Lado B da Copa: O goleador hondurenho filho da 'cidade da morte'

André Donke, Guilherme Nagamine e Jean Pereira Santos, do ESPN.com.br
Metatarso. Homicídios.

Duas palavras completamente desconexas se jogadas no papel. Mas dois termos inteiramente conectados quando se tratam do atacante Carlo Costly. Principal referência ofensiva da seleção de Honduras, o centroavante está ligado a dois dramas distintos e que só têm em comum o fato de provocarem dor.

O primeiro termo diz respeito à vida profissional do atleta. Em 2010, já considerado um jogador que poderia liderar a seleção um dia, ele quebrou o quinto metatarso - ou osso - do pé direito durante uma partida na liga romena. Diagnóstico: seis semanas para a recuperação total. Fim do sonho de representar a seleção da América Central na Copa do Mundo da África do Sul.

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Carlo Costly é filho de San Pedro Sula
Carlo Costly é filho de San Pedro Sula


Já os homicídios estão relacionados à vida pessoal. Mais precisamente, à cidade em que Costly nasceu. San Pedro Sula, segundo maior município de Honduras e localizado na região noroeste do país [leia mais sobre o local no fim do texto], encabeçou nos últimos três anos uma lista nada lisonjeadora: a de cidade mais violenta do planeta.

Futebol no sangue

San Pedro Sula recebeu a alcunha de ‘cidade da morte' pela primeira vez em 2011, quando liderou a lista elaborada pela ONG (organização não-governamental) mexicana Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal. O apelido se manteve nos últimos dois anos, quando a cidade continuou liderando o ranking composto por 50 municípios.

De acordo com os dados do Observatório da Violência de Honduras, quatro pessoas, na média, perdem a vida em crimes dolosos todos os dias em San Pedro Sula. Ao fim de 2013, 1.458 pessoas haviam sido assassinadas, ou o equivalente a 21,5% do total de homicídios registrados no país no ano (6.757). Em outros dados, 193,4 mortes para cada 100 mil habitantes, uma taxa 22 vezes maior do que a considerada aceitável pela Organização Mundial de Saúde, de 8,8 para cada 100 mil habitantes.

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Números assustadores para quem vê de fora. Mas que talvez não assustem tanto quem vive no local. Como, por exemplo, o próprio Carlo Costly. "A situação da segurança está controlada. Você vive normalmente em sua casa. Graças a Deus, nunca me ameaçaram em Honduras, nunca me passou nada ", disse o atacante, em entrevista por telefone ao ESPN.com.br.

Costly fez seu retorno definitivo para San Pedro Sula no começo de 2014 para defender o Real Club Deportivo España, depois de 17 anos fora da cidade. Seu regresso também se deu em condições bem melhores do que tinha sua família quando nasceu, em 18 de julho de 1982. "Normalmente, aqui em Honduras, muitos jogadores passaram por uma situação complicada na infância. Em meu caso, fui de uma família humilde, que lutava para dar condições aos filhos, uma luta pelo melhor para os filhos no dia a dia. Sou grato aos meus pais por isso".

Permaneceu na cidade até os 15 anos, quando se mudou para o México com sua mãe. Segundo ele, por condições melhores que o país vizinho oferecia. Nada a ver com a violência que marca o local hoje. "Nesta época, não havia tanta violência como agora. Graças a Deus estamos vivendo bem".

Divulgação/Real España
Carlo Costly durante aquecimento antes de jogo pelo Real España
Carlo Costly durante aquecimento antes de jogo pelo Real España


Em solo mexicano, optou por seguir a carreira de jogador de futebol. Não por acaso. O futebol estava literalmente no sangue. Em 1982, poucos dias antes de nascer, seu pai, Allan Costly, fez parte da primeira seleção de Honduras a participar de uma Copa do Mundo.

Zagueiro, Allan foi titular nos três jogos no Mundial sediado pela Espanha, quando os hondurenhos empataram em 1 a 1 com os anfitriões e com a Irlanda do Norte e perderam para a Iugoslávia por 1 a 0, com um pênalti no fim. Após o torneio, foi contratado pelo Málaga, onde ficou uma temporada antes de retornar ao futebol de seu país.

Costly teve uma carreira bem mais internacional que seu pai. Depois de começar profissionalmente no Platense, em Honduras, começou sua aventura em equipes do exterior em 2007. Foram sete clubes de sete países diferentes em sete anos: GKS Belchatow (Polônia), Birmingham (Inglaterra), Vaslui (Romênia), Atlas (México), Houston Dynamo (EUA), Veria (Grécia) e Ghizou Zhicheg (China).

Enquanto o atacante acumulava experiência no futebol do exterior - e também ganhava suas primeiras chances na seleção -, San Pedro Sula começava a ganhar traços de cidade violenta. Um panorama intimamente ligado a como Honduras se desenvolveu nos últimos 30 anos.

Armas, gangues e organizadas

O ano de 1982 não marcou apenas a estreia de Honduras na Copa do Mundo. Foi também o começo do mandato de Roberto Córdova como presidente do país. Ele era, após nove anos de ditadura militar, o primeiro chefe do executivo a assumir o poder após a realização de uma eleição.

E foi durante o seu governo que, segundo estudo realizado pela Pastoral Social Cáritas de Honduras, o descontrole sobre a segurança pública começou a crescer. Apesar de democrático, o estado hondurenho tinha militares em posições chave, como na segurança pública.

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De acordo com o estudo, o governo de Córdova estabeleceu uma aliança com os Estados Unidos que foi prejudicial para a nação hondurenha. Os norte-americanos, então sob a presidência de Ronald Reagan, tinham interesse em impedir que um regime democrático de esquerda permanecesse no poder da Nicarágua, então vivendo a Revolução Sandinista.

Honduras, então, virou porto para milhares de soldados norte-americanos realizarem serviços militares - assim como os Contras, grupo de oposição aos sandinistas que recebiam armamento em terras hondurenhas. A circulação de armas em Honduras, portanto, aumentou, assim como o comércio ilegal entre grupos irregulares e organizações criminosas.

Outro ponto importante para o aumento da insegurança - além de certa instabilidade política e o narcotráfico - foi o surgimento de gangues conhecidas como ‘maras'. Com origem em cidades dos Estados Unidos, as maras se enraizaram em Honduras a partir de jovens que foram deportados de terras norte-americanas e viram a chance de praticarem atividades ilegais também em seu país de origem. O crescimento destes grupos, caracterizados por métodos violentos, foi grande ao longo dos anos 90, aponta a Pastoral.

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Panorâmica da cidade de San Pedro Sula
Panorâmica da cidade de San Pedro Sula


Em San Pedro Sula, as gangues conhecidas como 18 e MS13 disputam os territórios da cidade. Os tentáculos das duas organizações são grandes: as duas mexem com tráfico de drogas, extorquem comerciantes e taxistas, e se caracterizam por recrutar crianças e adolescentes da periferia da cidade.

O futebol local não passou incólume. Segundo reportagem de 2013 do jornal "El Heraldo", parte dos membros de organizadas de dois dos maiores clubes de Honduras entraram nos esquemas criminosos das maras: os Revolocos, do Motagua; e o Ultrafiel, do Olimpia.


Fratura no dedo e no sonho

O crescimento exponencial da violência em Honduras - coroado com os títulos de país mais violento do mundo, com 20 assassinatos todos os dias, e por ser terra da cidade mais mortífera do planeta - se espalhou ao longo de 30 anos. O drama de um de seus filhos ilustres, por outro lado, durou semanas.

Carlo Costly se mostrava confiante em todas as entrevistas que concedeu após quebrar o dedo mínimo do pé direito em um jogo do Vaslui contra o Cluj. Chegou a dizer que não aceitaria ir para o continente africano como convidado da delegação. E viu o sonho acabar a 33 dias do Copa na África, quando a comissão médica da seleção hondurenha descartou sua presença.

"Foi uma decepção tremenda (em 2010). Me via no Mundial, fazendo gols. Mas o futebol te dá uma chance de revanche, uma outra oportunidade. Estou ansioso. Seria algo incrível igualar o meu pai. Para mim, o que falta é ganhar um campeonato com o Real España e jogar o Mundial como o meu pai", disse ao ESPN.com.br.

A ansiedade se explica nos números. Costly, de 31 anos, foi um dos grandes nomes de Honduras nas eliminatórias. Participou de 13 dos 16 jogos da campanha. Marcou sete gols. Um deles na histórica vitória por 2 a 1 sobre o México, no Azteca, a primeira de Honduras na casa do rival. Um outro contra a Jamaica, no empate em 2 a 2 que decretou a classificação para Copa no Brasil.

"Estou pensando em ir bem com o Real España para chegar em boas condições no Brasil. Depois, se fizer uma boa competição, dá para ver possibilidades de jogar no exterior novamente. Na Copa, temos que ir passo a passo, passando partida a partida. Vamos ver se conseguimos ir até o quarto jogo", afirmou, cauteloso, sobre as chances da seleção, que está no grupo E da competição, ao lado de Suíça, França e Equador.

Cautela que desaparece quando é instado novamente a comentar a situação da violência em sua cidade. A afirmação, desta vez, é categórica.

"É algo (violência) que melhora dia a dia. E penso que San Pedro Sula é a melhor cidade para se viver em Honduras."

San Pedro Sula é uma das cidades mais importantes de Honduras

Se engana quem pensa que San Pedro Sula se limita a ser apenas o local mais violento de Honduras - e também do mundo. O município, capital do departamento de Cortés (algo equivalente aos estados brasileiros), é a segunda cidade mais importante do país, atrás apenas do centro executivo, Tegucigalpa.

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Costly comemora gol no empate contra a Jamaica, pelas eliminatórias
Costly comemora gol no empate contra a Jamaica


A cidade se notabiliza por ser considerada o polo industrial da nação. E é algo que não se limita apenas pela presença de grandes indústrias de bebidas, tabaco, matérias para construção civil, entre outros: um ponto visto como estratégico é sua localização.

Encravada na região noroeste de Honduras, San Pedro Sula fica a cerca de 60 km de Puerto Cortés, cidade que possui o principal porto do país centro-americano e é o caminho mais utilizado para importações, exportações e transporte de cargas. Segundo estimativas do governo, o município respondeu por cerca de dois terços do PIB do país em 2011, que foi de cerca de 35 bilhões de dólares.

Veículos da imprensa local também ressaltam que a cidade vai, cada vez mais, se encaminhando para se tornar um local de serviços: cerca de metade dos estabelecimentos hoje são comerciais. Oferta de produtos que encontra demanda na população estimada em 1,5 milhão de habitantes, conta que inclui a região metropolitana.

A seção Lado B da Copa tem como objetivo contar histórias ligadas ao Mundial que ultrapassam os limites do campo e da bola e terá 18 edições (esta é a nona), sempre com uma novidade a cada terça-feira até 10 de junho, a dois dias da abertura da Copa.

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