Julião tinha oito meses quando o pai, comerciante e dono de um barco de pesca em Igarapé-Miri, bairro da capital paraense Belém, morreu em um incidente com veneno de rato. A boa condição da família foi enterrada com ele. Dali em diante, só dificuldade. Despejada pela família do marido, dona Benedita perdeu barco, casa e bens e só encontrou abrigo com a mãe, na favela do Guamá. Com sete filhos a tiracolo, passou a morar em um cômodo de 3x3 metros. Só ela tinha uma cama. As crianças dormiam amontoadas em redes presas à parede do barraco de madeira construído e sustentado por estacas presas ao solo pantanoso do local. Foi nesse cenário de incertezas e comida racionada que cresceu um dos boxeadores que representarão o Brasil nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em agosto.
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Forjado na luta diária pela sobrevivência, Julião Neto foge da trajetória padrão. Na infância jogou futsal e só conheceu o pugilismo aos 20 anos. Até então vendia roupas, brinquedos e outras bugigangas na feira do Guamá ao lado da mãe. Foi ajudante de feirante e todo o dinheiro que conseguia tinha um único destino: comer e alimentar os irmãos. Hoje com 34 anos, o paraense chega ao seu segundo Jogos Olímpicos calejado pelo que viveu e viu. Para quem apanhou tanto, entrar em um ringue sempre foi o menor dos problemas. Se em Londres 2012 o brasileiro caiu na segunda luta e viu a possibilidade de brigar por medalha ficar pelo caminho, agora ele acredita ter chances de pódio no Rio de Janeiro, mas também se contenta com o que ele considera a maior conquista que já teve: uma casa para a mãe.
- Tudo que ganhava na feira do Guamá era para o nosso ganha pão.
Somos em sete filhos, com minha mãe, oito pessoas. Morávamos em uma casinha pequena, um dormindo em cima do outro. Meu tio, irmão da minha mãe, pagava luz e água. Não
tínhamos nada para comer em alguns dias e ele voltava do trabalho, via
que estávamos com fome, por volta de duas, três da tarde, e comprava
comida. Quando comecei no boxe, minha mãe não queria muito que eu seguisse. Ela me via osso e
pele, com fome, e chorava. Me oferecia comida, eu não aceitava. Ela
dizia que não era vida, que era para sair daquilo. E eu falava que ia conseguir. Fiquei porque queria realizar
meu sonho. Via minha mãe chorar por não ter uma casa. Essa
casa que construí para ela é tão importante quanto um pódio. A luta foi muito grande, por isso valeu mais que uma
medalha - garante Julião, que pagou R$ 100 mil em um terreno e teve que começar a obra do chão.
(Foto: Arquivo Pessoal)
O peso-mosca (até 52kg) estreia nos Jogos do Rio no dia 13 de agosto por ter ficado com uma das cinco vagas que o Brasil tem direito sendo país-sede. Julião tem passagem por Jogos Pan-Americanos, como Guadalajara 2011 e Toronto 2015, mas começou tarde no esporte. Tinha 20 anos e nunca havia pisado em um ringue ou calçado uma luva. Ao ver o irmão treinando em uma casinha de madeira, também no Guamá, resolveu se aventurar. A primeira experiência não foi boa, mas acabou servindo de empurrão para buscar uma estrutura melhor de treino e ajudar o destino. Na Associação de Boxe Rocky Balboa ele conheceu Jura, seu técnico desde então e até hoje na seleção brasileira.
- Meu
irmão treinava com o amigo dele em uma casa pequena, na mesma rua em
que eu morava. No início treinava
sem luva. Tênis eu conseguia uns
velhinhos, ou pedia para os meus irmãos. E ia levando. O espaço era pequeno, fui
fazer uma luvinha com meu irmão e meu rosto bateu em um prego que estava em
uma madeira da parede. Abriu meu supercílio. Foi quando procuramos uma
academia. E estou nela até hoje. Na época, havia outro boxeador de Belém, o
Joãozinho, que era da seleção brasileira. Ia enfrentá-lo pela primeira vez. Fui para o banheiro, tremia
igual vara verde. Ia lutar contra um cara da seleção... Mas, fui lá e
ganhei. Segurei os rounds iniciais, ele cansou e eu venci. Passei a
ganhar sempre e com o tempo fui para a seleção - se recorda o boxeador.
adotado por medalhista olímpico
O caminho até os Jogos Olímpicos, porém, apenas começava.
Julião chegou à seleção pela primeira vez em 2007. Pegou o tempo das
vacas magras. A Confederação Brasileira de Boxe (CBBoxe) alimentava os
atletas mas só havia ajuda de custo para os titulares. Recém-chegado, passou dificuldades até se "adotado" em São Caetano, interior
de São Paulo, por Servílio de Oliveira, até então o único pugilista do
país a conquistar uma medalha olímpica, em 1968, na Cidade do México.
-
Em 2007, passei três meses sem ganhar nada, nem uma moeda. Mas falava para
minha mãe
que estava bem. Em 2008, voltei e foi a mesma coisa.
Era uma época difícil na seleção. Só os titulares, privilegiados,
ganhavam. O número dois ou três não ganhava nada. Quando viajava para competir,
a federação pedia uma ajuda para o
estado, o governo local, e alugavam um ônibus. Já fui de Belém para São Paulo
de ônibus, com dinheiro contado para competir, comer. Fazendo
conta o tempo inteiro para o dinheiro dar - diz o paraense.
Os resultados tornaram Julião titular. E o colocaram nas
Olimpíadas de Londres, em 2012, depois da vitória no Pré-Olímpico das Américas. Apesar da derrota na segunda luta,
fincou de vez seu nome na seleção brasileira. Casou-se com Priscila,
teve o filho Iuri, hoje com 3 anos, e agora, às vésperas dos Jogos do
Rio, alugou um quarto para a família perto do centro de treinamento da
seleção, em São Paulo. Com boas expectativas para as Olimpíadas, ele acredita que pode
brigar por medalha. Atual 16º do ranking mundial, o pugilista quer
surpreender. O cara que venceu a fome, realizou o sonho da mãe e não
seguiu o caminho da maioria dos amigos, presos ou assassinados, não se
intimida:
- Vou lutar bem, seja com quem for. Não penso em
perder. Essa é a minha Olimpíada, o meu ano. Vou com tudo para
conquistar uma medalha. Depois, vai ser só alegria. Se ganhar uma
medalha no Brasil, resolvo a minha vida. Posso garantir um salário futuro. Posso virar treinador também. Não sei fazer
muita coisa. Vou virar treinador, me dedicar... Essa é a minha última
Olimpíada, por isso não posso deixar passar.