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FEBEM NA CONTRAMÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E ... - Adusp

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Setembro 200 Revista <strong>Adusp</strong><br />

20<br />

Febem na Contramão<br />

do estatuto da Criança<br />

e do adolesCente<br />

Kelly Cristina Spinelli<br />

Jornalista<br />

Um estridente fracasso das gestões de Mário Covas e Geraldo Alckmin, a<br />

Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor completa três décadas sem<br />

conseguir se desvencilhar dos fantasmas que carrega desde sua fundação. Desde<br />

2000, passou por quatro secretarias diferentes e teve sete presidentes, sem que<br />

fossem resolvidos os problemas de superlotação e falta de projeto pedagógico.<br />

Rebeliões, torturas e assassinatos marcam a história recente da instituição, à<br />

espera de unidades adequadas ao Estatuto da Criança e do Adolescente<br />

Daniel Garcia<br />

Protesto contra a direção<br />

da Febem, 2006


A<br />

Revista <strong>Adusp</strong><br />

Fundação Estadual do<br />

Bem-Estar do Menor<br />

de São Paulo (Febem)<br />

completou 30 anos no<br />

dia 26 de abril de 2006.<br />

São três décadas de<br />

uma história bastante repetitiva.<br />

Basta que se faça uma busca em<br />

arquivos de notícias sobre a Febem<br />

para perceber que, salvo algumas<br />

variações de atuação dos diferentes<br />

governos, os problemas e as promessas<br />

são recorrentes.<br />

O círculo vicioso começa com<br />

o grande número de adolescentes<br />

internados pela Justiça, que causa<br />

a superlotação das unidades, onde,<br />

em geral, os jovens sobrevivem de<br />

forma desumana. A isso se somam<br />

denúncias de tortura, falta de condições<br />

de trabalho para os funcionários<br />

e as conseqüentes (e tão<br />

temidas) rebeliões.<br />

O Governo promete resolver<br />

o problema construindo unidades<br />

pequenas e regionalizadas, como<br />

prevê o Estatuto da Criança e do<br />

Adolescente (ECA). As unidades<br />

não se materializam, em parte<br />

por falta de vontade política, em<br />

parte por resistência dos municípios.<br />

Recorre-se novamente aos<br />

grandes complexos da capital — e,<br />

eventualmente, à transferência de<br />

adolescentes para penitenciárias.<br />

A superlotação não se resolve e o<br />

círculo recomeça.<br />

A atuação dos últimos dois<br />

governos em relação à Febem não<br />

fugiu à regra. Tanto Geraldo Alckmin<br />

(2001-2002 e 2003 a março de<br />

2006), como Mário Covas (1995-<br />

1998 e 1999-2001) enfrentaram<br />

crises na instituição, rebeliões,<br />

transferiram adolescentes para<br />

cadeias e entregaram menos unidades<br />

do que prometeram (vide p.27).<br />

Mas se a Febem foi o calcanhar de<br />

Aquiles das últimas duas gestões,<br />

igualmente causou dores de cabeça<br />

nos governos anteriores.<br />

Em 1992, por exemplo, no<br />

governo de Luis Antônio Fleury<br />

Filho (1991-1994), ocorreu uma<br />

das grandes rebeliões em uma<br />

unidade do Tatuapé, que já estava<br />

em processo de superlotação,<br />

depois da desativação de unidades<br />

no interior. O governador, já<br />

naquela época, prometia a construção<br />

de 60 pequenas unidades<br />

de internação, chamadas então de<br />

“miniunidades”.<br />

Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral<br />

do Menor, que acompanha de perto<br />

a Febem desde que foi educador no<br />

Tatuapé nos anos 1980, analisa a política<br />

dos governos nessa área: “Existe<br />

sempre uma tentativa, de certa forma<br />

até desesperada, de se encontrar<br />

soluções. No governo Covas houve a<br />

grande crise na Febem, mas essa crise<br />

também houve no governo Fleury e<br />

no governo [Orestes] Quércia [1987-<br />

1991]”.<br />

O padre Lancellotti está<br />

acostumado com as críticas<br />

às entidades de defesa dos<br />

direitos humanos: “Nossa<br />

entrada nunca foi fácil.<br />

Covas chegou a dizer que<br />

eu causava rebelião. Como<br />

agora dizem que é o Ariel,<br />

que é a Conceição”<br />

Setembro 200<br />

O tempo todo procura-se culpados<br />

pelo sistema ineficiente.<br />

As ONGs de defesa de direitos<br />

humanos, que fiscalizam a Febem,<br />

culpam os presidentes da fundação<br />

e os governadores do Estado.<br />

Em abril de 2006, entidades reunidas<br />

pela Associação de Mães de<br />

Internos da Febem (Amar), presidida<br />

por Conceição Paganele,<br />

protestaram em frente à Secretaria<br />

de Estado da Justiça e Defesa<br />

da Cidadania, à qual a Febem está<br />

vinculada. Pediam a substituição<br />

da presidente Berenice Gianella.<br />

As entidades acusam a presidente<br />

de ser conivente com maustratos<br />

na Febem e reclamam não<br />

poder mais entrar nas unidades<br />

para fiscalizá-las, direito que o<br />

presidente anterior, Alexandre<br />

de Moraes, havia assegurado. A<br />

secretária Eunice de Jesus Prudente,<br />

que assumiu o cargo no final<br />

de março, recebeu as mães. “Conversei<br />

com elas o seguinte: seria<br />

muito cômodo encontrarmos um<br />

culpado e crucificá-lo. Não temos<br />

um culpado, é um problema brasileiro”,<br />

diz. Berenice Gianella não<br />

quis comentar as acusações.<br />

Em contrapartida, os governadores<br />

e seus auxiliares apontam<br />

o dedo para as entidades, acusando-as<br />

de incitar rebeliões. No<br />

final de 2005, em entrevista à rádio<br />

CBN, o então governador Alckmin<br />

citou nominalmente esses<br />

desafetos: “Algumas dessas organizações<br />

não-governamentais trabalham<br />

permanentemente contra<br />

o Governo. Esse Ariel, Conceição,<br />

esse pessoal o dia inteiro cria problemas,<br />

não faz nada para ajudar”.<br />

Em abril de 2006, a presidente<br />

21


Setembro 200 Revista <strong>Adusp</strong><br />

Gianella também responsabilizou<br />

as ONGs. “Há uma enorme coincidência.<br />

Em novembro”, data da<br />

penúltima grande rebelião no complexo<br />

do Tatuapé, “aconteceu isso:<br />

nós tivemos visitas dessas entidades<br />

na quinta e na sexta, e na terça<br />

nós tivemos rebelião. Agora foi a<br />

mesma coisa”, disse.<br />

Ariel de Castro Alves, coordenador<br />

estadual do Movimento<br />

Nacional de Direitos Humanos<br />

(MNDH) e integrante da Comissão<br />

da Criança e do Adolescente<br />

do Conselho Federal da Ordem<br />

dos Advogados do Brasil (OAB),<br />

rebate as críticas: “Querer responsabilizar<br />

as ONGs pelas rebeliões<br />

é querer ludibriar a opinião<br />

pública, criminalizar as entidades.<br />

O Estado tenta transferir sua responsabilidade”,<br />

diz. Entre os que<br />

são normalmente citados, o padre<br />

Lancellotti está acostumado com<br />

as críticas: “Nossa entrada como<br />

centro de defesa nunca foi fácil.<br />

Covas chegou a dizer textualmente<br />

que eu causava rebelião.<br />

Como agora dizem que é o Ariel,<br />

que é a Conceição”.<br />

Dessa vez, o Governo foi além<br />

do discurso. Conceição Paganele<br />

está sendo investigada pela Polícia<br />

Civil, na condição de suspeita<br />

de haver praticado crimes de formação<br />

de quadrilha, facilitação de<br />

fuga e incitação ao crime. O inquérito<br />

investiga a suposta participação<br />

dela em rebeliões ocorridas no<br />

complexo do Tatuapé. As entidades<br />

de direitos humanos dizem que<br />

Paganele está sendo perseguida.<br />

Ela nega as acusações.<br />

Mesmo dentro de cada<br />

governo, a responsabilidade pela<br />

22<br />

Aspectos do complexo do Tatuapé, de<br />

onde 307 internos fugiram em 2005. Na<br />

foto acima, crianças jogam bola na rua,<br />

perto de uma unidade. Na foto ao lado,<br />

um dos prédios desativados. Na outra<br />

página, a portaria<br />

Febem muda de mãos com freqüência.<br />

Desde agosto de 2004,<br />

está sob a tutela da Secretaria da<br />

Justiça e Defesa da Cidadania.<br />

Em 2003, havia sido transferida<br />

para a Secretaria da Educação.<br />

Em 2001, esteve na Secretaria da<br />

Juventude, Esporte e Lazer. Antes<br />

disso, na Secretaria de Assistência<br />

e Desenvolvimento Social. Desde<br />

2000, sete pessoas diferentes presidiram<br />

a Febem. Em toda a sua<br />

história, a instituição contabiliza<br />

mais de 60 presidentes.<br />

O lado irônico é que tanto as<br />

ONGs quanto os governos apontam<br />

as mesmas soluções para a<br />

Febem — a criação de unidades nos<br />

padrões definidos pelo Conselho


Revista <strong>Adusp</strong><br />

Nacional dos Direitos da Criança<br />

e do Adolescente, o Conanda,<br />

órgão que regulamenta o ECA. De<br />

acordo com o Conanda, as unidades<br />

devem ser pequenas, regionalizadas,<br />

com um projeto pedagógico<br />

consistente e devem proporcionar<br />

ao adolescente assistência médica,<br />

jurídica, acesso à cultura, lazer,<br />

esporte, educação e contato com<br />

a comunidade e a família (vide<br />

quadro à p.24).<br />

Originária da Fundação<br />

Nacional do Bem-Estar<br />

do Menor (Funabem),<br />

órgão criado em 1964,<br />

a Febem ainda conserva<br />

a cultura carcerária, de<br />

contenção e repressão,<br />

que herdou da Ditadura<br />

Setembro 200<br />

Fotos: Daniel Garcia<br />

Mas se todos concordam quanto<br />

ao atendimento ideal para o adolescente<br />

em conflito com a lei, por<br />

que o problema da Febem não se<br />

resolve? Na opinião dos especialistas,<br />

a instituição ainda mantém<br />

a cultura carcerária, de contenção<br />

e repressão, que herdou da Ditadura<br />

Militar.<br />

A Febem é originária da Fundação<br />

Nacional do Bem-Estar do<br />

Menor (Funabem), órgão criado<br />

em 1964 para implantar nos estados<br />

a Política Nacional do Bem-<br />

Estar do Menor. A Funabem<br />

atendia crianças abandonadas<br />

e os então chamados “menores<br />

infratores”. Baseava-se no Código<br />

de Menores de 1927 (revisto em<br />

1979), e previa a internação de<br />

crianças e adolescentes apenas<br />

para contenção da criminalidade,<br />

seguindo a linha da Doutrina de<br />

Segurança Nacional.<br />

São Paulo começou a se ajustar<br />

à Funabem em 1973, com a criação<br />

da Fundação Paulista de Promoção<br />

23


Setembro 200 Revista <strong>Adusp</strong><br />

as diretrizes do Conanda<br />

O Conselho Nacional da Criança e do Adolescente, Conanda, em<br />

29 de outubro de 1996, regulamentou, através da resolução nº 46, a<br />

execução da medida sócio-educativa prevista no Estatuto da Criança e<br />

do Adolescente.<br />

O Conanda determinou que as unidades de internação:<br />

• não devem abrigar mais que 40 adolescentes;<br />

• devem ser regionalizadas dentro de cada Estado;<br />

• devem proporcionar ao adolescente educação, saúde, esporte e<br />

lazer, assistência social, profissionalização, cultura e segurança;<br />

• devem proporcionar atendimento jurídico continuado, tratamento<br />

médico-odontológico e orientação sócio-pedagógica;<br />

• devem proporcionar acesso aos serviços da comunidade, em atividades<br />

externas, como preparação à reinserção social, a não ser se<br />

houver expressa determinação judicial em contrário;<br />

• devem ter um projeto sócio-pedagógico que preveja a participação<br />

da família e da comunidade.<br />

Social do Menor, a Pró-Menor.<br />

Em 1976, a Pró-Menor passou a<br />

se chamar Febem, alinhando o<br />

Estado à política nacional. Ou<br />

seja, a Febem foi criada muito<br />

antes do Estatuto da Criança e do<br />

Adolescente ser promulgado, em<br />

1990. Antes do ECA, a criança<br />

e o adolescente não eram vistos<br />

como cidadãos com prioridade<br />

nas políticas públicas, que devem<br />

ser protegidos pelo Estado e ressocializados,<br />

mas como menores<br />

delinqüentes ou em situação irregular,<br />

a serem contidos.<br />

“A Febem traz o D<strong>NA</strong> da<br />

Funabem, filha da ditadura e da<br />

Política de Segurança Nacional.<br />

Os funcionários foram treinados<br />

para contenção, segurança e alta<br />

disciplina”, diz Lancellotti. “Isso<br />

instaurou uma cultura que não<br />

mudou e que, de certa forma,<br />

independe do governo”, com-<br />

24<br />

pleta. Rubens Naves, presidente<br />

da Fundação Abrinq, concorda:<br />

“Não conseguimos fazer uma<br />

transição adequada do Código<br />

de Menores para o ECA. O que<br />

vemos é uma continuidade do<br />

equívoco”.<br />

Exemplos não faltam para corroborar<br />

essa opinião, a começar<br />

pela arquitetura das unidades,<br />

inclusive das recém-inauguradas.<br />

“Uma comissão da Pastoral do<br />

Menor visitou a construção de<br />

Campinas, que é um horror. Os<br />

banheiros não têm porta, como<br />

no sistema penitenciário. A descarga<br />

é do lado de fora, como o<br />

chuveiro. Isso educa?”, pergunta<br />

Lancellotti. Para Naves, “o projeto<br />

arquitetônico deveria seguir o projeto<br />

pedagógico”.<br />

Nos complexos, uma porta só<br />

é aberta quando outra é trancada.<br />

A solitária dos presídios existe na<br />

Daniel Garcia<br />

Eunice Prudente, secretária de Justiça<br />

forma da “tranca” — período em<br />

que o adolescente fica isolado no<br />

quarto. As conseqüências da cultura<br />

de repressão são claras. “Recebemos<br />

denúncias de maus-tratos<br />

mesmo das unidades pequenas.<br />

Fazer novas unidades com a mesma<br />

cultura da Febem acaba servindo<br />

para regionalizar a tortura”, acredita<br />

Ariel de Castro Alves.<br />

Outros problemas assolam<br />

a Febem. Para começar, a instituição<br />

enfrenta um alto número<br />

de internações de adolescentes.<br />

São hoje 6.225 internos, mais 382<br />

em semiliberdade. Em 1995, a<br />

Febem tinha, somados internos e<br />

em semiliberdade, 2.125 adolescentes.<br />

Acredita-se que boa parte<br />

desses jovens poderia ter passado<br />

longe da internação — medida<br />

sócio-educativa que, segundo<br />

o ECA, só deve ser adotada em<br />

casos graves e na ausência de


Revista <strong>Adusp</strong><br />

outra adequada, como prestação<br />

de serviços à comunidade ou<br />

liberdade assistida.<br />

“Os municípios buscam se<br />

livrar da responsabilidade, do<br />

trabalho pedagógico de aplicar<br />

medidas de meio aberto”, diz<br />

Naves. “Muitos juízes já disseram<br />

que há uma pressão da cidade<br />

para mandar o adolescente para a<br />

Febem”. Além disso, falta investimento<br />

em medidas preventivas.<br />

Dos jovens internados na Febem,<br />

52,5% cometeram roubo qualificado.<br />

Silvana Moraes, psicóloga<br />

de algumas unidades, acredita<br />

que investir em educação poderia<br />

melhorar esse índice. “A<br />

maioria dos meninos rouba, eles<br />

não são homicidas. A sociedade<br />

fornece para o adolescente uma<br />

imagem... ele quer coisas que<br />

nunca poderá ter. Eles roubam<br />

para comprar roupa, fazer uma<br />

festa de aniversário”.<br />

A Febem recebe mais internos<br />

do que poderia, e não cria vagas<br />

suficientes para a demanda. O<br />

resultado é a superlotação, que contribui<br />

para que faltem acomodação<br />

adequada, vagas nos cursos e nas<br />

oficinas profissionalizantes. O relatório<br />

“O Trabalho dos Monitores<br />

da Febem”, produzido por técnicos<br />

da Fundação Jorge Duprat Figueiredo<br />

de Segurança e Medicina do<br />

Trabalho (Fundacentro), ligada ao<br />

Ministério do Trabalho e Emprego,<br />

revela que os próprios funcionários<br />

reclamam da superlotação. Um<br />

deles declara: “esse quarto com<br />

cinco pessoas é um crime (...) Cinco,<br />

seis, isso quando não tem sete, às<br />

vezes tem sete, num quarto que é<br />

para atender dois adolescentes”.<br />

Além disso, há unidades com<br />

deficiências sérias de higiene e<br />

saúde. A Febem garante que oferece<br />

“todo material necessário<br />

à higiene” de seus adolescentes,<br />

mas mães de internos contestam<br />

essa informação. “Sabonete, pasta,<br />

chinelo, cueca, eu que levo. Tem<br />

semana que eu gasto 50, 60 reais.<br />

E quando o choque entra lá, toma<br />

tudo dos meninos”, diz Marta Alves<br />

Fernandes, que tem um filho em<br />

uma unidade do Tatuapé.<br />

Um grupo de trabalho do<br />

Conanda fez visitas ao complexo do<br />

Tatuapé em novembro de 2005. Em<br />

seu relatório, ficaram comprovadas<br />

muitas das reclamações das ONGs<br />

e familiares. Um dos trechos diz<br />

que “as condições de higiene pessoal<br />

são precárias” e que é perceptível<br />

“a proliferação de doenças de<br />

pele”, sendo a sarna a mais comum.<br />

Em outro se lê que “os adolescentes<br />

se queixam que as roupas<br />

não são lavadas constantemente”,<br />

sendo que “alguns chegam a usar a<br />

camiseta dos dois lados”. A Febem<br />

pretende desativar o complexo até<br />

o final de 2006.<br />

Cerca de 10 mil jovens<br />

sofreram tortura nos<br />

últimos sete anos na<br />

Febem, segundo Ariel<br />

Alves, do MNDH.<br />

Nos últimos três anos,<br />

morreram na instituição<br />

27 adolescentes<br />

Setembro 200<br />

O lado mais trágico da Febem<br />

são as denúncias de tortura. Raimunda<br />

Maria Silva, avó de um<br />

adolescente do Tatuapé, internado<br />

por roubo, viu sangue na parede da<br />

cama do neto quando foi visitá-lo.<br />

“Ele disse que apanhou do monitor,<br />

estava com a cabeça cortada”,<br />

lamenta. “Nós contabilizamos que<br />

cerca de 10 mil jovens sofreram<br />

tortura nos últimos sete anos da<br />

Febem”, diz Alves. No já citado<br />

relatório da Fundacentro, verificase<br />

que funcionários admitem bater<br />

em internos: “vocês têm dois jeitos<br />

de conseguir convencer adolescentes<br />

a fazer o que você quer, um deles<br />

é a porrada (...) e o outro é idéia,<br />

e para trocar idéia me desculpa, o<br />

indivíduo precisa falar a linguagem<br />

do adolescente se não ele não consegue<br />

convencer”, diz um deles.<br />

Nos últimos três anos, morreram<br />

27 adolescentes na Febem.<br />

Entre eles, o irmão de Tatiana de<br />

Araújo, internado por tráfico no<br />

complexo da Raposo Tavares. “Teve<br />

uma rebelião e depois a represália<br />

do diretor. Deixaram um em cada<br />

quarto e espancaram. No outro dia,<br />

meu irmão apareceu enforcado”,<br />

relata. “A Febem diz que ele se<br />

matou. Eu não acredito”.<br />

Para Conceição Paganele,<br />

a situação passou dos limites:<br />

“Tanta opressão e tortura fizeram<br />

com que meninos começassem a<br />

morrer. A Febem diz que eles se<br />

mataram. E se é verdade, é pior<br />

ainda. Que instituição é essa que<br />

em vez de ajudar a resgatar, enlouquece<br />

a tal ponto que o jovem tira<br />

sua própria vida?”.<br />

A secretária de Justiça afirma<br />

que as acusações de tortura estão<br />

25


Setembro 200 Revista <strong>Adusp</strong><br />

sendo apuradas. “Há processos<br />

em andamento. As providências<br />

foram tomadas”, diz Eunice Prudente.<br />

Mas não se pode culpar os<br />

funcionários da Febem sem levar<br />

em conta suas condições de trabalho.<br />

O relatório da Fundacentro<br />

mostra que os monitores, além de<br />

não receberem treinamento adequado,<br />

estão expostos às mesmas<br />

condições de higiene e saúde que<br />

os internos.<br />

Os monitores têm de identificar<br />

e conter rebeliões, mesmo usando<br />

a violência. Trabalham com medo,<br />

em estado de alerta e sob o risco<br />

de sofrerem agressões, serem<br />

feitos reféns ou até morrerem<br />

em rebeliões. Um deles declarou<br />

à Fundacentro: “[vi] funcionário<br />

morrendo na minha frente, esfaqueado<br />

(...) eles [os adolescentes]<br />

pegam madeira, ferros que eles<br />

acham, chamam de pirulito, barra<br />

de ferro, [para] abrir a cabeça de<br />

vários colegas”. Em 2006, 44 funcionários<br />

ficaram feridos em uma<br />

rebelião no Tatuapé.<br />

O resultado disso, segundo o<br />

estudo, é ansiedade, depressão<br />

e muitas vezes problemas com<br />

álcool e drogas. O Centro de<br />

Referência em Saúde do Trabalhador,<br />

citado no relatório, diz<br />

que entre 2003 e junho de 2005<br />

65% dos funcionários da Febem<br />

atendidos tinham quadros de<br />

transtornos mentais.<br />

Todos esses fatores transformam<br />

a Febem em um barril<br />

de pólvora que, de quando em<br />

quando, explode na forma de<br />

rebeliões. Em 2006 ocorreram<br />

seis até o mês de abril, e em 2005<br />

foram contabilizadas 35. Uma<br />

2<br />

Conceição Paganele, da Associação de Mães de Internos da Febem (Amar)<br />

educadora da instituição, que<br />

prefere não revelar seu nome,<br />

acha que “a estrutura da Febem<br />

concorre para que os adolescentes<br />

se rebelem”.<br />

Depois de rebeliões graves,<br />

que destroem ou danificam unidades<br />

de internação, a solução de<br />

diferentes governos é a mesma:<br />

a transferência temporária de<br />

meninos para cadeias. Em abril<br />

de 2006, 131 adolescentes foram,<br />

pelo prazo máximo de seis meses,<br />

para uma penitenciária feminina,<br />

depois de uma rebelião no Tatuapé.<br />

No governo Covas, quando<br />

ocorreu a rebelião mais violenta<br />

da história da fundação, na Imigrantes,<br />

800 internos foram transferidos<br />

para cadeias de São Paulo<br />

e Santo André.<br />

Autorizadas pela Justiça, as<br />

transferências causam controvérsia.<br />

“O elemento mais grave que<br />

surgiu agora é uma contaminação<br />

dos adolescentes pelo sistema<br />

penitenciário”, constata Lan-<br />

cellotti. O jornal O Estado de S.<br />

Paulo publicou um exemplo disso<br />

em reportagem na qual o jornalista<br />

Fábio Mazzitelli conta sua<br />

experiência no complexo do Tatuapé,<br />

onde os internos adotaram<br />

uma “reza” diária que começa<br />

com um pai-nosso e termina glorificando<br />

o Primeiro Comando<br />

da Capital (PCC) e o Comando<br />

Vermelho (CV). Os funcionários<br />

acreditam que esse novo costume<br />

pode ter nascido da ida e volta de<br />

internos para penitenciárias.<br />

O governador Lembo<br />

admite que não conseguirá<br />

entregar as 41 novas<br />

unidades prometidas até<br />

o final de 2006, como<br />

previsto. Ele prevê a<br />

Daniel Garcia<br />

construção de apenas 12


Revista <strong>Adusp</strong><br />

os governos e a Febem<br />

Mário Covas<br />

• Anunciou em 1999 o programa “Novo Olhar”,<br />

que propunha a construção de unidades regionalizadas<br />

da Febem. Ele previa a construção de 30 unidades<br />

no interior.<br />

• No final de 1999, a Febem tem sua maior fuga:<br />

644 internos. Depois, quatro adolescentes são mortos<br />

por colegas em uma rebelião que destrói o complexo<br />

da Imigrantes. O complexo foi desativado.<br />

• Com a destruição do complexo, 800 internos<br />

são transferidos, por sete meses, divididos entre o<br />

Cadeião de Pinheiros e o antigo Centro de Observação<br />

Criminológica do complexo do Carandiru, e em<br />

um Centro de Detenção Provisória de Santo André.<br />

• Covas diz que assumirá pessoalmente o problema da<br />

Febem. Desconfia dos funcionários, reclama dos municípios<br />

e se considera o maior responsável pelo problema.<br />

• Em 2000, foram erguidos prédios do complexo<br />

de Franco da Rocha, para 960 internos e no formato<br />

de uma penitenciária. Para se chegar às alas era<br />

necessário trancar e destrancar oito portões. Rebeliões<br />

e denúncias de maus-tratos em Franco da Rocha<br />

tornam-se comuns.<br />

• A Fundação Abrinq pede explicações pelos<br />

maus-tratos a internos e reclama que as instituições<br />

de defesa de direitos humanos têm dificuldade para<br />

entrar na Febem.<br />

A Febem divulga a seu favor que<br />

oferece oficinas profissionalizantes<br />

e modalidades esportivas para os<br />

adolescentes. Ressalta que já existem<br />

unidades menores construídas,<br />

diferentes dos grandes complexos.<br />

Ainda assim, as entidades de direitos<br />

humanos apontam problemas. “Não<br />

há uma proposta pedagógica clara.<br />

Quer dizer, você faz oficina pra<br />

quê?”, diz Lancellotti. “O problema<br />

Geraldo Alckmin<br />

é que quando a gente pergunta qual<br />

é a metodologia, as pessoas fazem a<br />

relação das atividades”, diz.<br />

O então governador Alckmin<br />

anunciou, em março de 2005, a<br />

construção de 41 novas unidades<br />

da Febem. Elas têm um novo<br />

nome: Centro de Apoio Socioeducativo<br />

ao Adolescente (Casa), mas<br />

recebem as já citadas críticas a seu<br />

projeto arquitetônico. Também foi<br />

Setembro 200<br />

• Anunciou a descentralização da Febem e a construção<br />

de 41 unidades nos moldes do Conanda. Até<br />

deixar o cargo, em março de 2006, para se candidatar<br />

à presidência, apenas duas haviam sido entregues.<br />

• Em 2003, alegando falta de segurança, a Febem<br />

barra visita da Organização das Nações Unidas (ONU)<br />

à Unidade de Atendimento Inicial (UAI) do Brás.<br />

• É inaugurada a unidade de Vila Maria 1, com<br />

estrutura de um presídio de segurança máxima, com<br />

três muralhas separando-a da rua e agentes circulando<br />

com cães. No final de 2004, a unidade se rebela<br />

fazendo sete reféns.<br />

• Em 2005, ocorre a segunda maior fuga da Febem,<br />

no complexo do Tatuapé. 307 internos fogem. Rebeliões<br />

destroem unidades do Tatuapé e do complexo de<br />

Franco da Rocha.<br />

• 700 internos com 18 anos ou mais são transferidos<br />

para uma penitenciária em Tupi Paulista (interior<br />

de SP), por seis meses.<br />

• Em setembro de 2005, a Febem publica portaria<br />

que restringe acesso das entidades de defesa de direitos<br />

humanos.<br />

• Em 2006, Alckmin começa a desativação do<br />

complexo do Tatuapé, sem que nenhuma das outras<br />

unidades prometidas estivesse em funcionamento.<br />

divulgada a descentralização administrativa<br />

da instituição em dez<br />

divisões regionais, cada uma com<br />

orçamento próprio e autonomia.<br />

As novas unidades deverão<br />

funcionar em sistema de gerenciamento<br />

compartilhado: ONGs indicadas<br />

pelos municípios cuidarão das<br />

atividades pedagógicas e a Febem se<br />

encarregará da direção e da segurança.<br />

A instituição divulgou um<br />

2


Setembro 200 Revista <strong>Adusp</strong><br />

Padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Menor, fala durante protesto contra a Febem<br />

projeto sócioeducativo que pretende<br />

adequar suas unidades ao ECA.<br />

O governador Cláudio Lembo<br />

admitiu que não conseguirá entregar<br />

todas as unidades até o final do ano,<br />

como era previsto. Das 41 prometidas,<br />

ele prevê a construção de 12.<br />

Segundo a assessoria de imprensa<br />

da Febem, cinco unidades devem<br />

ser entregues ainda esse semestre.<br />

O atraso é atribuído aos municípios.<br />

“Há uma resistência, que é<br />

muito grave quando se começam<br />

construções, em imóveis do governo<br />

do Estado, e elas são embargadas<br />

por autoridades municipais”, diz a<br />

secretária Eunice Prudente.<br />

“Existe um preconceito social<br />

como existe contra todos os sistemas<br />

prisionais. O medo é que<br />

2<br />

a construção de uma unidade da<br />

Febem atraia todo tipo de ações<br />

extremamente violentas, através<br />

de rebeliões, por exemplo”,<br />

diz Naves, da Fundação Abrinq.<br />

Porém, para Ariel Alves, os municípios<br />

não aceitam a Febem porque<br />

ela não está nos padrões do ECA.<br />

“O Estado quer implantar a Febem<br />

sem consultar os Conselhos Municipais<br />

dos Direitos da Criança e do<br />

Adolescente, sem respeitar as políticas<br />

municipais. A Febem não é<br />

reconhecida em nenhum conselho<br />

porque não se ajusta ao ECA”.<br />

Os especialistas entrevistados<br />

têm pouca fé nas novas unidades.<br />

Acreditam que a Febem deve ser<br />

extinta e substituída por outro<br />

modelo. “A Febem não ressocia-<br />

Daniel Garcia<br />

liza”, diz Naves. “A única solução<br />

que eu vejo é começar tudo de<br />

novo”, completa. Alves, por seu<br />

turno, acredita que “na maioria<br />

dos casos a Febem é um passaporte<br />

para o sistema prisional ou<br />

para o cemitério”. Ambos citam<br />

como exemplo a ser seguido o<br />

modelo adotado no Rio Grande<br />

do Sul. Lá, foi criada em 2002 a<br />

Fundação de Atendimento Socioeducativo<br />

(Fase), para substituir a<br />

Febem. As unidades foram regionalizadas<br />

(de um total de 16, 10<br />

estão no interior do Estado), e<br />

funcionam com um projeto pedagógico<br />

que acompanha os adolescentes<br />

desde a internação até sua<br />

saída. A Fase já comemora dois<br />

anos sem rebeliões.

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