TIMES

Por Leonardo Miranda

Reprodução

Acompanhe o autor no Twitter @leoffmiranda e no Facebook do Painel Tático

Não se pode dizer que a demissão de Julen Lopetegui do Real Madrid, consumada na segunda, foi uma surpresa. O time vinha de quatro jogos sem vencer e levou um 5 a 1 indescupável do Barcelona. Mas ao contrário de outras demissões no clube, a impressão entre imprensa e torcedores é que Lopetegui é o menos culpado nesse caldeirão de egos chamado Real Madrid.

É verdade que o time não vinha bem. Havia um sofrimento imenso para atacar e fazer gols sem Cristiano Ronaldo e defesa ruiu sem proteção. Não é verdade que o time era desorganizado. Lopetegui fez da Espanha favorita (antes de sua tosca demissão) com ideias que mesclavam o sistema de posse e passes curtos da campeão de 2010 com agressividade e agilidade com a bola. Uma das principais mudanças em campo foi colocar um intenso “perde-pressiona”: a Espanha perdia a bola e avançava com fúria para recuperar, com até 5 jogadores matando a jogada adversária.

Lopetegui sabia que o time precisava ter uma organização ofensiva com mais qualidade sem a eficiência absurda de Cristiano Ronaldo. Por isso, sua ideia de time era um sistema organizado em todas as fases e com posições a cumprir: Bale e Isco davam profundidade enquanto Modric funcionava como articulador até achar o pivô e a mobilidade de Benzema. Asensio foi testado, Vázquez surgiu como lateral e Marcelo foi transformado em volante de chegada para preencher a área e finalizar rápido. O técnico queria um Real a mil em todos os jogos.

Chegada na área do Real Madrid — Foto: Leonardo Miranda

Há similaridades com o Real de Zidane, mas a principal ruptura estava atrás. O clube foi buscar Courtois com o argumento que Novas não trabalhava tão bem com os pés. Tudo porque Lopetegui é fiel à ideia de que sair jogando é sempre a melhor forma. A saída de bola do Real era extremamente sistematizada: Casemiro entre os zagueiros, goleiro com três opções de passe e Madrid e Kroos no meio-campo, enquanto o ataque afundava. Esse jogo prega que a posição deve ser cumprida à risca, com um intuito: o de gerar condições favoráveis de jogo. É o que se chama de jogo posicional, como você vê na imagem.

Saída posicional do Real Madrid — Foto: Leonardo Miranda

Acontece que esse tipo de sistema nunca funcionou nessa temporada. E nem venha dizer que é por conta “da qualidade dos jogadores” (pelo amor de Deus, né). Vamos a um efeito prático de uma ideia não funcionar: o time desaba. Se o Real não constrói bem, irá perder a bola com mais frequência. Se perde a bola, aciona o pressing com mais frequência…e deixa a defesa mais exposta. Bingo: efeito-cascata num esporte sistêmico, onde qualidade e talento não são podem ser dissociados de contexto. Abaixo, temos um exemplo de como funciona isso. Veja que o Real busca pressionar o Barcelona em seu campo de defesa. Quer a bola, como Lopetegui manda. Dá para ver que o time está postado com duas linhas de quatro e Marcelo mais à frente. Bale encaixa em Sergi, e lá na direita, Modric vem para dar apoio.

Pressing do Real Madrid — Foto: Leonardo Miranda

O pressing é tão intenso que logo se desenvolve em um pequeno círculo de cinco jogadores contra Arthur. E Arthur consegue sair da pressão com facilidade. Veja como Benzema, Bale e Kroos simplesmente “desligam” do jogo, e ficam parados, apenas vendo a bola. Pressionar assim exige agressividade, exige atacar mais a bola e não deixar ninguém livre. O conforto que Arthur tem para conduzir é um prato cheio para…fazer gols! Porque veja como a defesa do Real está amplamente exposta, com os laterais longe dos zagueiros e muito espaço entre Casemiro e eles. Veja Marcelo, em dúvida se deve pressionar ou preencher seu espaço no lado esquerdo.

Pressing do Real Madrid — Foto: Leonardo Miranda

Cultura e exigência: a essência do Real é o caos criativo

Esta é a passagem mais curta de um treinador na história do Real Madrid, e é fácil culpá-lo. Mas há algo acima de jogadores e técnicos nessa história toda. Lopetegui não deu certo porque não entendeu que o o Real Madrid tem uma cultura estabelecida na qual o jogador é quem deve brilhar e o sistema sempre será relegado a segundo plano.

Você lembra de quantas vezes o Real Madrid de Zidane jogou bem? Pouquíssimas. O pacto com o demônio era tão grande que a bola batia e entrava. Mas você se engana se isso era tido como um problema. Zidane, ídolo como jogador, entendeu muito bem que a única coisa que o Real precisa entregar ao fim de um jogo é a vitória. 2 a 1, 6 a 0…vencer sempre. Há caminhos e caminhos, e a torcida normalmente não aceita que um sistema tão posicional e lógico como o de Lopetegui esteja acima da liberdade individual de cada um.

benzema, cristiano ronaldo, zidane e ozil no real madrid — Foto: Kevork Djansezian/Getty Images

Por isso o time de Zidane operava sob a lógica do “caos criativo”. Seus treinos eram simples rondas (rodas de bobinho para praticar passes). O time jogava de forma simples e compacta e ficava tocando bola com aproximações e toques curtos até a bola chegar na área e Benzema ou Cristiano empurrar para as redes. Não havia saída de três, profundidade, ataque posicional: basicamente todo mundo fazia o que queria dentro de um modelo e precisavam vencer. Veja um exemplo, na final do Mundial contra o Grêmio: Cristiano Ronaldo recua para receber de Isco, com Benzema aberto e Asensio paradinho no outro lado. Liberdade. Caos. Mas criatividade e intuição.

Real Madrid na final do Mundial de 2017 — Foto: Leonardo Miranda

A história do Real é cheia de craques: Di Stéfano, Cristiano, Zidane, Figo…e sempre com a presença de um volante mais defensivo: Karembeau, Casemiro...Veja como há a lógica do brilho do talento ofensivo e do “sacrifício” dos defensores. Casemiro caiu como uma luva porque tinha esse espírito de sacrifício e entregava a bola para o BBC brilhar. No Real Madrid o que vem primeiro é o jogador, nunca o sistema.

Técnicos que não entenderam bem essa lógica sofreram, mas não são culpados. O Real Madrid é o clube mais brasileiro da Europa: contrata sem convicção e ideia, querendo apenas o resultado. José Mourinho chegou aos merengues em 2010 porque era uma estrela, não por suas ideias. Falhou porque prendeu Cristiano na esquerda, limitou Kaká (uma estrela na época) e fazia de Xabi apenas um lançador. Ancelotti chegou e ganhou porque entendeu que era preciso deixar as estrelas confortáveis: achou em Dí Maria a peça para deixar Cristiano descansado, fez um time simples e de contra-ataque que se salvava com as cabeçadas de Sergio Ramos.

Kaká e Mourinho tinham relação complicada, segundo o brasileiro — Foto: Helios de la Rubia/Real Madrid via Getty Images

A história do Real é repleta de grandes treinadores que insistiram num sistema e se deram mal. Mas há algo em comum nos técnicos vencedores: todos se adaptavam e construíam um time mais livre. Você nunca ouviu falar no Real de "Heynckes", de "Villalonga" ou "Muñoz". Mas no Real de Stéfano, Zidane, Cristiano...Nenhum grande pensador tático, mas caras com grande maestria em administrar grupos e egos.

Julen Lopetegui Barcelona x Real Madrid — Foto: Reuters

Lopetegui tem uma lição importante para sua carreira: entender melhor a cultura de onde chega. Foi o que Unai Emery fez no Arsena e o que Tuchel leva ao PSG. É o que Mourinho peca ao não dar no United. É preciso entender a essência de um clube antes de colocar uma ideia muito fechada em si em campo.

Acompanhe o autor no Twitter @leoffmiranda e no Facebook do Painel Tático

Footer Leonardo Miranda — Foto: Leonardo Miranda

Mais do ge