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Por Camila Alves — Recife


Sofiane Boufal comoveu o mundo ao segurar as mãos da mãe para dançar pelo Marrocos no campo do estádio Al Thumama, no Catar. Era uma comemoração genuína pela classificação da seleção - com cenas que emocionaram e repetiram-se como um rito enquanto o país faz história na Copa. O abraço de Walid Regragui. O beijo de Hakimi. Todos direcionados a uma figura central: as mães.

Os gestos são reflexo de uma criação árabe-muçulmana que tem a figura materna quase como uma "entidade" na família, com base nos ensinamentos do islã.

A Mãe é uma instituição na família marroquina. Ela é a escola, o ministério de finanças, a disciplina, o primeiro amor...
— explica ao ge o jornalista marroquino Amine El Amri, do veículo Le Matin.

Soufiane Boufal, do Marrocos, dançando com a mãe no gramado do Al Thumama — Foto: KARIM JAAFAR / AFP

O meia-atacante Boufal, por exemplo, sempre disse que deve tudo à própria mãe e demonstrou o cuidado de ajustar o hijab nos cabelos dela enquanto dançavam juntos em comemoração.

Eles viviam em um bairro pobre em Angers, na França, e ele via a mãe sair às 6h todos os dias para trabalhar, para que ele e os irmãos tivessem tudo.
— conta o marroquino Amine El Amri.
Sofiane Boufal comemora vitória de Marrocos com a mãe dentro do campo

Sofiane Boufal comemora vitória de Marrocos com a mãe dentro do campo

Essa relação de devoção e reconhecimento está nos ensinamentos do Alcorão - livro sagrado do islã - e também nas falas e comportamentos do Profeta Muhammad, também conhecido como Maomé. Há passagens no texto sobre esse cuidado e dedicação das mães, explica Francirosy Campos Barbosa, antropóloga muçulmana e professora da USP.

No Islam se reconhece que a mãe carregou seu filho nove meses, sentiu as dores do parto, amamentou e isso na religião tem um valor imensurável. Se o filho não reconhece o valor de sua mãe, ele não compreendeu o Islam.
— diz a antropóloga.

Sofiane Boufal comemora vitória do Marrocos com a mãe — Foto: Paul Childs / Reuters

Federação pagou viagens ao Catar: "Eles deram a vida por mim"

Na crença islâmica, portanto, não há nada mais importante do que cuidar e estar perto de sua mãe.

Não à toa, a Federação Marroquina bancou a estadia das famílias dos jogadores no Catar e boa parte delas está hospedada no Wyndham Doha Wes Bay, com a delegação. São familiares que se mostram orgulhosos, relata a emissora árabe Al Jazeera, e que sempre falam sobre como consideram todos os "meninos" como seus próprios filhos.

Soufiane Boufal abraça a própria mãe após vitória do Marrocos — Foto: EFE/EPA/Friedemann Vogel

Achraf Hakimi correu para os braços da mãe, Saida Mouh, após marcar o pênalti da vitória sobre a Espanha. Dias antes, contra a Bélgica, havia repetido o mesmo gesto. Entre os melhores do mundo na posição, o lateral sempre valorizou o esforço da família - em que o pai era vendedor ambulante e a mãe empregada do lar.

Eles deram a vida por mim. Se sacrificaram por mim e tiraram muitas coisas dos meus irmãos para que eu tivesse sucesso. Hoje, eu jogo para eles.
— disse em entrevista ao programa de TV espanhol El Chiringuito.

Hakimi comemora vitória do Marrocos com a mãe — Foto: FADEL SENNA / AFP

Irmã de Hakimi comemora classificação de Marrocos sobre a Espanha no Cidade da Educação

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O meia Illias Chair também recebeu a presença da família e disse que a conexão próxima deu força aos jogadores. Yassine Bono, destaque como goleiro, não contou com a mãe no Catar, mas ganhou orações à distância - em imagens que viralizaram durante a disputa de pênaltis contra a Espanha.

Espírito de equipe: "Pensamos em todos os detalhes"

Pela primeira vez, as imagens da comemoração - protagonizada pelas mães - contrastou com a realidade de outras seleções, como com as crianças da Croácia ou as esposas em outras equipes. A tradição islâmica, contudo, esteve evidente no futebol desse Marrocos desde a apresentação do técnico Walid Regragui, ao dizer que: "Nosso sucesso não é possível sem a felicidade de nossos pais".

Não à toa, no Mundial do Catar, o comandante subiu as escadas do estádios por mais de uma vez para beijar a cabeça da mãe, Fátima - que trabalhou como faxineira no Aeroporto de Orly, nos arredores de Paris, e viajou com a seleção marroquina pela primeira vez.

Durante toda a carreira dele, nunca tinha viajado para assisti-lo. Vivo na França por mais de 50 anos e é a primeira competição pela qual deixei Paris.
— disse Fatima, em entrevista ao canal marroquino Arriyadia.
Técnico de Marrocos abraça a mãe na arquibancada após classificação histórica

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O movimento passa por uma questão cultural, mas a criação de uma energia positiva fez parte também de uma estratégia de Regragui e da Federação Marroquina para obter melhores resultados no Catar. Foram eliminados na última quarta-feira, em semifinal com a França, mas deixam o marco de uma campanha histórica: a melhor de uma seleção africana em Copas.

Pensamos sobre os detalhes de trazer nossos familiares para tentar construir um espírito de equipe e isso nos ajudou a ir longe no torneio.
— finalizou Regragui, o primeiro técnico africano nas semis e também nas quartas de uma Copa.

Regragui, técnico do Marrocos, abraça a mãe na arquibancada, após vitória sobre Portugal — Foto: ANDERSEN / AFP

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