Brasileira favorita no boxe recorda: 'Corte na seleção doeu mais que a morte dos meus pais'

Guilherme Nagamine, do Rio de Janeiro, e Rafael Valente, de São Paulo
Getty Images
Adriana Araújo estreia nesta sexta, 12, na Olimpíada do Rio
Adriana Araújo estreia nesta sexta, 12, na Olimpíada do Rio

A cabeça virada para cima, os olhos fechados e apenas o movimento dos lábios, como quem conversa com alguém. É assim que a baiana Adriana Araújo, 34, se prepara para subir aos ringues. É assim que a principal pugilista do boxe feminino brasileiro espera sagrar-se campeã olímpica e confirmar o favoritismo na Rio 2016.

Mulher de fé, a conversa imaginária de Adriano é com Deus. É com ajuda dele que ela admitiu ao ESPN.com.br que conseguiu superar os momentos difíceis da vida. Medalhista de bronze nos Jogos de 2012, diversas vezes ela pensou de desistir do esporte antes de viajar para a Inglaterra tamanhas as dificuldades para se manter no esporte.

Ao ganhar a medalha há quatro anos, um desabafo contra a Confederação Brasileira de Boxe, no qual afirmou que se sentia humilhada pelo presidente Mauro Silva, a colocou em conflito com a direção da seleção e ela foi cortada. Ficou quase dois anos afastada.

"Não, foi um ano e oito meses", relembra-se, com a precisão de quem sofreu cada um dos dias de afastamento. "Nem a morte dos meus pais eu senti tanto quanto... porque acabaram tirando aquilo que eu amo."

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Adriana retornou à seleção em abril de 2014 e está nos Jogos Olímpicos após receber uma das vagas que a CBBoxe tem direito pelo Brasil ser o país-sede da Olimpíada.

Preparou-se com muita intensidade para adaptar o corpo. Além dos 34 anos, o tempo em que ficou afastada da seleção representou um atraso. A estreia nos pesos leves (60kg) também não será moleza. Pegará a finlandesa Mira Potkonen, nesta sexta, dia 12, no Riocentro. Se avançar, terá de encarar a atual campeã olímpica: a irlandesa Katie Taylor, que também ostenta título de pentacampeã mundial amadora.

As principais conquistas de Adriana foram o bronze nos Jogos Olímpicos de 2012,  ouro nos Jogos Sul-americanos de Medellín (2010), o heptacampeonato Pan-Americano de Boxe (2005, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011 e 2012)  e nove vezes campeã brasileira (2003, 2004, 2005, 2006, 2008, 2009, 2010, 2011 e 2013).

Confira abaixo a íntegra da entrevista:

ESPN - Você tem algum ritual antes de iniciar as lutas?

Adriana Araújo - Deus, cara. Esse é o meu principal ritual. Sempre peço a Deus a sabedoria, que ele guie meus passos. No caminho até o ringue, faço uma oração. Em Londres, naquela foto ali [aponta para um mural com a imagem dela no centro de treinamento da seleção brasileira], tava pedindo direção para ele. Tava orando naquele momento. Esse é o meu ritual antes e durante a luta. Peço a Deus que guie meus passos e pensamentos.

ESPN - O que o boxe representa para você?

Adriana Araújo - O boxe é metade da minha vida. Comecei aos 16 anos, metade da minha vida me dedicando... Querendo ou não, é 90% da vida da Adriana. Hoje estou mais experiente, apesar de eu estar com 34 anos, apesar de tudo estou calejada, amadureci para caramba, já passei pelas grandes provas que o esporte oferece. Para quem não sabe, o esporte de alto rendimento não é essas mil maravilhas que muita gente pensa. Então hoje posso dizer que sou muito experiente. As meninas de 20, 21, 25 anos estão ainda trilhando um caminho para talvez chegar aonde eu cheguei.

ESPN - O que a Adriana de 34 anos falaria para a Adriana de 20 anos?

Adriana Araújo - Falaria muita coisa. Muita coisa que a experiência que eu tenho hoje me faz entender. A Adriana de até 27 anos, posso dizer, era muito intuitiva, muito explosiva e acabei perdendo muita coisa com essas situações. Hoje - claro, são fases da vida, não só do atleta, mas da pessoa em si - querendo ou não, o esporte acaba adquirindo muito mais para a pessoa, acabei adquirindo essa experiência. Não me arrependo de nada, são momentos... Tive a sabedoria de aprender e estou no caminho certo.

ESPN - Quais foram as diferenças do ciclo olímpico anterior para o atual?

Adriana Araújo - Assim, a grande mudança, tem o físico, né (risos), que não é mais o mesmo. A experiência é realmente outra. A vontade de vencer e conquistar por ser uma Olimpíada dentro de casa, querendo ou não, tanto eu quanto os meus colegas querem ser os heróis da modalidade e do esporte brasileiro e se possível mundialmente. Acho assim pelo fato de eu ser medalhista em Londres não estou levando comigo a obrigação de se medalhista em 2016. Por sinal, a Olimpíada ainda vai começar, ninguém é medalhista, todos estão na mesma situação, sou apenas mais uma querendo ser campeã. Em 2012, fui para ser campeã, veio um bronze com gosto de ouro. A meta em 2016 é ser campeã e torcer para que isso aconteça. Estou indo sem cobrança nenhuma. A expectativa é que seja a melhor possível.

ESPN - Mudou alguma coisa para o boxe nos últimos quatro anos?

Adriana Araújo - Com certeza. As pessoas estão mais atentas ao boxe depois da última Olimpíada. O boxe era considerado o patinho feio, não era nem televisionado, quase ninguém procurava um atleta do boxe... Graças a Deus eu fui uma das que conseguiu fazer a diferença, de fazer com que nosso esporte, principalmente o feminino, que era totalmente esquecido, não era nem visto, nem lembrado, ninguém nunca tinha ouvido falar de uma atleta do boxe feminino. Essa conquista em Londres a gente conseguiu manter uma visibilidade alta para o boxe.

ESPN - Como é o boxe feminino? O senso comum é que há menos interesse, menos cobertura do que o masculino. E, até 2012, nem fazia parte da Olimpíada.

Adriana Araújo - O boxe feminino foi o que mais atraiu a população para assistir as lutas [em Londres-2012]. Todas as lutas femininas era casa cheia. Mas eu já pensei várias vezes em desistir da carreira. Não só pelo fato do boxe feminino não ser olhado pelas entidades internacionais tampouco pelas nacionais. Na época que não era olímpico a gente não tinha nenhuma instituição nem COB nem Ministério do Esporte que pudesse nos ajudar.

Nesse tempo, tanto eu, como outras atletas veteranas, como a Andreia Bandeira, a Roseli Feitosa, que foi campeã mundial, a gente já fazia lutas internacionais mundiais, pan-americanos, continentais, e a gente custeava com o nosso próprio dinheiro. Eu trabalhava, fazia rifas, café da manhã para poder juntar um dinheirinho para custear as passagens porque, infelizmente, devido a situação do boxe feminino não ter sido olímpico até 2010 fazia isso. [O boxe feminino] era esquecido.

De 2000 até 2010 bateu várias vezes a vontade de desistir. Minto. Eu vim mudar todos os pensamentos em 2008 quando surgiu o patrocínio do Ministério do Esporte, que foi o Bolsa Atleta. Foi um grande incentivo, foi quando eu abri mão do meu trabalho normal para viver apenas do esporte e passei a acreditar. Surgiu uma nova esperança que o boxe feminino poderia entrar nos Jogos Olímpicos. Logo em seguida passei a ouvir rumores de que ia acontecer e tudo mais, foi quando passei a me dedicar 100%.

ESPN - Quando não conseguia se sustentar com o boxe, o que fazia?

Adriana Araújo - Trabalhei com várias coisas. Trabalhei como agente de saúde, fazia cadastro para uma empresa chamada Coelba, que é uma empresa de eletricidade lá em Salvador. Eu fazia cadastramento junto com uma equipe que tinha um eletricista e um ajudante do eletricista. A gente fazia trabalho que a empresa mandavam tipo corte, religação, ligações novas, mudanças de rede... Eu mandava "Ó vá ali e faça isso'...

No término, sempre tive amizade com os meus chefes. Eles sabiam que eu já praticava amadoridade, que eu era atleta. Às vezes, me liberavam mais cedo para eu poder treinar.

ESPN - Por ser medalhista, tem noção de quanto você inspira outras meninas?

Adriana Araújo - [Pausa de alguns segundos] Olha, logo em seguida aos Jogos de Londres eu não tinha essa noção. Mas uns cinco, seis meses depois passei a ver e tive a experiência de atletas, meninas que estavam começando e mandavam carta para mim, falavam em redes sociais, dizendo que eu era a inspiração delas. Isso acaba me motivando. Isso foi um dos motivos para ainda eu dar continuidade e representar o país na Rio 2016. Como eu disse, querendo ou não, a gente acaba sendo um dos heróis para essas pessoas, crianças. Lá em Salvador, aonde muitos meninos e meninas praticam o boxe, assim como muitos praticam jiu-jitsu no Rio. E passa a ter eu, o Robson Conceição... As crianças passam a ter eu e ele como heróis da modalidade. Se espelham muito na gente, quando estamos na academia do professor Dórea, vai muita criança. Falam que estão torcendo, que vai estar depositando toda energia positiva para gente. Isso realmente acaba dando autoestima para gente ir em busca de novas conquistas.

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ESPN - O que vai fazer no futuro?

Adriana Araújo - Olha, acho que vou saber depois da Rio 2016. Mas, digo de antemão que parar eu não paro. Não me vejo fora dos ringues. Eu cogito a ida para o boxe profissional, tenho propostas. Têm empresários da Argentina que querem fazer um trabalho interessante comigo. Não é nada certo para eu poder realmente ter uma certeza é pós-Rio.

ESPN - Como foi para você a saída e a volta à seleção brasileira de boxe?

Adriana Araújo - Teve um prejuízo. Foi um dos momentos mais tristes da minha vida porque uma coisa é o atleta sair porque está lesionado ou por iniciativa própria, se aposentou, seguiu outro caminho... Mas da forma como eu saí da seleção foi um momento muito duro. Nem a morte dos meus pais eu senti tanto... porque acabaram me tirando aquilo que eu ama. Foi um ano e oito meses sofridos. Cogitei parar. Depois de tudo que eu tinha feito pelo esporte brasileiro, depois de um fato histórico que eu fiz, logo em seguida ser apunhalada da forma que fui... Mas enfim, graças a Deus eu consegui dar a volta por cima.

[Na volta à seleção] Estava alegre, bastante alegre, era o lugar que eu jamais deveria ter saído, mas triste porque eu perdi muita coisa. Um ano e oito meses para um atleta de rendimento ficar fora, principalmente de um esporte de contato, é... é barril, foi um momento... eu gemi muito. Quando eu voltei, eu pensei dez vezes em continuar novamente, se era isso mesmo que eu queria. Como tinha dito, o corpo não era mais o mesmo para suportar tudo aquilo que eu estava passando.

Então, eram dores da unha do pé até o fio do cabelo até eu poder por o corpo de acordo com o que pede o esporte de alto rendimento. Para mim foi bastante doloroso tanto a ida quanto a volta. Eu só fui me encaixar, enquadrar em 2015. Foi quando realmente o corpo passou a aceitar novamente os treinamentos, a corresponder de forma que tinha de corresponder. Foram anos que... enfim, já foi, é passado e eu venci.

A fé me deu e me força para suportar [a fé], entendeu?

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