Por que Volpi, seus anjos negros, bandeirinhas e fachadas espelham o Brasil

Nos cem anos da Semana de 22, Masp dedica mostra ao pintor e a Abdias Nascimento, intelectual que pensou a brasilidade

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Obra de arte

Obra sem título de 1950 do Alfredo Volpi exposta em 'Volpi Popular', no Masp Divulgação

São Paulo

O italiano Alfredo Volpi e o intelectual brasileiro Abdias Nascimento evocaram em suas pinturas, cada um à sua maneira, ideias do que é e do que pode ser o Brasil. Representações atípicas de Jesus, Maria e anjos de pele negra, bandeirinhas e fachadas repetidas à exaustão, além de orixás e símbolos africanos, constroem esses universos.

Nas comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e do bicentenário da independência do Brasil, que agitam as discussões em torno de como as artes visuais construíram uma ideia de brasilidade, as mostras de cada um desses pintores que começam nesta semana no Masp apresentam duas facetas que arejam esse debate.

A exposição "Volpi Popular" se volta para as referências da cultura popular brasileira no corpo de trabalho do artista —mesma proposta que a instituição já havia explorado com as obras de Candido Portinari e Tarsila do Amaral nos últimos anos.

"Volpi é um artista em que a referência do popular é evidente. No imaginário popular ele é marcado pelas bandeirinhas, pelas fachadas", afirma Tomás Toledo, que organiza as duas exposições. "Mas o que nos interessava nessa mostra era sair um pouco desse lugar-comum e pensar o elo do Volpi com o popular de uma forma mais abrangente, para entender os imbricamentos da vida do artista e sua sociabilização."

Por isso, a mostra apresenta uma seleção de pinturas religiosas, como representações de são Jorge e santa Rita de Cássia, logo de cara. Ainda que distantes das bandeirinhas, as pinturas já evocam uma paleta rebaixada e um pensamento de planificação das obras.

"Volpi faz uma mistura bastante particular com referências da história da arte, de pinturas renascentistas que ele aprendeu observando como um autodidata, e absorveu também do modernismo essa vontade construtiva, geometrizada ", afirma Toledo.

Obra de arte
Obra 'Sem Título (Madona com Menino)', de 1947, do Alfredo Volpi exposta em 'Volpi Popular', no Masp - Coleção Orandi Momesso/Divulgação

O artista radicado no Brasil, aliás, nunca participou de nenhum movimento artístico, muito menos dos formados pela elite paulistana. Mesmo tendo circulado pelo meio da arte, de ser próximo de críticos e curadores e de participar de Bienal de São Paulo, Volpi andou sempre à margem, diz Toledo.

"Pareceu importante mostrar que outros artistas que não estavam exatamente na Semana de 22 também participaram no desenvolvimento do modernismo em São Paulo e vinham de origem operária, vinham de origem autodidata. Ele era um homem branco europeu, mas que tinha uma socialização distinta dos outros homens brancos europeus", diz ele.

Algumas dessas diferenças são as passagens por Mogi das Cruzes e Itanhaém, no litoral paulista, onde ele tinha contato com artistas considerados populares e vivia mais isolado do eixo Rio-São Paulo. São paisagens de casas singelas desses locais, aliás, que marcam a produção de Volpi.

De um ponto de vista formal, Toledo lembra que Volpi e Abdias Nascimento têm um caminho similar quando flertam com a abstração e não perdem o referencial da figuração.

Enquanto o italiano se distancia das figuras humanas e arregimenta campos de cores gastas, próprios da fatura da têmpera, com as fachadas e bandeiras, o intelectual brasileiro se aproxima de uma abstração geométrica com símbolos que compõem a religiosidade de matriz africana.

Antes de começar a pintar em 1968, Nascimento idealizou o Museu de Arte Negra, coleção que agora é exposta no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, para debater a estética da negritude, conceito que tinha chegado ao Teatro Experimental do Negro no Primeiro Congresso do Negro Brasileiro.

Essa coleção não se restringe à reunião de obras só de artistas negros, mas inclui aquilo que "o negro e sua cultura estejam representados e exerçam influência ou desempenhem um papel inspirador", como o próprio Nascimento definiu. Volpi é um dos que estão nela, por exemplo.

"Acredito que ele provocava artistas brancos a compreender o quanto havia de afro-brasileiro em suas produções. Essa é uma leitura possível para 'Volpi Popular', é possível questionar a força das culturas africanas na criação da estética das platibanda e dos festejos aludidos nas bandeirinhas", afirma Amanda Carneiro, também à frente da organização da mostra de Abdias Nascimento.

"Abdias Nascimento: Um Artista Panamefricano" estabelece uma relação direta com o termo cunhado por Lélia Gonzalez, intelectual e política próxima dele que formulou a ideia de "amefricanidade" para se referir à vivência das pessoas negras na América Latina.

A intenção da exposição é também apresentar a faceta de artista visual de Nascimento, afirma Carneiro. "Por isso, todos os núcleos são pensados com base num trabalho ou num conceito do próprio Abdias." É o caso, por exemplo, da ideia de "quilombismo", que se materializa numa das pinturas do artista na união do tridente de Exu aos ferros de Ogum.

Ele também subverte o sentido das bandeiras americana e brasileira nos trabalhos "Okê Oxóssi" e "Xangô", ambas dos anos 1970, ao incorporar referências de matriz africana, afirma a organizadora da mostra.

"Essa dobradinha de exposições de Volpi e Abdias retoma algo que já vivemos no acervo do museu com os trabalhos de Volpi, Abdias e Rubem Valentim um ao lado do outro", conta Carneiro. "Há um diálogo próximo entre esse três artistas em que as obras operam uma comunicação visual a partir da síntese de formas e ideias em emblemas, como as insígnias e ferramentaria de orixás, que ora flertam com a abstração geométrica ora com a figuração."

Os dois países imaginados pelo universo pictórico dos artistas, segundo Toledo, são resultado de posturas quase diametralmente opostas. Volpi era um homem introspectivo, um artista de ateliê que tenta traduzir nas obras uma visão particular de mundo própria, afirma o organizador da mostra.

"Abdias, sem dúvida, estava fazendo uma produção em que tinha algo a ser dito, compartilhado e comungado. Era algo do todo —não havia só uma vontade de falar com o coletivo, mas criar um conteúdo de interesse coletivo e construído coletivamente."

O universo privado de Volpi, no entanto, em que tudo se apresenta de maneira irregular e em aberto nas obras, parece sintetizar em formas como a das bandeirinhas também um movimento coletivo.

Existem ali a rotina, a "reiteração insana de atividades semelhantes", uma "multiplicidade de percepções e experiências sob essa aparência de igualdade e mesmice", como definiu o crítico Rodrigo Naves num texto emblemático que está no livro "A Forma Difícil". São países, afinal, obras de muitas mãos.

Volpi Popular e Abdias Nascimento: Um Artista Panamefricano

  • Quando Abertura em 25 de fevereiro. Ter., das 10h às 20h. Qua. a dom., 10h às 18h. Até 5 de junho
  • Onde Masp - av. Paulista, 1.578, São Paulo
  • Preço Ingressos a partir de R$ 25; grátis às terças
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