações. A peça durava uma<br />

hora. Eu tenho uma vaga lembrança de que na época, a peça, apesar de eu ter gostado muito,<br />

deixava-me com apetite, ela acabava muito bruscamente: e que o próprio <strong>Paulo</strong> reconheceu esta<br />

deficiência, tanto assim que desenvolveu mais a parte final da peça” 105 .<br />

Marco Aurélio Borba e Osvaldo Mendes, em introdução a uma matéria publicada na re-<br />

vista Manchete, observaram entusiasmados: “Nem o cinema, nem o rádio, nem a televisão (com<br />

suas novelas), conseguiram apagar as luzes da ribalta. O Espetáculo teatral continua empolgan-<br />

do as platéias culturais <strong>das</strong> grandes cidades. No Rio e em São <strong>Paulo</strong>, três peças - Tango, Um<br />

Edifício Chamado 200 e A Capital Federal, batem recordes de bilheteria” 106 .<br />

Claro que os autores da matéria desviavam o foco da crise no teatro. Ao invés de centra-<br />

lizá-la na política de destruição <strong>das</strong> oposições, implantada pelo regime militar, eles a conduzi-<br />

ram para o campo <strong>das</strong> linguagens da televisão, rádio e cinema, em oposição à linguagem teatral.<br />

Esse erro durou muito tempo, sempre quando se tratou de questionar a crise teatral no Brasil<br />

dos anos 70/80. Mas o entusiasmo dos autores da matéria vale para dar uma idéia de como a<br />

peça fora bem recebida pelo público. Tanto que na sua re-estréia carioca, já com o texto melho-<br />

rado, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> conseguiu uma <strong>das</strong> maiores bilheterias do momento, coisa que ele vinha<br />

buscando há muito tempo, pacientemente estudando os dados do problema que enfrentavam<br />

104 Apud Helena Christina. Op. cit.<br />

105 MICHALSKI, Yan. “Os mitos de Quixote e Medeia”. In <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> - a arte da resistência. Op. cit. p. 22.<br />

106 Apud <strong>Paulo</strong> Melo. “Um artista chamado <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. In Jornal da Paraíba. João Pessoa, 2 de julho de 1972.


(que era a conquista de um público amplo), inclusive, por uma questão de sobrevivência, lutan-<br />

do pela manutenção do autor brasileiro em cartaz. Era tão grande esse problema que Plínio<br />

Marcos, um dos dramaturgos mais censurados do Brasil, alardeava (em relação à TV) que Rin-<br />

tin-tin (um cão pastor de um seriado de televisão americana) trabalhava muito mais no Brasil do<br />

que ele, Plínio Marcos.<br />

Manter em cartaz o autor nacional, como queriam <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Vianinha, era um dos<br />

pontos fundamentais na luta contra a ditadura. Isso por uma razão bem simples: quem melhor<br />

do que o homem brasileiro para conhecer a sua própria realidade? - Por isso, os órgãos censó-<br />

rios eram duros com os autores brasileiros. Produzir a montagem de uma peça era um risco que<br />

se corria de ver perdido o capital empatado. Isso porque a censura poderia impedir a estréia da<br />

peça, ou mesmo retirá-la de cartaz, se lhe conviesse, em plena temporada, sem maiores explica-<br />

ções. Ou mesmo, impedir o espetáculo em outra cidade, já que o serviço de vigilância era man-<br />

tido por cidade, sendo que a liberação dada numa cidade não valia para outra. Isso dificultava<br />

enormemente as tournées da companhias ou dos grupos.<br />

Policiado como era o autor nacional foi desinteressando ao empresário teatral. Não eram<br />

poucos os problemas enfrentados pelo dramaturgo brasileiro.<br />

Primeiro: encontrar um tema adequado.<br />

Segundo: escrevê-lo de forma que pudesse ser aprovado pelo gosto policial.<br />

Terceiro: conseguir comunicação com o público, já que o teatro brasileiro, durante a di-<br />

tadura, viveu um longo período de metáforas, de imagens cifra<strong>das</strong>, de códigos de comunicação<br />

parcos e específicos, pela impossibilidade de fazer de um modo que não fosse dizendo fingindo<br />

que não dizia.<br />

Um Edifício Chamado 200 não foge à regra. O texto fora escrito para três atores, limite<br />

de segurança num eventual prejuízo de produção. Esse prejuízo não aconteceu, e a peça ainda<br />

conseguiu levantar o entusiasmo da crítica: “Num momento que o teatro brasileiro - através de<br />

v rias correntes - busca novos caminhos para sua afirmação, é com grande júbilo que observa-<br />

mos a experiência montada no Teatro Senac, na Guanabara, com direção de José Renato e in-<br />

terpretação de Milton Morais, Tânia Scher e Vera Bhrahim. O texto de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> é excelente<br />

sob todos os aspectos, e pode-se até afirmar que h muito tempo não surgia nada semelhante no<br />

gênero... Dificilmente um texto remontado (como é o caso de Um Edifício...) consegue lotar<br />

to<strong>das</strong> as noites uma casa. No caso presente, chega a haver fila de esperançosos, como na ponte-<br />

aérea, à espera de uma desistência” 107 .<br />

107 Mário Augusto Barreiro, apud <strong>Paulo</strong> Melo. Op. cit.


Ao mesmo tempo que a peça estava sendo re-lançada no Rio, em São <strong>Paulo</strong> preparava-<br />

se a sua estréia, com Juca de Oliveira no papel de Alfredo Gamela.<br />

Gilberto Gumscitz, no jornal O Globo, também era entusiasta do texto: “Além da acui-<br />

dade para criticar tipos e costumes, na linha de Millôr, Silveira Sampaio, Gláucio Gil e João<br />

Bethencourt, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> parece ter guardado de sua experiência no Opinião, o dom de enve-<br />

redar, com clareza e inteligência, pelos amargos caminhos da crítica social. Com dialogação<br />

fluente e artesanato seguro, construiu uma comédia de grande apelo popular” 108 .<br />

Um Edifício Chamado 200 valeu a <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> o prêmio de Autor Revelação em São<br />

<strong>Paulo</strong>, no ano seguinte à sua montagem, 1972.<br />

2.4 - A Palavra de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong><br />

No texto de apresentação da peça, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> não deixaria de tocar na situação de o-<br />

pressão que vive o homem comum. Seu ponto de vista, evidentemente, é contrário ao de Alfre-<br />

do Gamela; ele é o álibi de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> para mostrar a inocuidade de um regime político que<br />

cria a instituição da Loteria, a m quina de fazer ilusão; e de como o homem oprimido, sem<br />

perspectiva, empata nessa m quina a pouca renda de que dispõe; e de como o homem condicio-<br />

nado a não pensar sobre a situação do ponto de vista <strong>das</strong> relações sociais, da correlação política,<br />

se deixa enganar pela mentira oficializada. Eis o que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> escreveu para a apresentação<br />

da peça: “O capitalismo plenamente desenvolvido esfrega abundância na cara do cidadão e,<br />

com isso, faz do sonho uma mercadoria com a aparência de acessível: no subdesenvolvimento,<br />

a distância enorme entre o que se aspira e a realidade faz do sonho uma miragem quase desvai-<br />

rada. Por isso, sonhar, no subdesenvolvimento, não é apenas uma necessidade, é quase o estado<br />

natural do ser humano. Por causa disso, a visão tecnocrática que procura conciliar a pobreza do<br />

subdesenvolvimento com o modelo gerado pelo máximo grau de desenvolvimento da economia<br />

108 Apud <strong>Paulo</strong> Melo, op. cit.


capitalista, descobriu uma maneira infernal de institucionalização do sonho: a Loteria Esporti-<br />

va” 109 .<br />

Esse é o par grafo básico do seu texto, onde ele expõe o quadro geral do qual parte o seu<br />

pensamento para equacioná-lo através de uma personagem padrão. Na segunda parte, ele con-<br />

centra em Alfredo Gamela a perspectiva geral do homem que aposta na Loteria: “Como mi-<br />

lhões de pessoas que têm de seu apenas a capacidade de trabalhar, Alfredo Gamela joga na Lo-<br />

teria Esportiva. Com uma diferença. Milhões trabalham e jogam. Gamela, apenas joga. E se ele<br />

ganhar? Todos os sonhos de Gamela serão realizados. E sua experiência de ganhador - ser en-<br />

trevistado na rádio, na TV, primeira página dos jornais - estimular ainda mais o sonho de mi-<br />

lhões de pessoas que, por enquanto, são donos, apenas, de seu próprio corpo, dotado da capaci-<br />

dade de trabalhar”.<br />

Por fim, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> não consegue esconder a sua simpatia de autor pela personagem,<br />

mesmo que não concorde com as posições assumi<strong>das</strong> por ela. Num jogo pirandelliano, <strong>Paulo</strong><br />

<strong>Pontes</strong> aceita que Alfredo Gamela seja um tipo independente de sua vontade: “Enquanto escre-<br />

via a peça, fui tomado de uma tal simpatia por Alfredo Gamela, que, apesar <strong>das</strong> falhas do seu<br />

caráter, torci muito pra ele ganhar na Loteria Esportiva. O público, com sua extraordinária ca-<br />

pacidade de ficar do lado certo, também vai torcer, espero”.<br />

3. Check-up<br />

Em 1972, depois do sucesso de Um Edifíco Chamado 200, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> escreveu<br />

Check-up, que estreou no mesmo ano, com a direção de Cécil Thiré, tendo Ziembinski como<br />

ator principal.<br />

Esse, aliás, é um texto escrito sob encomenda para Ziembinski: “Ele me deu até o núme-<br />

ro de personagens que a peça deveria ter, por causa de suas limita<strong>das</strong> possibilidades financei-<br />

ras” 110 .<br />

109 PONTES, <strong>Paulo</strong>. “Um Edifício Chamado 200”. In <strong>Arte</strong> em Revista/6. São <strong>Paulo</strong>, Kairós, p. 58. As demais cita-<br />

ções serão da mesma fonte.<br />

110 PONTES, <strong>Paulo</strong>. “Autor não pode viver só de teatro”. Rio de Janeiro, Última Hora, 17 de fevereiro de 1973.


<strong>Paulo</strong>, como sempre de saúde frágil, estava para ser outra vez internado quando Ziem-<br />

binski o procurou, pedindo um texto. Conta Bibi Ferreira: “Veio uma fase boa. <strong>Paulo</strong> foi opera-<br />

do e descobriu que não tinha nada no pulmão. Recuperou-se. Baseado na sua experiência no<br />

hospital, nos 42 dias que passamos lá dentro, no hospital da Lagoa, no Rio, ele escreveu uma<br />

peça chamada Chek-up” 111 .<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> disse que a peça discute “talvez os problemas mais candentes que afetam a<br />

vida do brasileiro hoje” 112 , embora não diga quais problemas seriam esses.<br />

A linha geral do texto é muito simples: um ator que é internado em um hospital para tra-<br />

tar de uma úlcera no duodeno. O tempo passa. A operação nunca é realizada por causa de uma<br />

suspeita de tuberculose; enquanto isso, o ator incomoda a rígida norma hospitalar com os seus<br />

conceitos racionalistas, sua ironia, sua capacidade de perceber as contradições entre a institui-<br />

ção e o seu fim.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, para a imprensa, não disse quais são os problemas candentes que afetam a<br />

vida do brasileiro, mas, analisando o seu texto, conhecendo sua história e, particularmente, a<br />

história que o país vivia, é possível perceber que Check-up é uma peça escrita contra a censura.<br />

A história da luta travada entre os artistas de teatro e a censura, está fartamente documentada<br />

pelos trabalhos de Yan Michalski, de Tânia Pacheco e, em perspectiva histórica, por Sônia Sa-<br />

lomão Khéde 113 .<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, em 1976, disse a Sérgio Gomes, que o teatro, premido pela censura, fora<br />

obrigado a buscar nova sintaxe do espetáculo, de forma que pudesse continuar falando, mas em<br />

uma linguagem que não fosse detectada pela censura 114 .<br />

Em 1975, falando a Sérgio Fonta, ele apontou qual o problema que trás para o teatro a<br />

tal sintaxe que engana a censura: “Impede que vá para os palcos aquilo que o teatro tem de van-<br />

111 FERREIRA, Bibi. Op. cit. p. 14.<br />

112 Apud Helena Christina. Op. cit.<br />

113<br />

MICHALSKI, Yan. O Palco Amordaçado. Rio de Janeiro: Avenir, 1979 & O Teatro Sob Pressão. Rio de Janeiro,<br />

Zahar, 1985.<br />

PACHECO, Tânia & outros. Anos 70 - Teatro. Rio de Janeiro, 1980<br />

KHÉDE, Sônia Salomão. Censores de Pincenê e Gravata. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.<br />

114 GOMES, Sérgio. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, a Gota D'água contra a maré”, in Folha de S. <strong>Paulo</strong>, 21 de dezembro de 1976.


tajoso sobre a dramaturgia estrangeira, que são a personagem e o problema brasileiro. Na medi-<br />

da em que os temas que mais interessam, que estão mais ligados à vida de todo o mundo, na<br />

medida em que as personagens mais reconhecíveis pela consciência pública não estão podendo<br />

ser escritos, fica empobrecida a capacidade de diálogo do autor brasileiro com o seu públi-<br />

co” 115 .<br />

Eis, então, o grande problema que a censura lançava na dramaturgia brasileira: era pre-<br />

ciso escrever em linguagem cifrada. Acontece que linguagem não compreensível pelo censor<br />

também não é compreensível pelo público, mesmo porque de teatro os censores (treinados pelo<br />

então Serviço Nacional de Teatro - hoje Funarte) entendiam o suficiente.<br />

Check-up é um texto cuja linguagem precisou de signos obscuros para alcançar o públi-<br />

co: Zambor, a personagem central, a todo momento, por qualquer motivo, é impedido de fazer o<br />

que deseja. E o que deseja é muito simples, lógico, racional. Mas há sempre uma ordem superi-<br />

or, um regulamento qualquer do hospital que o impede.<br />

Mas aí uma pergunta se impõe: quem é Zambor? - um ator, ou por outra, um homem ca-<br />

paz de construir em si os signos de uma cultura, e de torná-la viva como a expressão de um po-<br />

vo. Por esse motivo Zambor vive de citar trechos de peças a propósito de qualquer coisa. Zam-<br />

bor, a personagem, é a representação imagética do setor cultural de uma sociedade.<br />

Check-up é uma volta metafórica, um jogo onde o tema - censura - está presente e au-<br />

sente ao mesmo tempo. Foi assim que Gilberto Tumscitz percebeu a peça, quando de sua estréia<br />

no dia 6 de setembro de 1972: “Num primeiro nível, a peça coloca o conflito de um homem<br />

inteligente - habituado a raciocinar, a tomar decisões, a optar pelo que lhe parece certo - com<br />

uma instituição cheia de contradições - o hospital, reflexo de uma sociedade despreparada /.../<br />

Num nível profundo, para os espectadores sensíveis, a fraqueza do próprio Zambor, fera acua-<br />

da, seu medo da morte em contraste com seu pavor à vida. Tudo nos é servido na mais perfeita<br />

carpintaria de teatro realista, de que <strong>Pontes</strong> só escapa uma vez, por alguns minutos do segundo<br />

ato, para compor uma cena belíssima em que Zambor, a partir de uma discussão com o médico,<br />

se interroga e nos interroga sobre a própria essência do teatro” 116 .<br />

No clima policial que se vivia, nada podia ser dito claramente, nem pelo autor nem pela<br />

crítica. Quem escrevia era obrigado a falar alusivamente sobre assunto que fosse passível de<br />

censura. E tudo o era. Os trabalhos de Tânia Pacheco e de Yan Michalski estão repletos de ca-<br />

115 FONTA, Sérgio. Op. cit. p. 77.<br />

116 TUMSCITZ, Gilberto. “O voo mais alto de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Rio de janeiro, O Globo, 7 de setembro de 1972.


sos ridículos de censura, mas, para exemplificar, sem sair de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, o sem-limite despó-<br />

tico da censura, é bastante lembrar um caso contado por <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> numa conferência dada<br />

em Fortaleza: dizia <strong>Paulo</strong> que no show que escreveu para Elizete Cardoso havia uma rubrica no<br />

texto: “Canhão Móvel”. Ou seja: em algum momento um potente refletor móvel deveria criar<br />

um círculo de luz em torno da cantora. Diz <strong>Paulo</strong> que a censura percebeu a periculosidade da<br />

indicação e, simplesmente, cortou a rubrica, que é a parte do texto não falada 117 .<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> não se conformava com a existência da censura. Eis o que ele disse a Sér-<br />

gio Fonta, a propósito da criação do Conselho Superior de Censura, em 1975: “No momento<br />

que há o impasse e diz-se que vai ser criada uma instância superior de censura, eu, como pessoa<br />

ligada diretamente ao problema, não posso dizer que estou a favor do Governo. Se disser que<br />

estou, ele faz o Conselho que quiser e depois diz que foi o que nós quisemos. Digo sempre: em<br />

relação à censura tenho uma posição de princípio. Acho que a obra de arte, de pagamento, não<br />

deve receber nenhum tipo de censura. Está aí a história da cultura para demonstrar que a cen-<br />

sura sempre foi maléfica. Não me importa se o propósito do Governo é melhorar ou atenuar o<br />

problema criando um Conselho Superior. O que me importa é que quanto à censura eu sou con-<br />

tra e faria uma besteira crassa se dissesse que estou a favor, pois não está em mim criar um<br />

Conselho de Censura. Como não sou eu que vou fazer, não posso avalizar, na qualidade de pes-<br />

soa prejudicada, uma proposta sobre a qual não tenho controle. Sou contra a criação de qual-<br />

quer instância de censura, seja feita por policial ou por intelectual, não me interessa” 118 .<br />

Sônia Salomão Khéde, examinando o problema da censura, fala de sua ilegalidade como<br />

norma jurídica, já que na operação jurídica a proibição fundamenta-se na lei que, por sua vez,<br />

está ligada a um sistema penal. A lei, enquanto interdição, prevê o crime e pune depois do cri-<br />

me ocorrido. No caso da lei de censura, o procedimento é diferente, porque ela se constitui, ao<br />

mesmo tempo, na proibição e punição, impedindo que ocorra o “crime” previsto 119 .<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> lutou como foi possível contra a censura. Uma <strong>das</strong> formas que encontrou<br />

foi a de escrever sobre ela, já que era de escrever que ele vivia. Check-up é a sua contribuição,<br />

embora alusiva, ao problema. É como se fosse a radiografia de um tempo doente, um tempo<br />

sem liberdade.<br />

117 Jornal O Povo, “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e o novo movimento teatral do Rio”. Fortaleza, 11 de junho de 1976.<br />

118 FONTA, Sérgio. Op. cit. p. 79.<br />

119 KHÉDE, Sônia Salomão. Op. cit. p. 27.


Em relação à peça, a sua estrutura, <strong>Paulo</strong> acreditava que ela suportava o que era discuti-<br />

do: “É bem armada como narrativa e os golpes teatrais que são apresentados a cada instante<br />

fazem com que o público esteja permanentemente atento. Por isso é que apesar de - vou usar<br />

uma expressão que não gosto - mais séria, o público sai do Check-up com a mesma simpatia<br />

que sai do 200” 120 .<br />

3.1 - Um Manifesto Pela Razão<br />

É o que é o texto de apresentação da peça, escrito por <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> 121 .<br />

Primeiramente, ele situa o problema em algo estranho ao texto: o subdesenvolvimento.<br />

Da mesma forma que, aliás, ele fará em Dr. Fausto da Silva. Colocar em prática a concentração<br />

de renda, diz <strong>Paulo</strong>, “tem um custo social muito caro. É necessário que o centro de poder exerça<br />

um controle cada vez maior sobre os canais de expressão do organismo social”. Além de exer-<br />

cer o controle sobre os canais de expressão, é necessário que se criem complica<strong>das</strong> teorizações<br />

para justificar a mágica da concentração de renda. Segundo <strong>Paulo</strong>, esse arcabouço teórico é um<br />

verdadeiro labirinto cheio de armadilhas conceituais, porque é muito difícil explicar aos não<br />

beneficiários da concentração de renda que esperem, que um dia o seu dia há de chegar. Eis o<br />

quadro geral em que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> situa o seu pensamento.<br />

Em seguida, ele particulariza o problema, sob a ótica de como se pode enfrentar o irra-<br />

cionalismo subdesenvolvimentista: pela lente da razão: “Colocar um instrumento racional de<br />

conhecimento diante da pobreza planejada, da calculada transferência da renda da maioria para<br />

as mãos da minoria, é simplesmente pôr em confronto a razão e o irracionalismo. Nesse con-<br />

fronto, o irracionalismo tem armas poderosas: é pedante, autoritário, intransigente, livre-ati-<br />

rador e, se o apertarem muito, inescrupuloso. A razão é apenas racional. Sua única arma é o<br />

120 Apud Helena Christina, op. cit.<br />

121 PONTES, <strong>Paulo</strong>. “Check-up”. In <strong>Arte</strong> em Revista/6. São <strong>Paulo</strong>, Kairós, p. 56. To<strong>das</strong> as citações do prefácio são<br />

dessa mesma fonte.


movimento incessante e permanente da experiência social: seu único alimento é o fenômeno<br />

novo que a experiência social revela a cada momento de sua trajetória; sua única certeza: a dú-<br />

vida; seu alimento: o real; sua estrada: a História”.<br />

Determinado o ponto de conflito entre a irracionalidade do subdesenvolvimento plane-<br />

jado e a razão como arma de confronto, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> transfere a discussão para a personagem<br />

central, Zambor, concentrando nela todo o problema anteriormente proposto. Para <strong>Paulo</strong>, Zam-<br />

bor é o homem de infatigável apetite pela razão. “A luta dentro do hospital - diz <strong>Paulo</strong> - modifi-<br />

ca Zambor diante do público. A trajetória de Zambor, como personagem, dá conteúdo ao seu<br />

racionalismo. Zambor entra no “hospital” com sua inteligência extraordinariamente bem prepa-<br />

rada, do ponto de vista metodológico, para pensar o mundo; ele articula com muita desenvoltu-<br />

ra as categorias de organização do pensamento. Mas, suas categorias de pensamento não dei-<br />

xam de ser esquemas, ele as usa de maneira especulativa, ele reduz a realidade aos seus méto-<br />

dos. No entanto, sua luta dentro do “hospital” lhe ensina a primeiro conhecer, concretamente, os<br />

fen“menos da realidade e, só depois, aplicar sua monumental capacidade de apreender e orde-<br />

nar o significado de cada um deles. As lutas do “hospital” dão concretude à lógica infernal de<br />

Zambor. Ele deixa de ser um especulador formalista e passa a ser um homem que influía nos<br />

acontecimentos a sua volta. Zambor aprende a respeitar a realidade e, por isso, aprende a modi-<br />

ficá-la”.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> faz sua personagem descobrir que na luta contra a irracionalidade, Zambor<br />

tem um aliado (que está presente simbolicamente na figura de dois enfermeiros): o povo:<br />

“Zambor descobre que entre as mais legítimas aspirações do homem e a realidade, ainda existe<br />

um pequeno escondido nexo: o povo (a que ponto chegamos: chamar o povo de pequeno e es-<br />

condido). Zambor ainda se salva da loucura. A arma que ele descobre é desesperadoramente<br />

frágil. Mas disso eu tenho certeza, é preferível um povo derrotado a nenhum povo. Ao povo<br />

derrotado, restam as cinzas da malandragem. Ele renascer delas”.


3.2 - O Texto 122<br />

Abertura da peça. Zambor está descontraído, tirando a calça, cantando. Há barulho fora<br />

do quarto. Zambor fecha a porta. Entra Vilma, a enfermeira:<br />

“VILMA - Quem fechou a porta?<br />

ZAMBOR - (PROTEGENDO A NUDEZ) - Opa... O que é isso?...<br />

VILMA - Quem mandou o senhor fechar esta porta?<br />

ZAMBOR - Devia ter batido, minha santa... Dá uma viradinha.<br />

VILMA - pode vestir a calça. Foi o senhor quem fechou a porta?<br />

ZAMBOR - Faz muito barulho.<br />

VILMA - Mas não pode. Tem que ficar aberta...(ESCANCARANDO A PORTA) - Bem aber-<br />

ta... Pra todo mundo ver que está aberta.<br />

ZAMBOR - E por que é que tem de ficar aberta?”<br />

Esta é a primeira pergunta sem resposta que Zambor faz. O conflito entre ele e as nor-<br />

mas do hospital já se estabelece desde o início. A resposta da enfermeira: “Isso não interessa”,<br />

motiva um longo questionamento entre Zambor e Vilma. Até que apareça Sílvia, a Enfermeira-<br />

chefe que, cansada de discutir com Zambor, termina por permitir que ele deixe a porta fechada.<br />

Mas, se pode permanecer com a porta fechada, não pode usar na parede do quarto fotografia de<br />

casal nu. É que Zambor, tentando ambientar melhor o quarto onde ficaria hospedado, resolveu<br />

pôr na parede o retrato de um casal sem roupa. Sílvia, que também é freira, não admite que o<br />

retrato do casal esteja ao lado do retrato de Jesus crucificado. Zambor, do mesmo modo que<br />

antes fizera com a porta, questiona o que é mais saudável para o paciente: o Cristo crucificado<br />

ou a imagem de um casal saudável.<br />

Assim ele conduz toda a peça. Questiona, por exemplo, a proibição de fumar seus cigar-<br />

ros, a proibição de visita a partir <strong>das</strong> 22 horas, sempre em pontos espalhados no texto, de tal<br />

122 Texto em apostila. Arquivo do autor. Não daremos referência de página.


forma que cada questão surge após o esgotamento da anterior. A peça é curta exatamente para<br />

que Zambor não possa perder-se em sua argumentação, e para que, também, o seu constante<br />

questionamento não canse a platéia, pelo seu racionalismo, e por ser o único vetor da ação.<br />

As personagens dividem-se em dois grupos: o Médico e Sílvia, a Enfermeira-chefe, de<br />

um lado; de outro, Vilma, enfermeira, e um ajudante de enfermagem de nome Meu Filho. Zam-<br />

bor, postado entre os dois grupos, conquista, com a sua irreverência, o grupo composto por<br />

Vilma e Meu filho. Este chegando, inclusive, no fim da peça, a roubar, com a anuência de Vil-<br />

ma, um remédio que não constava em sua papeleta. Mas se Zambor consegue conquistar o gru-<br />

po mais frágil de personagens, não conquista, por sua vez, o grupo mais forte.<br />

Esse grupo de personagens frágeis seria, como já dito, a representação do povo. Eis o<br />

que Vilma diz para Zambor, no momento que eles se reencontram, após o incidente da porta<br />

fechada:<br />

“VILMA - A gente tem que cumprir ordens. A Enfermeira-chefe diz: doente, a gente dá o pé e<br />

ele quer a mão... O hospital não pode... Se for dando regalias daqui a pouco todo mundo quer<br />

tudo...”<br />

ZAMBOR - Ahnnn. Quer dizer que você está com raiva de mim?<br />

VILMA - Agora... O senhor vê: eles dão ordens... a gente cumpre. De repente não é mais. Irmã<br />

Sílvia veio falar com o senhor, terminou deixando a porta fechada. Eu não sabia que o senhor<br />

era importante. Pra mim... era tudo igual... (TIRA O TERMÔMETRO) - No fim quem paga é o<br />

pequeno.”<br />

3.3 - Uso renovado de truque antigo<br />

Volta à cena a velha piada do Paraí-bê-a-bá, a do homem que se recusa a comer. Eis o<br />

diálogo entre o Médico e Zambor:<br />

“MÉDICO - Se alimenta bem?<br />

ZAMBOR - Eu detesto comida.<br />

MÉDICO - Não gosta de comer?<br />

ZAMBOR - Por que o espanto?


MÉDICO - Sem comer o senhor morre.<br />

ZAMBOR - Comendo morro também.<br />

MÉDICO - Aí é outro problema.<br />

ZAMBOR - Nada disso. Existem dois tipos de fome hoje, doutor. A constitucional e a institu-<br />

cional. A constitucional é a do sujeito que passa fome porque não tem o que comer. A Institu-<br />

cional é a do sujeito que passa fome exatamente porque come.”<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> usa a antiga anedota para reforçar o peso do regulamento contra a vontade<br />

humana. Eis a continuidade do diálogo acima transcrito:<br />

“MÉDICO - (RI) - O senhor tinha que ser de teatro mesmo...<br />

ZAMBOR - Isso é problema meu.<br />

MÉDICO - Aqui vai ter que comer.<br />

ZAMBOR - E se eu não quiser?<br />

MÉDICO - É do regulamento.”<br />

To<strong>das</strong> as proibições constam do regulamento. Isso fornece a <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> o gancho ne-<br />

cessário para ele voltar com o tema que lhe é mais caro, do ponto de vista filosófico: raciocinar<br />

sobre o que é o homem, o homem e a vida, o homem e os regulamentos que proíbem a vida, em<br />

mais um desenvolvimento do tema já contido em Rodízio.<br />

“ZAMBOR - Não pode, não pode, não pode, não pode... Posso! Posso o que eu quiser Dr. Es-<br />

tranguilove... (PARA A PLATÉIA) - Vocês sabem o que é um homem? O que é que vocês co-<br />

nhecem de um homem? Nada mais do que aprenderam de anatomia nas suas faculdades. Um<br />

homem é muito mais do que a sua anatomia. Você vai abrir o cadáver de todos os homens que<br />

já nasceram, examinar cada membrana, e não vai descobrir o que é um homem. Me mostre aí na<br />

sua anatomia onde fica o nervo do ódio. Não, não... Eu sei que você vai mostrar um pedaço da<br />

parte antero-posterior do cérebro que gera e transmite o ódio pras vísceras. Mas essa chuva de<br />

articulações, que vai do córtex às vísceras é feita com a corda de que não sei que violino que só<br />

o homem é que tem; e se você experimentar reconstruir uma réplica desse instrumento... Se<br />

quiser, vamos valer... Ele não vai sentir ódio nenhum. Assim era muito fácil... Você pega um<br />

homem... esse troço que extrai de si um mistério a cada segundo, só para no minuto seguinte<br />

sentir o prazer de uma nova revelação... E diz pra ele: “Não pode”... Não pode nada. Não pisa


na grama, não cuspa no chão, não faça pipi nas calças, não faça má criação, não cruze esta por-<br />

ta, não diga palavrão... Por que, Doutor?... Pra dizer que o homem não pode, vai ter que rebolar<br />

muito. O homem pode. “Há muitas coisas maravilhosas na natureza, mas a maior delas é o ho-<br />

mem...” Sófocles. Quer saber mais do que Sófocles, Doutor de Merda? E agora? O homem po-<br />

de. Eu afirmo que pode...”<br />

A parte final do discurso, que trata do mistério da natureza humana, por sua vez, serve<br />

de gancho para um novo discurso pronunciado pela personagem central, agora trazendo a esté-<br />

tica para o centro do problema. O discurso de Zambor adquire enorme variedade e profundida-<br />

de, que termina por transcender o sentido primário da estética como instrumento capaz de medir<br />

as condições e os efeitos da criação artística; o texto caminha, portanto, em direção à poesia<br />

como sublimação do belo no homem; e dentro desse espectro conceitual, busca no campo da<br />

poesia, a poesia teatral, a palavra posta em ação, capaz de gerar diversidade de emoções e sen-<br />

timento:<br />

“ZAMBOR - Essa ferida e essa mancha que você achou no pulmão não prova nada... Tudo o<br />

que o conhecimento médico produziu para mostrar que era possível conhecer e organizar a so-<br />

ciedade humana... é um prédio velho, enorme; as paredes cheias de livros, Doutor, insistindo<br />

que a vocação do homem é o domínio do seu destino... Eu saí de uma cidade onde mostravam a<br />

evolução orgânica dos seres vivos, e via nas ruas pernas sepulta<strong>das</strong>, olhos vazados, castrados,<br />

seres mutilados. Mas, Doutor, estava lá escrito na universidade que era possível racionalizar a<br />

humanidade... Doutor, sabe que eu estou trabalhando até hoje para descobrir isso?... Minha vida<br />

inteira, Doutor, eu joguei para descobrir outra alternativa. De lá pra cá, não houve idéia nova,<br />

um lampejo que desse luz ao caminho do homem neste mundo que eu não tenha me entregado<br />

com a alma e com esse corpo que o senhor diz que está apodrecendo... (PAUSA) - No teatro foi<br />

difícil fazer um ator dizer esta frase: “A vitória da razão é a vitória dos homens racionais”.<br />

(TEMPO) - Mas eu não parei de acender o refletor em cima de uma voz para ela gritar num<br />

palco que a aventura humana tem sentido... Doutor, eu tinha um eletricista chamado Elias... O<br />

senhor não sabe como é que ilumina o teatro. A gente numera os refletores e joga eles em cima<br />

do palco conforme o movimento dos atores. Eu gritava: Elias, dá o dezoito, pra aquela hora que<br />

Woyzeck olhar pro horizonte... Joga o vinte em cima de mim pro velho Ifraim dizer que não vai<br />

rastejar... Dá toda luz nos mendigos de Górki... Quando O'Neill mostrar que o ser humano tem<br />

coragem de até cheirar sua podridão, você baixa a luz, Elias... Não, Elias, essa não. A luz da<br />

Velha Senhora é aquela da gelatina barro-escuro... Dá um close na cara do Papa, quando ele


forçar Galileu a abjurar... Olha, Elias, e presta atenção na minha silhueta. Quando eu for termi-<br />

nando a frase você entra em resistência, assim: “apaga-te, débil facho. A vida não é mais do que<br />

um sombra passageira, um pobre ator pavoneando-se e excitando-se uma hora sobre o palco, e<br />

que depois se deixa de ouvir...” Vai escurecendo e apaga, Elias. Apaga porque isso era o que<br />

dizia Macbeth, que confundiu o seu destino com o da humanidade. Agora, dê toda a luz, até a<br />

da platéia, pra fala de Fortinbrás no final do Hamlet. (PAUSA. GEMENDO) - Meus nervos não<br />

suportam mais...”<br />

Zambor termina por morrer. O interessante é que se trata de um artista com veleidades<br />

intelectuais. Apesar de todo o seu racionalismo, do seu ceticismo, ele afirma que a vida tem<br />

sentido, que tem sentido a aventura humana, mesmo que o homem sofra restrição de sua liber-<br />

dade, tem sentido viver e lutar. O mesmo conceito de crença na aventura humana será emitido<br />

pelo casal de velhinhos na peça Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que <strong>Paulo</strong> Pon-<br />

tes escreveria em companhia de Alfredo Zemma.<br />

Mesmo considerando que o texto tenha sido escrito sob encomenda para Ziembinski, e<br />

que de alguma forma o nome Zambor da personagem central lembre o nome de Ziembinski,<br />

Zimba 123 , como era chamado, não é possível esquecer que Check-up é a obra de um homem que<br />

conhecia a rotina dos hospitais e, por isso, tivesse o pressentimento de que a vida é tênue, que a<br />

vida do modo que era, sem liberdade, é um vazio, um fio estendido sobre o abismo.<br />

Check-up, em 1972, ganhou o prêmio Governador do Estado da Guanabara.<br />

123 O professor Dr. Fausto Fuser, durante a apresentação deste nosso trabalho à banca arguidora do Mestrado<br />

em <strong>Arte</strong>s, na ECA-USP, em 1989, disse-nos que não seria o nome “Zimba” a inspiração para o nome “Zambor” da<br />

personagem de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, mas não explicou de onde teria vindo à inspiração do nome. O professor Fausto<br />

Fuser escreveu um capítulo numa revista editada pela Edusp, no qual ele falou sobre os artistas poloneses que<br />

migraram para o Brasil durante a ocupação nazista. Entre eles, Boguslaw Samborski, ator famoso na Polônia,<br />

amigo de Ziembinski, porém colaboracionista: teria trabalhado num filme nazista, Heimker (Volta ao Lar). A consequência<br />

do filme na vida do ator foi a sua posterior fuga da Polônia, até que chegou ao Brasil usando o nome<br />

de Gottlieb Sambor.<br />

Vide FUSER, Fausto. “A Turma da Polônia na Revonação Teatral Brasileira”. Revista Diálogos Sobre Teatro. São<br />

<strong>Paulo</strong>: Edusp, 1992, p. 57 e ss.


4. Dr. Fausto da Silva<br />

gel.<br />

Esta peça estreou em outubro de 1972, no Rio de Janeiro, sob a direção de Flávio Ran-<br />

Como diz o próprio nome, trata-se de reelaboração do velho tema medieval já trabalha-<br />

do, entre outros, por Marlowe, na Inglaterra, e por Goethe, na Alemanha.<br />

Fausto é o tema do homem ambicioso. Em sua origem, a personagem é capaz de vender<br />

a alma ao Demônio, para obter os prazeres mundanos e o domínio <strong>das</strong> ciências.<br />

Atualizando o tema, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> fez o seu ambicionar o aumento do Ibope, fundamen-<br />

tal para ele, Fausto da Silva, apresentador de um programa de televisão que recebe seu nome. É<br />

a primeira obra que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> adapta de um tema antigo.<br />

Fausto, o da Silva: seu sobrenome o associa a uma figura popular, alienando-o de sua<br />

aura diabólica inatingível, transfigurando-o em algo (ou alguém) mais presente, humano, um<br />

tipo comum.<br />

Mas não um tipo qualquer: um apresentador de programa de televisão. Portanto, alguém<br />

especializado em comunicação de massa. Alguém capaz de manter alto o índice de Ibope no<br />

horário nobre.<br />

Alguém que, como o próprio <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, conhecia profundamente os segredos, os<br />

“macetes” da linguagem telecomunicativa. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> refletia mais uma vez sobre o fenôme-<br />

no da televisão. Em Dr. Fausto da Silva, criou um texto cuja ação é condensada em movimen-<br />

tos diferentes, que concorrem para um mesmo fim, sinestesicamente articulada por um autor já<br />

pleno em seu domínio da linguagem teatral. Seu Fausto é, a seu modo, a exemplo do velho<br />

Fausto de Marlowe ou Goethe, um texto filosófico.<br />

Como de hábito, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> teoriza sobre o problema que o motivou a escrever, no<br />

texto de apresentação da peça. É muito curioso o modo como <strong>Paulo</strong> encontrou na personagem<br />

Fausto (da Silva) o artifício que exemplificaria a miséria do homem comum. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> es-<br />

creveu: “O subdesenvolvimento é um lençol curto: se cobre os pés, descobre a cabeça; se cobre<br />

a cabeça, os pés ficam de fora. Subdesenvolvimento é sinônimo de escassez: não há o bastante<br />

para todos. Isso coloca o país subdesenvolvido diante de duas alternativas: ou todos comem<br />

pouco, ou uma parte come tudo e a outra fica lambendo os beiços. O modo de produção capita-<br />

lista opta pela segunda alternativa para gerir a pobreza do subdesenvolvimento - e tem lançado<br />

mão de um impressionante repertório de fórmulas para conseguir a façanha. A última, uma má-


gica diabólica, consiste em concentrar a renda nas mãos de uma parte da população para que<br />

esta leve ao paroxismo o consumo de bens duráveis e mantenha em expansão o processo produ-<br />

tivo. É uma necessidade desse modelo importar uma tecnologia cada vez mais sofisticada por-<br />

que ele tem de colocar no mercado uma diversidade cada vez maior de produtos; e estimular os<br />

beneficiários da concentração de renda a não parar de consumir. A regra é criar novas necessi-<br />

dades de consumo na única faixa que consome. A propaganda é o grande instrumento de cria-<br />

ção de hábitos de consumo - ela estimula o furor aquisitivo (nos 20% da população que adquiri-<br />

ram poder de compra), sem o que esse sistema perde sua capacidade de expansão” 124 .<br />

O que tem a ver o subdesenvolvimento com o tema de Fausto ou mesmo com a peça Dr.<br />

Fausto da Silva? <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> vai explicar os meandros do seu raciocínio logo adiante. Antes, é<br />

preciso lembrar que no ano de 1972 o país estava mergulhado em plena ditadura Médici, e o<br />

Ministro Delfim Netto manipulava os dados da economia, auxiliado pelo silêncio imposto à<br />

imprensa, com o objetivo de apresentar à classe média o “milagre econômico”, que viria redi-<br />

mi-la e presenteá-la, finalmente, pelo apoio dado ao golpe de 64. Com o “milagre” operado na<br />

economia, a classe média poderia consumir cigarros de filtro cada vez mais sofisticados, televi-<br />

são a cores, e com um pouco de esforço, um fusquinha.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> estava atento para o engodo que se denominava “milagre”, como convém a<br />

um país católico. Por isso, o seu Dr. Fausto da Silva, uma peça que, lançando mão de um tema<br />

antigo, apresenta a situação de um homem (ou de uma classe social) que pactuou com o inimigo<br />

para garantir status quo.<br />

Vejamos, enfim, o que tem a ver, na concepção de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, o Dr. Fausto da Silva<br />

com o tema do subdesenvolvimento: “É uma comédia que se passa na televisão, mas a televi-<br />

são, o instrumento mais eficaz de mudança de hábitos de consumo, é, para mim, nesta peça,<br />

apenas o ambiente através do qual se tenta revelar como uma sociedade planejada para entregar<br />

o produto do trabalho social às mãos de uma minoria pode deformar o que há de mais legi-<br />

timamente humano nas pessoas. Isso porque não apenas os inteiramente marginalizados desse<br />

sistema aqui exposto estão pagando caro. O processo é tão seletivo que os que estão disputando<br />

uma vaga no clube tem um preço humano muito grande a pagar. “Vender a alma” é a metáfora<br />

precisa para explicar o dano causado ao homem bem sucedido pela diabólica aventura de con-<br />

seguir status de minoria privilegiada num país subdesenvolvido. O meio mais contundente que<br />

eu encontrei para exemplificar os danos humanos, éticos e sociais que esse sortilégio desenvol-<br />

124 PONTES, <strong>Paulo</strong>. “Algumas palavras sobre Fausto da Silva”. Prefácio e texto editados In Revista de Teatro. Rio<br />

de Janeiro, SBAT, maio de 1975, p. 54. To<strong>das</strong> as citações referentes à peça serão dessa mesma fonte.


vimentista vem causando no car ter do homem brasileiro, foi criar uma personagem que é leva-<br />

da a hipotecar as últimas fibras de humanidade que tem dentro de si para continuar sendo um<br />

homem bem sucedido, num país de pobres miseráveis” (p. 54).<br />

Vendendo a alma ao Demônio, Fausto, no poema de Goethe, é condenado às penas in-<br />

fernais, do mesmo modo que, no Brasil, vendendo sua capacidade de produção, a classe média<br />

se vê, ao final do dito “milagre”, mais empobrecida; do mesmo modo que o Dr. Fausto da Silva,<br />

ao se vender aos índices do Ibope, vê-se fracassado, ridicularizado.<br />

O ridículo de Fausto da Silva, a personagem, começa pelo próprio título que ela se dá:<br />

“Doutor”. Na disputa pela conquista de status, qualquer pobre coitado que ascendeu socialmen-<br />

te um pouquinho, recebe o título de “doutor”, indistintamente: de advogado de porta de cadeia a<br />

delegado de polícia: de médico residente a engenheiro ou deputado, o título precede o nome<br />

como se fora marca de sua “superioridade” hierárquica. O título, aliás, é socialmente aceitável<br />

como registro de ascensão. Por isso, Fausto da Silva chamar-se Doutor. Por isso também o so-<br />

brenome popular da Silva acrescentado ao nome Fausto: o tema do homem que se vende, so-<br />

mado ao drama de uma classe que se deixa vender, resulta numa trama de profunda ironia.<br />

Mas em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> a ironia é antes compaixão. Assim foi com Alfredo Gamela (Um<br />

Edifício Chamado 200), é assim com o Dr. Fausto da Silva: “É inevitável que sua alma escorre-<br />

gue do seu corpo na subida. Dr. Fausto está nos escritórios, nas fábricas, nas cátedras, nos púl-<br />

pitos. Foi por isso que, compreendendo que Dr. Fausto são milhares de homens que não podem,<br />

sozinhos, quebrar uma regra do jogo que os desumaniza, não procurei tratá-lo como réu. Ele é<br />

agente e vítima. A miséria material é o preço que se exige da imensa maioria posta à margem; a<br />

miséria moral é o preço que a minoria é obrigada a pagar” (p. 55).<br />

4.1 - O Texto<br />

O Ibope representa para o Dr. Fausto da Silva a mesma coisa que a sede de conhecimen-<br />

to e prazer para o Fausto antigo: a sua ambição maior, o fim de sua existência. Se para o Fausto<br />

clássico, conhecimento e prazer o elevariam acima da existência medíocre dos homens comuns,<br />

pelo fato de colocá-lo a par do mecanismo da existência, para o Dr. Fausto da Silva, que não<br />

sofre de angústia metafísica, o alto índice de Ibope o elevaria também acima da existência dos<br />

homens comuns, pelo fato de revelá-lo um homem que domina, com mestria, um veículo de


comunicação da maior importância. Ser bem sucedido como apresentador de um programa de<br />

televisão, sabe-o muito bem o Dr. Fausto da Silva, significa dinheiro, significa poder: e sua<br />

ambição última não é outra.<br />

No livro que trata do tema fáustico, Haroldo de Campos afirma que a perspectiva da<br />

humanidade, para o Fausto de Goethe, coincide com o da burguesia capitalista 125 .<br />

Se na época de Goethe o pensamento burguês se estruturava, e se o seu Fausto espelha-<br />

va toda a contradição refletida na modernidade burguesa, na época de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, e num país<br />

vilipendiado pela corrupção, o seu Dr. Fausto da Silva refletia um velho lema que é apanágio<br />

de todos os corruptos: levar vantagem em tudo. E para isso, ele não mede esforços: se para re-<br />

conquistar os índices de audiência perdidos fosse necessário apresentar a sua própria mãe mor-<br />

rendo, ele não hesitaria em levá-la à frente <strong>das</strong> câmeras e apresentá-la moribunda.<br />

A imagem do Dr. Fausto da Silva é degradante na mesma proporção (embora inversos<br />

de natureza) que é grandiosa a imagem do velho Fausto. Se Fausto é um filósofo hedonista, o<br />

Dr. Fausto da Silva é um canalha fundamental.<br />

A canastrice da personagem Dr. Fausto da Silva é o básico da peça. A sua luta para con-<br />

seguir maior índice de audiência é o problema proposto pelo texto, que se desenvolve em três<br />

distintos movimentos sinestésicos:<br />

4.1.1 - Primeiro movimento<br />

Flash-back em que Thiago, produtor de televisão, na abertura da peça, numa espécie de<br />

conferência para um público imaginário, relembra a humanidade variada que habita as salas e<br />

os corredores de uma emissora de televisão. Antes de contar a história do Dr. Fausto da Silva,<br />

Thiago resolve contar alguns acontecimentos engraçados e comuns dentro de uma emissora.<br />

Aqui a conferência em que Thiago se apresenta ao público resvala para uma sequência de sket-<br />

ches humorísticos, cantados, no mesmo estilo de Paraí-bê-a-bá: as situações curtas resultando<br />

em uma piada. Ao final desta sequência entra o flash-back propriamente dito:<br />

125 CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São <strong>Paulo</strong>: Perspectiva, 1981, p. 120.


“THIAGO - A história que eu quero lhes contar é a trajetória do tipo mais fantástico que eu<br />

conheci nos meus dezesseis anos de profissão. Eu não me sinto muito bem contando essa histó-<br />

ria, mas vamos lá. Esse cara que eu falo fez uma sacanagem comigo que eu nem sei como ainda<br />

pronuncio o nome dele. Há oito anos eu produzi um programa dele em São <strong>Paulo</strong>. Estava casa-<br />

do de pouco, meu filho tinha um ano por aí. Eu estava vivendo uma fase difícil, minha casa<br />

virou um inferno, uns colunistas de fofoca começaram a noticiar que minha mulher tava saindo<br />

com um cantor. Eu briguei com ela, queria dar tiro, essas coisas. Um dia, na hora do programa<br />

entrar no ar, minha úlcera tava quase estourando, tive uma crise de vômito, a entrada do pro-<br />

grama atrasou uns sete minutos. No outro dia, quando veio o Ibope, o primeiro quadro do pro-<br />

grama foi muito baixo por causa do atraso - e esse cara, mesmo sabendo que minha úlcera esta-<br />

va estourando (e estourou, depois eu tive que operar), foi pra direção e pediu minha cabeça. Ele<br />

era a maior audiência da estação - me botaram pra fora e ainda alegaram justa causa. Sacana-<br />

gem como esta ele fez com muita gente. Pois bem. É a história desse cara que eu quero contar<br />

aos senhores esta noite. Apesar do ódio que sinto por ele, não posso deixar de dizer que foi o<br />

mais fascinante personagem que eu conheci na televisão. Vamos começar a história dele como<br />

começam os shows da TV. Minhas senhoras e meus senhores, eu lhes apresento o Dr. Fausto da<br />

Silva” (p. 59).<br />

4.1.2 - Segundo movimento<br />

É a continuidade natural do primeiro movimento. Ao contar a história do Dr. Fausto da<br />

Silva, e anunciá-lo como se fora um show de TV, Thiago faz aparecer o Dr. Fausto da Silva<br />

cumprimentando o público com o habitual: “Boa noite, senhoras e senhores”. Dr. Fausto da<br />

Silva, então, fala ao público sobre as atrações do seu programa para aquela noite, inclusive o<br />

que seria o pior ou melhor momento de sua carreira, conforme ele havia prometido na semana<br />

anterior: ele iria, diante <strong>das</strong> câmeras, arrancar um pedaço de si.<br />

Esse segundo movimento é um compacto de ação do programa, e acompanha toda a tra-<br />

jetória da peça. As atrações anuncia<strong>das</strong> vão entrando em cena gradativamente no tempo do pro-<br />

grama, ao passo que as cenas que compõem o terceiro movimento da peça vão elastecendo o


tempo compacto do programa, dando a idéia de que o público não está assistindo a um, mas a<br />

vários programas do Dr. Fausto da Silva.<br />

4.1.3 - Terceiro movimento<br />

movimentos:<br />

É onde se localiza o conflito da peça. Esse movimento ainda possui dois outros sub-<br />

Primeiro: as cenas de Thiago junto ao Diretor, quando este o convida a recuperar os ín-<br />

dices de Ibope do programa.<br />

Segundo: as cenas da mãe do Dr. Fausto da Silva, nas quais a Velha aparece doente nu-<br />

ma cama de hospital.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> conduz todos os movimentos da peça convergindo para uma mesma ação.<br />

Assim, ao final, a auto-imolação que o Dr. Fausto anuncia no início do programa (e de vez em<br />

quando volta a anunciar) como a grande atração da noite, acaba por ser não a sua imolação, mas<br />

o espetáculo de sua mãe morrendo com o programa no ar. Esta morte, por sua vez, foi o que<br />

Thiago, ao ser convidado pelo Diretor para mudar os índices do Ibope, tramou, com o objetivo<br />

de vingar-se da traição do Dr. Fausto da Silva.<br />

Assim, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> consegue somar tempos diferentes de diferentes ações para o mes-<br />

mo ponto comum ao final da peça. Por exemplo: se o tempo do segundo movimento é compac-<br />

to (a apresentação do programa), o tempo do terceiro movimento é extenso: os vários contactos<br />

do Diretor com Thiago, propondo-lhe assumir a produção do programa, Thiago recusando, a-<br />

ceitando, e criando a idéia de destruir o apresentador Fausto da Silva. Estes dois movimentos se<br />

intercalam em várias cenas espalha<strong>das</strong> ao longo da peça. Sendo que o segundo e o terceiro mo-<br />

vimentos estão contidos no primeiro, que é a história do Dr. Fausto da Silva, contada por Thia-<br />

go. A peça termina no terceiro movimento, quando Fausto da Silva apresenta sua mãe mori-<br />

bunda diante <strong>das</strong> câmeras. Ao final do terceiro movimento, já morta a mãe de Fausto, <strong>Paulo</strong><br />

<strong>Pontes</strong> faz o texto retornar ao primeiro movimento, desta vez com Thiago apresentando o seu<br />

programa Thiago de Almeida, naquela noite entrevistando o ex-animador de TV Dr. Fausto da<br />

Silva. E do mesmo modo que Fausto da Silva anunciava a grande atração da noite, prometida<br />

desde a semana anterior, Thiago de Almeida anuncia a sua grande atração da noite, divulgada<br />

desde a semana anterior: a entrevista com o Dr. Fausto da Silva.


4.2 - A frase-chave que desvenda a trama<br />

Numa determinada sequência do terceiro movimento, o Diretor está tentando convencer<br />

Thiago a aceitar o desafio de mudar o programa. Thiago recusa-se. Todo mundo sabe o que<br />

houve entre ele e o Dr. Fausto da Silva, seu declarado inimigo. Não seria ele quem iria salvar o<br />

programa. É quando o Diretor, em meio a sua argumentação, enuncia a frase que vai cair como<br />

imagem definitiva na trama que Thiago armar posteriormente com o objetivo de destruir Faus-<br />

to da Silva:<br />

“DIRETOR - Estou há vinte anos nisso, rapaz, já comecei diretor de estação. Público gosta dis-<br />

so 126 , mas tem de ter a temperatura dele na mão. Essa linha de programa corre o risco de virar<br />

poço sem fundo. É como viciado em cocaína - o cara precisa cada vez de uma dose maior pra<br />

obter o mesmo efeito da dose anterior. Chega o limite que ou você recua ou toma a dose defini-<br />

tiva e não tem mais quem levante. O descrédito na imagem de Dr. Fausto está assim. Ainda dá<br />

tempo de recuar. Mais uma dose...” (p. 64).<br />

O Diretor, sem o querer, pronunciou a sentença de morte do Dr. Fausto da Silva. Pouco<br />

antes dessa fala, ele disse a Thiago que a mãe de Fausto da Silva está hospitalizada com câncer,<br />

quase morrendo, e o hospital pede que o apresentador seja avisado. A dose definitiva... É esta a<br />

frase que Thiago toma para tramar a destruição de Fausto da Silva. E também, vai se saber de-<br />

pois, a mudança de orientação da emissora.<br />

Thiago não é só um produtor de televisão. É também um intelectual que pensa sobre o<br />

problema da televisão. E o problema, sabe Thiago, não é o que ela exibe, mas o que ela deixa<br />

de exibir, como já dissera Vianinha sobre a televisão.<br />

No momento que Thiago resolve pôr a mãe de Fausto para morrer em frente às câmeras,<br />

entrega ao Diretor um artigo que sairia publicado no dia seguinte, supostamente escrito por um<br />

conhecido crítico de televisão. O Diretor não aceita a idéia, a princípio, para depois perceber<br />

que é uma boa idéia, embora arriscada, para aumentar o índice de Ibope. Na discussão com o<br />

Diretor, Thiago termina por fazer um longo monólogo teorizando sobre a televisão, no qual a<br />

126 Do sensacionalismo do Dr. Fausto da Silva.


idéia da dose definitiva de cocaína está presente como uma enorme ambiguidade: seu objetivo é<br />

destruir o Dr. Fausto, mas seu discurso é no sentido de acabar na televisão programas como o<br />

do Dr. Fausto da Silva, que iludem o senso da realidade, distorcendo assim o que ele (e também<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>) imagina que seja a linguagem televisiva.<br />

“THIAGO - /.../ Do jeito que as coisas estão agora, só tem duas alternativas: ou uma porrada de<br />

corte bem montadinho, que não dá nem tempo do nego pensar, ou um microfone parado pra<br />

quem quiser apelar. Qual <strong>das</strong> duas alternativas é a melhor? Não pra mim, mas do teu ponto de<br />

vista, qual <strong>das</strong> duas é a melhor? A situação que chegou a sua estação - pique de sete às 9:45 -<br />

responde! Agora, quer saber porque só restam essas duas alternativas?<br />

DIRETOR - Ai, meu saco. Não me vem com essa teoria imbecil, Thiago.<br />

THIAGO - Dr. Celso, sua estação precisa de um pouco de teoria. Televisão é uma telinha pe-<br />

quena, com pouca definição visual. Está numa sala, o sujeito assiste em casa, com gente entran-<br />

do e saindo. Ele liga, desliga, toca o telefone, a antena treme, borra a imagem. Então, Dr. Celso,<br />

pro nego sentar o rabo e ficar vendo aquela telinha, é preciso que ela lhe mostre um troço muito<br />

direto. Uma paulada forte, um negócio que lhe chame a atenção, ou porque diz respeito à sua<br />

vida ou porque é um acontecimento fora do comum. Mas tem que ser mostrado de maneira di-<br />

reta, porque o veículo é pobre visualmente, não resiste a muita elaboração. Qual foi o produtor<br />

que bolou a Copa do Mundo, a Guerra do Vietnam, a ida do homem à Lua, ou o desabamento<br />

do viaduto? Nenhum. Mas por que esses acontecimentos deram índices tão altos de audiência?<br />

Porque a única coisa que difere a televisão dos outros veículos é que ela é capaz de mostrar<br />

imagens e sons de um acontecimento na hora em que ele está acontecendo. Televisão é só isso.<br />

E isso é maravilhoso. A definição visual é baixa, a antena treme, o escambau! Mas dê um acon-<br />

tecimento real a uma câmera de televisão e ela fará o que nenhum outro veículo pode fazer 127<br />

/.../ Tire a realidade da televisão, a realidade crua e nua /.../ e restar apenas naquela telinha pe-<br />

quena dois equívocos. As duas alternativas que eu acabei de lhe mostrar /.../ Na falta de pro-<br />

blemas reais, a televisão forja problemas e discussões com a aparência de reais. O Dr. Fausto<br />

não entende, mas ele tem uma profunda intuição da verdadeira natureza da televisão. Na falta<br />

de um debate sobre um problema real, ele produz uma briga em torno de uma besteira. Aquela<br />

briga, aquela troca de insultos que os trouxas estão pensando em casa que é pra valer, é uma<br />

127 O conceito que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> desenvolveu através da personagem com certeza valia para o seu tempo. Porém,<br />

a tecnologia demonstra que a televisão suporta algo mais do que simplesmente uma câmera aberta sobre<br />

um acontecimento real.


tentativa de dar aparência natural a um acontecimento manufaturado num estúdio! Mas o Dr.<br />

Fausto não sabe que não basta a briga - é preciso que a briga tenha um motivo verdadeiro.<br />

Quem mente em televisão é trouxa! Se queres audiência, não mentirás! Porque ninguém ilude o<br />

olho de uma câmera. Ele é frio. E porque a briga é falsa, sem conteúdo, o Dr. Fausto precisa<br />

toda semana de uma briga mais escandalosa para conseguir o mesmo efeito da briga anterior. É<br />

preciso uma dose cada vez maior de cocaína pra conseguir o efeito da dose anterior...” (p. 73).<br />

Em meio ao discurso, Thiago emite a mesma frase já dita pelo Diretor. E se o Diretor<br />

com essa frase consegue mudar o ponto de vista de Thiago, no sentido dele aceitar fazer a pro-<br />

dução do programa, Thiago, por sua vez, consegue com que o Diretor aceite a idéia sensaciona-<br />

lista de pôr a mãe de Fausto da Silva para morrer em frente às câmeras.<br />

Com isso, Thiago vinga-se de Fausto da Silva cuja canalhice torna-se patética no mo-<br />

mento que a mãe está morrendo e a direção da emissora recebendo telefonemas de protesto, o<br />

Diretor mandando Thiago tirar o programa do ar, e Thiago prolongando no ar o ridículo de<br />

Fausto da Silva entrevistando uma velhinha feliz, porque, naqueles últimos instantes de vida,<br />

pode ver pela última vez o seu filho.<br />

Fausto da Silva foi traído pela própria ambição. Quando se sabe fora do ar, quando per-<br />

cebe a jogada para destruí-lo, já é tarde. Ele, então, impotente, desvaira:<br />

“FAUSTO - /.../ E vocês amanhã vão dizer que tiraram o meu programa do ar por quê? Quero<br />

ver ter peito. Pensa bem, Celso, como é que vai justificar tirar o meu programa do ar com mi-<br />

nha mãe morrendo. Vai dizer que eu estava apelando? Experimenta, safadão. Eu vou lavar a<br />

roupa suja desta merda. Vão acreditar em mim porque, eu não sei se você sabe, eu sou o Dr.<br />

Fausto da Silva. Cadê tua pesquisa que botou a estação pra trabalhar pra classe C? “Teu pro-<br />

grama tá muito alto, Fausto, precisamos falar pra classe C”. Estou falando pra classe C, urubu.<br />

Estou vendendo as minhas tripas, os meus nervos, o meu sono, a minha alma pra classe C. Es-<br />

tou vendendo a minha alma em troca de audiência para a tua estação porque você me disse que<br />

ela precisava faturar /.../ Eu ganhei de vocês todos. Vão ver amanhã a minha audiência. Vão ver<br />

amanhã se a mãe do palhaço morta não estourou. Computa aí, vê se eu não ganhei em tudo<br />

quanto é classe. Vão ver se não tinha de mendigo a grã-fino esperando um canalha arrancar um<br />

pedaço de sua própria carne. Vê minha audiência amanhã, Thiago de merda. Thiago do bom<br />

gosto equivocado. Parasita da falta de escrúpulos alheia, quanto é que você ganhou para acabar<br />

de vender a minha alma ao Diabo? Eu ganhei muito dinheiro, mas a alma era minha. E eu ga-<br />

nhei de você porque eu vendi a minha alma e você vende a dos outros...” (p. 77).


Fausto da Silva tinha razão: o seu índice foi o mais alto naquele dia. Thiago também. No<br />

dia seguinte, o programa de Fausto da Silva, que tinha caído para sete, começou com vinte e foi<br />

subindo para setenta e um pontos no índice do Ibope. Em compensação, Fausto da Silva perdeu<br />

a credibilidade, e teve que deixar a televisão. A dose de cocaína aplicada foi maior do que podia<br />

o seu caráter suportar.<br />

4.3 - Uma peça sem estilo<br />

Flávio Rangel, o diretor da montagem, escreveu no texto de apresentação, que não sabe-<br />

ria como classificá-la nos “escaninhos” <strong>das</strong> escolas literárias (p. 55), já que o texto tanto apre-<br />

senta elementos típicos da comédia de costumes, quanto de drama existencial; tanto de elemen-<br />

tos de realismo, quanto de teatro do absurdo. Como forma, disse Flávio Rangel, também é am-<br />

biciosa e nova, “pois mistura desde elementos da comédia musical até a tentativa de uma catar-<br />

se, através do verdadeiro strip-tease psiquiátrico que seu protagonista realiza ao final” (p. 55).<br />

Dr. Fausto da Silva pode ser uma mistura de vários estilos, sem dúvida. Mas é, antes de mais<br />

nada, um texto resultante da maturidade de um autor que caminhou lento e seguro para o domí-<br />

nio da linguagem teatral.<br />

5. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo<br />

Texto escrito em 1973 em parceria com o argentino Alfredo Zemma, e somente monta-<br />

do em 1980 sob a direção de Reinaldo Santiago, no então Centro de Teatro da Unicamp, hoje<br />

Departamento de <strong>Arte</strong>s Cênicas.<br />

Este é um texto de várias referências, tais como:


Primeiro: Qorpo-Santo, pelo absurdo da situação apresentada (embora a narrativa de<br />

<strong>Paulo</strong> e Alfredo Zemma seja completamente linear, coisa que não acontece com Qorpo-Santo);<br />

e também pelo nome <strong>das</strong> personagens centrais, o casal Eugênio e Eugênia (que lembra alguns<br />

casais de Qorpo-Santo como, por exemplo, Mateus e Mateusa, da peça do mesmo nome, ou<br />

Lindo e Linda, da peça Eu sou vida; eu não sou morte).<br />

Segundo: Joracy Camargo, pela peça Deus lhe pague, em que a personagem central, o<br />

Mendigo, é uma espécie de filósofo condestável do sistema sócio-político cujo trabalho consiste<br />

em oferecer à sociedade a redução da sua culpa pela autocomiseração transformada em óbolo,<br />

que, evidentemente, o enriquece. Na peça de <strong>Paulo</strong> e Alfredo Zemma, também há a personagem<br />

de nome Mendigo, inquilino do casal Eugênio e Eugênia cuja trajetória é semelhante à da per-<br />

sonagem de Joracy Camargo. A diferença está no modo como as duas personagens encaram a<br />

sociedade: a de Joracy Camargo compreende o mecanismo de exploração e o condena, embora<br />

dele se utilize como vingança; a de <strong>Paulo</strong> e Alfredo é mais uma mantenedora dos mecanismos<br />

de exploração, com plena consciência do seu papel.<br />

Terceiro: Bertolt Brecht, na peça O círculo de giz caucasiano, nas cenas finais em que o<br />

juiz, emitindo sentenças estapafúrdias, julga sobre o direito de guarda da criança, ali s, cena<br />

essa que é por sua vez citação de Cervantes, quando Sancho Pança (no segundo livro do Dom<br />

Quixote), tornado juiz, julga correto por sentenças absur<strong>das</strong>. Nas cenas finais da peça de <strong>Paulo</strong><br />

<strong>Pontes</strong> e Alfredo Zemma, surge uma personagem de nome Homem (cujo papel é julgar a guar-<br />

da do filho do casal Eugênia e Eugênio) e, mantendo a tradição <strong>das</strong> sentenças sem nexo, embora<br />

com resultado final diferente, julgue a favor do Mendigo, subvertendo a tradição cômica da<br />

personagem Juiz, que - como se costuma dizer de Deus - julga certo por linhas tortas. Em Cer-<br />

vantes, como em Brecht, o Juiz projeta o direito humano que transgride a letra da lei. Em <strong>Paulo</strong><br />

<strong>Pontes</strong> e Alfredo Zemma, a lei é o direito e, diante dela, o homem não é nada, refletindo o ins-<br />

tante em que a ditadura tinha estabelecido a sua lei e o seu direito.<br />

Por fim, a quarta referência: o próprio texto de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, Um Edifício Chamado<br />

200. A situação do casal Eugênio e Eugênia é idêntica à do casal Alfredo Gamela e Karla: pre-<br />

sos dentro de um apartamento, sem emprego, sem perspectiva, Eugênio e Eugênia sonham com<br />

a vida que viveram, sem forças para transformar a vida em que vivem, enquanto os credores<br />

levam do apartamento tudo o que lhes é caro: a coleção completa dos discos de Caruso, os cho-<br />

ros de Ernesto Nazareth, além dos móveis, do piano, tudo. Só lhes restando o filho completa-<br />

mente paralítico e mudo, dentro de uma cesta.


5.1 - O texto 128<br />

Eugênio e Eugênia vivem para aquele filho, projeção concreta dos seus fracassos en-<br />

quanto artistas: ele, violinista; ela, cantora; conheceram momentos de glória, mas agora são<br />

obrigados a alugar um quarto da casa para o Mendigo, única fonte de renda que lhes resta. En-<br />

quanto o casal vive na mais triste penúria, o Mendigo, ao contrário, prospera em sua profissão:<br />

para isso tem todo um arsenal de disfarces que o transforma na mais lamentável criatura: cego,<br />

aleijado ou outro trapo qualquer, ele tem sempre o disfarce certo para o lugar e a ocasião corre-<br />

tos.<br />

Quando os credores levam os objetos do casal, levam também os objetos do Mendigo. É<br />

o quanto basta para que ele, num explosão de fúria, exija a devolução do que lhe foi apreendido.<br />

Como?<br />

“MENDIGO - Você não pode exigir nada! Aqui, agora, só quem exige sou eu. E vou começar a<br />

exigir tudo o que eu quiser... Já... Neste momentinho... (PROCURA NOS SEUS BOLSOS) - eu<br />

tenho lápis e papel... Ah, estão aqui... (COLOCA O PAPEL SOBRE A CAMA DO VELHO. A<br />

VELHA AGARRA A CAIXA ONDE ESTÁ O FILHO. O MENDIGO AGARRA O VELHO<br />

PELO COLARINHO, E O OBRIGA A SENTAR NA CAMA E APANHAR O LÁPIS PARA<br />

ESCREVER. Agarra o lápis... Escreve...<br />

EUGÊNIO - Está bem, escrevo... Mas, antes, me solta, senão eu não posso escrever (O MEN-<br />

DIGO O SOLTA).<br />

MENDIGO - Escreva... Nós, Eugênio Cavalcanti de Albuquerque e Eugênia Cavalcanti de Al-<br />

buquerque /.../ em plena liberdade e consciência de nossos atos, firmamos o presente contrato:<br />

primeiro, cedemos nosso inválido filho a nosso inquilino, para ser explorado comercialmente<br />

durante cinco anos...<br />

EUGÊNIO - Quatro...<br />

MENDIGO - /.../ Quatro e meio e fim de papo /.../ Para cujo efeito lhe outorgamos a posse do<br />

supracitado inválido. Segundo: da referida exploração comercial, nosso inquilino perceberá a<br />

128 PONTES, <strong>Paulo</strong>. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. In A arte da resistência. Op. cit. To<strong>das</strong> as cita-<br />

ções referentes ao texto serão da mesma fonte.


quantia de quarenta por cento da renda bruta, nós, os cedentes, quarenta por cento, e os vinte<br />

por cento restante serão gastos em despesas de manutenção” (p. 60).<br />

Há muito o Mendigo vinha alertando o casal para aquele filho inválido, uma fonte de<br />

renda sem comparação. O casal relutava em alugá-lo para o negócio da mendicância. Agora, a<br />

falência civil é completa e não há como pagar o prejuízo tomado pelo Mendigo quando da apre-<br />

ensão dos móveis e objetos do casal, cujo desejo é o de curar o filho inválido:<br />

“EUGÊNIO - Vou lhe dar uma grande notícia, filho. Estávamos só esperando a ocasião para lhe<br />

dizer: um médico nos deu quase certeza de que nosso filho pode ficar bom - vai poder falar, ou-<br />

vir, lhe conseguirá dois braços, dois lindos braços, resistentes, do melhor material que existir;<br />

lhe conseguir também duas pernas bem bonitas... bola com Pelé, atira, gollll!... Meu filho vai<br />

ser quase normal, vai poder se mexer quase igual a gente mesmo, quer dizer, como qualquer um<br />

de nós...” (p. 56).<br />

Mas não se conta o número de pediatras, ortopedistas e outros médicos que se procurou.<br />

Não há jeito. O filho inválido tornou-se, entre o casal e o Mendigo, o ponto de conflito. Inváli-<br />

do é só um modo de dizer: para o casal, há a esperança da sua recuperação; para o Mendigo, há<br />

ali uma fonte de renda.<br />

E tem razão o Mendigo: no segundo movimento da peça, após firmarem o contrato de<br />

exploração comercial da criança, os móveis e objetos que tinham sido confiscados pela justiça,<br />

voltam para a casa dos velhos artistas. Agora, eles já têm dinheiro. Agora, podem cuidar da<br />

operação do garoto.<br />

Acontece que o tempo que resta de exploração ainda é longo. O terceiro movimento da<br />

peça é o desaparecimento do menino do ponto onde ele é habitualmente colocado. O Mendigo,<br />

como de costume, tem acesso de fúria. Eugênio aproveita a notícia que o Mendigo lhe traz, e<br />

pede que ele deixe a casa. Ao fim do quadro, o Mendigo descobre que Eugênio tinha raptado o<br />

garoto, marcado operação e, óbvio, desrespeitado o contrato firmado entre eles.<br />

O movimento seguinte é o julgamento. O juiz apresenta os caminhos tortuosos do seu<br />

pensamento, num longo discurso pleno de nonsense, onde se cita desde Charles Darwin até o<br />

Corcunda de Notre Dame; desde Incitatus, o famoso cavalo-senador de Calígula, até o Tio Pati-<br />

nhas, numa busca falsamente erudita de encontrar a solução para o caso da criança. O discurso<br />

do juiz lembra os enormes discursos que a máscara do Dottore da Commedia dell'<strong>Arte</strong> costu-<br />

mava fazer. O Dottore, assim como o juiz de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Alfredo Zemma, por qualquer mo-


tivo era capaz de pronunciar um longo e absurdo discurso, com a empáfia de quem está emitin-<br />

do a sentença definitiva sobre qualquer assunto:<br />

“HOMEM - /.../ E visto que: o denunciante reclama a posse do objeto de nossa discussão, e os<br />

denunciados a negam, alegando tratar-se de seu filho, o cerne da questão está em definir-se,<br />

claramente, se a propriedade em causa é, de fato, um ser humano. Se for ser humano, em gozo<br />

de to<strong>das</strong> as prerrogativas consagra<strong>das</strong> ao ser humano pelo Direito Ocidental, entre elas a de não<br />

ser propriedade de ninguém, a questão se definir em favor dos supostos pais. Mutatis mutandis,<br />

se, em lugar de ser humano, for uma simples coisa, a questão se definir em favor do denuncian-<br />

te, uma vez que a posse, por contrato, de uma coisa equivale à sua propriedade. Ora muito bem,<br />

não encontrando nos autos nada que provasse que estamos em face de um ser humano, fui pro-<br />

curar ajuda nos clássicos do direito e da literatura especializada. Mesmo com esforço, não pude<br />

classificá-lo em nenhuma <strong>das</strong> categorias que definem a pessoa: humana, jurídica, moral, psico-<br />

lógica, gramatical, teological, física etc. Meu esforço era pra encontrar uma fórmula que nos<br />

permitisse concluir que o fenômeno em causa é capaz de alguma modalidade de obrigação e<br />

exercer alguma forma de direito. Foi em vão. A dificuldade, meus senhores, estava em que só<br />

se pode ser uma pessoa de direito se se é uma pessoa de fato. Era necessário primeiro descobrir<br />

se nós estamos diante de uma pessoa humana, do ponto de vista biológico. Saímos então do<br />

terreno do direito. Mas a Justiça não vive de fórmulas jurídicas. Era necessário procurar agasa-<br />

lho conceitual em todos os setores da cultura humanista, mesmo os mais subjetivos. Recordei a<br />

obra de Darwin... E não descobri em nenhuma fase da evolução da espécie uma que, de longe,<br />

se aproximasse <strong>das</strong> características do fenômeno em causa. Repassei, em minha memória, o ad-<br />

mirável estudo de Cousin sobre a humanidade do Corcunda de Notre Dame, e não encontrei<br />

nada que me valesse por que - ora, senhores - o Corcunda de Notre Dame era apenas corcunda,<br />

mas trabalhava tocando aquele sinão de igreja, tinha braços, pernas e - pasmem, senhores - era<br />

um apaixonado, cheio de intensos sentimentos. O meu esforço investigatório me levou até ao<br />

decreto através do qual Calígula deu status político, portanto jurídico, ao seu cavalo Incitatus.<br />

Mas, ora senhores, diferentemente do fenômeno em causa, Incitatus não sofria por falta de<br />

membros; ao contrário, tinha as quatro patas regulamentares, quatro magníficas patas. Não sa-<br />

tisfeito, saí do terreno dos fatos tangíveis e percorri o reino da fantasia. É sabido que Walt Dis-<br />

ney deu status humano aos bichos. Me lembrei de todos os heróis de Disney que eu tanto li em<br />

minha infância - o esperto Pernalonga, o enfezado Popeye, o avarento Patinhas e tantos outros -<br />

mas não encontrei nenhum bichinho que, nem de leve, se assemelhasse com o fenômeno em<br />

causa. Senhores, a nossa Justiça atribui capacidade de direito, mesmo às pessoas que não têm


capacidade de fato. Mas não é capaz de transformar em pessoa de direito quem não é de fato.<br />

Graças a isso é que o Jockey Clube pode ter cavalos, o fazendeiro pode ter bois e a madame<br />

pode ter cachorros. Ora muito bem, considerando o que foi dito; considerando que estamos di-<br />

ante de um dos mistérios da natureza, de um indecifrável desígnio do Criador, resolvo que: para<br />

salvaguardar a ordem <strong>das</strong> coisas, o que é planta continue a ser planta, coisa, coisa, gente, gen-<br />

te...” (p. 77).<br />

Talvez o aproveitamento da retórica caudalosa do Dottore como recurso cômico não te-<br />

nha sido consciente por parte de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>. Por isso, não a enumeramos como a quinta refe-<br />

rência encontrável neste texto, como fizemos páginas atrás. Sem desconsiderar que <strong>Paulo</strong> Pode-<br />

ria conhecer essa particularidade da máscara do Dottore, parece-nos que o texto do juiz, antes<br />

de qualquer referência erudita sobre comédia, em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, foi gerado, principalmente, pela<br />

sua vivência e observação do gosto popular pela prosódia abundante - mesmo que eivada de<br />

nonsense. Em 1976, em entrevista a Márcia Guimarães, ele disse: “O povo brasileiro tem muito<br />

apreço pela destreza verbal. Eu sou um homem vindo <strong>das</strong> classes populares, e eu sei o que sig-<br />

nifica um júri na Paraíba, onde eu nasci. A praça se enchia de gente. Ficavam horas ouvindo os<br />

advogados falar” 129 .<br />

Não seria talvez pelo apreço popular à destreza verbal que a máscara do Dottore fizesse<br />

tanto sucesso? Se a resposta correta for sim, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> ter provado mais uma vez o seu agu-<br />

do senso de observação da alma popular.<br />

5.2 - A arte do povo em oposição à arte de consumo<br />

Por conhecer a alma popular, por acreditar que só as coisas sabi<strong>das</strong> pelo povo podem vi-<br />

abilizar algum esboço de resistência estética contra a massificação do gosto, do consumismo<br />

desvairado que a indústria cultural incentiva - fazendo velho o que ontem era novo - <strong>Paulo</strong> Pon-<br />

tes imagina a situação inicial da peça: uma cantora lírica e um violonista falidos. E por que es-<br />

129 GUIMARÃES, Márcia. Op. cit.


tão falidos? Porque a sua arte não interessa mais ao mercado; porque, para substituí-los, a in-<br />

dústria cultural cria e destrói a cada dia novos ídolos, novos mitos, novos gostos.<br />

Para subverter essa situação, Eugênio tem uma idéia:<br />

“EUGÊNIO - Depois... Nós ainda temos muito o que fazer, sabe, minha velha? Eu não parei de<br />

pensar. Tive uma idéia que eu acho que não tem erro... Muita coisa mudou no mundo, não tem<br />

dúvida, mas a sensibilidade <strong>das</strong> pessoas é uma coisa permanente. Esses ruídos eletrônicos não<br />

são a música desta época, são a falta de música desta época. Todo mundo virou um puxa-puxa,<br />

ninguém tem a tranquilidade pra viver sua gentileza, sua doçura, pra chorar suas dores... Aí,<br />

pimba! - os fazedores de novidades bolaram o barulho, porque no barulho fica tudo igual, tudo<br />

atordoado... Eugênia, eles não querem que ninguém pense. Neste século estamos feito bicicleta,<br />

quem parar, cai. Mas eu bolei, Eugênia... Não é mais a grande sinfonia: pra colher aquele bo-<br />

tãozinho embutido na sensibilidade <strong>das</strong> pessoas nós vamos camerizar a música de toda gente...<br />

Canta alguma coisa, Eugênia, qualquer coisa simples que você canta quando está fazendo uma<br />

sopa...<br />

EUGÊNIA - Como?<br />

EUGÊNIO - Qualquer coisa.<br />

EUGÊNIA - Uma música... (CANTA) Un bell di vedremo...<br />

EUGÊNIO - Não, Madame Butterfly, não... Uma coisa que você canta espanando os móveis.<br />

EUGÊNIA - (CANTANDO) - Ai, iê, iê...<br />

EUGÊNIO - Isso... Espera... (APANHA O VIOLINO) - Não diz a letra, só cantarola... (COM O<br />

VIOLINO ELE FAZ UM CONTRAPONTO CAMERÍSTICO, ENQUANTO ELA CANTA-<br />

ROLA. OS DOIS SE ABRAÇAM AO FINAL) - É isso, minha velha, é isso. Nós vamos came-<br />

rizar as músicas que saem da alma do povo...” (p. 63).<br />

Este é o trecho central da peça, o que importa a <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> discutir: a situação da mú-<br />

sica popular, que, julgava ele, caminhava para a uniformização rítmica determinada pelas gra-<br />

vadoras, o que implica, como consequência, na uniformização do gosto, na industrialização da<br />

sensibilidade estética, como se o gosto pudesse sair de uma mesma linha de produção, como se<br />

fora um carro, um liquidificador.<br />

Por causa disso importa para os autores que as personagens centrais sejam dois músicos<br />

eruditos desempregados. Mas não só: para completar o quadro de penúria, são velhos e abando-<br />

nados, velhos e infortunados, já que até o filho se torna um peso em suas vi<strong>das</strong>.


Mas os dois velhos são profundos conhecedores de música. Isso pode salvá-los da misé-<br />

ria. Sabem que podem oferecer música outra vez, que contorne a insensibilidade de um tempo<br />

sem poesia, sem imaginário, já que o que sai de uma linha de produção não pode exprimir em<br />

profundidade a sensibilidade, a beleza, o pensamento de um povo.<br />

A conclusão desta cena central, e fundamental no texto, beira o patético, numa exacer-<br />

bação de sensibilidade do casal, como se a cena quisesse preencher, como o seu pranto fácil, a<br />

insensibilidade que os autores pré-determinam no mundo:<br />

“EUGÊNIO - Você chorou com minha idéia, minha velha. É isso, eu sabia... A gentileza, a de-<br />

licadeza, a sensibilidade são coisas permanentes... Você sentiu Eugênia, eu estou certo... A na-<br />

tureza humana é tecida com fios muito delicados...” (p. 64).<br />

5.3 - Acreditando na aventura humana<br />

Eugênio, o que foi vítima de um tempo insensível à sua música, o que ficou na miséria,<br />

o que teve um filho paralítico, e por isso tudo não pode evitar ou fugir dos mecanismos de ex-<br />

ploração econômica engendrados pelo capitalismo, é, contudo, uma personagem positiva, por<br />

acreditar que alguma coisa no homem há de resistir. Os “fios muito delicados” da natureza hu-<br />

mana, julga ele, são mais fortes que a opressão, que a injustiça, que a letra morta da lei. Eugê-<br />

nio acredita que a aventura humana tem sentido. É isso o que ele tenta dizer ao juiz, no movi-<br />

mento final do texto, quando do julgamento sobre o direito de exploração comercial do garoto:<br />

“EUGÊNIO - Meritíssimo Juiz: nós somos pessoas pacíficas, honestas, respeitadoras da lei.<br />

Nossa vida é um culto permanente às melhores aspirações do ser humano, seu sentimento, suas<br />

manifestações de humanidade, espírito criador e capacidade associativa. Temos vivido momen-<br />

tos dolorosos, mas conhecemos, também, momentos de glória, de verdadeiro triunfo. Se bem<br />

que, a cada instante, forças anti-sociais tenham tentado sabotar o que existe de melhor na na-<br />

tureza do homem, nós continuamos achando que a aventura humana tem sentido. Por isso que-<br />

ro, ao iniciar a minha exposição, indicar que ser discutido aqui, antes de tudo, um princípio...<br />

(p. 74).


O juiz, claro, representante <strong>das</strong> forças anti-sociais que criaram as leis contra as quais<br />

Eugênio e Eugênia se debatem, não é capaz de compreender a grandeza de princípios evocada<br />

pelo velho artista. Por isso, ao final do julgamento, também final da peça, é ao Mendigo que é<br />

dado o direito de explorar comercialmente a criança, contra a vontade dos pais de operá-la, re-<br />

cuperá-la, como ser humano, para a vida.<br />

6. Gota D'água<br />

“É a Medeia que o Vianinha escreveu. É a mesma coisa”.<br />

Quem disse isso foi uma vizinha de Deocélia Vianna, mãe de Vianinha, em seu livro de<br />

memórias 130 , a propósito da peça Gota D'água, de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque.<br />

O próprio Chico Buarque, respondendo à pergunta de Sábato Magaldi sobre a dívida<br />

que eles tinham em relação à concepção de Vianinha, confessou-se surpreso quando viu na TV<br />

a Medeia. Segundo Chico, a dívida era maior do que ele imaginava.<br />

Deocélia afirma que quando Vianinha embarcou para Houston, a fim de se tratar do<br />

câncer que o matou, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> o teria levado em seu carro até o aeroporto. Deocélia não diz<br />

quem, mas afirma que testemunhas no carro ouviram Vianinha falar da peça que queria escre-<br />

ver, um musical, baseado na Medeia que fizera sucesso na televisão 131 .<br />

Chico Buarque, em entrevista a Lisa Oliveira-Joué, disse que a idéia de Vianinha era,<br />

em parceria com <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, escrever Medeia para o teatro 132 .<br />

Deocélia, em seu livro, apresenta <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> como usurpador da obra de Vianinha 133 .<br />

130 VIANNA, Deocélia. Op. cit. p. 218.<br />

131 Idem, ibidem, p. 217.<br />

132 OLIVEIRA-JOUÉ, Lisa. “Entrevista com Chico Buarque de Hollanda sobre Gota D'água”. Sem referência biblio-<br />

gráfica.<br />

133 Idem, ibidem, p. 217 e ss.


6.1 - O problema da criação<br />

É evidente: Gota D'água é inspirada na Medeia de Vianinha. Mas isso não diminui o seu<br />

valor. Mesmo porque Medeia de Vianinha é inspirada na Medeia de Eurípides. Isso em nada<br />

diminui o valor da obra de Vianinha. Ao contrário. Vianinha diz no seu texto: “Atualização da<br />

tragédia de Medeia, da Mitologia Grega” 134 .<br />

Vianinha sabia (embora Deocélia não parecesse saber) que um tema, profundo ou não,<br />

não se esgota numa obra. Nem mesmo num único autor. Goethe, ao escrever o seu Fausto, não<br />

esgotou o tema. Mesmo porque, antes de Goethe, Marlowe, na Inglaterra, escreveu Fausto, cuja<br />

fonte de inspiração deita raízes na Idade Média. Shakespeare, exemplo clássico, não tem uma<br />

única obra cuja idéia original tenha sido sua.<br />

Um tema não pertence a um homem. A obra, sim. Repetir um tema não significa plágio.<br />

É preciso saber que um tema tem o seu próprio desenvolvimento básico, a sua estrutura, a sua<br />

concepção do mundo enfocado. Várias obras sobre um tema dialetizam o problema que ele traz<br />

consigo.<br />

Um tema é um instigamento. A obra a sua resposta. O tema do amor desvairado, do a-<br />

mor total, sequioso, ensandecido, do amor que só enxerga para sua satisfação o ser amado, do<br />

amor tão grande, tão absoluto, tão completo quanto incapaz de viver sem o seu objeto, a ponto<br />

de, à falta do ser amado, se transformar eloquentemente em seu contrário; transformar-se em<br />

ódio desvairado, total, sequioso, ensandecido, absoluto, a ponto de, sofrendo por querê-lo vivo,<br />

não pode deixar de sofrer por querê-lo morto; o tema do amor assim é com certeza mais antigo<br />

do que Eurípides. Mas a sua Medeia tratou-o com perfeição.<br />

Vianinha, reescrevendo Medeia, não perdeu de vista o seu ponto central: o amor tão ce-<br />

go que é incapaz de distinguir, quando rompe o seu equilibrio, o amado do odiado. Mas da peça<br />

de Eurípides, Vianinha atentou para um ponto e o atualizou: nela, Jasão deixa a casa de Medeia<br />

pela casa de Creonte, o rei. Em Vianinha, Jasão deixa a casa de Medeia pela de Creonte, o capi-<br />

talista.<br />

134 VIANNA FILHO, Oduvaldo. Medeia. Texto em apostila. Arquivo do Jornal A Tribuna, de Santos, gentilmente<br />

cedido por Carmelinda Guimarães.


<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> manteve a base do tema: a loucura que domina Joana, ao ser abandonada.<br />

Mas <strong>Paulo</strong> atenta para um ponto no texto de Vianinha e o aprofunda: a traição de Jasão serve de<br />

gancho para que apresente um painel sobre a luta de classes.<br />

Uma obra está profundamente baseada em outra, embora sejam diferentes.<br />

Dizer que o texto de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque é a mesma coisa da obra de Viani-<br />

nha é tão falso quanto dizer que a peça de Vianinha é igual à de Eurípides. O tema é o mesmo;<br />

o tratamento é diferente.<br />

Em arte, diz uma frase popular, nada se cria, tudo se copia.<br />

6.2 - O resgate da dívida<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, no programa da peça 135 , agradecendo aos que os ajudaram a construir o<br />

espetáculo, depois de citar alguns nomes, arremata: “E especialmente a Oduvaldo Vianna Filho<br />

que, ao adaptar Medeia para a TV, nos forneceu a indicação de que na densa trama de Eurípides<br />

estavam contidos os elementos da tragédia que queríamos revelar”.<br />

Deocélia perguntou a sua vizinha se no programa tinha o nome de Vianinha. Ao que a<br />

vizinha respondeu: “Nem no programa, nem nos cartazes” 136 . A vizinha não lera o programa.<br />

Nem Deocélia.<br />

Sábato Magaldi perguntou a Chico Buarque: “Eu gostaria de saber qual a dívida a essa<br />

concepção (a do Vianinha) e onde é que a Gota D'água se afasta dela?” 137<br />

Como fora dito, Chico Buarque acredita que a dívida é maior do que ele poderia imagi-<br />

nar, mas não respondeu à segunda parte da pergunta, que trata do afastamento da obra deles em<br />

relação à do Vianinha.<br />

135 PONTES, <strong>Paulo</strong>. “O depoimento dos autores”. In programa da peça. Rio de Janeiro, 8 de dezembro de 1975.<br />

Esse texto é o prefácio à obra editada, sem o título acima.<br />

136 Idem, ibidem, p. 218.<br />

137 MAGALDI, Sábato. “Entrevista Chico Buarque”. Inédita. Rio de Janeiro, 4 de setembro de 1985.


Um pouco antes, Chico disse ao próprio Sábato: “Nós lemos a Medeia de Eurípides,<br />

discutimos bastante o texto e traçamos o roteiro. Foi feito o roteiro de algumas poucas páginas<br />

com a adaptação para teatro. A partir daí, separamo-nos. O <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> ia escrevendo e man-<br />

dando, paulatinamente, o material para mim. mandava, assim, de 5 a 10 páginas, eram lotes que<br />

chegavam. Eu pegava o texto dele cru e transformava em versos. A idéia de se fazer em versos<br />

o texto da peça era dele também. Eu, muito disciplinadamente, fazia em versos com a métrica,<br />

ajeitando a métrica, a rima, tudo certinho e devolvia tudo para ele” 138 .<br />

Chico dá a dica de por onde se pode analisar as obras: somando a Vianinha e <strong>Paulo</strong> o<br />

autor antigo, Eurípides.<br />

6.3 - Uma leitura comparativa<br />

Para realizarmos essa leitura, precisamos, previamente, estabelecer uma regra: o texto<br />

do Vianinha ser acompanhado da primeira à última sequência, seguido pelos textos de Eurípi-<br />

des, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico 139 , sempre nessa ordem, para que possamos manter a noção da ação<br />

<strong>das</strong> peças, e assim, ao final, estabelecermos o que há de igual entre os textos, e o que há de dife-<br />

rente.<br />

138 Apud Sábato Magaldi, op. cit.<br />

139 Trabalhamos com as seguintes edições:<br />

EURÍPIDES. Medeia. Trad. portuguesa de Cabral do Nascimento. Lisboa, Editorial Inquérito, sem data.<br />

PONTES, <strong>Paulo</strong>. Gota D'agua. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.<br />

VIANNA FILHO, Oduvaldo. Op. cit.


6.3.1 - Medeias, ou o tema da separação dos amantes<br />

A) Em Vianinha, na primeira fala do texto, diz Medeia:<br />

“MEDEIA - Me traiu, homem. Me traiu, Jasão.. Punhalada, punhal no escuro, não é?... Tem<br />

volta... Tem... Retorno... ódio. Quero meu ódio todo... Vem mais, meu ódio...” (Prólogo).<br />

Esta fala, além de toda a movimentação do conjunto residencial popular, mostra a dife-<br />

rença entre a vida de todo dia, de todo mundo e, em particular, o abandono de uma mulher que,<br />

em sua fala, embora curta, já expõe o problema com o qual irá lidar.<br />

Em Eurípides, a personagem Aia relata brevemente o passado de Medeia, e o que lhe<br />

acontece no presente:<br />

“AIA - Jasão traiu os filhos e minha ama para entrar num tálamo real: desposa a filha de Creon-<br />

te, que cinge a coroa do país /.../ Deprimida, sem se alimentar, abandona o corpo às dores; con-<br />

some dias inteiros em pranto desde que conheceu a perfídia do marido; já não alça a vista nem<br />

desprende do chão o olhar; parece uma rocha ou uma onda do mar quando ouve as consolações<br />

dos amigos /.../ É uma alma violenta, não suporta afrontas” (p. 14).<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico, Corina, a vizinha, comenta com as outras o estado em que Jo-<br />

ana se encontra:<br />

“CORINA - Pois ela está como o diabo quer/ Comadre Joana já saiu ilesa/ de muito inferno,<br />

muita tempestade/ Precisa mais que uma calamidade/ pra derrubar aquela fortaleza/ Mas deste<br />

vez... acho que não aguenta,/ pois geme e treme e trinca a dentadura/ E, descomposta, chora e<br />

se esconjura/ E num soluço desses se arrebenta/ Não dorme, não come, não fala certo,/ só tem<br />

de esperto o olhar que encara a gente/ e pelo jeito dela olhar de frente,/ quando explodir, não<br />

quero estar por perto” (p. 4).<br />

Os autores, logo na abertura, apresentam a personagem num ponto alto de conflito.


B) Em Vianinha, Medeia pede para Dolores, a vizinha, cuidar dos seus filhos, enquanto<br />

ela arma a vingança:<br />

“MEDEIA - Quando não se tem mais esperança é que nunca se deve desanimar /.../ Fica com os<br />

meus filhos. Volto já.<br />

DOLORES - Não enfrente Creonte. Não enfrente a vida /.../ Egeu, homem, vem me ajudar a<br />

trazer os filhos de Medeia pra cá. Vem carregar eles. Vão ficar aqui essa noite. Eu fico lá com<br />

Medeia” (Primeira Parte).<br />

Em Eurípides, para dialogar com a Aia, na segunda cena da peça, surge o Preceptor.<br />

Medeia nesse caso não pede que alguém tome conta dos seus filhos. O Preceptor já existe para<br />

isso.<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico, Joana pede a mesma coisa para Corina:<br />

“JOANA - Não quero consolo nem vaselina/ Eu quero ajuda mesmo, tá falado?/<br />

CORINA - O que é?...<br />

JOANA - Haja o que houver, você jura/ que você e Egeu ficam com os pequenos?/.../ Eu tenho<br />

braço pra ser operária/ e tenho peito pra ser marafona/ Mas os filhos, onde é que vão ficar?/.../<br />

Por enquanto eu preciso que você/ mais Egeu tomem conta <strong>das</strong> crianças” (p. 86).<br />

C) Em Vianinha, Medeia, no cemitério, faz despacho. Coloca alguidar com a comida,<br />

d lias, velas, abre uma garrafa de cachaça e retira o pano que cobre uma imagem de Exu. Esta<br />

cena recebe corte simultâneo com outra em que Creusa, a noiva de Jasão, está experimentando<br />

o seu vestido de noiva:<br />

“MEDEIA - Recebe meu despacho, Omulu. Para todo o povo da encruza, espírito <strong>das</strong> trevas.<br />

Exu Ganga /.../ Vim lhe pedir ódio. Vim lhe pedir vingança. Quero vingança, seu Ganga! Vin-<br />

gança é o único alento do oprimido, sua única esperança /.../ Quero ser o vento da desgraça,<br />

quero a fúria de um desastre, a surpresa de uma bala no escuro. Quero a morte dela, Ganga.<br />

Quero meu Jasão vivo para sofrer” (Primeira Parte).<br />

No corte que divide essa sequência, Creusa, como resultado da mandinga, sente uma<br />

forte dor, e cai desmaiada.


Em Eurípides, Medeia é uma feiticeira, senhora <strong>das</strong> magias e dos sortilégios. Mas não<br />

prepara, antes do desfecho trágico, nenhuma m gica para destruir Jasão ou a filha de Creonte.<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico, Joana comporta-se igual a Medeia de Vianinha:<br />

“JOANA - O pai e a filha vão colher a tempestade/ A ira dos centauros e de pomba-gira/ levar<br />

seus corpos a crepitar na pira/ e suas almas a vagar na eternidade/ Os dois vão pagar o resgate<br />

dos meus ais/ Para tanto invoco o testemunho de Deus,/ a justiça de Têmis e a benção dos céus,/<br />

os cavalos de São Jorge e seus marechais,/ Hécate, feiticeira <strong>das</strong> encruzilha<strong>das</strong>,/ padroeira da<br />

magia, deusa-demônia,/ falange de Ogum, sintagmas da Macedônia,/ suas duzentas e cinquenta<br />

e seis espa<strong>das</strong>,/ mago negro <strong>das</strong> trevas, flecha incendiária,/ Lambrego, Canheta, Tinhoso, Nun-<br />

ca-Visto,/ fazei desta fiel serva de Jesus Cristo/ de to<strong>das</strong> as criaturas a mais sanguinaria/.../ Eu<br />

quero sua vida passada a limpo,/ Creonte. Conta co'a Virgem e o Padre Eterno,/ todos os santos,<br />

anjos do céu e do inferno,/ eu conto com todos os orixás do Olimpo!/ Saravá” (p. 90).<br />

a.<br />

Logo em seguida, como em Vianinha, Alma, a noiva de Jasão, passa mal, quase desmai-<br />

D) Em Vianinha, depois da sequência da mandinga, Medeia volta para casa. Lá encontra<br />

Dolores. Medeia pergunta pelos filhos. Estão em casa de Dolores. Elas se falam rapidamente.<br />

Medeia garante que nada de mal fará aos filhos. E vai buscar as crianças.<br />

Em Eurípides, Medeia não sofre do problema de onde deixar os filhos, enquanto sai para<br />

vingar a sua dor. Então esse dado, no texto original, também não existe.<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, Mestre Egeu, temendo um gesto desesperado de Jo-<br />

ana, resolve devolver os filhos para ela, como forma de chamá-la outra vez para a realidade:<br />

“EGEU - Joana, pode contar sempre comigo/ pro que precisar. Sabe que afilhado/ meu não pas-<br />

sa fome. Não tem perigo/ Mas o lugar dos guris é aqui/<br />

JOANA - Mas, mestre, eu não posso ficar cuidando.../<br />

EGEU - Eles não vão se desligar de ti/ Enquanto você tá lá se ajeitando/ Corina vem, dá banho,<br />

faz comida,/ com prazer, mas você, onde estiver,/ na máquina, na fábrica, na vida,/ lembre que<br />

eles tão em casa, mulher,/ precisando de você para viver” (p. 99).<br />

E) Em Vianinha, Creonte alertado pela sua mulher que o mal-estar de Creusa era de-<br />

manda de Medeia, resolve expulsá-la de Guadalupe, a vila da qual é proprietário, e onde Me-


deia tem casa que, aliás, não paga há oito meses (exatamente o tempo que Jasão desapareceu da<br />

sua vida). Creonte, então, tem um argumento legal para expulsá-la. Mas ele é o chefão. Não<br />

precisa de argumento. Basta a sua vontade. Medeia reage. Creonte confessa ter medo dela. Me-<br />

deia, então, para ganhar tempo, pede mais um dia. Creonte concede:<br />

“MEDEIA - Eu sei que a presença da pessoa traída incomoda muito os traidores. Mas, fora eu<br />

ter sida traída, que crime cometi?<br />

CREONTE - Ainda nenhum, mulher, fora as promessas!<br />

MEDEIA - Mas o que é que eu fiz, homem?<br />

CREONTE - Medo. Me d medo. Quem gosta de sentir medo? O inimigo sibilando por perto?<br />

/.../<br />

MEDEIA - Por favor, Creonte... por favor... então, pelo menos me dá mais um dia... não posso<br />

ir agora, às duas da manhã, sem destino...<br />

CREONTE - Você quer tempo para fazer uma maldade.<br />

MEDEIA - Casa tua filha, homem, ela é linda, é jovem, é eleita. Casa tua filha, derrama tua<br />

festa, teu chope, soa os taróis... me deixa com a minha raiva, não é permitido ter?... Me dá um<br />

dia só. Você tem medo de um dia, de mim, mulher? /.../<br />

CREONTE - /.../ Um dia só, Medeia, nem um minuto mais. Um dia” (Segunda Parte).<br />

Em Eurípides, o movimento da cena é exatamente o mesmo: Creonte quer expulsá-la,<br />

confessa ter medo dela, e Medeia pede mais um dia:<br />

“CREONTE - É a ti que eu falo Medeia de olhar soturno, que te irritas contra teu marido. Troca<br />

este país pelo desterro, leva contigo os teus dois filhos, e sem demora! Eu é que farei executar a<br />

ordem e não voltarei ao palácio antes de te haver lançado fora <strong>das</strong> fronteiras do país.<br />

MEDEIA - Ai de mim! Estou aniquilada! Infeliz! Estou perdida! Os meus inimigos desfraldam<br />

to<strong>das</strong> as velas e já não tenho porto seguro onde me abrigue da maldição. Entretanto, far-te-ei<br />

uma pergunta, Creonte, apesar da minha desgraça: por que motivo me expulsas, Creonte?<br />

CREONTE - Tenho medo de ti... por que ocultá-lo? /.../<br />

MEDEIA - Só um dia! Deixa-me ficar apenas o dia de hoje para acabar de resolver quanto ao<br />

lugar do nosso exílio e reunir os recursos para os meus filhos, uma vez que o pai não conside-<br />

rou a forma de lhos proporcionar. Piedade para eles! Tu também tens filhos, és pai: é natural<br />

que sejas benevolente. Pois não é de mim que me inquieto, nem do meu desterro, mas choro a<br />

sua sorte e o seu infortúnio.


CREONTE - A minha vontade não será, de certo, a de um tirano, mas a benevolência tem-me<br />

sido funesta. Bem vejo, mulher, que mesmo hoje cometo um erro: no entanto, obter s esse fa-<br />

vor. Previno-te, porém, de que se amanhã a tocha dos deuses te tornar a ver, a ti e a teus filhos,<br />

dentro destas fronteiras, tu, Medeia, morrerás. Disse, e não terei mentido. E agora, se hás-de<br />

ficar, fica, mas um dia, um dia só: não poderás realizar nenhum dos malefícios que temo” (p. 24<br />

e ss).<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, a cena é idêntica:<br />

“JOANA - Onde é que eu vou morar?/<br />

CREONTE - Sei lá... Onde quiser. Mas sai da minha frente/<br />

JOANA - Creonte... Por que um homem onipotente/ assim, poderoso assim, precisa jogar/ toda<br />

a sua força em cima duma mulher/ sozinha... por quê?...<br />

CREONTE - Você quer saber?...<br />

JOANA - Por/ quê?<br />

CREONTE - Por medo...<br />

JOANA - Medo de mim?...<br />

CREONTE - Medo de você/ sim, porque você pode investir a qualquer hora. Tá calibrada de<br />

ódio, a arma na mão/ E a vida te botou em posição de tiro/ Só falta a vítima, mais nada. /.../<br />

JOANA - Não! Pelo menos/ me dê um dia... Um dia só, que é para eu saber/ pra onde é que eu<br />

posso ir...<br />

CREONTE - Não dá...<br />

JOANA - Não vou/ poder sair sem destino com dois filhos pequenos/ Eu ia embora mesmo.<br />

Não quero ficar/ nesta desgraça de lugar. Só quero um dia/ pra me orientar, se não não dá...<br />

CREONTE - Eu não devia/ nem ouvir...<br />

JOANA - Um dia...<br />

CREONTE - Não devia levar/ em consideração, porque tenho certeza/ de estar fazendo besteira<br />

quando te atendo...” (p. 149 e ss).<br />

F) Em Vianinha, Egeu é motorista de táxi, e tem medo de Creonte. Por isso mesmo pede<br />

que Medeia não o enfrente:<br />

“EGEU - Não tenha tanta coragem, Medeia. Não enfrente Creonte. Ele é rei aqui. Para os que<br />

sofrem muito, coragem demasiada é muito perigoso” (Segunda Parte).


Em Eurípides, Egeu é rei de Atenas, e está de passagem por Corinto, onde reina Creon-<br />

te. Medeia lhe pede asilo:<br />

“MEDEIA - Ah, peço-te encarecidamente. Faço-me tua suplicante. Piedade, tem dó do meu<br />

infortúnio! Não deixes que me expulsem! Acolhe-me no teu país, na tua casa, no teu lar. /.../<br />

EGEU - Por muitas razões estou disposto, mulher, a outogar-te essa mercê /.../ Eis então as mi-<br />

nhas decisões: vem para o meu país, tratarei de te oferecer hospitalidade, como é meu dever”<br />

(p. 44).<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, Mestre Egeu é técnico em rádio e mentor ideológico<br />

da comunidade em que vive. Por isso, diferentemente do Egeu de Vianinha e de Eurípides, ele<br />

incentiva Joana a lutar, se é esse o seu empenho. Mas não a lutar só:<br />

“EGEU - Então, pra você se fortalecer,/ não desperdice esse seu ódio ao vento,/ use esse mesmo<br />

ódio como alimento,/ mastigue, engula, saboreie ele,/ se arraste, morda a língua, arranhe a pele,/<br />

e chore, e reze, e role pelo chão,/ faça <strong>das</strong> suas tripas, coração,/ do seu coração, um corpo fe-<br />

chado/ onde seu ódio fique represado,/ engrossando, acumulando energia/ Até que num deter-<br />

minado dia,/ junto co'o ódio dos seus aliados,/ todos os ódios serão derramados/ ao mesmo<br />

tempo em cima do inimigo/ Numa luta dessas, conte comigo/ Mas inda não d pra brigar agora,/<br />

é bobagem brigar justo na hora/ que o inimigo quer. Sozinha, fraca,/ assim é dar murro em pon-<br />

ta de faca” (p. 112).<br />

G) Em Vianinha, o primeiro encontro de Medeia e Jasão. Ela reclama que o sustentou e<br />

por ele abandonou a casa de seu pai:<br />

“MEDEIA - Eu não pensei nos meus filhos? Você pensou? Pensou em mim? Deixei minha casa<br />

execrada por meu pai, meu irmão, toda a minha gente! Te dei dois filhos! E você não fez legal<br />

nossa união e eu aceitei, cega de confiança, porque íamos esperar melhores dias, e trabalhei por<br />

você, e ouvi teus desânimos, tua vacilação. Você perdeu emprego. Ganhava misérias por aí to-<br />

cando violão /.../ paguei pra você comprar o direito de gravar um primeiro disco que só nós<br />

ouvíamos e mais ninguém! Se você não tivesse filhos, Jasão, podia ir embora e eu nem me in-<br />

comodava, porque um homem que não é capaz de manter na fortuna um amor que o sustentou<br />

na desgraça, é um fraco, e não merece missa. Mas você tem filhos e esqueceu disso. Logo que a


fortuna sorriu um pouco e agora vai ganhar uma casa de Creonte, as influências de Creonte!<br />

Um fraco merece desprezo, mas um desamado merece castigo, sim!” (Segunda Parte).<br />

Eis as queixas de Medeia, de Eurípides:<br />

“MEDEIA - Mas ser pelo princípio que vou começar. Salvei-te, como sabem todos os gregos<br />

que embarcaram contigo no Argo. Tinham-te mandado submeter ao jugo os touros fogosos e<br />

semear os sulcos da morte. Ora o dragão que envolvia o Velo de Ouro nas suas mil roscas tor-<br />

tuosas e o guardava sem nunca adormecer, eu o matei e alcei para ti o facho da vitória. Eu<br />

mesma traí o meu pai e a minha casa e vim contigo à cidade do Pélio, em Iolco, mais apressada<br />

que prudente. Fiz sucumbir Pélias da morte mais cruel, pelas mãos <strong>das</strong> próprias filhas, e de-<br />

sembaracei-te de qualquer temor. Eis os serviços que te prestei, ao mais celerado de todos os<br />

homens. Depois atraiçoaste-me, tomaste posso de novo leito, tu que geraras filhos! Se não fora<br />

isso, ainda terias desculpa de cobiçar novo tálamo. Mas que é feito dos teus juramentos? Sabe-<br />

rei algum dia qual o teu pensamento?” (p. 32).<br />

Eis, em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, o lamento de Joana:<br />

“JOANA - Pois bem, você/ vai escutar as contas que eu vou lhe fazer:/ te conheci moleque,<br />

frouxo, perna bamba,/ barba rala, calça larga, bolso sem fundo/ Não sabia nada de mulher nem<br />

de samba/ e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo/ As marcas do homem, uma a uma,<br />

Jasão,/ tu tirou to<strong>das</strong> de mim. O primeiro prato,/ o primeiro aplauso, a primeira inspiração,/ a<br />

primeira gravata, o primeiro sapato/ de duas cores, lembra?/ O primeiro cigarro, a primeira be-<br />

bedeira, o primeiro filho,/ o primeiro violão, o primeiro sarro,/.../ Fabriquei energia que não era<br />

tua/ pra iluminar uma estrada que eu te apontei/ E foi assim, enfim, que eu vi nascer do nada/<br />

uma alma ansiosa, faminta, buliçosa,/ uma alma de homem. /.../ Assim que bateu o primeiro pé-<br />

de-vento,/ assim que despontou um segundo horizonte,/ lá se foi meu homem-orgulho, minha<br />

obra/ completa, lá se foi pro acervo de Creonte...” (p. 76).<br />

Joana de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, a exemplo <strong>das</strong> outras Medeias, fez grandes sa-<br />

crifícios para viver o seu amor. No caso de Joana, entre outras coisas, largou o velho marido<br />

que lhe dava todos os confortos, inclusive um Simca Chambord.


H) Em Vianinha, Medeia vê Jasão abraçar os seus filhos, ao final do primeiro encontro.<br />

É nesse instante que ela descobre a forma mais cruel de vingar-se:<br />

MEDEIA - (VOZ) - Você gosta dos seus filhos, não, Jasão? É capaz de abandoná-los, mas gos-<br />

ta deles, não é? eles te admiram. Te dão a impressão de que você se interessa pelos outros. Meu<br />

Deus! Então é esta a vingança? É isso que tenho de fazer? É isso! São vocês! É com vocês que<br />

a dor dele ser insuportável. Teus filhos, Jasão! Vou acabar com o pouco que você pôs no mun-<br />

do!” (Segunda Parte).<br />

Em Eurípides, a sua vingança não se concretiza nos filhos, mas depende deles para que<br />

ela se realize. Medeia, porém, é capaz de um brevíssimo momento de hesitação, em relação ao<br />

sacrifício <strong>das</strong> crianças:<br />

“MEDEIA - Ai! Por que voltai para mim o olhar, filhos meus? Por que me endereçais esse úl-<br />

timo sorriso? Infortúnio! Que fazer? Falta-me a coragem, mulheres, quando vejo o olhar bri-<br />

lhante dos meus filhos. Não, não poderia. Adeus, antigos projetos. Levarei as crianças para lon-<br />

ge do país. Que necessidade haver para lhes torturar o pai com a sua própria desgraça, de redo-<br />

brar as minhas desditas? Não, não, eu não. Adeus, meus projetos. Mas quê? Ofereço-me ao es-<br />

cárnio deixando os meus inimigos impunes? Vamos, audácia! Ah, que covardia entregar o co-<br />

ração a tais fraquezas! Reentrai no palácio, filhos” (p. 59).<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, Jasão, na terceira vez que se encontra com Joana,<br />

brinca com os filhos. Joana, na mesma situação de Medeia, de Vianinha, percebe que Jasão,<br />

apesar de tudo, gosta dos filhos, e assim encontra, do mesmo modo, o ponto onde machucar<br />

profundamente Jasão:<br />

“JOANA - Você/ gosta/ deles, né Jasão? E eles te admiram/ né, Jasão? Porque eles nunca te<br />

viram/ como eu vejo. Deixou eles na bosta/ mas gosta. Eles te dão a sensação/ que você se inte-<br />

ressa por alguém/.../ Mas contra to<strong>das</strong> as vinganças/ seriam vãs, seu corpo está fechado/ Você<br />

só tem, pra se apunhalado/ duas metades de alma: essas crianças” (p. 156 e ss).<br />

I) Encontrado o ponto fatal que acarretaria a desgraça de Jasão, Medeia, municiada de<br />

todo o seu rancor, procura Jasão, finge estar derrotada, querer a paz.<br />

Em Vianinha:


“MEDEIA - Vim aqui para dizer que quero que você seja feliz, Jasão.<br />

JASÃO - Eu sabia, Medeia, minha amiga, eu sabia que um dia ia ouvir isso da sua boca... um<br />

grande amor não pode terminar em rancor, não é? Senão, não foi um grande amor...” (Terceira<br />

Parte).<br />

Em Eurípides:<br />

“MEDEIA - Jasão, rogo-te me perdoes o que eu disse. Desculpa os meus arrebatamentos que<br />

muitas vezes trocamos. Eu própria discuti comigo e me censurei” (p. 51).<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque não é no segundo encontro dos dois que Joana se fin-<br />

ge derrotada. É no terceiro, diferentemente <strong>das</strong> outras Medeias:<br />

“JOANA - Nada, Jasão,/ quer dizer... eu queria te pedir/ perdão...<br />

JASÃO - Quê?...<br />

JOANA - Vem, menino, pode vir/ tranquilo...<br />

JASÃO - Não entendi... essa não.../<br />

JOANA - Sente aqui comigo, fique à vontade/ deixe eu ver seus olhos, Jasão, sorria,/ como se<br />

fosse uma fotografia/ pra eu levar comigo e matar saudade...” (p. 153).<br />

J) Jasão desarma-se em relação a ela, ao perigo que ela representa para a sua felicidade.<br />

Medeia arma o desfecho trágico.<br />

Em Vianinha:<br />

“MEDEIA - /.../ Eu vou até fazer uns doces, os meninos mais tarde vão na festa, levam os doces<br />

de presente para Creonte, para tua mulher...<br />

JASÃO - Não, Medeia, acho que não fica bem meus filhos irem...<br />

MEDEIA - São crianças, Jasão. Crianças não incomodam ninguém. Todos gostam de crianças.<br />

Elas não sabem reclamar às injustiças. Vai ser o meu gesto de paz para Creonte. Ele vai enten-<br />

der” (Terceira Parte).<br />

Em Eurípides, embora não sejam doces os presentes, terão o mesmo poder envenenador:


“MEDEIA - /.../ Mandar-lhe-ei os presentes mais belos que houver atualmente no mundo: um<br />

pequeno véu fino e um diadema de ouro cinzelado. Os pequenos leva-los-ão. /.../<br />

JASÃO - Por que é, insensata, que te despojas assim? Crês que no paço real há falta de véus e<br />

de ouro? Guarda-os, não lhos dês. Se minha mulher faz algum caso de mim, há-de preferir-me<br />

às riquezas, disso estou bem convencido.<br />

MEDEIA - Não fales dessa forma! Os presentes, diz-se, fazem até os deuses dobrarem-se, e o<br />

ouro é mais poderoso que to<strong>das</strong> as palavras dos mortais” (p. 55 e ss).<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque:<br />

“JOANA - Pode deixar que eu sei/ o que eu estou fazendo, Jasão. Eu/ visto os meninos direito,<br />

preparo/ uma lembrancinha, Jasão. Agora, se as crianças lhe fazem vergonha...<br />

JASÇO - Ora,/ Joana, que é isso? Eu posso dar amparo/ aos dois... Creonte ajuda. Vou falar/<br />

com alma também, tudo bem, mas não/ precisa mandar eles lá...<br />

JOANA - Jasão,/ é importante pra mim. Eu vou mandar/ as crianças sim, porque meu destino/<br />

depende disso” (p. 158).<br />

L) Medeia convence Jasão. A tragédia se aproxima.<br />

Em Vianinha, a morte por envenenamento é descrita pela câmera, basicamente. Ela<br />

mostra a festa de casamento, o povo na quadra, a bateria da escola de samba tocando. Jasão<br />

com os filhos, a noiva. Passa um cachorro. A menina dá um doce para ele. Jasão vê. Depois ele<br />

entrega os dois filhos para Dolores levá-los de volta para casa. Creusa, a noiva, come os doces<br />

que Medeia lhe mandou. Jasão vê o cachorro morrendo. Compreende tudo. Grita e mal conse-<br />

gue se fazer ouvir. É tarde. Creusa morre. Creonte fica inválido, como consequência do podero-<br />

so veneno com o qual Medeia preparou os seus doces.<br />

Em Eurípides, a tragédia é relatada a Medeia pelo Mensageiro. A descrição que ele faz<br />

da morte de Creonte e sua filha é terrível. Primeiro ele conta a repulsa aos filhos de Medeia pela<br />

noiva de Jasão. Depois, o encanto da noiva ao receber os presentes, a sua felicidade ao experi-<br />

mentá-los, para logo depois cair em agonia:<br />

“MENSAGEIRO - Logo, porém se produz um espetáculo medonho: muda de cor, dobra-se em<br />

duas, recua; os membros tremem; mal tem tempo de se deixar cair no trono para não se estatelar<br />

no chão /.../ (uma criada) Imediatamente lhe observa uma espuma branca que lhe acode à boca,<br />

lhe vê revirarem-se as pupilas e o sangue abandonar o corpo /.../ Um duplo flagelo a torturava: a


coroa de ouro na cabeça expelia uma prodigiosa torrente de fogo devorador, e os véus levíssi-<br />

mos, presente dos enteados, mordiam a carne branca da infeliz /.../ (Creonte abraçado à filha no<br />

chão) Ao finalizar os seus lamentos e soluços, quer endireitar o corpo alquebrado, mas este ade-<br />

re, como a hera nos ramos do loureiro, aos finos véus, e é uma luta terrível. Tenta levantar um<br />

joelho e não pode. Se puxa com força, a carne separa-se dos ossos. Finalmente renuncia e dá a<br />

alma, pobre homem, pois o mal é mais forte do que ele. Jazem mortos, a filha e o velho pai,<br />

lado a lado” (p. 62 e ss).<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, a tragédia não é a morte de Creonte e sua filha:<br />

“CREONTE - O que é isso? Espera/ um pouco. São seus meninos, Jasão?/<br />

JASÃO - São...<br />

ALMA - Trouxeram um presente, olha aqui.../<br />

CREONTE - Que é isso... Quem mandou isso aí?/<br />

FILHO 1 - Mamãe...<br />

CREONTE - De jeito nenhum... Não, não, não.../ Me leva essa porcaria. Não quero/ conversa<br />

com aquela mulher. Vai.../ Vamos embora, vamos indo...” (p. 163).<br />

E expulsa as crianças, com os seus doces, da festa.<br />

M) Nas Medeias, mortos Creonte e sua filha, Medeia completa a sua vingança contra Ja-<br />

são, matando também os filhos.<br />

Em Vianinha, antes do infanticídio, ela tem um minuto de hesitação, contemplando as<br />

crianças brincando no campo, para logo em seguida retomar o seu propósito destruidor:<br />

“MEDEIA - Vamos, Medeia. É preciso ir até o fim. Você sabe. Você já se perdeu. Não pode<br />

mais valer para seus filhos. Vamos até o fim. Jasão tem que se retorcer por estar vivo. Você vai<br />

querer estar morto, a cada segundo, Jasão. Hein? Que futuro espera estas crianças, Jasão? Um<br />

orfanato pobre, engolindo humilhação, comiseração? Se ficarem comigo, a desproteção, a de-<br />

linquência rondando, a raiva de serem desprotegidos... não. Eles não vão pagar pelo crime de<br />

serem abandonados, pelo desinteresse. Não, não ficarão adultos para sofrer. Venham cá, meus<br />

filhos. Venham cá. Venham” (Quinta Parte).<br />

Em Eurípides, Medeia não envenena os filhos, mas os degola:


“MEDEIA - Amigas, está decidido o meu ato: o mais depressa possível matarei os meus filhos<br />

e fugirei para longe deste país, a fim de não expor, com demoras, as crianças a perecerem por<br />

mãos hostis. É absolutamente necessário que eles morram. E, sendo assim, eu é que os devo<br />

matar, eu que os lancei a este mundo. Vamos, pois, coração, arma-te de força! Para que tardar?<br />

Quem recua diante destas ações tremen<strong>das</strong> mas imprescindíveis? Vai, calamitosa mão, tomar o<br />

gládio e aproxima-te dos limites de uma existência acerba. Não sejas covarde. Não hei-de lem-<br />

brar-me deles, que tanto adoro e dei à luz. Vamos! Por agora, ao menos, esquece os filhos. De-<br />

pois, geme. Porque, se os matas, eram-te no entanto queridos; quanto a mim, serei uma mulher<br />

infortunada” (p. 65).<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, Joana mata os filhos como último recurso de vin-<br />

gança. Mata, e mata-se, já que para ela não havia mais perspectiva. O seu temperamento impul-<br />

sivo não a deixaria viva para arquitetar outra vingança, que não fosse a mais radical. Antes do<br />

genocídio, Joana fala de um outro lugar em tudo diferente do mundo em que vive. No outro<br />

mundo tudo seria paz, harmonia, gentilezas. Cai em si. Dá um bolinho envenenado para cada<br />

criança:<br />

“JOANA - A Creonte, à filha, a Jasão e companhia/ vou deixar esse presente de casamento/ Eu<br />

transfiro pra vocês a nossa agonia/ porque, meu Pai, eu compreendi que o sofrimento/ de convi-<br />

ver com a tragédia todo dia/ é pior que a morte por envenenamento” (p. 167).<br />

N) Consumada a vingança, resta à fuga.<br />

Em Vianinha, a fuga é previamente combinada com Egeu, que a espera com o seu táxi,<br />

enquanto Jasão, a polícia, os amigos, os vizinhos, a procuram temendo que ela justamente ma-<br />

tasse os filhos. Medeia entra no carro de Egeu, no momento que os corpos <strong>das</strong> crianças foram<br />

localizados:<br />

“MEDEIA - Não aguento mais, Egeu, não aguento. Não vou suportar tudo o que fiz. Fui longe<br />

demais. Sou um ser humano - a vingança realizada deixa mais vazia a vida, porque os obstácu-<br />

los continuam em to<strong>das</strong> as esquinas... a vingança só é suportável se é dividida... Egeu, vou me<br />

matar também... mas por favor, por favor, atira meu corpo no mar, esconde meu corpo... que<br />

eles nunca me achem... que eles pensem que eu fiquei sem castigo...” (Quinta Parte).


Em Eurípides, diferente de Vianinha, Medeia não se mata, mas foge num carro alado<br />

puxado por dragões.<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, Egeu e Corina carregam o corpo de Medeia e os fi-<br />

lhos para dentro da festa de casamento.<br />

Em suma: as cenas da Medeia de Vianinha repetem, passo a passo, a Medeia original de<br />

Eurípides. As cenas da Gota D'água repetem, passo a passo, as outras Medeias.<br />

6.3.2 - Gota D'água, ou o tema da tragédia brasileira<br />

Em Gota D'água - A Trajetória de um Mito, Maria do Carmo Peixoto Pandolfo orientou<br />

uma equipe de pesquisadores, que se debruçou sobre os problemas implícitos no mito de Me-<br />

deia, desde os tempos antigos. Lá está a pista de onde nasceu a Medeia de Vianinha: “Na déca-<br />

da de 60 os jornais cariocas noticiam e mobilizam a opinião pública em torno de um crime pas-<br />

sional em que uma amante abandonada - “a fera da Penha” - sequestra e mata com requintes de<br />

perversidade, Tânia, de 5 anos, filha predileta de seu amásio. O episódio acaba por despertar a<br />

atenção de Oduvaldo Vianna Filho que vê aí, uma presença viva do mito de Medeia” 140 .<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque também encontraram na realidade do povo brasileiro a<br />

matéria-prima com que construir a sua obra: “A nossa tragédia é uma tragédia do Dia e da Luta<br />

Democrática. Não se pode imaginar quantas mulheres matam os filhos na Luta Democrática.<br />

Posso falar porque nós lemos muito a Luta quando estávamos escrevendo a peça. Existem de<br />

cinco a seis tragédias gregas por dia nesse país. O crime faz parte da mitologia do povo brasi-<br />

leiro” 141 .<br />

140 PEIXOTO PANDOLFO, Maria do Carmo. Gota D'água - A Trajetória de um Mito. Rio de Janeiro: Inacen, p. 145<br />

e ss.<br />

141 GUIMARÃES, Márcia. Op. cit.


Mas não foi para contar uma história de crime que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> convidou Chico Buar-<br />

que. Sua pretensão era falar sobre a luta de classes no Brasil. Falar sobre como a classe domi-<br />

nante coopta os melhores quadros <strong>das</strong> classes populares, e como os utiliza para a manutenção<br />

de controle social. Perguntados se a discussão proposta em Gota D’água obteve resposta na<br />

medida esperada, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> afirmou que não, que, do seu ponto de vista, o problema da ha-<br />

bitação popular, na peça, é de segunda importância: “O que existe de substantivo é uma visão<br />

do que é o poder. Gota D'água está discutindo que é impossível tomar-se o poder à força sem o<br />

respaldo dessa sociedade que aí está. E o que se passou na sociedade civil nesses últimos tem-<br />

pos, avalizou a permanência no poder de determina<strong>das</strong> forças políticas. Há um mecanismo na<br />

sociedade civil, que põe e tira do poder. É isto que existe de substantivo em Gota D'água. E a<br />

resposta disso não veio” 142 .<br />

Essa amostra de como o poder exerce o seu domínio, em Gota D'água, constitui a se-<br />

gunda ação da peça, e corre paralela à ação da vingança desesperada de Medeia/Joana que vi-<br />

mos atrás.<br />

Há em Gota D'água dois grupos de personagens: o masculino e o feminino. Os dois<br />

grupos compõem o que seria na tragédia grega o coro. O discurso de Joana, como Medeia, a<br />

amante abandonada, faz-se em Gota D'água através do grupo feminino. É esse grupo que se<br />

preocupa com as dores amorosas de Joana, a sua reação desesperada ante a atitude de Jasão.<br />

Enquanto o discurso político, o conteúdo ideológico que constitui a segunda ação, está posto no<br />

grupo masculino. São eles que avalizam ideologicamente o comportamento de Jasão. São eles<br />

que conduzem, inclusive, a passagem do discurso amoroso, problema de Joana, para o preço<br />

extorsivo que pagam pelas casas em que moram, problema de todos. São eles que fazem o con-<br />

traponto entre o tema eterno, o amor, e o tema em permanência: a necessidade de sobreviver a<br />

qualquer custo.<br />

Para fundir os dois grupos e fazê-los coincidir numa mesma grande ação, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e<br />

Chico Buarque atribuíram a Egeu o papel de pivô entre os dois grupos. Egeu põe-se todo o<br />

tempo entre os grupos feminino e masculino. Compartilha a dor de Joana e a ajuda. Divide com<br />

os homens o sentimento de injustiça diante dos preços abusivos, <strong>das</strong> prestações reajusta<strong>das</strong>, do<br />

plano de pagamento <strong>das</strong> casas próprias que nunca termina, e, igualmente, ajuda-os.<br />

142 GUIMARÃES, Márcia. Ibidem.


Egeu é o mentor intelectual e do conflito ideológico, na Vila do Meio-dia. Ele, junta-<br />

mente com Corina e Joana, carregam a dignidade do oprimido, formando o núcleo central de<br />

personagens que estabelecem o conflito com o outro núcleo: Creonte, Jasão e Alma.<br />

Entre esses dois núcleos de conflito se posta uma única e quase despercebida persona-<br />

gem: Boca Pequena. O nome não poderia ser mais revelador da ação que essa personagem rea-<br />

liza: ela é o dedo-duro, a que delata para Creonte o que acontece na Vila do Meio-dia. Por ela,<br />

Creonte fica sabendo do perigo que representa Egeu para o seu domínio. E como verdadeiro<br />

dedo-duro, sabe ser anódino, a ponto de nem ser levada a sério pelos grupos masculino e femi-<br />

nino, nem tão pouco pelo núcleo de Egeu, que equaciona a luta ideológica.<br />

Visto por esse prisma, Gota D'água é mais do que a tragédia amorosa de Medeia. É isso.<br />

Mas é também um retrato do Brasil resultante da ditadura. Por exemplo: Joana, com a sua ação<br />

suicida, pode ser lida como a imagem da guerrilha que buscou tomar o poder sem o apoio ex-<br />

pressivo da sociedade. Egeu, o intelectual de esquerda que não conseguiu sublevar as massas na<br />

medida necessária. Jasão, o homem que veio do povo, e que conhece do povo cada gesto, vende<br />

seu saber em troca de status quo diferenciado no quadro social dominado por Creonte, o déspo-<br />

ta. Assim como a classe média em relação à ditadura.<br />

Eis, então, passo a passo, a segunda ação contida em Gota D'água, que a diferencia <strong>das</strong><br />

outras Medeias:<br />

A) Xulé, logo após a cena de abertura em que as mulheres falam do estado em que Joa-<br />

na se encontra, aparece na oficina de Mestre Egeu, que sente alguma diferença de ânimo no<br />

amigo. Egeu pergunta-lhe se brigou com a mulher, ao que Xulé responde:<br />

“XULÉ - Falhei de novo a prestação da casa.../ Mas, pela minha contabilidade,/ pagando ou<br />

não, a gente sempre atrasa/ Veja: o preço do cafofo era três/ Três milhas já paguei, quer que<br />

comprove?/ Olha os recibos: cem contos por mês/ E agora inda me faltam pagar nove/ Com<br />

nove fora, juros, dividendo,/ mais correção, taxa e ziriguidum/ se eu pago os nove que inda es-<br />

tou devendo,/ vou acabar devendo oitenta e um.../ Que matem tica filha-da-puta/<br />

EGEU - Todo mundo está igual a você/<br />

XULÉ - Não d á É todo mês a mesma luta/ Tem que falar pro homem resolver/ baixar um pou-<br />

co essa mensalidade/ senão vou morar debaixo da ponte/ Não é fácil, mestre Egeu...<br />

EGEU - É verdade/


XULÉ - Alguém tem que falar com seu Creonte/ A gente vive nessa divisão/ Se subtrai, se mul-<br />

tiplica, soma,/ no fim, ou come ou paga a prestação/ O que posso fazer, mestre Egeu?” (p. 8).<br />

Introduzindo, quase simultaneamente às mulheres, o segundo tema da peça.<br />

B) Em seguida, para reforçar o problema e fixar a imagem de líder de Egeu, surge Amo-<br />

rim na oficina de Egeu, onde já estava Xulé:<br />

“AMORIM - Xulé, meu tio/ Dé, Zazueira, Pipa, Amaro, Cacetão,/ Esmeraldino,/ Getúlio, Ca-<br />

zuza, Fio,/ ninguém mais paga. Nem São Cosme e Damião/ Por que é que eu vou pagar sem<br />

ter? Não pago não/<br />

EGEU - É fogo...<br />

AMORIM - Mas ser que eu vou ter que perder/ os dois anos que já paguei de prestação?/ O<br />

corno velho do Creonte vai saber/ que não pago e me bota na rua.../<br />

EGEU - Então/ me escuta...<br />

AMORIM - Mestre Egeu, você pode dizer/ o que pensa, já que é dono de teto e chão/ Dono do<br />

seu nariz, não tem nada a perder/ Tem a oficina e tudo o que está dentro dela/ Então fala corre-<br />

to, justo, dá conselhos/ Mas eu devo tijolo, cal, porta e janela/ acho que não sou dono nem dos<br />

meus pentelhos/<br />

EGEU - Você tem razão...<br />

AMORIM - Mestre Egeu, por caridade/ me responda...” (p. 13).<br />

C) Egeu assume a condição de líder. Oferece, teoricamente, a solução do problema:<br />

“EGEU - Pois eu vou te dizer: se só você não paga/ você é um marginal, definitivamente/ Mas<br />

imagine só se, um dia, de repente/ ninguém pagar a casa, o apartamento, a vaga/ Como é que<br />

fica a coisa? Fica diferente/ Fica provado que é demais a prestação/ Então o seu Creonte não<br />

tem solução/ Ou fica quieto ou manda embora toda a gente/ Cachorro, papagaio, velho, viúva,<br />

filha.../ Creonte vai dizer que é tudo vagabundo?/ E vai escorraçar, sozinho, todo mundo?/ Pra<br />

isso precisava ter outra virilha/ Não é?...<br />

AMORIM - Tem boa lógica...<br />

EGEU - Falei?...<br />

AMORIM - Sei não” (p. 16).


D) Boca Pequena, o dedo-duro, vai passando em frente à oficina. Mestre Egeu o chama:<br />

“EGEU - Já pagou a casa esta vez?...<br />

BOCA - Já separei/ porque é sagrado. Como santo em procissão/ Não precisa pedir pra fazer o<br />

que sei/ que é meu dever...<br />

EGEU - Pelo contrário: pague não/<br />

BOCA - Que que é isso, mestre, eu sou madeira de lei/<br />

EGEU - Pois ouça, Boca, não pague nem um tostão/ Se ninguém paga, é que não tem de onde<br />

tirar/ Se você paga, vai tirar toda a razão/ de quem tem to<strong>das</strong> as razões pra não pagar/<br />

BOCA - Que merda, mestre...<br />

EGEU - Merda sim ou merda não?” (p. 18).<br />

da Vila:<br />

E) Boca Pequena logo se encarrega de sentir a aceitação da proposta entre os moradores<br />

“BOCA - Espere aí, tenho uma boa: mestre Egeu,/ quando estive na oficina, me perguntou:/ a<br />

prestação da casa, Boca, já pagou?/ Eu disse: é claro. E sabe o que ele rebateu?/ Que a presta-<br />

ção é uma cobrança exagerada.../<br />

CACETÃO - Que nova...<br />

BOCA - E quem paga a casa é um bom calhorda!/<br />

XULÉ - A gente já discutiu o caso e concorda -/ menos Galego, que o gringo não é de nada -/<br />

que mestre Egeu está por dentro da questão” (p. 22).<br />

F) Enquanto Egeu arma a sublevação, numa longa cena intercalada com as vizinhas,<br />

constituindo-se as duas no prólogo da peça, Jasão, numa outra sequência do prólogo (que ante-<br />

cede a primeira entrada de Joana em cena, na p. 41), conversa com Alma, sua noiva. Creonte<br />

entra em cena, e numa longa fala para Jasão, apresenta a sua cadeira, símbolo do poder:<br />

“CREONTE - /.../ Você já parou pra pensar direito/ o que é uma cadeira? A cadeira faz/ o ho-<br />

mem. A cadeira molda o sujeito/ pela bunda, desde o banco escolar/ até a cátedra do magistério/<br />

Existe algum mistério no sentar/ que o homem, mesmo rindo, fica sério/ Você já viu um palha-<br />

ço sentado?/ Pois o banqueiro senta a vida inteira,/ o congressista senta no senado/ e a autorida-<br />

de fala de cadeira/.../ Pois bem, esta cadeira é a minha vida/ Veio do meu pai, foi por mim hon-<br />

rada/ e eu só passo pra bunda merecida/ Que é que você acha?...


JASÃO - Eu não acho nada,/ quer dizer, nunca pensei... realmente.../ Pra mim... cadeira era só<br />

pra sentar...<br />

CREONTE - Então senta...” (p. 32).<br />

G) Depois de experimentar a cadeira do poder, e depois de receber uma lição de como<br />

se deve exercê-lo (num misto de maquiavélico e populista), Jasão recebe a sua primeira missão,<br />

seu teste para um dia ocupar a cadeira que ora pertence a Creonte:<br />

“CREONTE - /.../ Aquele mestre Egeu.../ Já que vamos dividir este assento,/ um trabalhinho já<br />

apareceu/ pra você demonstrar o seu talento/ Aquele Egeu, parece até que é seu/ compadre...<br />

/.../ Você gosta muito desse sujeito?/<br />

JASÃO - Mas claro...<br />

CREONTE - /.../ Escute um momento/ Egeu, faz muito tempo que eu conheço/ e está fazendo<br />

muito movimento/ contra mim. Você acha que eu mereço?/ Está mandando o povo sonegar/ as<br />

prestações da casa. E eu fico quieto?/ Acha que é certo esse povo ficar/ me enganando debaixo<br />

do meu teto?/ Acha certo morar e não pagar?/ Diga, rapaz, acha que está correto?” (p. 36 e ss).<br />

H) Outro problema de Creonte é Joana, que também não paga a prestação há algum<br />

tempo. Mas esse não é, em relação a ela, o problema principal:<br />

“CREONTE - /.../ Já que a gente cutucou/ a ferida, deixa sangrar de vez/ Tua... essa mulher que<br />

você viveu/ junto e que não paga a casa faz seis/ meses... essa mulher... não sei... bem, eu/ sei<br />

que ela é mãe dos teus filhos... Talvez/ seja até mesmo um exagero meu/ Mas tem coisas que<br />

não é bom brincar/.../ Minha filha não vai casar tranquila/ co'essa mulher tomando ela de ponta/<br />

Enfim... Vou mandá-la embora da Vila” (p. 39).<br />

I) Jasão vai falar com Egeu:<br />

“JASÃO - O caso é que tão falando/ por aí que um bocado de gente/ de uns tempos pra cá tá se<br />

juntando/ e combinando pra de repente/ ninguém mais pagar a prestação/ da casa própria... Não<br />

por aperto,/ de caso pensado: pago não!.../<br />

EGEU - É?... Assim é fogo.../.../<br />

JASÃO - Tem mais, mestre Egeu, foram contar/ pro seu Creonte que era você/ quem botava<br />

farofa no prato/ da turma.../.../


EGEU - Quer saber o que eu/ acho? Sem rodeio e sem mistério?/ Esse emprego não serve pr'o-<br />

cê/<br />

JASÃO - Qual emprego?<br />

EGEU - Virou inocente?” (p. 49 e ss).<br />

Egeu aproveita para lembrar a Jasão sobre o trabalho, a dificuldade, que os amigos dele,<br />

Jasão, sofrem para pagar uma dívida que nunca é amortecida. Jasão irrita-se: “Por que com-<br />

prou?” É a pergunta que faz para o mestre Egeu. Vencido pelos argumentos de Egeu, Jasão ten-<br />

ta se justificar:<br />

“JASÃO - /.../ Olha, mestre, no fundo,/ eu sou mais útil daquele lado/ Lá dentro eu posso repre-<br />

sentar/ quem estiver mais encalacrado,/ posso interceder, facilitar.../.../<br />

EGEU - Ah, Jasão, você não vai poder/ se equilibrar no alto desse muro...” (p. 55).<br />

Jasão, derrotado em sua missão, tenta ao menos a cumplicidade de amigo:<br />

“JASÃO - Você, mestre Egeu, é meu amigo/ Por isso eu peço, de coração,/ me ajude, colabore<br />

comigo.../<br />

EGEU - Vai visitar teus filhos, Jasão.../<br />

JASÃO - Promete que não fala mais nada/ de não pagar as casas, aquilo/ tudo, hein? Controla a<br />

rapaziada?/ Fala, meu mestre... Posso ir tranquilo?/<br />

EGEU - Por que fizeram isso contigo?/ Creonte te desse um bofetão/ na cara, desse o pior cas-<br />

tigo,/ mas não te entregasse essa missão...” (p. 57).<br />

Jasão vai embora e Egeu, só, pensa em Jasão (“madeira boa/ pra arder na lareira dos<br />

contentes”), no que ele representa para os seus, e de como os melhores entre os oprimidos são<br />

cooptados (“pagam seu peso em ouro”). Egeu termina por emitir uma reflexão dialética sobre a<br />

história:<br />

“EGEU - Mas, Jasão, a festa é traiçoeira,/ é um alçapão. Todo mundo sabe/ que não há mal que<br />

nunca se acabe/ nem festa que dure a vida inteira” (p. 59).<br />

J) Jasão vai visitar os antigos amigos, no bar. Xulé aproveita para falar <strong>das</strong> prestações:


“XULÉ - A gente ia mesmo te procurar,/ não é, Amorim? Falo?... Pra dizer/ que as prestações...<br />

Ninguém tá mais podendo/ pagar. Você veja, já tou devendo...” (p. 63).<br />

É interrompido por Boca Pequena, que não o deixa continuar a reclamação.<br />

L) Creonte discute com Jasão, a propósito de um certo trem atrasado; fala sobre o que é o brasi-<br />

leiro, a sua incapacidade (segundo Creonte) de sacrificar-se pelo bem coletivo:<br />

“CREONTE - /.../ Na segunda guerra,/ só russo, morreram vinte milhões/ Americano, pra ga-<br />

nhar mais terra,/ foi dois séculos capando os culhões/ de índio. japonês gritava “Viva/ o Impe-<br />

rador”, entrava no avião/ pra matar e morrer de fronte altiva/ Na Inglaterra, uma pobre criatura/<br />

de oito anos, há dois séculos atrás/ já trabalhava na manufatura/ o dia inteiro, até não poder<br />

mais,/ quatorze, quinze horas.../.../ Mas o brasileiro não quer cooperar/ com nada, é anárquico, é<br />

negligente/ E uma nação não pode prosperar/ enquanto um povo fica impaciente/ só porque<br />

uma merda de trem atrasa /.../ Vou lhe dizer o que é o brasileiro/ alma marginal, fora-da-lei,/ à<br />

beira-mar deitado, biscateiro,/ malandro incurável, folgado paca/ vê uma placa assim: “não cus-<br />

pa no chão,/ brasileiro pega e cospe na placa/ Isso é que é brasileiro, seu Jasão...”<br />

Mas Jasão sabe que essa é uma visão falsa do ser brasileiro. Sabe que essa é a visão que<br />

a classe dominante vende do povo, inclusive para perpetuar as formas de dominação políti-<br />

co/econômica. E ele que veio do povo, oferece a visão real:<br />

“JASÃO - Não, ele não é isso, seu Creonte/ O que tem aí de pedra e cimento,/ estrada de asfal-<br />

to, automóvel, ponte,/ viaduto, prédio de apartamento,/ foi ele quem fez, ficando co'a sobra/ E<br />

enquanto fazia, estava calado,/ paciente. Agora, quando ele cobra/ é porque já está mais do que<br />

esfolado/ de tanto esperar o trem que não vem...” (p. 95 e ss).<br />

E depois, Jasão ainda lhe aponta o caminho necessário para continuar a dominar e, in-<br />

clusive, eliminar Egeu, deixá-lo falando sozinho:<br />

“JASÃO - Do povo eu conheço cada expressão,/ cada rosto, cara e osso, o sangue, o couro.../<br />

Sei quando diz sim, sei quando diz não,/ eu sei o seu forte, eu sei o seu fraco,/ sei a elasticidade<br />

do seu saco/ Eu sei quando cala ou quando grita/ E o que ele comeu na sua marmita,/ eu sei<br />

pelo bafo do seu sovaco/.../ permita-me então discordar de novo,/ que o senhor não sabe nada


de povo,/ seu coração até aqui de mágoa/ E povo não é o que o senhor diz, não/ Ceda um pou-<br />

co, qualquer desatenção,/ faça não, pode ser a gota d'água.<br />

CREONTE - Muito bem. É com esse capital,/ seu Jasão, que você quer ser meu sócio?<br />

JASÃO - Não fique pensando que o povo é nada,/ carneiro, boiada, débil mental,/.../ Não. Tem<br />

que produzir uma esperança/.../ Chegou a hora de regar um pouco/ Ele já não lhe deu tanto? Em<br />

ações, prédios, garagens, carros, caminhões,/ até usinas, negócios de louco.../ Pois então? Preci-<br />

sa saber dosar os limites exatos da energia/ Porque sem amanhã, sem alegria,/ um dia a pimen-<br />

teira vai secar/ Em vez de defrontar Egeu no peito,/ baixe os lucros um pouco e vá com jeito/.../<br />

Com os seus ganhos, o senhor é que tem/ que separar uma parte e fazer/ melhorias/.../ Encha a<br />

fachada de pastilhas/ que eles já acham bom. /.../ Ao terminar,/ reúna com todos, sem exceção/<br />

e diga: ninguém tem mais prestação atrasada. /.../ Está com medo de mestre Egeu? /.../ Egeu vai<br />

ficar falando sozinho/ enquanto o povo está jogando bola! /.../ O senhor vai tomando/ essas<br />

providências que reacende a chama. Vai ver que o trabalho rende/ mais, daí eles ganham confi-<br />

ança,/ alimentam uma nova esperança,/ o moral se eleva, a tensão relaxa.../ Aí é que o senhor<br />

aumenta a taxa/ Com as melhorias eles vão ter/ energia bastante pra mais dez anos. /.../ Agora,<br />

se quiser ver, por acaso,/ quem ganhou nesta simples transação/ é só contar. Eles lhe dão dez<br />

anos,/ o senhor dá um só pelos meus planos.../ Fica com nove, a parte do leão” (p. 102 e ss).<br />

Creonte, sozinho, reconhece que Jasão está certo:<br />

“CREONTE - Você veja como é o mundo/ Me aparece esse vagabundo/ cantando sambinha,<br />

jeitoso,/ falando macio, sestroso/ E eu cá pensando: hum, é sambista?/ Não passa dum bom vi-<br />

garista/ Um oportunista, arrivista,/ isto é, um fresco metido a artista,/ sem perspectiva, sem vi-<br />

são/.../ Mas não é que esse disfarçado/ sabe onde tem o seu nariz?” (p. 107).<br />

M) No outro núcleo do conflito, Egeu, ao falar com Joana, soma à sua dor a dos outros<br />

moradores da Vila:<br />

“EGEU - A gente só avança quando é mais forte/ do que o nosso inimigo. A sua sorte é ligada à<br />

sorte de todo mundo/ na Vila. /.../ Então, cada passo tem que ser dado/ por todos. Se você avan-<br />

çar só,/ Creonte te esmaga sem dor nem dó/ Compreendeu, comadre Joana?” (p. 111).<br />

N) Joana, que começara pela primeira ação (a amante abandonada), projeta a sua trajetó-<br />

ria para a segunda ação (o conflito ideológico), reunindo em si todo o peso <strong>das</strong> tramas quando


se cruzam. A partir desse momento, ela é, por excelência, o conflito: da amante abandonada, da<br />

trabalhadora explorada. E a sua forma de reação aos dois conflitos somados em si, é violenta, é<br />

de afrontamento, para o que der e vier. Eis o momento em que ela, para Jasão, apresenta a con-<br />

fluência da segunda ação:<br />

“JOANA - Otário,/ Creonte é ladrão...<br />

JASÃO - Ele é proprietário.../<br />

JOANA - É proprietário seu...<br />

JASÃO - Está co'a lei.../<br />

JOANA - Vou sair e perder o que paguei?/<br />

JASÃO - Você á atrasada...<br />

JOANA - Eu sei, Jasão/ Estou e nunca mais pago um tostão/ O preço que constava na escritura/<br />

eu já paguei” (p. 121).<br />

Na mesma cena, Jasão explica a Joana o motivo de sua separação. Joana, em resposta,<br />

soma o seu abandono ao dos outros, mostrando-se, mais uma vez, um ponto de intercessão en-<br />

tre as ações. O resultado disso ela transfere para Jasão, como uma maldição, uma premonição<br />

do que acontecer com o samba dele, resultado de dupla traição: com ela e com o povo:<br />

“JOANA - Só que essa ansiedade que você diz/ não é coisa minha, não, é do infeliz/ do teu po-<br />

vo, ele sim, que vive aos trancos,/ pendurado nas quinas dos barrancos/ Seu povo é que é ur-<br />

gente, força cega,/ coração aos pulos, ele carrega/ um vulcão amarrado pelo umbigo/ Ele então<br />

não tem tempo, nem amigo,/ nem futuro /.../ tem u'a coisa que você vai perder,/ é a ligação que<br />

você tem com sua/ gente, o cheiro dela, o cheiro da rua,/ você pode dar banquetes, Jasão,/ mas<br />

samba é que você não faz mais não,/ não faz e aí é que você se atocha/ porque vai tentar e sai<br />

samba brocha,/ samba escroto, essa é a minha maldição/ “Gota D'água”, nunca mais, seu Jasão”<br />

(p. 126 e ss).<br />

O) Quando as ações já correm uni<strong>das</strong>, a trama da peça caminha para a sua resolução.<br />

Nesse momento Egeu consegue juntar os moradores da Vila em torno dos objetivos que ele se<br />

propõe: ajudar Joana e ao mesmo tempo unir o povo contra o déspota:<br />

“EGEU - /.../ A fúria e a indignação/ pertencem a Joana. Sua mazela/ é sua. A dor é dela. O<br />

homem dela,/ seu destino, seu futuro, seu chão,/ seu lar e os filhos dela. Acabou. Chora/ em


nome dela quem é amigo dela/ Amigo de Jasão que acenda vela/ em nome dele. Tá entendido?<br />

Agora,/ não pode mais deixar acontecer/ é que o locador, com base legal/ num contrato assim<br />

anti-social,/ venha botar pra fora essa mulher /.../ E já que todo mundo quer falar/ com Creonte<br />

sobre essa prestação/ que nunca acaba, por que não, então/ ir logo duma vez pra matar os dois<br />

assuntos? /.../ Bem, proponho que, sem agitação, a gente vá lá, com comedimento,/ com toda a<br />

calma... /.../ Falar <strong>das</strong> correções e dizer claramente/ que dona Joana é como se fosse a gente.../<br />

Ninguém vai tirar ela do lugar,/ não. Quem tá de acordo levanta a mão” (p. 31 e ss).<br />

P) O povo da Vila, liderado por Egeu, vai ao confronto com Creonte. Porém, não espe-<br />

ravam que Creonte os recebesse, perdoasse as dívi<strong>das</strong>, anunciasse melhorias no conjunto habi-<br />

tacional (tudo como lhe dissera Jasão), e ainda os convi<strong>das</strong>se para trabalhar na festa de casa-<br />

mento de Jasão e Alma. Com essa manobra, Creonte desmobiliza a revolta, desmantela a lide-<br />

rança de Egeu:<br />

“EGEU - Então, Joana, o que Creonte fez/ me pegou de surpresa. Não sei/ como ele, tão ranzin-<br />

za, esta vez/ soube ceder. Nunca imaginei/ que o velho fosse capaz de abrir/ mão de alguma<br />

coisa pra conter/ a insatisfação. Agora é agir/ com paciência. /.../ com essa manobra ele nos<br />

deixa/ falando sozinhos para o vento,/ dá a impressão que toda a minha queixa/ é queixa de ve-<br />

lho rabugento” (p. 139 e ss).<br />

Q) Ao final, Creonte vence. Jasão vence. Na festa de casamento, Creonte faz Jasão sen-<br />

tar na cadeira do seu poder. É a resultante da tragédia brasileira:<br />

“CREONTE - Atenção, pessoal, vou falar rapidamente/ Jasão... vem cá... Meus caros amigos,<br />

agora,/ aproveitando a ocasião e aqui na frente de todo mundo, quero anunciar que de ora/ em<br />

diante a casa tem novo dono. A cadeira/ que foi de meu pai e foi minha vai passar/ pra quem<br />

tem condições, e que é de minha inteira/ confiança, para poder continuar a minha obra” (p.<br />

168).


6.4 - A gota que falta<br />

A segunda ação, e a mais importante no desenvolvimento do tema de Medeia, <strong>Paulo</strong><br />

<strong>Pontes</strong> foi encontrar na Medeia de Vianinha. Acontece que em Vianinha nenhuma <strong>das</strong> variantes<br />

do tema atualizado é determinante no desenrolar da ação. Ao contrário, são elementos postos<br />

para melhor definição do ambiente onde se desenrola a ação, ou, quando não, para reforçar uma<br />

característica da personagem.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> apoiou-se nessas idéias caracterizadoras de ambiente ou personagem e as<br />

desenvolveu na segunda ação de sua peça. Ei-las:<br />

Guadalupe.<br />

A) Em Vianinha, Medeia está ambientada num conjunto residencial pobre, de nome<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, Gota D'água está ambientada num conjunto residen-<br />

cial igualmente pobre, de nome Vila do Meio-dia.<br />

B) Em Vianinha, Jasão é sambista, e o seu samba faz sucesso no rádio. O fato de ele ser<br />

sambista não pesa no conjunto da obra. É apenas uma idéia para caracterizar a personagem, dar-<br />

lhe uma profissão, alguma atividade econômica. O seu samba é citado duas vezes: a primeira na<br />

rubrica de abertura do texto. A segunda, por Medeia. O nome do samba de Jasão: Água do Rio<br />

(de Noel Rosa e Anescar do Salgueiro).<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, ser sambista é a condição básica do sucesso de Ja-<br />

são. Mais do quer uma condição básica, é a chave do texto, o seu enigma contido tanto na pri-<br />

meira quanto na segunda ação. É a imagem poética que revela o limite da insensatez levada ao<br />

extremo, a gota que falta para o transbordamento <strong>das</strong> paixões gerando a tragédia, a convulsão, o<br />

caos tanto social (na segunda ação) quanto humano (na primeira ação). Jasão, enquanto poeta, é<br />

uma espécie de filósofo popular, capaz de entender e condensar em poucas imagens a diversi-<br />

dade da existência, o conflito humano e a opressão social.


C) Em Vianinha, o samba de Jasão foi roubado da mãe de Medeia. Eram versos que sua<br />

mãe cantava 143 . Esse fato, em Vianinha, é apenas um dado lançado para caracterizar o mau ca-<br />

ráter de Jasão.<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, Gota D'água nasce da força do povo, da sua capaci-<br />

dade de suportar a injustiça até o limite de sua elástica paciência, momento que poder tomar<br />

nas mãos o rumo da história. Nasce também do amor de Joana, infindável, transbordante, pleno,<br />

repleto de desejos, capaz de a cada dia se fazer maior para se dar ao amante. Joana e o povo<br />

estão, sintagmaticamente, no mesmo plano. Gota D'água, a canção, prenuncia a tragédia. A fa-<br />

lha de Jasão foi querer ascender sozinho, trair a sua origem, a sua gente, não prestar atenção aos<br />

seus próprios versos.<br />

D) Em Vianinha, Medeia não paga o apartamento há oito meses. O mesmo tempo em<br />

que Jasão sumiu de sua vida, quando saiu para cantar em clubes e nunca mais voltou. O tempo<br />

de oito meses da dívida reforça o tempo de abandono de Medeia. Não chega a constituir-se pro-<br />

blema social, embora Creonte use esse dado para justificar a expulsão de Medeia. Mas oito me-<br />

ses é apenas o tempo em que Medeia parou de viver, esperando a volta de Jasão.<br />

Em <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Chico Buarque, Joana não paga o apartamento há cinco meses. Não<br />

paga porque não pode. Assim como os outros moradores não pagam porque não podem. Aqui o<br />

tempo da dívida constitui-se num problema social, que, por sua vez, fornece a Egeu a ferramen-<br />

ta para fomentar a luta de classes.<br />

6.5 - Alguns breves comentários<br />

Sábato Magaldi registrou a sua primeira impressão da peça: “Qual o segredo da excep-<br />

cional comunicação de Gota D'água, numa platéia que se assemelha a um suadouro? Prova-<br />

velmente, a façanha de terem os autores escritos uma “tragédia da vida brasileira”. A solidarie-<br />

143 51. A título de lembrança: na peça Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> escreveu<br />

em companhia da Alfredo Zemma, a personagem Eugênio encontra a solução para o destino do casal camerizando<br />

as músicas que Eugênia cantava em casa. Na verdade, toda essa discussão sobre plágio parece-nos sem muito<br />

sentido, uma vez que trabalhando juntos há anos e professando os mesmos princípios culturais e ideológicos, a<br />

obra e o pensamento de um autor certamente influenciou a obra e o pensamento do outro.


dade com a oprimida Joana-Medeia, contra a opressão de Creonte, símbolo do poder, e do fraco<br />

Jasão, que o serve. A introdução do mecanismo social numa trama que, sem descurar o ímpeto<br />

de sentimento desencadeado, não se esgota nele. O achado poético de tantos versos e tantos<br />

diálogos. Essas virtudes sobrepujam os defeitos e levam o público a explodir, no final, numa<br />

<strong>das</strong> mais calorosas ovações já registra<strong>das</strong> nos palcos brasileiros” 144 .<br />

Sobre o grande comparecimento do público e a recepção à peça, Chico Buarque comen-<br />

tou: “As pessoas vinham porque viam que era uma peça que dizia respeito à sua realidade. Já<br />

era sensível que elas começavam a se desiludir com o “milagre” brasileiro. Talvez dois anos<br />

antes a problemática da peça fosse considerada absurda, porque se vivia a era do pleno “mila-<br />

gre”. Mas em 75, por exemplo, estourou o problema da casa própria. Aliás, a peça trata um<br />

pouco disso e não de maneira aleatória, pois procuramos informar-nos junto a advogados e a<br />

organização de mutuários. Quisemos falar de pessoas dos extratos mais baixos da sociedade<br />

que embarcaram no “milagre” e confiaram, por exemplo, no sonho da casa própria” 145 .<br />

Macksen Luiz soma em seu depoimento as idéias conti<strong>das</strong> no de Sábato e Chico ao<br />

mesmo tempo: “Em forma de versos, integrando as melodias uma verdadeira procura da lin-<br />

guagem musical. Gota D'água alcança uma comunicação popular insuspeitada. As personagens<br />

falam poeticamente, muitas vezes, mas nunca se tornam eruditas ou falsamente imposta<strong>das</strong>. São<br />

reais, e respondem como seres humanos brasileiros identificados com o seu meio. O texto seria<br />

populista? Certamente que não, já que procura ampliar a análise do meramente impressionista<br />

para levá-la a um plano quase sociológico. Gota D'água não é apenas mais uma peça sobre esta<br />

classe, mas um mergulho até as raízes profun<strong>das</strong> de suas contradições, angústias e aspira-<br />

ções” 146 .<br />

Em outro texto, Sábato Magaldi voltou a falar sobre a peça: “Atualiza<strong>das</strong> as linhas ge-<br />

rais da tragédia grega pelas regras da verossimilhança moderna, com um sentido de crítica à<br />

realidade brasileira, Gota D'água impõe-se principalmente pela beleza da linguagem teatral.<br />

Desse ponto de vista, a peça inova o estilo de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e anuncia uma dramaturgia mais<br />

exigente” 147 .<br />

144 MAGALDI, Sábato. Apud Jornal Correio Brasiliense. Brasília, 29 de dezembro de 1976.<br />

145 OLIVEIRA-JOUÉ, Lisa. Op. cit. p. 154.<br />

146 LUIZ, Macksen. “Gota D'água não é só uma música do Chico”. Isto é, 29 de junho de 1977, p. 44.<br />

147 MAGALDI, Sábato. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Jornal da Tarde. São <strong>Paulo</strong>, 28 de dezembro de 1976.


Sábato Magaldi, sempre atento ao que acontece no cenário teatral brasileiro, sentia o sal-<br />

to evolutivo que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> realizava a cada nova obra. Talvez Gota D'água fosse a anuncia-<br />

ção de uma dramaturgia mais exigente. Mas o tempo de vida de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> não esperou para<br />

ver.<br />

6.6 - Uma reflexão sobre a sociedade brasileira<br />

“Eu tenho inquietações interiores para exprimir. Eu sou, como todo homem da classe<br />

média de 36 anos, no Brasil, um sujeito que tem suas neuroses, suas encucações. E elas fervi-<br />

lham na minha cabeça. Não me custa nada sentar na m quina e escrevê-las, tentar botar pra fora<br />

e vomitá-las. Mas voluntariamente Chico e eu resolvemos abrir mão desse capital subjetivo que<br />

são as nossas dores, e tratar de um tema objetivo, da multidão, como uma tentativa de quebrar<br />

essa separação que havia entre o teatro que estávamos fazendo, e as amplas cama<strong>das</strong> popula-<br />

res” 148 . Foi assim que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> colocou-se diante do público em relação à sua obra.<br />

Mas ainda não satisfeito com a obra, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, como de hábito, escreve o prefácio,<br />

cujo objetivo é conduzir previamente o fruidor a sua intenção primeira.<br />

O prefácio de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> à Gota D'água constitui-se numa <strong>das</strong> mais lúci<strong>das</strong> reflexões<br />

sobre a sociedade brasileira, sendo ainda hoje de grande validade, não só porque condensa em<br />

poucas e claras linhas o conflito vivido pela sociedade durante as déca<strong>das</strong> de 60 e 70, mas tam-<br />

bém reflete, com notável precisão, o desenvolvimento, nos anos 80, do quadro social criado<br />

pelo regime ditatorial 149 .<br />

São três os pontos básicos do seu raciocínio:<br />

148 PONTES, <strong>Paulo</strong>. “O último artigo”. Última Hora, Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1976.<br />

149 Vide nota 139. To<strong>das</strong> as citações serão da mesma fonte.


6.6.1 - A ascensão da classe média<br />

Diz o texto: “A brutal concentração da riqueza elevou, ao paroxismo, a capacidade de<br />

consumo de bens duráveis de uma parte da população, enquanto a maioria ficou no ora-veja.<br />

Forçar a acumulação de capital através da drenagem de renda <strong>das</strong> classes subalternas não é no-<br />

vidade nenhuma /.../ No futuro, quando se puder medir o nível de desgaste a que foram subme-<br />

ti<strong>das</strong> as classes subalternas, nós vamos descobrir que a revolução industrial inglesa foi um mo-<br />

vimento filantrópico, comparado com o que se fez para acumular o capital do milagre” (p. xi).<br />

Esse é o quadro geral no qual se fundamenta a sua reflexão. O desenvolvimento dele<br />

surge agora: “É indiscutível que o autoritarismo foi condição necessária à implantação de um<br />

modelo de organização social tão radicalmente antipopular. A autoridade rigidamente centrali-<br />

zada permitiu que se pusesse em prática o elenco de medi<strong>das</strong> (política salarial, monetária, tribu-<br />

tária etc.) que modernizaram, à feição capitalista, uma parte da sociedade brasileira, enquanto<br />

se intensificava o processo de empobrecimento da parte maior” (p. xii).<br />

Com base na concentração de riqueza e no autoritarismo como forma de consolidar essa<br />

concentração, emerge a classe média como beneficiária menor do sistema: “No movimento que<br />

redundou num avanço tão grande dos interesses <strong>das</strong> classes dominantes sobre os <strong>das</strong> classes<br />

subalternas, as cama<strong>das</strong> médias têm desempenhado um papel fundamental. Elas, ao lado do<br />

autoritarismo, e de forma mais profunda, têm legitimado o milagre. Seria ingênuo, a partir daí,<br />

fazer qualquer julgamento moral da classe média brasileira. Se a raiz do problema fosse moral,<br />

viver não dava trabalho nenhum. A verdade é que o capitalismo caboclo atribuiu uma função,<br />

no tecido produtivo, aos setores mais qualificados <strong>das</strong> cama<strong>das</strong> médias. Não apenas como com-<br />

pradores, beneficiários do desvario consumista, mas, sobretudo, como agentes da atividade e-<br />

conômica” (p. xii).<br />

A partir dessa constatação, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> concluiu que o capitalismo, então, passou a a-<br />

tribuir função mais dinâmica aos segmentos médios da sociedade. Mas, antes de receberem essa<br />

atribuição, havia (num outro ponto de seu raciocínio) uma certa tradição de rebeldia nos setores<br />

intelectualizados da pequena burguesia: estavam presos, assim como a sua classe, a uma estru-<br />

tura social rígida, quase imóvel, dando vez para que a intelectualidade nascida na camada média<br />

vivesse a sua rebeldia traduzida em ironia, deboche, boemia, fascínio pela utopia e “um certo<br />

orgulho da própria marginalidade”. De todo modo o inconformismo, “e a disponibilidade ideo-<br />

lógica de setores da pequena burguesia forma em muitos momentos de nossa história, instru-


mentos de expressão <strong>das</strong> necessidades <strong>das</strong> classes subalternas” (p. xiv). Havia, então, entre o<br />

povo e a intelectualidade pequeno-burguesa, um canal de expressão, de comunicação.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> acreditava que o movimento de ascensão <strong>das</strong> cama<strong>das</strong> médias, somado ao<br />

processo altamente seletivo que o capitalismo impõe, provocou o afastamento da comunicação<br />

que havia entre intelectuais e povo: “As classes dominantes produziram o corte que seccionou a<br />

base dos segmentos superiores da hierarquia social. Isola<strong>das</strong>, às classes subalternas restou a<br />

marginalidade abafada, contida, sem saída. Individualmente, ou em grupo, um homem capaz,<br />

ou uma elite <strong>das</strong> cama<strong>das</strong> inferiores pode ascender e entrar na ciranda. Como classe, estão re-<br />

duzi<strong>das</strong> à indigência política” (p. xiv).<br />

Gota D'água, segundo <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, é “uma reflexão sobre esse movimento que se ope-<br />

rou no interior da sociedade, encurralando as classes subalternas. É uma reflexão insuficiente,<br />

simplificadora, ainda perplexa, não tão substantiva quanto necessário, pois o quadro é muito<br />

complexo e só agora emerge <strong>das</strong> sombras do processo social para se constituir no traço domi-<br />

nante do perfil da vida brasileira atual” (p. xv).<br />

6.6.2 - O povo como identidade nacional<br />

“A partir da década de 50 - disse <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> - um contingente cada vez maior da inte-<br />

lectualidade foi percebendo que a classe média de um país como o nosso - colonizado, desviado<br />

do controle sobre seu próprio destino - vive dilacerada, sem identidade, não se reconhece no<br />

que produz, no que faz e no que diz. Ela só tem uma chance de sair da perplexidade quando se<br />

descobre ligada à vida concreta do povo, quando faz <strong>das</strong> aspirações do povo um projeto que dê<br />

sentido à sua vida. Isso porque o povo, mesmo expropriado de seus instrumentos de afirmação,<br />

ocupa o centro da realidade - tem aspirações, passado, tem história, tem experiência, concretu-<br />

de, tem sentido. É, por conseguinte, a única fonte de identidade nacional” (p. xvi).<br />

A interrupção do diálogo entre o povo e intelectualidade foi provocada a partir de 1964,<br />

por duas forças convergentes: o autoritarismo e a modernização do processo produtivo, que<br />

passou então a dar um caráter imediato, industrial, à produção de cultura. “Agora que a experi-<br />

ência de todos esses anos já nos permite uma avaliação, fica cada vez mais claro que nós temos


que tentar, de to<strong>das</strong> as maneiras, a reaproximação com nossa única fonte de concretude, de<br />

substância e até de originalidade: o povo brasileiro. /.../ É preciso, de to<strong>das</strong> as maneiras, tentar<br />

fazer voltar o nosso povo ao nosso palco. Do jeito que estiver ao alcance de cada criador: com o<br />

show, a comédia de costumes, a revista, com a dramaturgia mais ambiciosa, como se puder” (p.<br />

xvii).<br />

6.6.3 - A necessidade da palavra<br />

Como resultado de tudo o que foi dito, houve, na cultura e, em particular no teatro brasi-<br />

leiro, a perda da palavra. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> remete seu raciocínio para as experiências teatrais produ-<br />

zi<strong>das</strong> no início da década de 70, cuja característica principal é a ascendência de estímulos sono-<br />

ros e visuais sobre a palavra: “Ao lado de to<strong>das</strong> as pressões amesquinhadoras, que tornaram<br />

impossível a encenação do discurso dramático claro sobre a realidade brasileira, uma fobia pela<br />

razão ia tomando conta de nossa criação teatral. Era improvável que se tratasse de um crise da<br />

razão, num país como este, com tudo por ser feito, e estruturado de forma tão irracional que a<br />

lógica mais estreitamente cartesiana tem eficácia como instrumento de percepção” (p. xviii) -<br />

Eis, então, o que de verdade aconteceu, segundo <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>: “As transformações foram se<br />

acumulando no interior da sociedade sem que a cultura, posta à margem, se desse conta. Até um<br />

ponto em que o processo social ficou muito mais complexo do que a cultura era capaz de en-<br />

tender e formular. E este passou a ser o centro da crise da cultura brasileira: criou-se um abismo<br />

entre a complexidade da vida brasileira e a capacidade de sua elite política e intelectual de pen-<br />

sá-la” (p. xviii).<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> considerava que a “estreiteza dos limites impostos à criação cultural”, ou<br />

por outra, a ação da censura, foi a grande responsável pela crise que se abateu sobre o teatro<br />

brasileiro, mas, mesmo assim, “nós nos iludimos se não reconhecemos que, a partir de determi-<br />

nado momento, houve incapacidade real de pensar nossa realidade” (p. xviii).<br />

De todo modo, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> diz que já no ano de 1975, esse quadro de incapacidade de<br />

pensar a realidade estava mudando, sobretudo em outras áreas, com o surgimento de coisas no-<br />

vas e estimulantes, tais como o jornalismo político, os ciclos de debate do teatro Casa Grande e,<br />

inclusive, a tese de doutoramento. Mas isso só não bastava: “Não foi a razão quem fracassou no


nosso caso; quem fracassou foi nossa racionalidade estreita. Agora é preciso reinstrumentalizá-<br />

la. A linguagem, instrumento do pensamento organizado, tem que ser enriquecida, desdobrada,<br />

aprofundada, alçada ao nível que lhe permita captar e revelar a complexidade de nossa situação<br />

atual. A palavra, portanto, tem que ser trazida de volta, tem que voltar a ser nossa aliada” (p.<br />

xix).


O Desfecho da Festa<br />

“Quem tem um sonho não dança”<br />

Cazuza<br />

A necessidade de recuperar a palavra objetivava melhor racionalizar o ser nacional, lan-<br />

çar luz sobre quem somos nós, os brasileiros. Só assim seria possível determinarmos o nosso<br />

destino.<br />

Por isso, a sua constante preocupação com os problemas da cultura: “A visão unilateral<br />

do popular ou do nacional (confusão que tem sido feita por muita gente que escreve sobre arte e<br />

cultura popular) leva, inevitavelmente, a uma posição estreita, por mais sincera que seja. Há<br />

cultura nacional e popular na luta do Pe.Ventura, do ator Vasques, em Martins Penna, na comé-<br />

dia dos anos trinta, em Humberto Mauro, no estilo de representar de Jaime Costa, de Oscarito,<br />

em tantos filmes do Cinema Novo, na antológica música carnavalesca dos anos 30-40, na dra-<br />

maturgia do Arena, no Glauber, em Zé Celso, em Chico Buarque, em Caetano, em Paulinho da<br />

Viola etc.” 150 .<br />

Era preciso quebrar o conceito de elite, de uma cultura fechada, aurática, dominada por<br />

uns poucos, praticada por uns tantos, refugiada em recintos pequenos, afastados, distantes da<br />

sensibilidade inquieta do grande público: “Nós escrevemos e representamos, hoje, sem referên-<br />

cia concreta diante de nós. Encerrado em boutique de Zona Sul, fazendo teatro para o mesmo<br />

público, sempre, e um público altamente homogeneizado, nossa pesquisa vai ficando cada vez<br />

mais abstrata. Se você tem um público diversificado, com responsabilidades sociais, um público<br />

150 PONTES, <strong>Paulo</strong>. “O último artigo”. Op. cit.


que tem interesses e quer lutar por eles, e representa para ele num teatro grande, você passa a<br />

ter uma referência concreta em torno da qual realiza sua pesquisa. Esse público dá, ao mesmo<br />

tempo, concretude e racionalidade à sua pesquisa, à sua experiência. Esse é um público que<br />

pode popularizar a narrativa teatral e, ao mesmo tempo, dar concretude e racionalidade (porque<br />

esse público é a própria realidade) ao repertório do teatro brasileiro. O fato é que está provado<br />

que há, em to<strong>das</strong> as cama<strong>das</strong>, muito mais gente interessada em ver teatro do que o teatro que<br />

nós fazemos é capaz de atingir. Então só resta uma saída: ajustar a nossa capacidade criadora à<br />

sensibilidade desse grande público. Fora disso, é ficar na boutique, recebendo todo dia aquela<br />

meia dúzia de pessoas, numa sala pequena, que coagula a sensibilidade do público. Público<br />

grande e diverso numa sala de espetáculo ampla - isso dar ao teatro brasileiro mais concretude,<br />

mais substância social, mais ajustamentos aos grandes temas da vida brasileira, dar ao teatro<br />

brasileiro, sobretudo, mais teatralidade” 151 .<br />

Fernando Peixoto, em artigo publicado no jornal Correio <strong>das</strong> <strong>Arte</strong>s, disse que, até aquela<br />

data, Gota D'água tinha realizada mais de 300 apresentações, recebendo um público de cerca de<br />

250 mil espectadores: “Uma cifra espantosa, que fascinava <strong>Paulo</strong> porque era a prova, na prática,<br />

de tudo que ele defendia com paixão e confiança: existe um público imenso para o teatro desde<br />

que este abandone o subjetivismo e o elitismo, aproximando-se da construção de uma cultura<br />

nacional-popular. Toda sua obra como escritor e toda sua incansável participação como intelec-<br />

tual consciente de suas responsabilidades, fiel a seus compromissos, combativo e corajoso, coe-<br />

rente e lúcido, generoso e inflexível, foi esta procura” 152 .<br />

Mesmo doente, como sempre, <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> não descansava, e nos últimos meses que<br />

lhe restavam de vida, debruçou-se sobre teses de sociologia e política, direcionando o seu traba-<br />

lho para análises, estruturação de seminários e debates: “Sua preocupação era estudar a defasa-<br />

gem entre o pensamento crítico do intelectual progressista brasileiro e uma realidade que se<br />

transformou, mas que ele, sentindo-se impotente e alimentando esta impotência, insiste em que-<br />

rer estudar a partir dos mesmos valores, dos mesmos conceitos, não revisado. Uma proposta<br />

crítica que tentaria fazer uma sondagem em profundidade em problemas vividos cotidianamente<br />

por todos. Inclusive por ele” 153 .<br />

151 PONTES, <strong>Paulo</strong>. “Artigo Inédito”. Jornal do Brasil, 29 de dezembro de 1976.<br />

152 PEIXOTO, Fernando. Artigo depois transcrito para o livro Teatro em Pedaços. Op. cit. p. 288.<br />

153 Idem, ibidem.


<strong>Paulo</strong> queria, entre outras coisas, dar continuidade ao ciclo de debates que se realizara<br />

no teatro Casa Grande. Desta vez, pelos planos, o novo ciclo se chamaria Projeto Popular de<br />

Cultura e teria como base quatro peças que fariam um aprofundamento epistemológico do Bra-<br />

sil. Das quatro peças, uma se chamaria Luna Bar - que seria escrita pelo próprio <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> -,<br />

pretendendo analisar o comportamento da classe média. A outra seria escrita por Antonio Cal-<br />

lado, dessa vez enfocando o trabalho no campo. Haveria ainda espetáculos sobre o trabalhador<br />

urbano, por Fernando Peixoto e Guarnieri e, finalmente, um trabalho que focasse a marginali-<br />

dade - provavelmente por Chico Buarque. Com Chico Buarque, ainda existia um outro plano:<br />

escrever uma peça que se chamaria O dia em que Frank Sinatra veio ao Brasil.<br />

Mas nada disso foi possível. Não houve tempo suficiente. Fernando Peixoto relata os<br />

instantes finais de sua vida: “Nos últimos dias, sobretudo nas últimas horas, foi a luta de um<br />

cérebro vigoroso contra um corpo já esquelético que se destruía por dentro. <strong>Paulo</strong> falava sem<br />

parar, palavras desencontra<strong>das</strong>, mas evidência de uma dilacerante batalha na ânsia de viver con-<br />

tra uma morte que se aproximava inevitável. Pouco antes de falecer, às 11:50 hs. do dia 27, teve<br />

um dramático instante de lucidez: chamou o médico, disse que ia morrer e queria ser salvo. Mas<br />

já era o fim” 154 .<br />

Era o dia 27 de dezembro de 1976.<br />

Sábato Magaldi relata: “A morte não foi uma surpresa para os amigos mais chegados.<br />

Todos já a esperavam desde os últimos 15 dias, com o agravamento de seu estado de saúde. O<br />

paraibano <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> morreu no Hospital Samaritano, no Rio, onde estava internado desde<br />

setembro. E foi sepultado esta manhã, segundo sua vontade expressa, no Cemitério São Fran-<br />

cisco Xavier (do Caju), ao lado do seu amigo e também teatrólogo Oduvaldo Vianna Filho,<br />

morto há dois anos e também de câncer, como <strong>Pontes</strong>” 155 .<br />

No dia 28 de dezembro, dia do sepultamento de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, foi lido um texto em sua<br />

homenagem, em cena aberta, por todos os espetáculos encenados no Rio: “Nós somos artistas<br />

de teatro, e ao longo do tempo temos nos acostumado a representar diante de quaisquer condi-<br />

ções. Mas hoje é um dia particularmente triste para nós e para todo o teatro brasileiro; porque é<br />

o dia que marca o sepultamento de um dos mais expressivos nomes de nossa arte. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong><br />

/.../ era, além de um dramaturgo talentoso, uma <strong>das</strong> pessoas que melhor pensaram o fenômeno<br />

cultural brasileiro. Sua influência se espalhou por todos nós, já que exercia uma liderança natu-<br />

ral, graças à sua poderosa inteligência e rara lucidez /.../ Paulinho amava o teatro e amava o<br />

154 Idem, ibidem, p. 287.<br />

155 MAGALDI, Sábato. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Op. cit


povo, que sonhou livre e no exercício de suas potencialidades. Lutou pela liberdade de expres-<br />

são, por uma cultura nacional e popular, pela regulamentação de nossa profissão, e foi incansá-<br />

vel em to<strong>das</strong> essas atividades /.../ Também lutou para que os teatros permanecessem abertos,<br />

acima de quaisquer pressões ou dificuldades; e por isso não cancelaremos o espetáculo desta<br />

noite” 156 .<br />

Tarso de Castro, depois de relatar seus últimos encontros com <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, inclusive<br />

no hospital, onde, internado, <strong>Paulo</strong> não sabia se devia fazer a operação que resultou inútil, Tar-<br />

so confessa: “Não tenho muito a dizer em público sobre <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>. Nós, entretanto, perde-<br />

mos um cara preocupado na criação, na liberdade, no homem. E a censura perdeu um clien-<br />

te” 157 .<br />

Comovida, Tânia Pacheco se faz perguntas irrespondíveis, mesmo pela metafísica, sobre<br />

o sentido que envolve a existência humana: “O que é que mata um homem? O que é que enterra<br />

um homem? Decididamente, não é o automático gesto dos coveiros vedando com cimentos as<br />

gretas <strong>das</strong> lápides brancas. Um homem pode ser aparentemente vencido pelo câncer. Pode de-<br />

saparecer da nossa visão, encerrado numa caixa. Mas um homem é maior do que isso. E perma-<br />

nece. Em tudo o que criou, em tudo o que defendeu, na memória dos amigos, no remorso dos<br />

inimigos. Um homem, mesmo calado, fala. Mesmo amordaçado, fala. Mesmo morto e enterra-<br />

do, fala” 158 .<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, nos últimos instantes de sua vida, sentiu a proximidade do fim e queria ser<br />

salvo. Tinha trinta e seis anos, vividos de esperança, como brasileiro que era - como no título<br />

do seu show. E foi com a esperança que lutou. Uma esperança racional, lógica, uma arquitetura<br />

de idéias que projetava um destino justo para um país como o nosso. Por isso lutou. E lutou<br />

contra a morte que sempre o perseguiu de perto. Mas não conseguiu evitar que, mais cedo do<br />

que esperava, as mãos do abismo envolvessem a sua existência num aperto fraterno.<br />

156 Carta sem assinatura, lida nos teatros do Rio. Jornal do Brasil, 29 de dezembro de 1976.<br />

157 CASTRO, Tarso de. “Algumas coisas de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Folha de São <strong>Paulo</strong>, 28 de dezembro de 1976.<br />

158 PACHECO, Tânia. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Gota D'água”. O Globo. Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1976.


Cronologia<br />

1940 - Nasce Vicente de <strong>Paulo</strong> de Holanda <strong>Pontes</strong>, no dia 8 de novembro, na maternidade do<br />

Hospital Pedro I, em Campina Grande, Pb. Filho de João <strong>Pontes</strong> Barbosa e Laís Carvalho de<br />

Holanda.<br />

1949 - Morando em João Pessoa, já frequentava a Biblioteca Pública do Estado, onde lia os<br />

seus primeiros livros.<br />

1951 - Escreve uma carta ao Diário Carioca, do Rio de Janeiro, onde faz um apelo para que<br />

todos os brasileiros se integrassem na Cruzada de Combate ao Câncer, empreendida pelo médi-<br />

co paraibano Napoleão Laureano, vítima da doença. Napoleão Laureano o havia operado anos<br />

antes de um defeito nos pés.<br />

1956 - A sua primeira participação no teatro foi como orador, na estréia da peça A Beata Maria<br />

do Egipto, de Raquel de Queiroz, pelo Teatro do Estudante da Paraíba.<br />

1958 - Primeira viagem ao Rio num avião da FAB. A passagem fora conseguida por seu pai.<br />

1959 - Começa a trabalhar na Rádio Tabajara da Paraíba, em João Pessoa.<br />

1961 - Conflitos de terra provocam morte de camponeses em Mari, Pb. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Wladi-<br />

mir de Carvalho vão fazer a cobertura jornalística. <strong>Paulo</strong>, em cima de um caixote, põe-se a dis-<br />

cursar na praça de Mari.


1962 - Recebe o prêmio de jornalismo em parceria com Jório Machado, por uma reportagem<br />

sobre Campina Grande, Campina dos 7 instrumentos. O concurso era patrocinado pela Varig e<br />

organizado pelo jornal Correio da Paraíba.<br />

- Cria, escreve e apresenta o programa Rodízio, na Rádio Tabajara da Paraíba. O programa mo-<br />

nopolizava diariamente o horário do meio-dia. Suas histórias e personagens começavam a ser<br />

comenta<strong>das</strong> na cidade.<br />

- Assume o cargo de Diretor Artístico da Rádio Tabajara.<br />

- Hospitalizado para uma operação no pulmão, recebe a visita de Oduvaldo Vianna Filho, Via-<br />

ninha, que excursionava pelo Nordeste apresentando espetáculos pelo Centro Popular de Cultu-<br />

ra.<br />

1963 - Trabalha na Campanha de Educação Popular, CEPLAR, organismo criado pelo governo<br />

Pedro Gondim, a exemplo do Movimento de Cultura Popular, criado no Recife pelo governo<br />

Miguel Arraes. Esses organismos tinham como meta promover a educação, a alfabetização po-<br />

pular. O MCP do Recife tinha entre seus membros o professor <strong>Paulo</strong> Freyre, criador de um re-<br />

volucionário método de alfabetização de adultos. O MCP foi a fonte de onde nasceu o CPC e<br />

todos os movimentos semelhantes.<br />

1964 - Março: Na condição de participante da CEPLAR, viaja ao Rio de Janeiro para participar<br />

de reunião no CPC.<br />

- 1º de abril: O golpe militar derruba o Presidente João Goulart. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> se sente impedido<br />

de voltar para a Paraíba.<br />

- Dezembro: Juntamente com Vianinha, Armando Costa, Ferreira Gullar, Tereza Aragão, Pichin<br />

Plá, Denoy de Oliveira e João <strong>das</strong> Neves, cria o grupo Opinião. A estréia acontece com o show<br />

Opinião, escrito por <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, Vianinha e Armando Costa.<br />

1967 - Cisão no grupo Opinião, provocando a saída de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, Vianinha e Armando Cos-<br />

ta.


- <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> volta para a Paraíba. Cria o Teatro de Arena da Paraíba.<br />

- Escreve Paraí-bê-a-bá.<br />

1968 - Janeiro, 29: Paraí-bê-a-bá estréia no Rio de Janeiro, no Teatro Nacional de Comédia,<br />

representando a Paraíba no IV Festival Nacional de Teatro do Estudante.<br />

- Fevereiro, 16: Paraí-bê-a-bá estréia em João Pessoa, no Teatro Santa Roza, com Ednaldo do<br />

Egypto à frente do elenco. Direção de Elpídio Navarro e Rubens Teixeira.<br />

- Através de Nádia Maria, recebe convite de Almeida Castro para compor a equipe de criação<br />

da TV Tupi. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> indicou Vianinha e Armando Costa para juntos formarem a nova<br />

equipe.<br />

- Na TV Tupi cria o programa Bibi - Série Especial. Juntamente com Vianinha, escreve os tex-<br />

tos do programa.<br />

1969 - Escreve e estréia o show Brasileiro, Profissão Esperança, inspirado na vida, nos textos e<br />

na música de Antonio Maria e Dolores Duran. O show é dirigido por Bibi Ferreira, com quem<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> se casa.<br />

1971 - Escreve Um Edifício Chamado 200. O título dessa peça era inicialmente Barata Ribeiro<br />

200, mas por pressão dos moradores do condomínio - e da censura federal - <strong>Paulo</strong> mudou o<br />

título.<br />

1972 - Recebe o prêmio de “Autor Revelação” em São <strong>Paulo</strong>, pelo texto Um Edifício Chamado<br />

200.<br />

- Escreve Check-up.<br />

- Escreve Dr. Fausto da Silva.<br />

- Agosto, 15: juntamente com Flávio Rangel, traduz O Homem de la Mancha, de Dale Wasser-<br />

man, que estréia no Teatro Municipal de Santo André, São <strong>Paulo</strong>, com a direção de Flávio Ran-


gel. As letras originais são de Joe Darion, músicas de Mitch Leigh. Na versão brasileira as le-<br />

tras são de Chico Buarque e Ruy Guerra, e a direção musical de Murilo Alvarenga. <strong>Paulo</strong> Au-<br />

tran e Bibi Ferreira faziam os papéis centrais.<br />

1973 - Prêmio “Governador do Estado da Guanabara” pela peça Check-up.<br />

- Escreve com Alfredo Zemma a peça Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.<br />

1974 - Julho, 16: Morre no Rio de Janeiro Oduvaldo Vianna Filho. <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> escreveu na<br />

ocasião: “Só consigo vislumbrar, num relance, a idéia de que, diante de tanta coisa que ele ain-<br />

da tinha por fazer, teria sido preferível, para mim que conheci tão bem to<strong>das</strong> as suas ilimita<strong>das</strong><br />

possibilidades, que, em 1974, o pulmão doente, em vez do dele, ainda fosse o meu” (programa<br />

da peça Rasga Coração, de Vianinha. Rio de Janeiro, 1980).<br />

1975 - Escreve o show Opinião 75.<br />

- Dezembro: Estréia Gota D'água, escrito em parceria com Chico Buarque. Com Bibi Ferreira,<br />

Oswaldo Loureiro, Luiz Linhares, Roberto Bonfim nos papéis principais. Direção musical de<br />

Dory Caymmi e direção geral de Gianni Ratto.<br />

1976 - Fevereiro: Participa do I Festival de <strong>Arte</strong> de Areia, Paraíba, onde ministra curso sobre<br />

dramaturgia brasileira.<br />

- Dezembro, 27: Morre no Rio de Janeiro, no Hospital Samaritano, às 11:30 hs., vítima de cân-<br />

cer no estômago.<br />

- Dezembro, 28: Enterrado no Cemitério São Francisco Xavier, no Caju, às 9:00 hs., na quadra<br />

55. Na noite do seu sepultamento foi lida em cena aberta, em todos os teatros do Rio, uma carta<br />

de condolências da classe teatral.<br />

- 1977 - Fevereiro, 8: No Teatro Carlos Gomes, Rio, a classe teatral se reúne para uma homena-<br />

gem a <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, apresentando trechos de suas peças, shows e artigos. O ator Ednaldo do<br />

Egypto apresenta um trecho de Paraí-bê-a-bá.


1981 - A Associação Carioca de Empresários Teatrais, a ACET, cria o “Prêmio <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”,<br />

para homenagear os melhores profissionais do ramo, em to<strong>das</strong> as categorias da atividade teatral.


I - Bibliografia Específica<br />

Bibliografia<br />

1 - Obras de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> para rádio, teatro e televisão<br />

- Rodízio. Texto em apostila. Arquivo do autor.<br />

- Paraí-bê-a-bá. João Pessoa, sem editora, sem data. Arquivo do autor.<br />

- Check-up. Texto em apostila. Arquivo da UFBa, Salvador.<br />

- Dr. Fausto da Silva. Rio de Janeiro, revista da SBAT, nº 405, maio/junho de 1975.<br />

- C/ ZEMMA, Alfredo. Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. São <strong>Paulo</strong>: Versus,<br />

1977.<br />

- C/ BUARQUE, Chico. Gota D'água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.<br />

- C/ VIANNA FILHO, Oduvaldo. Sem Saída, O Justiceiro, Um Homem Chamado 320, De Re-<br />

pente, Uma visita, A Testemunha, A Vida Por um Fio, Uma Noite de Terror, Por Favor, Moça,<br />

não Morra, É Preciso Salvar Neusinha Também. Rio de Janeiro: Biblioteca do Inacen (Ibac).<br />

2 - Artigos e Prefácios de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>:<br />

- “O autor brasileiro no teatro”. São <strong>Paulo</strong>: Versus, 1977.<br />

- “O autor não pode viver só de teatro”. Rio de Janeiro: Jornal Última Hora, 17 de janeiro de<br />

1973.<br />

- “Inédito”. Artigo inédito. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 29 de dezembro de 1975.<br />

- “Viva Vianna”. Programa da peça Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho. Rio de Janeiro,<br />

1980.


- C/ VIANNA FILHO, Oduvaldo & COSTA, Armando. “As intenções do Opinião”. Rio de<br />

Janeiro: Edições do Val, 1965.<br />

- “Por que um espetáculo sobre a Paraíba?” João Pessoa, sem editora, sem data, arquivo do au-<br />

tor.<br />

- “Um Edifício Chamado 200”. São <strong>Paulo</strong>: <strong>Arte</strong> em Revista nº 6, Kairós, 1981.<br />

- “Check-up”. São <strong>Paulo</strong>: <strong>Arte</strong> em Revista nº 6, Kairós, 1981.<br />

- “Algumas palavras sobre Fausto da Silva”. Rio de Janeiro: Revista da SBAT, nº 405, mai-<br />

o/junho de 1975.<br />

- “O depoimento dos autores”. Programa da peça Gota D'água. Depois prefácio à edição da o-<br />

bra. Rio de Janeiro, 8 de dezembro de 1975.<br />

3 - Entrevistas de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>:<br />

- “O teatro não vai ao povo nem o povo vai ao teatro”, a Sérgio Fonta. Livro de Cabeceira do<br />

Homem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.<br />

- “A última entrevista”. Rio de Janeiro: Última Hora, 25 de dezembro de 1976.<br />

- “O teatro em busca da distensão”, c/ Flávio Rangel & outros. Revista Visão, 9 de junho de<br />

1975.<br />

- “O prenúncio da resistência”. Santos, jornal ATribuna, 24 de dezembro, ano não esclarecido.<br />

- “Tromba d'água”, c/ Bibi Ferreira & outros. Rio de Janeiro: jornal Pasquim, data não esclare-<br />

cida.<br />

- “Entrevista Inédita”. São <strong>Paulo</strong>: Versus, 1977.<br />

4 - Textos de referência para <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> escrever algumas de suas obras:<br />

- EURIPÍDES. Medeia. Trad. Cabral de Nascimento. Lisboa: Inquérito, sem data.<br />

- GOETHE. Fausto. Trad. Jenny Klabin Segall. São <strong>Paulo</strong>: Editora da USP, 1981.<br />

- VIANNA FILHO, Oduvaldo. Medeia. Texto em apostila. Santos, arquivo do jornal A Tribu-<br />

na.


5 - Artigos sobre <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>:<br />

- BRAGA, Gilberto. “Papo com <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Rio de Janeiro: O Globo, 8 de maio de 1975.<br />

- CARVALHO, Vladimir. “Documentário de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. João Pessoa: Correio <strong>das</strong> <strong>Arte</strong>s, 23<br />

de janeiro de 1977.<br />

- CASTRO, Tarso de. “Algumas coisas de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Folha de S. <strong>Paulo</strong>, 28 de dezembro de<br />

1976.<br />

- CHRISTINA, Helena. “A comédia redescoberta”. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 19 de se-<br />

tembro de 1972.<br />

- CORREIA NETO, Alarico. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> queria ver o povo no palco”. Recife, Diário de Per-<br />

nambuco, 4 de janeiro de 1977.<br />

- FABIANO, Ruy. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> - A gota d'água que há de virar torrente”. Rio de Janeiro, Luta<br />

Democrática, 30 de dezembro de 1976.<br />

- FARIAS LIMA, Rodrigo. “Um exemplo a perpetuar”. Rio de Janeiro, Boletim da ACET, 10<br />

de fevereiro de 1981.<br />

- GOMES, Sérgio. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> - Gota d'água contra a maré”. Folha de S. <strong>Paulo</strong>, 21 de de-<br />

zembro de 1976.<br />

- GUIMARÃES, Márcia. “Em vez do banquete, a gota d'água”. Rio de Janeiro, Última Hora, 28<br />

de novembro de 1976.<br />

- GUZIK, Alberto. “Morte triste e temporã”. Rio de Janeiro, Última Hora, 8 de janeiro de 1977.<br />

- JOFFILY, José. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>, 10 anos depois”. Recife, Diário de Pernambuco, 13 de feverei-<br />

ro de 1987.<br />

- LEVI, Clóvis. “Vamos todos ao Carlos Gomes homenagear <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Rio de Janeiro, O<br />

Globo, 7 de fevereiro de 1977.<br />

- LUIZ, Macksen. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 9 de fevereiro de 1977.<br />

- MACHADO, Jório & outros. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>: a escalada do sucesso”. João Pessoa, jornal O<br />

Momento, 31 de dezembro de 1976.<br />

- MAGALDI, Sábato. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. O Estado de S. <strong>Paulo</strong>, 28 de dezembro de 1976.<br />

- MELO, <strong>Paulo</strong>. “Um artista chamado <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. João Pessoa, Correio da Paraíba, 2 de<br />

junho de 1972.<br />

- MELO, <strong>Paulo</strong>. “O Patrono <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Areia, Programa do Festival de Verão, 30 de janei-<br />

ro de 1977.


- MENDES, Oswaldo. “A difícil arte da resistência”. Rio de Janeiro, éltima Hora, 2 de março<br />

de 1977.<br />

- MICHALSKI, Yan. “Empresários criam o prêmio <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Rio de Janeiro, Jornal do<br />

Brasil, 18 de junho de 1984.<br />

- PACHECO, Tânia. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e Gota D'água”. Rio de Janeiro, O Globo, 29 de dezembro<br />

de 1976.<br />

- PACHECO, Tânia. “Vamos respirar a noite de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Rio de Janeiro, O Globo, 9 de<br />

fevereiro de 1977.<br />

- PEIXOTO, Fernando. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. João Pessoa, Correio <strong>das</strong> <strong>Arte</strong>s, 23 de janeiro de 1977.<br />

- QUEIROZ, <strong>Paulo</strong>. “A cara do povo do jeito que ela é”. João Pessoa, O Norte, 14 de fevereiro<br />

de 1977.<br />

- SANTOS, Alex. “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. João Pessoa, O Norte, 25 de janeiro de 1977.<br />

- TUMSCITZ, Gilberto. “O voo mais alto de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Rio de Janeiro, O Globo, 7 de a-<br />

gosto de 1972.<br />

- VENTURA, Mary. “As coisas sabi<strong>das</strong> e não conquista<strong>das</strong>”. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil,<br />

28 de dezembro de 1976.<br />

- VINICIUS, Marcus. “O amigo <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> (ou Paraí-bê-a-bá)”. Folha de S. <strong>Paulo</strong>, 30 de<br />

janeiro de 1977.<br />

6 - Artigos não assinados sobre <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>:<br />

- “O pensamento de <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Brasília, Correio Brasiliense, 29 de dezembro de 1976.<br />

- “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. João Pessoa, Correio da Paraíba, 7 de janeiro de 1977.<br />

- “Ficou um vazio na cultura nacional sem <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>”. Belo Horizonte, Jornal de Minas, 31<br />

de dezembro de 1976.<br />

- “<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> e o movimento teatral do Rio”. Fortaleza, O Povo, 11 de junho de 1976.


7 - Diversos:<br />

- AZEVEDO, Marinho de. “Medeia Carioca”. Rio de Janeiro, Veja, 7 de janeiro de 1976.<br />

- LUIZ, Macksen. “Gota D'água não é só uma música do Chico”. S. <strong>Paulo</strong>, Isto é, 29 de junho<br />

de 1977.<br />

- MAGALDI, Sábato. “Entrevista inédita com Chico Buarque”. Rio de Janeiro, 4 de setembro<br />

de 1985. Arquivo do autor.<br />

- OLIVEIRA-JOUÉ, Lisa. “Entrevista com Chico Buarque de Hollanda sobre Gota D'água”.<br />

Agosto de 1984, sem referência bibliográfica.<br />

- ROUX, Richard M. “Dossier documentaire de civilisation (Gota D'água). Centre National<br />

d'Enseignement par Correspondance. Toulouse, Juillet, 1985.<br />

II - Bibliografia Geral<br />

1 - Jornais e Revistas<br />

- <strong>Arte</strong> em Revista nº 6. São <strong>Paulo</strong>, Kairós, 1981.<br />

- BOAL, Augusto. Ciclo de palestras sobre o teatro brasileiro. vol 1. Rio de Janeiro, INACEN<br />

(Ibac), 1981.<br />

- BORNHEIM, Gerd A. “Conceito de tradição”. S. <strong>Paulo</strong>, Folhetim nº 476, 23 de março de<br />

1986.<br />

- BRANDÃO, Tânia. “A estática da palavra”. Rio de Janeiro, Ensaio nº 5, Achiamé, 1983.<br />

- CASTRO, Joacir. “O Movimento de Cultura Popular e seu papel na realidade brasileira. S.<br />

<strong>Paulo</strong>, Problemas nº 9, abril de 1984.<br />

- CHAUI, Marilena. “Notas sobre a cultura popular”. S. <strong>Paulo</strong>, <strong>Arte</strong> em Revista nº 3, Kairós,<br />

março de 1980.<br />

- ______________. “Um retrato sem retoques da classe média brasileira”. S. <strong>Paulo</strong>, Pau Brasil<br />

nº 9, novembro de 1985.


- Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. Rio de Janeiro, Inúbia, 1976.<br />

- COSTA, Armando. “O CPC foi uma escola para centenas de pessoas”. Entrevista a Dejair<br />

Cardoso da Silva. Rio de Janeiro, Ensaio nº 3, Muro, 1980.<br />

- DEBERT, Guita. “Populismo e democracia”. S. <strong>Paulo</strong>, Folhetim nº 239, 16 de agosto de 1981.<br />

- DESRAMAUX, A. “Teatro e contestação”. Rio de Janeiro, Cadernos de Teatro nº 65, abril de<br />

1975.<br />

- GRUNEWALD, José Lino. “Viver TV”. S. <strong>Paulo</strong>, Folhetim nº 474, 9 de março de 1986.<br />

- GULLAR, Ferreira. “A função do intelectual é fazer um trabalho cultural com profundidade”.<br />

S. <strong>Paulo</strong>, Problemas nº 9, Novos Rumos, abril de 1984.<br />

- IANNI, Octavio. “O popular, o burguês e suas fontes de expressão”. S. <strong>Paulo</strong>, Pau Brasil nº 9,<br />

novembro de 1985.<br />

- KRASELIS, Sérgio. “Por uma política cultural pluralista”. S. <strong>Paulo</strong>, Problemas nº 9, Novos<br />

Rumos, abril de 1984.<br />

- MARTINS, Carlos Estevam. “Anteprojeto do Manifesto do CPC”. S. <strong>Paulo</strong>, <strong>Arte</strong> em Revista<br />

nº 1, Kairós, 1979.<br />

- MARTINS, Carlos Estevam. “História do CPC”. S. <strong>Paulo</strong>, <strong>Arte</strong> em Revista nº 3, Kairós, mar-<br />

ço de 1980.<br />

- MARTINS, Carlos Estevam. “Repensando o CPC”. S. <strong>Paulo</strong>, Problemas nº 9, Novos Rumos,<br />

1984.<br />

- MARQUES DE MELO, José. “Comunicação, Cultura de Massas, Cultura Popular”. Petrópo-<br />

lis, Revista de Cultura Vozes nº 10, Vozes, outubro de 1969.<br />

- Memorial do MCP. Recife, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1986.<br />

- MICHALSKY, Yan. “Ciclo de palestras sobre teatro brasileiro, vol. 2. Rio de Janeiro, INA-<br />

CEN (Ibac), 1986.<br />

- MOSCOVICI, Dina. “Reflexões sobre o teatro de vanguarda”. Rio de Janeiro, Cadernos de<br />

Teatro nº 98, 1983.<br />

- MOSTAÇO, Edélcio. “Sumário de um teatro marginalizado”. S. <strong>Paulo</strong>, <strong>Arte</strong> em Revista nº 5,<br />

Kairós, 1981.<br />

- NEVES, João <strong>das</strong>. “Grupo Opinião: a trajetória de uma rebeldia cultural”. Entrevista a Sérgio<br />

Kraselis. S. <strong>Paulo</strong>, Problemas nº 9, Novos Rumos, 1984.<br />

- OLIVEIRA KÜHNER, Maria Helena & Gilberto. “Os Centros Populares de Cultura: momen-<br />

tos ou modelo”. Rio de Janeiro, Monografias/1980, INACEN (Ibac), 1983.<br />

- OPINIÃO, Grupo. “O teatro, que bicho deve dar?”. S. <strong>Paulo</strong>, <strong>Arte</strong> em Revista nº 2, Kairós,<br />

maio de 1979.


- PEIXOTO, Fernando. “CPC e MCP: um balanço”. S. <strong>Paulo</strong>, Problemas nº 9, Novos Rumos,<br />

1984.<br />

- PEIXOTO PANDOLFO, Maria do Carmo & outros. “Gota D'água - A trajetória de um mito”.<br />

Rio de Janeiro, Monografias/1977, INACEN (Ibac), 1979.<br />

- ROSENFELD, Anatol. “O teatro agressivo”. S. <strong>Paulo</strong>, revista Teatro Paulista, sem editora,<br />

1967.<br />

2 - Livros<br />

- ALMEIDA PRADO, Décio de. Exercício Findo. S. <strong>Paulo</strong>: Perspectiva, 1987.<br />

- ________________________. Procópio Ferreira. S. <strong>Paulo</strong>: Brasiliense, 1984.<br />

- ________________________. Teatro em Progresso. S. <strong>Paulo</strong>: Livraria Martins, 1964.<br />

- ARRABAL, José & ALVES DE LIMA, Mariângela. Teatro - O seu demônio é beato. S.<br />

<strong>Paulo</strong>: Brasiliense, 1983.<br />

- ARRABAL, José & outros. Anos 70 - Teatro. Rio de Janeiro: Europa, 1980.<br />

- ARENDT, Hannah. Homem em Tempos Sombrios. Trad. Denise Bottman. S. <strong>Paulo</strong>: Com-<br />

panhia <strong>das</strong> Letras, 1987.<br />

- ASLAN, Odette. El actor en el siglo XX. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1979.<br />

- BARBOSA, Pedro. Teoria do teatro moderno: axiomas e teoremas. Porto: Afrontamento,<br />

1982.<br />

- BARROS DE ALMEIDA, Inez. Panorama visto do Rio. Rio de Janeiro: INACEN (Ibac),<br />

1987.<br />

- BENJAMIN, Walter. Obras escolhi<strong>das</strong>. Trad. Sérgio <strong>Paulo</strong> Rouanet. S. <strong>Paulo</strong>: Brasiliense,<br />

1985.<br />

- ________________. Documentos de cultura - Documentos de barbarie (Escritos escolhi-<br />

dos). Trad. Celeste H. M. Ribeiro de Sousa & outros. S. <strong>Paulo</strong>: Cultrix, 1986.<br />

- ________________. Tentativas sobre Brecht. Trad. Jesus Aguirre. Madrid: Taurus Edicio-<br />

nes, 1975.<br />

- BENTLEY, Eric. A experiência viva do teatro. Trad. µlvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar,<br />

1981.<br />

- BERGSON, Henri. O Riso. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1983.<br />

- BERLINCK, Manoel T. O Centro Popular de Cultura da UNE. Campinas: Papirus, 1984.


- BERTHOLD, M. Historia Social del Teatro/2. Trad. Gilberto Gutiérrez Pérez. Madrid: Gua-<br />

darrama, 1974.<br />

- BORNHEIM, Gerd A. Teatro: a cena dividida. Porto Alegre: L&PM, 1983.<br />

- BRECHT, GROSZ, PISCATOR. <strong>Arte</strong> y Sociedad. Buenos Aires: Ediciones Caldén, 1979.<br />

- CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. S. <strong>Paulo</strong>: Perspectiva, 1981.<br />

- COELHO, Teixeira. Uma outra cena. S. <strong>Paulo</strong>: Polis, 1983.<br />

- DUVIGNAUD, Jean. Sociologia da arte. Trad. Antonio Teles. Rio de Janeiro: Forense, 1970.<br />

- ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Trad. Pérola de Carvalho. S. <strong>Paulo</strong>: Perspectiva,<br />

1987.<br />

- FERREIRA, Procópio. Como se faz rir. S. <strong>Paulo</strong>: Folco Masucci, 1967.<br />

- GARCIA-GUILLÉN, Mario. Falando de Teatro. S. <strong>Paulo</strong>: Edições Loyola, 1978.<br />

- GUIMARÃES, Carmelinda. Um ato de resistência. S. <strong>Paulo</strong>: MG Editores Associados, 1984.<br />

- KITTO, H. D. F. A tragédia grega, vol. 2. Trad. José Manuel Coutinho e Castro. Coimbra:<br />

Armênio Amado Editor, 1972.<br />

- HELBO, André. Semiologia da representação. Trad. Eduardo Pe¤uela Canizal & outros. S.<br />

<strong>Paulo</strong>: Cultrix, 1980.<br />

- JORGE, J. Simões. A ideologia de <strong>Paulo</strong> Freire. S. <strong>Paulo</strong>: Loyola, 1979.<br />

- KHÉDE, Maria Helena. Censores de pincenê e gravata. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.<br />

- KÜHNER, Maria Helena. Teatro popular, uma experiência. Rio de Janeiro: Livraria Fran-<br />

cisco Alves, 1975.<br />

- MACIEL, Luiz Carlos. Anos 60. Porto Alegre, L&PM, 1987.<br />

- MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. S. <strong>Paulo</strong>: Difusão Européia do Livro,<br />

1962.<br />

- MICHALSKI, Yan. O palco amordaçado. Rio de Janeiro: Avenir, 1979.<br />

- _______________. O teatro sob pressão. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.<br />

- MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX, 2 vol. Trad. Maura Ribeiro Sardinha. Rio<br />

de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.<br />

- MOSTAÇO, Edélcio. O espetáculo autoritário. S. <strong>Paulo</strong>: Proposta Editorial, 1983.<br />

- MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. S. <strong>Paulo</strong>: Ática, 1985.<br />

- PEIXOTO, Fernando. Teatro em pedaços. S. <strong>Paulo</strong>: Hucitec, 1980.<br />

- PIGNATARI, Décio. Signagem da televisão. S. <strong>Paulo</strong>: Brasiliense, 1984.<br />

- PONTES, João. Eu e meu filho <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>. Rio de Janeiro: Livraria Eu e Você, 1982.<br />

- ROSENBERG, Bernard & MANNING WHITE, David. Cultura de massa. Trad. Octavio<br />

Mendes Cajado. S. <strong>Paulo</strong>: Cultrix, 1973.


- ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. S. <strong>Paulo</strong>: Perspecti-<br />

va, 1982.<br />

- __________________. O teatro épico. S. <strong>Paulo</strong>: Perspectiva, 1985.<br />

- SILVA, Hélio. O poder militar. Porto Alegre: L&PM, 1984.<br />

- SILVEIRA, Miroel. A outra crítica. S. <strong>Paulo</strong>: Símbolo, 1976.<br />

- SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco. Petrópolis: Vozes, 1988.<br />

- SOUSA, J. Galante de. O teatro no Brasil, vol. 1. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Li-<br />

vro, INL, 1960.<br />

- SPERBER, George Bernard. Introdução à peça radiofônica. S. <strong>Paulo</strong>: Editora Pedagógica e<br />

Universitária, 1980.<br />

- VASCONCELOS, Gilberto. Ideologia curupira. S. <strong>Paulo</strong>: Brasiliense, 1979.<br />

- VIANNA, Deocélia. Companheiros de viagem. S. <strong>Paulo</strong>: Brasiliense, 1984;<br />

- VIANNA FILHO, Oduvaldo. Vianinha - teatro, televisão e política. Org. Fernando Peixoto.<br />

S. <strong>Paulo</strong>: Brasiliense, 1983.

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