Lado B da Copa: O soldado do futebol que libertou a Argélia e fez um general se render a ele

Jean Santos, André Donke e Guilherme Nagamine, para o ESPN.com.br

Tem a ver com ele o fato de a Argélia, hoje, ser livre. Tem a ver com ele o fato de o futebol ser o esporte mais praticado e amado da nação. Tem a ver com ele o fato de a seleção estar na Copa do Mundo de 2014.

"O que eu consegui com aquela seleção da FLN não poderia ter sido comprado nem com todo o ouro do mundo." 

Foi com esse orgulho que Rachid Mekhloufi, hoje um senhor de 77 anos, definiu em entrevista dada em março de 2013 para a série Rebeldes do Futebol, apresentada pelo polêmico ex-jogador francês Eric Cantona e transmitida pela "TV Al-Jazeera", um dos mais emblemáticos casos de associação entre futebol e política da história.

Caso que culminou na criação de uma seleção de um país que sequer existia oficialmente e que terminou com a libertação da Argélia do domínio explorador de 132 anos da França.


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LADO B DA COPA
Rachid Mekhloufi conseguiu ser craque e 'soldado' dentro de campo: libertou a Argélia e fez De Gaulle se render a ele

Era o começo de abril de 1958. Ele, com 21 anos, gozava da fama de ter feito 25 gols, ter sido o condutor do modesto Saint-Étienne ao surpreendente título do Campeonato Francês de 1956/1957 - o primeiro do clube - e ser nome certo, apesar de argelino, na seleção francesa do técnico Albert Batteux que dali a dois meses disputaria a Copa do Mundo, na Suécia.

Assim como o zagueiro Mustapha Zitouni, do Monaco e também argelino, Mekhloufi era um dos convocados para o amistoso contra a Suíça que seria realizado em Paris no dia 16 daquele mês como parte da preparação, mas, no dia do jogo simplesmente não apareceu. Ou melhor, não apareceram, já estavam em Túnis.

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O plano da Frente de Libertação Nacional (FLN), partido socialista argelino que comandou a revolução armada, consistia na fuga dos 11 melhores jogadores do país africano que atuassem por clubes franceses para a capital da Tunísia, onde se reuniriam e formariam a seleção da FLN.      

E assim foi. Em 13 de abril daquele ano, a Argélia ainda não era um país independente, mas já tinha um time que a representava. O objetivo? Usar a equipe como arma comercial, de propaganda, espalhando onde fosse possível, sempre usando o uniforme com as cores verde e branca, que aquele povo tinha o desejo de ser livre e que isto era um anseio geral.

Uma causa pela qual até mesmo os atletas resolveram lutar, abrindo mão de toda fama e estabilidade que tinham. A rebeldia dos jogadores foi a forma que a FLN encontrou para protestar e mostrar ao mundo o quanto a França estava equivocada na manutenção do conflito que já se encaminhava para três anos e meio de duração - havia começado em 1o de novembro de 1954 (leia mais sobre a Guerra da Argélia abaixo).       

Divulgação/Fifa
Rachid Mekhloufi Argélia Ex-jogador Atacante Saint-Étienne 18/03/08
Rachid Mekhloufi, em foto de março 2008: 'Fomos revolucionários' 

Le onze de l'indépendance

Ser atacante e autor dos gols fazia de Mekhloufi o craque, o mais badalado e conhecido do grupo que fugiu, mas Zitouni também era peça importante e teria sido titular da seleção europeia no Mundial sueco - ambos já estavam até pré-convocados; para alguns historiadores do futebol, com eles, o time francês teria tido muito mais chances de jogar de igual para igual a semifinal que perdeu por 5 a 2 para o Brasil do jovem Pelé. 

Zitouni e outros quatro companheiros, Abderrahmane Boubekeur (Monaco), Abdelaziz Bentifour (Monaco), Kaddour Bekhloufi (Monaco) e Amar Rouai (Angers), fugiram por meio da fronteira com a Itália; pela fronteira com a Suíça, saíram Mekhloufi, Abdelhamid Kermali (Lyon ), Mokhtar Arribi (Avignon), Abdelhamid Bouchouk (Toulouse) e Said Brahimi (Toulouse). 

O plano original da FLN teve uma baixa. Mohamed Mouche, do Stade de Reims, deveria ter sido o 11º jogador da primeira turma que rumou para Túnis, mas teve dificuldades para driblar as autoridades francesas, foi detido e só conseguiu se juntar à seleção meses depois. Vários outros atletas do país africano acabaram presos por ordem do governo de Paris.

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Ao contrário de seus principais jogadores, como o meia-atacante Raymond Kopa e o atacante Just Fontaine, até hoje o maior artilheiro de uma edição de Mundial (fez 13 gols em 1958), a favor da causa argelina, a Federação Francesa de Futebol (FFF) exigiu que a Fifa tomasse uma providência.



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Copa do Mundo Amistoso Argélia Torcedores Bandeira Armênia Sion Suíça 31/05/14
A Argélia está no grupo H, com Bélgica, Rússia e Coreia do Sul

O órgão, então, não reconheceu a legitimidade da seleção recém-criada e até ameaçou expulsar da Copa os países que jogassem contra o time que representava a Argélia. Nada que abalasse os planos.  

Ao todo, entre abril de 1958 e julho de 1962, a seleção da FLN disputou 91 jogos por África, Ásia e Europa, sempre contra países solidários à causa argelina. Entre os resultados mais expressivos, a goleada por 6 a 1 sobre a então forte Iugoslávia no dia 29 de março de 1961. "Eu nunca vou esquecer o jogo em Belgrado, jogamos um futebol incrível", disse Mekhloufi em entrevista ao site da FIfa em março de 2008.

A ideia de liberdade foi disseminada, e a propaganda fazia a causa ganhar cada vez mais adeptos até mesmo dentro da própria França, principalmente à medida que aumentava o número de baixas na guerra.

"Cerca de 1,5 milhão de pessoas morreram no conflito", afirmou ao ESPN.com.br o primeiro secretário da Embaixada da Argélia no Brasil, Chafik Kellala. A ação no futebol fez a até então intrasigente França mudar sua postura.

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"Em 1958, Charles de Gaulle ofereceu um plano que previa igualdade entre franceses e argelinos, isso depois de 128 anos. Mas àquela altura os argelinos não queriam só igualdade, queriam independência", explicou Kellala.  

A oferta de De Gaulle não era à toa. Após uma ausência de oito anos da vida política, o ex-general que comandara o exército francês durante a Segunda Guerra Mundial acabara de voltar à cena como primeiro-ministro do país justamente para tentar contornar a chamada Crise de Maio de 1958, uma instabilidade política ocorrida justamente por conta da Guerra da Argélia.  

Independência, volta à França e um general dobrado

   Enquanto defendia a seleção da FLN, o 'soldado' Mekhloufi deu um jeito de vestir a camisa do Servette FC e ser campeão suíço em 1961/1962, ano em que seu país finalmente conseguiu a independência e que marcou, acreditem, o seu retorno e o de outros vários companheiros ao futebol francês.  

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Copa do Mundo Amistoso Argélia Djamel Mesbah Armênia 31/05/14
Djamel Mesbah, meia do Milan: nascido na própria Argélia  

Prestes a completar 26 anos, o que aconteceria em 12 de agosto, o atacante foi recebido de braços abertos pelo mesmo Saint-Étienne, que, sem ele, havia voltado a ser um mero coadjuvante no futebol local. Mas as coisas mudariam.

Já na temporada 1963/1964, o argelino ajudou os Les Verts a sagrarem-se campeões nacionais pela segunda vez em sua história. O título foi repetido em 1966/1967 e o ápice aconteceu em 1967/1968, quando conquistou não só o Francês como também a Copa da França - na final, ele marcou os dois gols da vitória por 2 a 1 sobre o Bordeaux. 

Dobradinha ganha, era hora de subir ao palco para receber o troféu. A entrega foi feita por De Gaulle, que ao passar a taça a Mekhloufi não perdeu a chance de fazer política: segurou a mão do argelino, a ergueu e, para o povo e a imprensa que acompanhavam a cerimônia, exclamou: "Você é a França!"

O ex-general, o ex-primeiro-ministro e agora presidente da França, que tanto sangue derramou para não dar a liberdade à Argélia, agora se rendia a um argelino.   

"Com o passar do tempo, nenhum de nós se arrependeu... Fomos militantes, fomos revolucionários. Eu lutei pela independência", disse Mekhloufi certa vez. Após as duas conquistas de 1968, ele deixou o Saint-Étienne, do qual segue como o maior artilheiro da história, com 192 gols, e rumou para o Bastia, no qual ficou até 1970, quando voltou para viver em seu país.

Aos 35 anos, comandou pela primeira vez a seleção argelina, entre 1971 e 1972. Voltou ao cargo em 1975, quando levou o time à medalha de ouro nos Jogos do Mediterrâneo, em casa, e ficou até 1979. Em 1982, foi novamente chamado, desta vez para ser o técnico da equipe nacional em sua primeira Copa do Mundo, a de 1982, na Espanha.

Os Les Fennecs ou As Raposas do Deserto, como é conhecido o time argelino, fizeram bonito e logo na estreia venceram a poderosa Alemanha Ocidental por 2 a 1; depois, derrota para a Áustria por 2 a 0; e, por fim, novo triunfo, agora por 3 a 2 sobre o Chile - apesar da eliminação no saldo de gols, a campanha só aumentou o prestígio de Makhloufi. 

"Ele é muito popular, muito conhecido na Argélia", relatou Kellala.

Já de longe, o ex-atacante ainda viu a seleção que criou ir aos Mundiais de 1986, no México, e de 2010, na África do Sul. Aos 77 anos, verá agora o time do país que ajudou a libertar jogar a Copa no Brasil. 

A Guerra da Argélia

A França invadiu e foi tomando a Argélia aos poucos, a partir de 1830. A recepção, claro, nunca foi amistosa, e o clima de tensão sempre existiu. Mas ficou ainda pior a partir de 1950, quando uma série de atentados anti-árabes foi orquestrada por colonos direitistas até 1953.

Em 1º de novembro de 1954, o Comitê Nacional de Unidade e Ação, que tinha como objetivo unir todas as facções de luta contra a França, criou a Frente de Libertação Nacional (FLN), um partido socialista que nasceu da fusão de vários pequenos partidos.

Neste mesmo dia, a parte armada da FLN lançou ataques em massa contra áreas onde viviam colonos e deu início à luta pela independência.



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Copa do Mundo Amistoso Argélia Sofiane Feghouli Armênia Sion Suíça 31/05/14
Feghouli, meia do Valencia: francês de pais argelinos

 Ao mesmo tempo que havia um conflito contra o país europeu, a nação africana vivia uma guerra civil, uma vez que o Movimento Nacional Argelino (MNA) era outra organização revolucionária com armas em punho. Esta também queria a independência, mas era adepta de seguir a cartilha de De Gaulle.

A França, por sua vez, escondia o que acontecia na Argélia. Jornais da época, por exemplo, foram confiscados ou proibidos, sob ameaça, de veicularem notícias sobre o conflito e a quantidade de mortos na Argélia.

Mas aos poucos a propaganda da seleção da FLN corria o mundo e fazia, inclusive os franceses, contrários à guerra, saberem o que se passava, o que era ruim para as pretensões dos políticos locais. A enorme quantidade de cidadãos do país (chegaram a ser 400 mil franceses na nação africana) a serviço do conflito também pesou para a mudança de posicionamento dos europeus. 

Assim, em 18 de março de 1962 chegou-se ao Acordo de Évian, assinado entre representantes da França e do Governo Provisório da República Argelina (GPRA). A independência foi oficialmente proclamada e comemorada nas ruas da Argélia em 5 de julho daquele ano (houve atentados e violência contra franceses e outros europeus que moravam no país africano). 

O filme "A Batalha de Argel" (abaixo), cujo nome é uma referência à capital do país africano, produzido em 1966 pelo do cineasta italiano Gillo Pontecorvo, retrata bem a Guerra da Argélia.



A seção Lado B da Copa tem como objetivo contar histórias ligadas ao Mundial que ultrapassam os limites do campo e da bola e terá 18 edições (esta é a 17ª), sempre com uma novidade a cada terça-feira até 10 de junho, a dois dias da abertura da Copa.
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