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Guilherme de Faria

Guilherme de Faria

Ser muitos é ser todos

  Há artistas que quanto mais desvendados perdem o seu encantamento. Existem outros que simplesmente dificultam que esse processo se complete, pois as surpresas se acumulam como véus que, por mais que sejam retirados, apontam para novas camadas de interpretação,  num processo infinito em que ser um criador apenas não basta. É necessário ser vários.   Esse processo mental, base da heteronímia, ou seja, da existência de personalidades artísticas próprias, complexas e diferentes entre si, acompanha a obra do poeta português Fernando Pessoa, com suas diversas manifestações em verso, e o artista plástico Rubens Matuck, com distintas criações visuais, que surgem com técnicas diferenciadas.   No caso de Guilherme de Faria, ocorre um fenômeno que articula literatura e artes plásticas. Nascido em 1942, São Paulo, SP, morador do bairro dos Jardins, iniciou sua carreira desde muito cedo como desenhista, ilustrador e gravurista, tendo como um de seus mestres na área o colecionador e artista plástico Giuseppe Baccaro, uma lenda-viva nas galerias de arte paulistanas dos anos 1970.   Portador de um traço ágil, participou de mostras como a I Exposição Jovem Desenho Nacional, no Museu de Arte Contemporânea da USP, em 1965, e, dois anos depois, da IX Bienal de São Paulo, Guilherme vive de sua produção artística desde 1962. Ao ter a obra negociada em leilões, também começou a ver seu nome circulando no meio artístico, passando a ser visto como uma celebridade, embora ainda muito jovem. É na maneira de retratar a figura feminina que o artista paulistano encontrou uma expressão diferenciada. Há ali muito do gesto da arte oriental, uma espécie de sumiê conceitual, em que a forma de fazer e a elegância do traço são praticamente mais importantes que o resultado final. O essencial – e é possível perceber isso ao se admirar os trabalhos – não está nas imagens criadas, mas na maneira como foram concebidas. Sua arte, no desenho, é  a de captar formas com delicadeza, recurso que também utiliza nas litogravuras, que parecem autênticos poemas visuais em que a alma feminina se faz presente em uma plenitude que até choca pela limpeza e pureza plástica. Já nas pinturas de paisagens, que mesclam um uso de cores quentes próximas ao expressionismo unido ao uso de massas que agradaria ao mestre francês Matisse, as composições revelam uma temperatura mais elevada, com vermelhos e laranjas conquistando o espaço da tela.   A essas facetas de artista plástico, Guilherme de Faria juntou, em 2001, a de cordelista. São mais de 70 textos, ilustrados com xilogravuras dele mesmo, que ficaram incubados desde o início dos anos 1970, quando realizou, numa perua cujo motorista havia sido contratado para recolher mestres violeiros e repentistas, pelo sertão de Pernambuco e Bahia, uma viagem rumo a um congresso desses artistas populares dotados de uma mistura muito peculiar entre dom e técnica. Guilherme, que, ao colocar um chapéu de couro, literalmente se transforma no heterônimo Adão Ferreira, personagem digno de Guimarães Rosa ao relatar os seus próprios cordéis, não parou nesse ponto sua ligação com a heteronímia. A partir de 2001, dedicou seu trabalho à divulgação da poeta, contista e romancista gaúcha Alma Welt (1972-2007), portadora de nome muito simbólico, já que welt, em alemão significa “mundo”. Ele se apresenta como lançador, descobridor e prefaciador da obra dessa artista, portadora de riquíssimo universo existencial artístico. Todavia, é no desenho de suas mulheres que se revela um artista completo. É ali, na maneira de empunhar o pincel e deslizá-lo sobre o papel, que está a sua verdadeira alma no mundo. Todas as mulheres que desenha, nesse aspecto, são Alma Welt. E ele as domina todas, como um Cronos invertido, pois, ao contrário da figura mitológica que engolia seus filhos para controlá-los, Guilherme de Faria vomita almas – e elas percorrem diversas artes, com suas múltiplas personalidades.