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Por Leonardo Miranda

Jornalista, formado em análise de desempenho pela CBF e especialista em tática e estudo do futebol


Derrotas doem. Ainda mais para um adversário que, se não é rival, vinha disputando títulos nos últimos anos como foi o 2 a 1 para o Palmeiras, na final da Libertadores. Derrotas também deixam lições que podem ajudar a corrigir a rota, melhorar pontos e também manter o que está dando certo.

Hoje, a pior coisa que o Flamengo pode fazer é não assumir aquilo que o jogo mostra: o time não mereceu vencer. Foi superado por um rival mentalmente e taticamente melhor. Uma valiosa lição para o futuro do clube, que terá uma semana decisiva: eleições presidenciais e um novo técnico em pauta para o lugar de Renato Gaúcho.

Everton Ribeiro e Gabigol na cerimonia de premiação da Libertadores — Foto: REUTERS/Andres Cuenca Olaondo

Muitas vezes, o lado passional do futebol faz o torcedor se sentir mais seguro e confortável achando que seu time só perde para ele mesmo. É um pensamento muito, muito perigoso. Por dois motivos: ignora o que o outro lado fez e não gera lição, nem evolução da derrota.

É muito fácil achar que o Palmeiras "joga feio" e que o "Abel é retranqueiro", ou simplesmente colocar tudo na conta de Andreas Pereira. Ou na conta de Renato Gaúcho e contratar um novo técnico estrangeiro. Ou ainda, olhar para o mapa das finalizações e sentenciar que o Flamengo foi muito bem porque teve mais chutes e posses. É uma narrativa cheia de verdades, mas que no fim, conta uma mentira: a de que não há nada para tirar desse jogo.

Escapar desse pensamento perigoso envolve sair da zona de conforto e fazer aquilo que o Brasil precisa fazer mais, assim como o Flamengo: olhar para o jogo.

Flamengo teve volume e chances, mas criou menos do que está acostumado

Vamos olhar com cuidado as finalizações da partida. O Flamengo chutou 16 vezes a gol. Dessas 16 vezes, apenas duas chances foram certas: a defesa do Weverton no chute do Arrasca e o gol. Das 16, 6 aconteceram na prorrogação. Quatro para fora e duas finalizações interceptadas. Das 10 finalizações no tempo normal, 5 foram chutes errados.

Existe o gol perdido, a chance difícil e o chute desprencioso que entra na conta acima. O Flamengo teve duas chances claras: a cabeçada do Bruno Henrique no segundo tempo e o chute de Arrasca, no primeiro tempo. Um gol perdido, aquele de Michael.

Já o Palmeiras finalizou dez vezes ao todo. Seis chutes do Palmeiras a gol. Dois gols e duas chances claríssimas: uma grande defesa do Diego Alves (a finalização do Rony e um chute do Veiga a gol no primeiro tempo.

Foi um jogo parelho no quesito chances claras criadas, decidido por quem errou menos. É aí que a lição ao Flamengo mora: produzir o mesmo que um adversário que teve apenas 38% de posse liga um alerta. O Flamengo trocou 357 passes a mais que o Palmeiras. É preciso entender o que aconteceu para criar tão pouco apostando no jogo de imposição, nas combinações ofensivas e na posse como a equipe faz desde 2019.

Flamengo não teve respostas para a estratégia de Abel e foi desorganizado com a bola

Futebol é um jogo de ação e reação. O Palmeiras entrou com uma estratégia nítida e clara, que você lê nos detalhes aqui no blog. Qual foi a resposta do Flamengo? Como o time reagiu coletivamente, nas quatro vertentes do jogo (técnica, tática, física e mental) ao que o adversário desenhou? Vendo o jogo, vemos um time que foi amarrado e não soube sair desse contexto.

No exemplo abaixo, o Palmeiras monta sua linha de cinco e executa os encaixes no setor onde a bola está. Danilo no Andreas, Dudu no Filipe e Mayke em B. Henrique. O que o Flamengo precisa fazer para levar a bola adiante? Se movimentar, tocar rápido, ter movimentos combinados, coletivos. Que movimentos são esses? Renato quer que o time faça o chamado "toque de bola", que no tatiquês, é troca de apoio e profundidade no setor - leia em detalhes aqui.

A resposta do Flamengo aos encaixes do Verdão é a movimentação do Éverton. Ele sai da direita e busca a bola. Mas o modelo do Fla não é trocar apoio e profundidade? Se o Éverton vem, quem que ocupa o espaço deixado por ele? Olha lá um espaço gritante e totalmente vazio. Lembra do time de Jorge Jesus? Dos bons momentos com Ceni e Dome? O time ocupava esse espaço de forma automática.

Éverton se movimenta, mas o espaço deixado por ele não é ocupado de forma automática — Foto: Reprodução

Quem executa esse automatismo é justamente...o rival. Veja que o Danilo, que estava encaixando no Andreas, identifica que o setor da bola muda e já vai encaixar lá no outro lado. Ele faz isso num tempo muito menor que alguém do Fla leva para identificar que precisará ocupar o espaço deixado pelo Éverton, que não vê ninguém para receber e toca de novo para Andreas.

O tempo que isso acontece é o tempo do Palmeiras se reorganizar. Danilo novamente identifica a mudança na zona da pressão. Quando o Flamengo chega, tá tudo marcado.

Flamengo continua encaixotado pelo Palmeiras — Foto: Reprodução

Mesmo coletivamente mal, o Fla tentou. Não faltou competição, o que o torcedor chama de "raça", nessa final. Mesmo encaixatado, a equipe toca a bola para a frente. A pergunta aqui é: "como?" Com o jogador de costas pro gol e o Palmeiras já fazendo a sobra com o Gómez no lado direito, interceptando e cuidando de "neutralizar" esse espaço.

Flamengo não consegue superar a defesa do Palmeiras — Foto: Reprodução

Boa parte das chances vieram em respostas individuais dos jogadores do Flamengo

O Flamengo é um time tão bom, mas tão bom, que mesmo coletivamente mal, foi capaz de criar as mesmas chances claras do Palmeiras. Temos que ver como essas chances foram criadas. Elas foram criadas por uma forma inteligente de gerir o espaço de jogo, uma jogada combinada...ou foram lances de soluções individuais que não foram seguidas pelo time?

Lembrando que individual e coletivo não se separam, há sempre um lado mais forte. E o lado do Flamengo foi a individualidade.

Vamos a um exemplo: na grande chance do 1º tempo, Gabigol recebe de Isla, gira e aciona o Bruno Henrique. Jogada clássica desde 2019. Mas vamos olhar o entorno: apenas o Isla ataca o espaço gerado por aquela movimentação. O restante do time fica estático. O Palmeiras tem 6 jogadores na área, e ainda assim, o Bruno Henrique consegue conectar o Arrasca. Andreas, Renê, Éverton, Arão...o posicionamento deles não condiz com o momento. Se o Andreas vai para a entrada da área, arrasta um zagueiro e gera espaço pro Arrasca chutar melhor.

Primeira grande chance do Flamengo no jogo — Foto: Reprodução/ESPN

Agora para e pensa: e se o time respondesse coletivamente melhor ao jogo? E se Andreas, Renê e outros estivessem melhor posicionados? Lembra do Jorge Jesus, que dizia que "ensinou" o time a jogar sem a bola? Nem Renê, nem Andreas tem a bola. O que torna um jogador bom é isso, é como ele responde aos problemas do jogo com menos tempo e espaço. O entorno, que a gente chama de "tática", pode ou não potencializar essa característica.

Andreas ir para a área no lance é um movimento que pode ser treinado. Neutralizar os encaixes do Palmeiras é um movimento que também pode ser treinado. Sabe onde tem um exemplo? No 5 a 0 do Flamengo no Grêmio em 2019, a equipe gaúcha jogou com encaixes (diferentes do Palmeiras, vale pontuar), mas o Flamengo soube responder. Em comum daquele jogo para a final, apenas o técnico Renato Gaúcho. Leia aqui.

Nem terra arrasada, nem caça às bruxas: Flamengo precisa ser mais profissional

A derrota mais dolorida da história do Flamengo, se não a mais, será objetivo de diversas narrativas. Temos a de que o Flamengo perdeu para si próprio, o que é basicamente...uma inverdade. Teremos também a caça às bruxas típica que o futebol brasileiro faz: a culpa é do Renato que "não treina o time" ou de Andreas, que falhou feio no lance do gol.

Apontar o dedo, agora, é o pior a ser feito. O Flamengo precisa olhar para si mesmo. E ao fazer isso, irá descobrir que vem falhando desde 2019, quando teve um ano mágico e não aprendei lições dele. O clube mais rico do Brasil não investe o suficiente em ciência do esporte, em especial no Departamento de Saúde e Alto Rendimento.

Renato Gaúcho; Palmeiras x Flamengo — Foto: REUTERS/Agustin Marcarian

Desde a saída de Jorge Jesus, o Flamengo apenas contrata treinadores e os demite, como se a culpa fosse só deles. Mas o clube cuida mal de sua estrutura. E investe pouco naquilo que precisa para seguir competindo: ciência e qualificação. Não houve um esforço em transformar o que Jesus deixou em um legado de jogo, numa organização de trabalho, em processos. Não houve investimento na ciência multidisciplinar que é o futebol. O rival da vez, o Palmeiras, é um dos times que mais investe no quesito.

Apostar no dinheiro como forma de vencer títulos é válido. Mas dinheiro gasto é passado. Já profissionalismo aponta para o futuro. A hegemonia, tão gritada com o "outro patamar", agora é do Palmeiras. O Flamengo precisa deixar narrativas confortáveis de lado e fazer aquilo que já deveria ter feito: se reinventar como clube e não apenas como time.

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