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Por Rosana, Com Camila Alves — Recife

Acervo Pessoal

Faz mais de dois meses desde que anunciei minha aposentadoria, no dia 2 de janeiro. Foram 21 anos dedicados ao futebol feminino e, desses, 17 à seleção brasileira. Carreguei comigo disputas em Mundiais, Olimpíadas, Copa América, Pan-Americano... Rodei o mundo como lateral e meia-atacante. Nas últimas semanas, eu esperei. Porque atleta com meu histórico, quando se aposenta, é normal que ganhe jogo festivo, homenagem, entrevistas... Nada aconteceu. E, no fundo, eu sabia que não aconteceria. Então decidi falar por mim mesma. Nós, mulheres, somos pouco ouvidas. No futebol, principalmente. Mas isso eu acho que você já sabe. A verdade é que lamentei muito pouco na minha vida.

Agora, posso dizer, não me importo em não ser reconhecida o suficiente. Porque sei que deixo um legado importante, muito além do futebol feminino. E isso eles não vão tirar de mim. Hoje, escrevo para vocês, meninas, o mesmo que diria à Rosana ainda criança. Vocês serão vencedoras. Sonhem. Perseverem. Joguem. E nunca deixem que ninguém imponha limites.

Ainda guardo comigo a lembrança daquelas tardes de sol nas ruas do bairro de Vila Basileia, na zona norte de São Paulo. De quando eu era feliz, jogando sem discriminação. Em casa, porém, não foram poucas as vezes que ouvi do meu pai “futebol é coisa de menino”, ou “você não joga bem”. Tudo para me desestimular. Mas eu sabia da qualidade que tinha. Ainda sei. Essa foi uma briga que minha mãe e meu irmão sempre compraram por mim. E talvez essa tenha sido minha maior sorte entre as meninas no futebol. Olhando para trás, agora aos 36 anos, não me arrependo das escolhas que fiz. Mesmo depois de uma vida de promessas não cumpridas. Ou de quase desistir de tudo por diversas vezes. Porque, juro a vocês, no final das contas, vale a pena.

Acho que fui uma mulher privilegiada no futebol. Lembro que eu dormia com a bola, porque minha mãe que mandava em casa. Na minha geração de atletas, se você for perguntar, provavelmente quase todas têm a mesma história que eu tive. De jogar na rua com os meninos. Só que a gente demora a ganhar uma bola, você sabe. E, por isso, ficamos defasadas em relação a eles. Temos pouco acesso ao esporte, poucas categorias de base, poucos times. E nós mulheres precisamos de um lugar para jogar. Acho que esse foi meu diferencial. Ter oportunidade. Mas confesso a vocês, meninas, queria que muita coisa tivesse sido diferente.

Rosana como jogadora de futsal, pelo Internacional de Porto Alegre, em 2002 — Foto: Acervo Pessoal

Queria ter tido uma vida digna no futebol. Uma trajetória mais valorizada, por tudo que fiz. Pra que eu pudesse ter ajudado melhor minha família. Porque com o pouco que tinha, sei que ainda ajudei. Hoje, olhando o que passei, tenho certeza de que teria conquistado muito mais se eu tivesse alguém que entendesse nossas necessidades.

Dei meus primeiros passos no futebol ainda em 1997, jogando no aspirantes do São Paulo. No ano seguinte, assinei contrato com o profissional. Treinava num campo bom, tinha alimentação e morava no alojamento do clube, a 40km de casa, no município do Arujá, na Região Metropolitana de São Paulo. Tinha 16 anos. Categoria de base não existia, então treinava dois períodos e ia pro colégio à noite. Naquela época, recebi meu primeiro salário como jogadora: R$ 150. Talvez vocês ainda não entendam, mas saibam que eu não conseguia fazer muita coisa com isso.

Joguei três temporadas no São Paulo, até anunciarem o fim do departamento feminino, em 2000. Foi quando tive minha primeira recaída. Sempre conversei muito comigo mesma... naquele ano, achei que não teria mais forças para voltar. Me lembro que pensei: "Vou para fora do Brasil ou paro de jogar". Achava que não valia a briga. E demorei pra lutar contra isso.

Até hoje, não sei dizer exatamente o que me fez continuar. Acho que entendi que tinha talento. E que, de uma certa forma, depois de estrear pela Seleção Brasileira aos 17 anos, tinha virado exemplo para outras meninas que querem fazer carreira no futebol, como vocês. Eu sabia que estava tendo uma oportunidade que muitas de nós nunca tiveram. Então, não poderia deixar escapar. Não é à toa que, aos 19 anos, em duas semanas, deixei 15 propostas em universidades nos Estados Unidos, onde eu iniciaria o curso de medicina, depois de ter uma nova convocação. Estudo espera, o futebol não. Foi assim que, em 2001, assinei com o Corinthians, e ainda disputaria três temporadas - de 2002 a 2004 - pelo Internacional antes de desembarcar na Áustria para defender o SV Neulengbach.

Em 2004, seleção brasileira conquistou a prata em Atenas

Em 2004, seleção brasileira conquistou a prata em Atenas

Joguei minha primeira Olimpíada ainda aos 17 anos, quando seleção de base nem sequer existia no Brasil. E não fui a única. Atletas como Formiga, Daniela Alves e Simone Jatobá fizeram o mesmo caminho, enquanto Marta e Cristiane ainda pegaram o surgimento da Sub-19. Todas essas mulheres, que chegaram muito cedo ao time nacional, permaneceram por mais de 15 anos juntas. Assistimos umas às outras crescermos nos gramados. Vivemos o primeiro jogo, a primeira vitória, a primeira frustração, o primeiro suspiro de alívio... A gente construiu uma família ali. E sei que é dessa convivência que eu mais sentirei falta.

Foi o futebol, e todas as pessoas que entraram em minha vida através dele, inclusive, que me deram forças para continuar de pé depois que meu noivo, meu maior incentivador, faleceu, meses antes do nosso casamento, em 2016. E eu não tinha nem dimensão do que representava para elas.

Ainda me lembro com detalhes do sol tocando o topo da estrutura metálica do estádio Georgios Karaiskakis, na Grécia, naquele fim de tarde do dia 26 de agosto de 2004. Perfilada para a execução dos hinos de Brasil e Estados Unidos, eu repassei todos os últimos três meses que vivemos na minha cabeça. Antes daquela Olimpíada, perdemos um amistoso contra os mesmos EUA por 5 a 1. E me lembro de ouvir do técnico René Simões: "Não sei se elas estarão no pódio, mas nós estaremos". E ele não estava errado. Nossos treinos foram todos modificados e o time encaixou de um jeito que parecia que tínhamos um prato de comida pela frente no campo. Sabe como é?

Rosana com a Seleção Brasileira Feminina e a medalha de prata das Olimpíadas 2004, em Atenas — Foto: Acervo Pessoal

Talvez você nem tenha visto acontecer, mas te digo: merecíamos o ouro naquela final. Foi quando a seleção criou uma identidade. Quando teve um trabalho respeitado. Dominamos o jogo. Acho que a frustração foi colocar duas bolas na trave, ter um pênalti não marcado e perder pelo gol de ouro, na prorrogação, por 2 a 1.

Mas aquela foi a primeira medalha olímpica da seleção. E colocar a prata no pescoço representava tudo o que a gente conquistou, sem ter a estrutura que as outras equipes tinham. Não foi um título, é verdade, mas essa é a melhor lembrança que guardo comigo depois de todos esses anos. Ela divide meus pensamentos somente com a tarde daquele 26 de julho de 2007, quando goleamos os mesmos EUA por 5 a 0, conquistando o ouro do Pan-Americano. Um Maracanã lotado, pulsando diante de 70 mil pessoas. Minha família estava no estádio. E lembro da pele arrepiada a cada grito entoado pela torcida nos apoiando. Porque a gente nunca tinha vivenciado aquilo.

Rosana com a medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro — Foto: Acervo Pessoal

O problema é que nós sempre escutamos que o futebol feminino dependia dos nossos resultados. E por isso a gente lutou. Ali, ainda em 2004, na Grécia, eu tive a certeza de como seríamos importantes para que outras meninas, como vocês, tenham o direito de fazer carreira no futebol. Ou deveria ter sido.

Naquela época, ganhamos homenagens, discursos, e nos disseram que haveria uma melhora nas competições, divulgações, calendário da modalidade… E tudo isso demorou muito para acontecer. Porque a verdade é que a gente só vive de promessa.

Foi assim em 2004, no vice da Copa do Mundo de 2007 e na prata da Olimpíada de 2008 também. Talvez só hoje estejamos vivenciando o melhor momento de evolução do feminino, com a obrigatoriedade dos clubes na Série A do Brasileiro, Libertadores e Copa Sul-Americana de manter a modalidade ativa. Acredito que, agora, enfim, possamos dar passos mais largos. Ao invés de engatinhar, como fizemos todos esses anos.

Quero que vocês saibam que sempre briguei por uma melhora na nossa modalidade. Todas as rusgas, as brigas, as vezes que exigi coisas básicas, foram para que o futebol feminino fosse melhor para nós e, hoje, para vocês. Alimentação, alojamentos, reivindicação de salários nos clubes, e até mesmo carteira assinada e cobrança por valores de direito de imagem na CBF. E sei que deixo uma herança importante nos bastidores do futebol. Foram 17 anos defendendo a seleção, e sou muito grata pela vitrine que ela me deu. Mais de um ano depois, asseguro que me aposentei dela sem nenhuma mágoa, no fim de 2017. Não me arrependo do que falei, e sei que fiz a decisão certa. Porque, naquele momento, senti que nossos pedidos não seriam atendidos.

Rosana dos Santos Augusto futebol feminino — Foto: Divulgação

Pedimos por uma melhora no valor da diária na convocação. Queríamos saber mais informações sobre o valor de imagem. E, diante da iminente demissão da técnica Emily Lima, em novembro de 2017, 24 jogadoras assinaram uma carta pedindo pela permanência dela. Porque a gente sabia que a chance de gerar bons frutos seria grande. Ela foi demitida do mesmo jeito.

Tínhamos uma estrutura física excelente, mas exigimos mudanças que não aconteceram. Então entendi que, para eles, nossos pedidos não valiam a pena. Queríamos esclarecimentos. Tínhamos reivindicações. E não fomos ouvidas. Mas sei que devemos ser, então não quis permanecer assim.

Dos outros, nós ouvimos até demais. "Menina não tem que estar jogando na rua". "Profissão como essa não tem futuro". "Futebol feminino é despesa". E talvez exista um único momento em que as pessoas não distingam gênero no esporte: na hora de cobrar. Por vezes incomoda. E preciso que vocês se preparem para isso. Nós recebemos uma pressão descabida pela estrutura que se tinha, e que ainda se tem. Era conversa de vestiário entre a gente. Porque nunca tivemos a estrutura que o masculino tem. É o que me deixa mais indignada.

Hoje, o feminino se vende, desde que seja feito de maneira correta. O Lyon, dominante na Europa, me provou isso. Cria a própria receita, tem seus patrocinadores e é um exemplo do que a modalidade pode agregar. É isso que eu quero pra vocês. Era o que eu queria pra mim. Melhores gestões, competições mais organizadas, divulgação, torcida... E aí sim poderíamos ser cobradas como sempre fomos.

Rosana no Paris Saint-Germain — Foto: Divulgação

Depois de 21 anos no futebol, posso te dizer que escrevi uma história vitoriosa. Conquistei duas pratas nas Olimpíadas (2004 e 2008), ouro em Pan-Americano (2003 e 2007), Copa América, Copa do Brasil, Libertadores, Champions, Mundial de Clubes, vice em Copa do Mundo (2007, na China) e títulos nacionais até mesmo na Áustria. Passei por clubes como Sky Blue (EUA), Centro Olímpico-SP, Lyon, Avaldsnes IL (Noruega), Paris Saint-Germain, São José-SP e North Carolina Courage (EUA). Mas todo mundo sabe que campo não é para sempre. E mesmo assim eu não o quero deixar para trás. Então eu estudei. Fiz Licença CBF, UEFA, curso de gestão na Universidade do Futebol, e acabei abrindo um leque enorme de caminhos.

Rosana deixou o Santos no final do ano passado — Foto: Pedro Ernesto Guerra Azevedo/SFC

Desde que deixei o Santos, no fim do ano passado, dedico meus dias a gerenciar carreira de jogadores de futebol. Por enquanto, somente homens. Mas ainda estou dando os primeiros passos na empresa. O próximo, é criar uma ala dedicada ao futebol feminino. E foi aqui que me encontrei. Porque quero fazer por você o que não fizeram por mim. Costumo dizer que, ao longo da minha carreira, sempre quebrei barreiras. Sempre fui em busca. Mesmo que, para isso, tivesse que estudar três vezes mais que os homens. Jogar três vezes mais. Ou tentar três vezes mais. Acho que é isso que me move. E daqui para frente, não poderia ser diferente.

Hoje, meu sonho, é realizar o sonho de vocês.

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