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Kevin De Bruyne: a peça para que a famosa geração belga convença – ou frustre de vez

Kevin De Bruyne: a peça para que a famosa geração belga convença – ou frustre de vez

Armador do City, o belga mudou seu estilo de jogo com Pep Guardiola e foi campeão inglês com sobras. Na seleção, precisará render para que sua geração comprove seu valor

LEONARDO MIRANDA
23/04/2018 - 12h00 - Atualizado 23/04/2018 17h55
Kevin De Bruyne. Expoente de uma badalada safra de jogadores, o meia será determinante para o sucesso da Bélgica na Copa (Foto: Getty Images)

O árbitro acabara de apitar o fim do primeiro tempo. No placar, 2 a 0 para o Manchester City contra a Napoli. A caminho do vestiário, um jogador gesticulava com os companheiros e pedia a palavra com dedo em riste – "me deixem falar!". Os atletas fizeram silêncio e enquanto caminhavam ouviram atentamente a fala que, infelizmente, não foi possível aos telespectadores decifrar pela televisão. O orador era Kevin De Bruyne, cujo semblante calmo não transparecia uma característica forte em sua personalidade, a inquietude. Por outro lado, a cena deu indícios de traços que o tornam especial, como a liderança e o questionamento. Aos 26 anos, o meio-campista é o principal jogador da badalada geração da Bélgica que chega à Copa do Mundo de 2018 com status de favorita.

De Bruyne é o melhor jogador do Manchester City, consagrado campeão inglês na temporada de 2017/2018 com quatro rodadas de antecedência. A liderança, aliada à capacidade técnica, faz dele o protagonista num elenco recheado de bons jogadores, como o brasileiro Fernandinho e o espanhol David Silva. O belga foi eleito membro do "time do ano" da Premier League, a primeira divisão da Inglaterra, pelos próprios jogadores. É admirado pelos colegas. A três rodadas do fim da temporada europeia, tem 12 gols marcados e impressionantes 19 assistências. Isso com a camisa do City. Na Bélgica, De Bruyne dá pinta de ter se tornado mais importante para o esquema da seleção do que outros jogadores de primeira linha, como Hazard e Courtois, ambos atletas do Chelsea.

A atuação do belga pode ser descrita como a de um armador clássico: toque refinado e elegante, passes e lançamentos precisos para companheiros de ataque. No Manchester City, De Bruyne usa desses atributos no papel de meia de ligação, isto é, alguém que se divide entre as obrigações defensivas e ofensivas por todo o jogo. Mas ele também sabe atacar. Na Alemanha, onde jogou por três anos no Wolfsburg, ele era um jogador mais ofensivo. Ficava perto do gol, atrás do centroavante. Por causa desse posicionamento marcava mais gols, apresentava-se dentro da área e fuzilava goleiros adversários com mais frequência, tanto que fez 20 gols em 72 jogos, do que quando foi colocado numa faixa anterior do campo.

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Os concorrentes de Kevin De Bruyne (Foto: ÉPOCA)

A mudança de estilo se deve muito a Pep Guardiola, técnico catalão que comanda o City. Conhecido por pensar equipes que prezam pela troca de passes, o treinador prefere usar da técnica e do refinamento de De Bruyne numa região crucial do campo, o meio. É onde as jogadas começam. Onde a bola precisa de um trato mais fino para que chegue redonda aos atacantes. A concorrência no clube inglês também pesou nessa escolha de Guardiola. O brasileiro Gabriel Jesus, o argentino Agüero e o inglês Sterling formam um esquadrão ofensivo, enquanto passadores como o português Bernardo Silva e o alemão Ilkay Gundogan compartilham a armação. O belga precisou se adaptar para ser encaixado nesse esquema.

Os números mostram como De Bruyne é a encarnação do meia clássico. Com a camisa do Manchester City em 2015/2016, o meia acertou 77% dos passes que fez na temporada. No ano seguinte, 2016/2017, o aproveitamento aumentou para 81%. Eficiência que foi elevada mais uma vez na temporada mais recente, 2017/2018, para 82%. Os dados foram coletados pelo Wyscout, parceiro de ÉPOCA na cobertura da Copa de 2018. Quando computados apenas os passes feitos no terço final do campo, ou seja, no ataque, o belga tem uma média de 77% de acerto. Poucos meias conseguem um percentual tão alto nessa faixa do gramado, uma vez que a marcação adversária é mais ferrenha. São indicadores que apontam para um jogador talentoso na distruibuição do jogo e em constante evolução.

Na comparação com outros meias proeminentes em suas seleções e de características similares, como o brasileiro Philippe Coutinho, o espanhol Isco e o alemão Özil, De Bruyne ainda leva vantagem por atuar em uma área maior do campo. O mapa de calor fabricado pelo Wyscout entrega a diferença. O belga é um meia central que vai bem atrás, como volante, e também se arrisca nas pontas, enquanto atacante. É um jogador de inteligência tática tão aguçada que é exigido pelos colegas a todo momento para fazer a conexão entre defesa e ataque. Ele sabe acelerar e cadenciar o jogo. É a tal da polivalência – mas não no sentido de designar aquele jogador mediano, que quebra galho em qualquer lugar. Não aqui. O meia da Bélgica tem a versatilidade atrelada à eficiência.

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O mapa de calor de Kevin De Bruyne (Foto: ÉPOCA)

Na seleção, questionamento
Na Bélgica, a influência de De Bruyne também extrapola os 90 minutos, como no Manchester City. Ele é considerado um líder, capaz de reger a equipe inteira. Inclusive seu técnico. O espanhol Roberto Martínez, comandante dos belgas desde 2016, é conhecido por montar equipes ofensivas, que atacam o tempo todo, mas tem enfrentado questionamentos públicos de seu subalterno. Ainda que a Bélgica tenha goleado a fraca Arábia Saudita por 4 a 0 recentemente, em março deste ano, o desempenho da equipe como um todo não tem sido muito bom. As escolhas táticas do treinador irritaram o meia de tal modo que, numa demonstração de impulsividade e talvez desobediência, De Bruyne reclamou a jornalistas depois do empate por 3 a 3 com o México em outubro do ano passado.

“O México foi taticamente melhor. Nosso jogo tem muita ênfase no talento. Enquanto não tivermos um bom sistema tático, teremos dificuldades contra times como o México. Jogamos com um sistema que pode parecer defensivo, mas está recheado de jogadores de ataque que sempre querem ter a bola. Isso gera um problema, pois, quando jogamos como o México, ficamos sem a posse, e os jogadores não se encaixavam nesse jeito de jogar. É uma pena que não achamos ainda uma solução”, discursou o meia em entrevista coletiva depois da partida. A postura é reveladora. Positivamente, mostra um orador articulado e um atleta intelectualmente formado para ler o jogo. De aspecto negativo, é possível ressaltar que a esfera pública não é a melhor para uma crítica ao técnico.

Martínez colocou panos quentes sobre a declaração de De Bruyne. Não aparentou se incomodar demais. De qualquer modo, o questionamento do jogador tem motivo. O técnico pensa o futebol de forma muito ofensiva. Prefere a quantidade à qualidade. Por isso, arma a Bélgica com uma linha de três zagueiros – Alderweireld, Kompany e Vertoghen – e libera o restante da equipe para o ataque. Hazard, Carrasco e o próprio De Bruyne têm liberdade para ir para cima. O problema é que esses jogadores atuam em sistemas diferentes em seus clubes, então sofrem para se adaptar à mentalidade do time nacional na hora de vestir a camisa belga. Aí está um motivo para desconfiança sobre a geração belga. Talentosa e badalada, a equipe pode frustrar por jogar fora de seu habitat.

A goleada sobre a Arábia Saudita neste ano não acalmou os ânimos dos belgas. Existe uma questão numérica aí. De eficiência. A Bélgica marcou quatro gols, mas chutou 27 vezes a gol, portanto teve um aproveitamento de apenas 15%. É pouco diante de um adversário tão desqualificado quanto os árabes – que estarão na Copa. A defesa também não funcionou a contento. A Arábia invadiu a defesa belga 56 vezes durante a partida, enquanto a Bélgica chegou à defesa árabe 78 vezes. De novo: o jogo deveria ter sido mais desequilibrado. O povo clama um De Bruyne posicionado mais à frente, como nos tempos de Wolfsburg. É uma dor de cabeça, não das boas, para o técnico Martínez. Encaixar talentos pode parecer simples, mas não é. Ainda mais quando há cabeças pensantes e questionadoras em campo.

Kevin De Bruyne. No Manchester City, o belga foi recuado por Pep Guardiola e se tornou um meia completo (Foto: Getty Images)

Uma geração que não convence
A reclamação de De Bruyne após o jogo com o México serve também como ultimato. Mostra a frustração de quem quer algo a mais. A geração dele é considerada a mais talentosa do futebol belga desde a década de 1980, quando o país chegou a uma semifinal de Copa do Mundo. O motivo de tanta euforia é o alto número de talentos espalhados por times do primeiro escalão europeu. Lukaku é o melhor jogador do Manchester United. Hazard, titular do Chelsea, já chegou a ser comparado com Neymar. Tantos talentos e campanhas de destaque nas Eliminatórias geram uma natural, porém pouco saudável expectativa.

A Bélgica não empolga em campo. A frustração vem muito do desempenho. O futebol apresentado é tido como lento, pouco eficiente e dependente de bolas aéreas. Tanto que um dos goleadores é Fellaini, conhecido pelos seus atributos no cabeceio – e por sua vasta cabeleira crespa. Mas há uma razão para a falta de equilíbrio no time: o meio-campo. De Bruyne tem as qualidades necessárias para que a transição entre defesa e ataque funcione bem, mas nem sempre o atleta atua em sua melhor forma. E não há alternativas a ele. Mousa Dembelé se machucou, Witsel e Nainggolan não dão conta do recado. Martínez sabe da fragilidade e tenta compensá-la com um time cheio de defensores e atacantes talentosos.

A jornada belga na Copa da Rússia tende a começar tranquila. Os primeiros jogos na fase de grupos serão contra o Panamá, em Sochi, e diante da Tunísia, em Moscou. Adversários frágeis que devem ser vencidos tranquilamente mesmo que a equipe não desempenhe seu melhor futebol. O derradeiro jogo virá no desfecho da primeira etapa, quando a Bélgica enfrentará a Inglaterra em Kaliningrado. Aí, sim, haverá uma prova de fogo para a "ótima geração belga" – três palavras que os comentaristas esportivos cansaram de repetir nos últimos anos. E, naturalmente, para Kevin De Bruyne, líder técnico e intelectual de uma seleção recheada de bons talentos, mas que depende inteiramente de sua atuação para funcionar com satisfação.

Kevin De Bruyne, o melhor jogador da Bélgica (Foto: ÉPOCA)







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