Ciência para o brasil_Ronald Cintra Shellard (1948-2021)

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CIÊNCIA PARA O BRASIL

Antonio Augusto Passos Videira Cássio Leite Vieira (eds.) Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas
Ronald
(1948-2021)
Cintra Shellard

COPYRIGHT © 2022 CBPF/MCTI

1a EDIÇÃO

EDITORES Antonio Augusto Passos Videira e Cássio Leite Vieira

REVISÃO DE TEXTO Zzero Comunicação (zzerocomunicacao@gmail.com)

PROJETO GRÁFICO Ampersand Comunicação Gráfica

ILUSTRAÇÕES Maria Elisa Shellard

FOTOS DO SEGUNDO CAPÍTULO Lhaaso Collaboration

CERN

ABC_Associação Brasileira de Ciências Luiz Baltar J Ricardo/CBPF Tathi Carvalho Déborah Miranda Cássio Leite Vieira Arquivo da família

Núcleo de Informação C&T e Biblioteca – NIB/CBPF Fátima Silva – CRB/7 5277

Ciência para o Brasil: Ronald Cintra Shellard (1948C569 2021) / Antonio Augusto Passos Videira, Cássio Leite Vieira (eds.). - Rio de Janeiro: CBPF, 2022.

216 p. ISBN 978-85-99957-05-9

1. Física. 2. Ciência. 3. Cientistas brasileiros.

4. Físicos. 5. Shellard, Ronald Cintra (1948-2021).

I. Videira, Antonio Augusto Passos. II. Vieira, Cássio Leite. CDD 530

Parte ou totalidade desta obra poderá ser reproduzida e distribuída livremente, bastando para isso dar crédito ao Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (MCTI).

Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas

Rua Dr. Xavier Sigaud, 150 - Urca Rio de Janeiro - RJ - Brasil CEP 22290-180 +55 (21) 2141-7100 ncs_cbpf@cbpf.br www.gov.br/cbpf/pt-br

Impresso no Brasil Printed in Brazil

CIÊNCIA PARA O BRASIL

Ronald Cintra Shellard (1948-2021)

Antonio Augusto Passos Videira Cássio Leite Vieira (eds.)

Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (MCTI)

2022

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Jair Messias Bolsonaro

MINISTRO DE ESTADO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÕES

Paulo César Rezende de Carvalho Alvim

SECRETÁRIO EXECUTIVO

Sérgio Freitas de Almeida

SUBSECRETÁRIO DE UNIDADES VINCULADAS

Alex Fabiano Ribeiro de Magalhães

DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISAS FÍSICAS

Márcio Portes de Albuquerque

APRESENTAÇÃO 9 CAPÍTULO 1 UMA HISTÓRIA DA FÍSICA DE ALTAS ENERGIAS NO BRASIL UM ENSAIO EM VÁRIOS ATOS 11 Antonio Augusto Passos Videira Cássio Leite Vieira PRELÚDIO_Contextualização 12 CENÁRIO_O que já foi escrito sobre o tema? 13 ROTEIRO_Quando começar nossa história? 15 ENSAIOS_Preparativos para o que viria adiante 18 ATO Nº 1_A pesquisa sistemática 21 ATO Nº 2_Nosso herói da Era Nuclear 26 ATO Nº 3_Fim de um, começo do outro 30 ATO Nº 4 _Brasil: altas energias (1980-2022) 38 ATO FINAL_Comentários gerais 43 CAPÍTULO 2 PARA MIM, SEMPRE FOI SHELLARD IMPRESSÕES PESSOAIS SOBRE UM AMIGO GENEROSO 53 Cássio Leite Vieira Distância e profundidade ausentes 54 Possível início 55 Graduação 57 Política? 58 Pós-graduação 58 No CERN 60 No Rio 60 Trabalho hercúleo 62 De vice a diretor 63 Filhos e ‘filhos’ 64 Minhas impressões 65

CAPÍTULO 3

TEXTOS SELECIONADOS DE RONALD CINTRA SHELLARD

Esclarecimento 83

TEXTO POLÍTICOS

Os 70 anos do CBPF e os institutos de pesquisa do MCTIC 84

Sobre ciência, no Brasil, nem o óbvio é óbvio 88

Planejamento estratégico dos institutos de pesquisa do MCTIC 89

Oito discursos para serem lidos no Senado 95 Discurso no lançamento do selo em homenagem a César Lattes 101

O CBPF, 70 anos: conhecimento como alavanca do progresso 103

Desafios em C&T: IPs e o desenvolvimento humano e sustentável 104

Exposição de motivos: os institutos de pesquisas do Brasil 105 James Cronin (1923-2016): legado atemporal 107

Os 100 anos do físico Costa Ribeiro 109

Física de Astropartículas – Proyectos Argentina-Brasil 110

ABC publica obituário de Roberto Salmeron 112

Preparativos para a International Cosmic Ray Conference 114

Projeto Mural Grafite da Ciência do CBPF 115

Fortalecimento dos IPs para o desenvolvimento sustentável do Brasil 116

UPs do MCTIC são infraestrutura para o desenvolvimento humano e sustentável 116

MEMORIAL

Candidatura para dirigir o CBPF 117

CARTAS

Para a SBF: programa de altas energias no Brasil 121

Para o MCTIC: cortes orçamentários 124

Para o MCTIC: adesão ao CERN 126

Para o Comandante Militar do Leste: convite 128

Para o MCTIC: cortes orçamentários 129

Para o MCTIC: CBPF-Belém 131

Para o MCTIC: competências do CBPF 131

Para o embaixador do Brasil no Vietnã: convite 133

Para o Senado e a Câmara: cortes orçamentários 134

Para o MCTIC: declarações sobre o INPE 136

Para o Senado e a Câmara: derrubada de vetos 138

ENTREVISTAS

James W. Cronin: o enigma das micropartículas com macroenergia 140

Diretor do CBPF é reconduzido ao cargo 146

Mobilizing Brazilian scientists for DUNE 149

Raios de alta energia: nova fronteira 151

DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

A ciência necessária 153

A descoberta da partícula W 155 Quarks, léptons, glúons, γ, W, Z... A matéria invisível 157

Encontrada a partícula Z: confirma-se a teoria das interações eletrofracas 164

Novas partículas no horizonte da física 166

Os neutrinos pesados 168 Energias extremas no universo 170 Energias extremas no universo 177 Precisão e sensibilidade 180

Auger 20 anos: maior observatório de raios cósmicos do mundo inicia nova etapa histórica 183 Os raios cósmicos de alta energia podem matar um astronauta no espaço? 186 Como funcionam e para que servem os aceleradores de partículas? 187

Um ‘Einstein’ gigantesco nos pampas 188 Eppur si muove 195

A matemática nas forças da natureza 197 Espelho quebrado: a paridade violada 200

Uma pergunta capciosa 203

Extraordinário Higgs! 207

O CERN e a física de partículas 209

Sabemos que não foi ele que começou a história da física de altas energias no país, mas, certamente, ela passa por ele.

O Brasil teve a honra de ver nascer aqui Ronald Cintra Shellard, um amigo, mestre e profissional que marcou muitas vidas e fez história por onde esteve, com sua personalidade e suas características particulares.

Difícil encontrar alguém que o tenha conhecido e que não tenha, ao menos, duas ou três histórias para contar – o que, logo, nos faz perceber que não se ficava indiferente à pessoa dele.

Em conversa com o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Dr. Paulo César Rezende de Carvalho Alvim, fui incentivado fortemente a dar vida a este projeto: “Um livro que contasse a importância do Shellard para a ciência brasileira”. Essa seria a encomenda do ministro. Mas é impossível falar do Shellard sem passar pela história da física de altas energias, por suas incursões nas diversas esferas da política, academia, pesquisa e dos relacionamentos humanos, olho no olho.

Alguns de nossos projetos – nos seis anos em que atuamos juntos na direção do CBPF e em favor da pesquisa científica brasileira – estão relatados nesta obra, que intenciona deixar registrada, às futuras gerações, breves pinceladas sobre a vida dele, a qual nos deixou com a sensação de querermos um pouco mais de sua presença.

Apresento a vocês Ciência para o Brasil – Ronald Cintra Shellard (1948-2021), obra muito bem elaborada, cuidadosamente construída. Desejo a quem se aventurar pelas páginas a seguir excelente (e divertida) leitura. Que essa seja mais uma inspiração a novos e grandes homens e mulheres da ciência, de nossa nação – e do mundo.

Boa leitura!

Márcio Portes de Albuquerque

Diretor do CBPF

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APRESENTAÇÃO

UMA HISTÓRIA DA FÍSICA DE ALTAS ENERGIAS NO BRASIL UM ENSAIO EM VÁRIOS ATOS

Antonio Augusto Passos Videira Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas Cássio Leite Vieira Jornalista

CONTEXTUALIZAÇÃO

O texto deste capítulo necessita de, pelo menos, duas contextualizações. A primeira delas é sobre que tipo de texto apresentaremos aqui. Não se trata de artigo acadêmico, com referências ou notas de rodapé. Está, sim, mais para algo semelhante a ensaio, baseado em artigos e livros escritos pelos autores sobre o tema. Mais: foi redigido em linguagem simples, sem tecnicismos – como apreciava o homenageado deste livro.

O modo como dividimos as partes deste capítulo (em atos) foi proposital. Achamos que ele revela algo pouco dito sobre a história da física (e da ciência?) no Brasil: muitas vezes, as iniciativas são estanques, sem que se reconheçam como herdeiras de um passado e seus atores. Isso faz com que, a nosso ver, a falta de visão de uma continuidade cause o não reconhecimento de amálgama histórico entre fatos.

Nesse aspecto, a ciência nacional pratica mau hábito típico da esfera política: ignora-se o que foi feito em gestões anteriores e se começa algo ‘novo’, como se não houvesse vínculo entre antigo e recente. O resultado disso é fragmentação danosa para o estabelecimento e desenvolvimento da ciência no Brasil.

A física de altas energias no Brasil é o que é por causa dos mais de 500 anos de história deste país, onde, por cerca de quatro séculos, não houve contribuições científicas importantes. Mas não se pode negar que houve personagens que araram a terra, para que a colheita fosse feita décadas, séculos mais tarde.

Obviamente, como tudo que diz respeito à história da física no Brasil, não há nada de definitivo. Podemos ir além: nunca haverá ‘a’ história, mas sempre ‘uma’ história. E é esta última que apresentamos aqui, de forma breve, sem se prender a cronologia extensa, mas, sim, a fatos e personagens que julgamos importantes para escrevermos o texto que propusemos fazer, qual, desde o início, não dispôs do tempo necessário para a reflexão sobre as ideias que tiveram que ser assimiladas e compreendidas para que este ensaio viesse à luz.

Segunda contextualização: não queremos dar a quem se atrever a ler as páginas seguintes a sensação de que a física no Brasil começa na primeira metade do século passado. Há, certamente, vasta história anterior, mesmo que seus protagonistas não tenham sido cientistas ‘profissionais’ – muitos, no entanto, praticavam suas pesquisas com extrema seriedade. E muitos fizeram algo tão importante quanto obter resultados científicos: contribuíram para mudar mentalidades, para alterar o ambiente no sentido de torná-lo menos áspero e árduo à prática científica – e isso não é pouco, como sabemos, em um país como o Brasil.

12 PRELÚDIO

CENÁRIO

O QUE JÁ FOI ESCRITO SOBRE O TEMA?

Dando seguimento à nossa analogia, é preciso dizer qual o pano de fundo – ou mais especificamente – o cenário em que pretendemos apresentar os capítulos a seguir.

Qual a história da física no Brasil que temos hoje? Em termos mais técnicos, como é nossa historiografia da física? Esse já foi tema de livros e artigos. E a resposta simples concisa é a seguinte: os relatos gerais sobre a história dessa disciplina em nosso país foram em sua maioria escritos por cientistas da área.

Consequências: esses relatos costumam ser personalistas; ter pouca ou quase nenhuma pesquisa historiográfica (documentos, cartas, entrevistas etc.); usar modelos ideológicos que tentam acomodar fatos; apresentar a visão do ‘herói’ ou da ‘heroína’ que faz ciência isoladamente, sem que se leve em consideração o ambiente em que estavam; recorrer à descrição temporal que encadeia mestre e discípulos; empregar a perspectiva enviesada de que apenas uma vertente (em geral, próxima a quem escreve a história) merece ser descrita; ser factual, sem análise histórica que o tema demanda.

Há também nesses relatos ênfase no ‘pioneiro’ – vale lembrar que questões como ‘quem descobriu’ ou ‘quem foi o primeiro’ nem sempre fazem sentido em história da ciência. Caso emblemático é o da detecção do múon: russos, japoneses, britânicos e norte-americanos reivindicam para si a descoberta dessa partícula entre o fim da década de 1920 até meados da de 1940.

Uma história ampla da física no Brasil demandaria esforço vigoroso e interdisciplinar – e os historiadores profissionais da área no Brasil ainda não assumiram para si essa tarefa; talvez, pelo fato de histórias amplas não estarem mais em voga. Uma agravante, nos parece, é o fato de seguir havendo pouco ou nenhum interesse da comunidade científica por sua própria história.

Nesse cenário, há exceção: o amplo trabalho que resultou no livro Formação da Comunidade Científica no Brasil , liderado pelo sociólogo Simon Schwartzman. Mas é improvável que algo com alcance semelhante volte a se repetir no Brasil – pelo menos, não no horizonte visível –, até porque a história da ciência ocupa um tipo de penumbra na academia, uma ‘terra de ninguém’ entre as ciências e as humanidades. Para os historiadores, ela deve ser praticada nos institutos de ciência; para os cientistas, nos departamentos de história.

Em geral, o material que hoje temos sobre história da física no Brasil costuma isolar a ciência do resto do ambiente em que ela está imiscuída. Mais: fatos que possam embaçar a imagem da prática científica ou de seus praticantes – porém, importantes para entender a contextualização e o desenrolar dos acontecimentos – não são mencionados. Ou seja, faz-se ainda uma história da física ‘sanitizada’. Além disso, ela costuma ser pouco crítica e, por vezes, enaltecedora, quase hagiográfica. Corporativismo e ausência de autocrítica ainda são fortes na comunidade científica brasileira – e os físicos não são exceção.

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Há também nesses trabalhos pouca comparação com os desenvolvimentos externos –principalmente, com aqueles ocorridos na Europa e nos EUA, onde a física historicamente se desenvolveu com mais ímpeto. A razão para isso parece ser misteriosa – talvez, evitar acentuar as diferenças entre o que ocorria e aquilo que se passava em países com tradição científica.

Ciência segue não entendida como aquilo que ela é: uma cultura que oscila aos sabores do social, econômico, político e cultural. E que não é e nunca foi neutra. Basta lembrar que a instituição mais poderosa do mundo é o chamado complexo tecnológico-militar dos EUA, que reúne estado, indústria e academia e é responsável, ainda hoje, por grande parte das verbas de apoio à ciência naquele país – já em 1949, 96% do financiamento para a pesquisa básica em física dos EUA vinham de agências federais de defesa, como o Departamento de Defesa e a então Comissão de Energia Atômica – esta última sucessora do Projeto Manhattan.

E há temas que seguem como tabus. Por exemplo, a interação da comunidade de físicos com o governo militar. Na Argentina e no Uruguai, a ditadura militar não tinha projeto para os físicos. Mas a do Brasil tinha. E parte dos físicos brasileiros aceitou participar dele, trabalhando em projetos de segurança nacional (telecomunicações, energia nuclear, armamentos, aviação, fibras ópticas etc.).

Ou seja, houve atitude ambígua dos físicos brasileiros no regime militar: oposição ao governo e às perseguições políticas, mas aceitação de verbas estatais e apoio ao novo sistema de pós-graduação e à expansão das universidades federais.

Essas forças de reação e adesão dos físicos atravessaram os 20 anos de ditadura, o que se deu por meio de diálogo constante – mas nem sempre amistoso – com as esferas governamentais.

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ROTEIRO

QUANDO COMEÇAR NOSSA HISTÓRIA?

Pergunta que se impõe: em que momento iniciar uma história da física no Brasil? Em geral, a historiografia da área cita dois momentos: i) as primeiras aulas de física, por volta de 1800, no Seminário de Olinda, iniciativa, tudo indica, de José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho (1742-1821), o bispo Azeredo, que parece não ter obedecido ao que pregavam as decisões do Concílio de Trento em relação à educação; ii) a chegada da Família Real ao Brasil, que levou à criação das primeiras instituições com cadeiras de física no país (escolas de engenharia, de medicina, academias militares etc.).

Em período anterior, o Brasil testemunhou a presença de expedições com cunho astronômico e meteorológico. Por exemplo, i) Sanches Dorta e Francisco de Assis Barbosa, entre Rio de Janeiro e São Paulo, na década de 1780; ii) Valentim Stansel, na Bahia, na segunda metade do século 17; iii) Pierre Couplet, na Paraíba, em 1698; iv) ou, décadas antes, medições astronômicas e meteorológicas de George Marcgrave (1610-1644) em um observatório construído em Olinda, no início da década de 1640, na ocupação holandesa do Nordeste e cujos resultados foram publicados como um tipo de apêndice na obra de Guilherme Piso (1611-1678).

Os poucos trabalhos sobre esse período e essas iniciativas têm sido objeto da história da astronomia no Brasil.

Ainda tentando responder à questão acima, vale aqui citar resposta dada a ela por César Lattes (1924-2005). Para ele, os indígenas brasileiros tinham conhecimentos intuitivos de conceitos da física e os aplicavam a práticas de seu cotidiano. Exemplos dados pelo físico experimental brasileiro: a) construção de casas para centenas de pessoas que dormiam em redes (estática e resistência dos materiais); b) uso de machados com ponta (conservação do momento); c) construção de canoas com capacidade para carregar dezenas de pessoas (princípio de Arquimedes e hidrodinâmica); d) pesca (refração da luz); e) arco e flecha (leis da mecânica); f ) produção do fogo por atrito (transformação da energia cinética em calor).

O fato é que parece não haver momento ‘correto’ a partir do qual iniciar uma ampla história da física no Brasil. Ela, certamente, varia segundo o modelo teórico adotado e a área que se quer apresentar.

No entanto, toda a pesquisa história parece convergir para um consenso: a pesquisa sistemática em física no Brasil começa com a chegada ao país do físico ítalo-ucraniano Gleb Wataghin (1899-1986), para trabalhar na então recém-fundada Universidade de São Paulo – voltaremos ao tema adiante.

Otermo ‘sistemática’ é importante: ainda que isolados e sem incentivo do estado ou das instituições, professores de escolas de nível superior no Brasil, a partir do fim do século 19, passaram a fazer pesquisas (a maioria delas teóricas) por conta própria e a publicar resultados até mesmo em periódicos internacionais. Caso emblemático: o de Henrique Morize (1860-1930), na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, que, naquele período, defendeu cátedra em tema pujante para a época sobre raios catódicos e raios X.

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Na passagem daquele século para o seguinte, Morize era parte de movimento em prol da instauração da pesquisa em ‘ciência pura’ (ciência básica, hoje) nas escolas de ensino superior –estas refratárias à prática. (Esse movimento, formado majoritariamente por médicos e engenheiros, levou à criação da Sociedade Brasileira de Ciências, em 1916, seis anos depois, rebatizada Academia Brasileira de Ciências) – por sinal, essa passagem de sociedade (‘para todos’) para academia (‘para poucos’) nos parece ir de encontro aos próprios anseios do movimento, mas desconhecemos trabalho sobre o tema. Arriscamos dizer que parece ter havido separação proposital entre ‘profissionais’ e ‘diletantes’.

Ainda no fim do século 19, segundo o historiador da física dinamarquês Helge Kragh, a física lidava com duas grandes questões: i) na área de eletrodinâmica, a relação entre éter (meio que tudo penetraria) e matéria; ii) em termodinâmica, a realidade (ou não) dos átomos. Vale ressaltar conclusão também desse historiador da física dinamarquês: o surgimento da teoria quântica nada teve a ver com a ‘crise da física’ ou a chamada ‘catástrofe ultravioleta’, segundo a qual um corpo aquecido emitiria radiação ionizante (ultravioleta, raios X etc.). Segundo ele, a teoria quântica surgiu em consequência do profundo insight de Planck na área de termodinâmica.

Vale aqui esboçar também o que estava acontecendo na física em termos mundiais, para que se possa, portanto, contrastar com o que se passava no Brasil. Segundo o historiador da física canadense Erwin Hiebert (1919-2012), era período em que a prática da física tinha as seguintes características: i) percepção crescente de que havia uma unidade da física; ii) tentativas de união do muito pequeno com o muito grande; iii) postura mais relaxada em relação a especulações científicas; iv) aumento da colaboração entre grupos de pesquisa.

Esse programa, segundo Hiebert, seria posto em prática com base nas seguintes ferramentas: i) conservação de energia; ii) respeito à ordem dos elementos na Tabela Periódica; iii) culto às ideias sobre eletromagnetismo do físico escocês James Clerk Maxwell (1831-1879), que as apresentou em meados do século 19.

Outra contextualização que nos parece procedente. O historiador da física norte-americano David Cassidy relata que, naquele fim do século 19, nos EUA, havia também movimento de físicos em prol da pesquisa básica. Mas os pleitos diferiam do movimento brasileiro. Lá, havia grande ênfase nas aplicações da física – principalmente, a problemas ligados à agricultura. Cenários bem distintos, como vemos.

Outro problema com a historiografia da física no Brasil – mal do qual sofre também a historiografia da ciência – é não reconhecer o papel de bons administradores da ciência, que, a seu modo, transformaram o ambiente da prática científica no país. Caso emblemático: o do economista José Pelucio Ferreira (1928-2002), um dos formuladores do Fundo de Desenvolvimento técnico-científico (Funtec). Ou seja, há na historiografia da física tendência em valorizar apenas cientistas e seus resultados científicos (importantes).

Possível lição desse viés: ciência, como cultura, é empreendimento coletivo, no qual se pratica divisão intensa do trabalho, o qual é também feito por tecnólogos, técnicos, gestores e trabalhadores de menor qualificação educacional.

Costuma-se apontar Wataghin como o ‘pai’ da física no Brasil, mas sem dar a ênfase à enxurrada de fatos (uma macro-história, em realidade) que levaram à fundação da USP, resultado de mudança de mentalidade de autoridades governamentais paulistas que perceberam que uma universidade e os quadros formados por ela seriam instrumentos importantes para a projeção política e econômica daquele estado. A física (e a ciência) que se praticou desde então se deve a isso.

A conclusão clara é que não haveria um ‘Wataghin’ sem uma revolução frustrada em São Paulo. E, como não há ‘se’ em história, não sabemos em que momento a pesquisa sistemática em física se daria no Brasil.

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Para finalizar este tópico, vale dizer, ainda que brevemente, o que vem sendo feito atualmente em história da física no Brasil. A comunidade de historiadores da física no país é ainda diminuta. E, por décadas, suas publicações foram mais voltadas ‘para dentro’, ou seja, divulgadas em língua portuguesa e periódicos nacionais.

Nas últimas duas décadas, pesquisadores em história da física no Brasil – assim como ocorreu, na década de 1980, com a área de altas energias no país – se internacionalizaram, passando a publicar (geralmente, em inglês) em periódicos internacionais com fator de impacto significativo. Houve também aumento da produção de livros em língua estrangeira – apesar de o número destes últimos ainda ser relativamente pequeno.

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ENSAIOS

PREPARATIVOS PARA O QUE VIRIA ADIANTE

Para entendermos a história relatada nos próximos quatro atos, vale comparar aquilo que ocorria no Brasil na área de física na década de 1930 com os avanços no exterior. E, mais uma vez, os contrastes são marcantes, como veremos.

A física atual tem dois pilares, a relatividade, teoria que lida com os fenômenos do ‘gigantesco’, de massas acima das estelares e corpos que viajam próximos à velocidade da luz no vácuo (cerca de 300 mil km/s); e a mecânica quântica, que se ocupa, digamos, do outro extremo, o mundo liliputiano dos fenômenos, dos átomos e suas partículas, em definição igualmente simples – programa atual (ainda em andamento) é a fusão dessas duas ferramentas em um só corpo teórico.

Essas duas teorias tiveram seus desenvolvimentos principalmente na Europa, nas primeiras três décadas do século passado. No Brasil, essas duas teorias começaram a permear o ambiente acadêmico a partir do início da década de 1920, como resultado do trabalho isolado de engenheiros que passaram a se dedicar a esses temas. Aqui, vale citar Manuel Amoroso Costa (1885-1928), que publicou livro e trabalhos sobre a relatividade geral, e Theodoro Ramos (1895-1935), com artigos sobre a teoria quântica do átomo de hidrogênio – estes ainda com caráter relativamente básico quando comparado aos desenvolvimentos dessa teoria no exterior.

Pouco antes, ainda na década de 1910, em consequência da Primeira Guerra, a física havia passado por transformações significativas, como descreve o historiador da física russo Alexei Kojevnikov:

i) a Primeira Guerra Mundial aumentou a percepção pública da profissão de cientista; ii) estreitaram-se os laços entre ciência, tecnologia e militarismo; iii) cresceu o interesse dos governos pela política científica; iv) um novo sistema de pesquisa e desenvolvimento – conhecido como modelo soviético de ciência – iniciou-se, e sua principal característica era a fundação de institutos de pesquisa desvinculados das universidades – na Rússia, isso foi resposta à oposição que os bolcheviques sofriam de lideranças universitárias que viam as mudanças com desconfiança.

Segundo Kojevnikov, o modelo soviético de ciência influenciou reformas significativas em países como Reino Unido, França e EUA, promovidas ou apoiadas por lideranças científicas. E a linha geral dessas mudanças – algumas vingaram, outras não – era uma ciência centralmente planejada e financiada pelo governo; criação de institutos de pesquisa; e laboratórios nacionais, voltados à pesquisa militar.

Como vemos, nada semelhante ocorria no Brasil nesse período, país então periférico economicamente e com pouca tradição científica. Mas isso não significa que nossa elite acadêmica não se mantivesse a par do que ocorria no exterior. Dois exemplos nesse sentido são os trabalhos de Morize, ainda no fim do século 19, e a chegada às livrarias (especialmente, as

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do Rio de Janeiro) de obras relativamente atuais sobre ciência – por exemplo, os primeiros livros escritos sobre a relatividade, depois que se deu a comprovação histórica dessa teoria em 1919, em eclipse observado por expedições em Sobral, no Ceará, e na Ilha de Príncipe, na costa ocidental africana.

No momento em que havia essa introdução teórica, ainda que tímida, da relatividade e teoria quântica no país, a parte experimental, por sua vez, era praticamente inexistente. Naquela década de 1920 – em que ocorria, na Europa, o desenvolvimento de uma nova mecânica, a mecânica quântica –, a documentação histórica indica que, no Brasil, a área experimental se restringia a laboratório didático montado por Morize na Escola Politécnica do Rio de Janeiro – sem que, até onde sabemos, fosse usado para qualquer tipo de pesquisa – exceção para a tese de concurso para professor apresentada por ele em 1898.

A fundação da Academia Brasileira de Ciências e, anos depois, da Associação Brasileira de Educação é indício de que se acreditava que o país deveria investir nessas duas frentes, caso quisesse se igualar às nações ditas civilizadas. Mas, para a física, pouco resultou dessas iniciativas em termos de avanços.

Marco importante, realmente, se deu com a fundação da USP e a vinda de Wataghin para seu Departamento de Física – como discutiremos mais adiante. Vale aqui mencionar, ainda que brevemente, o cenário da física europeia e norte-americana no momento em que a física passava a ser feita de forma sistemática no Brasil.

As décadas de 1920 e a seguinte foram marcadas por avanços teóricos e experimentais de suma importância para a física. Como dissemos, na década anterior, se deu o desenvolvimento da mecânica quântica na Europa. Alguns dos avanços nesse sentido: a proposição de que a matéria tinha comportamento dual (corpuscular e ondulatório); a prova experimental de que o fóton tinha realidade física; a descoberta de que certas grandezas (posição e velocidade) não podiam ser determinadas simultaneamente com precisão absoluta (princípio da incerteza); a descoberta tanto teórica quanto experimental da antimatéria; a detecção do nêutron, expandindo a estrutura do núcleo atômico para duas partículas; a compreensão do chamado decaimento beta, ou seja, a transformação de um nêutron em próton, elétron e neutrino – esta última partícula, lançada como hipótese, foi prontamente aceita para explicar aparente incoerência energética desse decaimento; a proposição de uma partícula (méson pi ou píon) como intermediário da chamada força forte nuclear; a obtenção da chamada radioatividade artificial; a captura experimental do mésotron (hoje, múon), cuja capacidade de penetrar a matéria levou à crença de que a mecânica quântica era válida apenas até certos patamares de energia; a fissão (quebra) do núcleo e a obtenção da chamada fusão controlada, fenômeno que possibilitou a construção de bombas atômicas.

Havia – principalmente, na década de 1930 – certa resistência dos físicos em aceitar proposições teóricas de novas partículas, o que ocorreu, por exemplo, com o píon, o múon e, em certa medida, com o neutrino, que só foi comprovado experimentalmente duas décadas depois – o nêutron foi exceção, pois era vislumbrado desde o início da década anterior.

A descoberta ‘oficial’ do múon (1936) gerou impasse importante na física. Inicialmente confundido com o píon, essa partícula penetrava a matéria de modo que não podia ser explicado pelos modelos à época. Esse mistério se estendeu por cerca de 10 anos e envolveu, nas tentativas de sua resolução, a elite teórica e experimental das comunidades europeias e norte-americana. E, como veremos, só foi resolvido de forma definitiva com a detecção do píon, em 1947, por um grupo da Universidade de Bristol no qual Lattes trabalhava à época. Nesse momento, ficou clara a distinção entre o ‘carregador’ da força forte nuclear (píon) e o múon, partícula da família do elétron.

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Em 1948, Lattes e um colega norte-americano, Eugene Gardner (1913-1950), produziram e detectaram o píon em um acelerador na Califórnia. Há textos históricos que indicam esse feito como o início da física de partículas (mais tarde, de altas energias) – mesmo que, como já dissemos, primazias sejam assunto, por vezes, opaco em história da ciência.

Como citaremos mais adiante, há desdobramento subliminar (porém, importante) nesse resultado: o acelerador em que a detecção foi feita usava tecnologia recente e avançada para a época, a chamada estabilização de fases. Com a detecção dos mésons (tanto o positivo quanto o negativo), ficou demonstrado que a técnica funcionava e, portanto, poderia ser usada em máquinas de maior porte, o que ocorreu na década seguinte nos EUA.

Mais: naquele momento, a física experimental de ponta deixava uma Europa destruída pela guerra para se alojar, nas décadas seguintes, nos EUA, onde dezenas de aceleradores passaram a funcionar nos anos seguintes. A física de bancada – feita por pequenos grupos –perderia espaço, e uma nova forma de fazê-la: surgiriam aceleradores, laboratórios nacionais, centenas ou milhares de físicos, engenheiros de diferentes especialidades, administração semelhante à empresarial, verbas volumosas. Era a Big Science

Essa transformação foi impulsionada por nova geopolítica que Kojevnikov denomina “metafísica da Guerra Fria”, ou seja, conhecimento passou a ser sinônimo de poder político, econômico e militar.

O Brasil respondeu a isso em moldes próprios. Com campanha pública ampla, calcada na divulgação dos feitos de Lattes, envolvendo vários setores da sociedade civil e militares, envoltos em ambiente de nacionalismo e desenvolvimentismo. Essa iniciativa desembocou na criação de um centro voltado para a pesquisa em física onde os cientistas podiam trabalhar em tempo integral e serem remunerados para isso – pleito que vinha desde a década de 1930 no Brasil.

Dessa nova instituição, brotaria um laboratório no exterior, no alto de um pico com mais de 5 mil m de altitude em relação ao nível do mar, no qual a instalação de equipamentos demandou salto significativo para a física experimental brasileira, em termos de pessoal, logística e verbas.

A história que relataremos a seguir tem como pano de fundo o que foi relatado nos tópicos acima, e muitos deles voltarão a se repetir nesses ‘Atos’.

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ATO N O 1

A PESQUISA SISTEMÁTICA_

Armando Sales (1887-1945), interventor federal de São Paulo entre 1933 e 1935, designou o engenheiro e matemático Theodoro Ramos para chefiar comissão de professores para ir à Europa convidar cientistas naturais para fundar departamentos na recém-projetada Universidade de São Paulo (USP).

Ramos chegou à Itália em 13 de março de 1934. Um dos professores com os quais a comissão se reuniu foi o matemático italiano Francesco Severi (1879-1961), o qual sugeriu que o governo paulista deveria criar, também, uma faculdade de ciências – e esta devia incluir um curso de física.

Seguindo essa orientação, o físico italiano Enrico Fermi (1901-1954) foi procurado por Ramos, para criar e organizar esse departamento. Entretanto, Fermi não demonstrou interesse em vir para o Brasil. Apesar da recusa, indicou o Gleb Wataghin para essa posição em São Paulo.

Entre 1922 e 1923, Wataghin obteve os graus de doutor em física e matemática na Universidade de Turim. Ao longo da década de 1920, demonstrou interesse nas noções da teoria quântica sobre matéria e radiação. Era um jovem físico que, como seus colegas de geração, estava interessado em empregar a recém-desenvolvida mecânica quântica para estudar a matéria em escalas cada vez menores, alcançando o nível dos núcleos atômicos.

Foi nesse período que ele escreveu, no formato de notas, seus primeiros artigos, os quais tomavam como base as discussões entre o dinamarquês Niels Bohr (1885-1962) e o alemão Werner Heisenberg (1901-1976) sobre o princípio da incerteza.

Em 1931, Wataghin participou de conferência sobre física nuclear em Roma, a Reale Accademia d’Italia, Convegno di física nucleare – da qual foi um dos secretários científicos. Esse percurso indica que Fermi, ao indicar Wataghin para vir para o Brasil, considerava que o colega ítalo-ucraniano reunia as qualidades para a implementação de um departamento em física no Brasil, em consonância com o que ocorria em centros de pesquisa tradicionais no hemisfério Norte.

Levando-se em conta a inexistência de pesquisas sistemáticas em física no Brasil naquele momento, não é de se estranhar que Wataghin tenha relutado em aceitar o convite: aos olhos dele, vir para o Brasil no início de sua projeção profissional poderia não ser bom para sua carreira. Mas, por mais que o isolamento da comunidade científica europeia fosse algo que, em alguma medida, certamente iria ocorrer – caso ele aceitasse o convite de Ramos –, havia motivos que pesavam a favor de sua vinda. Wataghin ocuparia posição importante em departamento a ser criado e no qual seus interesses de pesquisa poderiam orientar a organização dos cursos e do laboratório. Além disso, ele poderia ir à Europa todos os anos, para se manter atualizado com relação às pesquisas feitas no continente. Isso significava que Wataghin poderia liderar um grupo de pesquisa que trabalhasse as questões que ele julgava importantes.

Ao chegar ao Brasil, Wataghin criou e assumiu a condução das cadeiras de física experimental, física teórica e de mecânica celeste na USP. Em seu trabalho de criação do departamento de física da USP, havia a necessidade de conceber linha de pesquisa experimental em raios cósmicos (tema de fronteira à época), a qual envolvia projetar e dar forma a um laboratório, adquirir instrumentos, contratar técnicos etc. Por meio dessa pesquisa, Wataghin estabeleceu relações próximas com estudantes, tendo como modelo, acreditamos, o sistema orientador-orientando que conheceu e experimentou na Europa.

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Marcello Damy de Souza Santos (1914-2009) e Paulus Aulus Pompeia (1911-1993) já eram hábeis estudantes de engenharia quando Wataghin chegou ao Brasil. Damy lembra que o trabalho com raios cósmicos foi iniciado por volta de 1937 na USP. Um dos primeiros instrumentos construídos nessa universidade foi um circuito de contadores de coincidência, sobre o qual os técnicos da oficina mecânica e Damy se debruçaram antes que este fosse para Inglaterra fazer estágio, no fim de 1938. Depois da ida de Damy para Cambridge, Wataghin precisava encontrar alguém com habilidades em montagem de instrumentos científicos para suprir a ausência de seu ex-estudante – o que não foi muito difícil, pois Pompeia já estava na USP nesse período.

Os trabalhos que Wataghin, Damy e Pompeia estavam fazendo os levaram a assinar artigos publicados na Physical Review, em 1938 e 1939, que indicavam a existência de componente nos raios cósmicos capaz de atravessar pelo menos 17 cm de chumbo. Esse poder de penetração era maior do que o de fótons de alta energia, partículas que, à época, acreditava-se serem as constituintes dos raios cósmicos.

Eles montaram dois arranjos experimentais, que produziram os dados para chegar a essa conclusão. O primeiro dos arranjos foi feito com quatro contadores Geiger-Muller posicionados um acima do outro (dois deles sobre os outros dois) para gerar coincidências nas passagens de partículas carregadas num intervalo de até 1,8 x 10-6 segundo.

Os contadores superiores foram acondicionados em aparato no qual havia 8,5 cm de chumbo sobre eles e a mesma espessura desse metal entre estes e os contadores inferiores. O segundo arranjo foi montado com dois contadores, sobre os quais havia camada única de 17 cm de chumbo.

Nessa experiência, os três físicos observaram a passagem de partículas carregadas em coincidência por seus contadores, mas eles não tinham elementos para precisar suas identidades. Como não possuíam as condições técnicas – o equipamento indicava apenas a passagem das partículas – para identificar com precisão quais partículas eram aquelas, por eliminação, concluíram que o fenômeno observado não poderia ser causado por fótons, pois estes não teriam a capacidade de atravessar a quantidade de chumbo sobre os contadores e gerar as coincidências observadas. Dessa forma, resolveram denominar ‘partículas penetrantes’ os eventos observados.

Outro aluno de destaque de Wataghin foi o pernambucano Mário Schenberg (1914-1990) – um dos primeiros estudantes formados pela USP – que se dedicou sempre à física teórica, apesar de, em momentos de sua carreira, ter também se ocupado de análises fenomenológicas de eventos físicos (principalmente, relacionados a raios cósmicos).

A carreira de Schenberg foi marcada por sua enorme habilidade matemática. Talvez, por influência de Wataghin, ele preferia trabalhar em temas ousados, como problemas que envolviam a natureza do elétron.

Schenberg foi para Europa em 1938, para trabalhar sob a supervisão de Paul Dirac (19021984), em Cambridge. Mas esses planos acabaram não se concretizando, porque, ao desembarcar na Itália, rumo à Inglaterra, Schenberg encontrou Wataghin, em férias. Wataghin levou o ex-aluno ao instituto de Fermi para visita, oportunidade em que o físico pernambucano recebeu – e aceitou – proposta feita por Ugo Fano (1912-2001), então assistente de Fermi, para trabalhar em Roma. Nesse período, Schenberg trabalhou na integração numérica das equações de formação dos ‘chuveiros’ de partículas penetrantes.

Em seguida, Schenberg passou curta temporada, de dois ou três meses, no fim de 1938, em Zurique (Suíça), com Wolfgang Pauli (1900-1958). Seus interesses por arte o levaram a Paris, onde ficou também por curto período, mas o suficiente para dar seminário no grupo de Frédéric Joliot (1900-1958), no Collège de France.

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Diante da imprevisibilidade da situação europeia sobre a eclosão de uma guerra, Schenberg retornou ao Brasil em março de 1939, ano em que conheceu o físico ucraniano George Gamow (1904-1968), que estava no Rio de Janeiro a convite de Wataghin.

No ano seguinte, Schenberg foi para os EUA, com bolsa da Fundação Guggenheim (1940-1941), onde interagiu inicialmente com Gamow e com quem publicou trabalhos seminais em astrofísica nuclear – um deles o efeito Urca. Pouco depois, obteve segunda bolsa, da mesma fundação, agora para trabalhar com Subrahmanyan Chandrasekhar (1910-1995), também aplicando física nuclear ao comportamento de estrelas, tentando entender a evolução desses corpos. O artigo publicado com o físico indiano é, como o efeito Urca, marco relevante na compreensão dos processos evolutivos das estrelas.

Schenberg e Gamow se encontraram no cassino da Urca, na então capital federal, e graças a isso batizaram ‘efeito Urca’ o processo em que uma então recém-proposta partícula (hoje, neutrino) era responsável por carregar grande parte da energia dissipada por estrelas massivas que explodem no fim da vida, fenômeno que os físicos denominam supernova – a analogia era com o fato de o dinheiro ‘sumir’ da mão de apostadores com a mesma facilidade com que os neutrinos dissipavam energia naquelas explosões estelares.

Apesar de guardarem semelhanças importantes em relação às suas perspectivas em física teórica, Schenberg e Wataghin não publicaram trabalho juntos.

Elemento que consideramos fundamental para o sucesso do tempo de Wataghin no Brasil foi a relação entusiasmada com a investigação científica e a construção de ambiente de informalidade e camaradagem com seus estudantes.

Oscar Sala (1922-2010), ex-estudante e colaborador de Wataghin, lembra-se do entusiasmo invulgar de seu professor quando, por exemplo, este teve que recorrer a Ademar de Barros (1901-1969), interventor federal em São Paulo, entre 1938 e 1941, para conseguir financiamento para pesquisas sobre a penetração de chuveiros de mésotrons (hoje, múons) – as tais partículas penetrantes.

O entusiasmo e experiência de socialização científica que Wataghin experimentou na Europa vieram com ele para o Brasil. A manutenção do contato com pesquisadores de outros países era importante não só do ponto de vista da troca de informações sobre o andamento dos trabalhos, mas também (e sobretudo) para estabelecer uma rede que poderia ser usada para fomentar o envio e a recepção de estudantes e de outros profissionais.

A criação de um laboratório de física na USP foi ponto importante para o plano de desenvolvimento de seu departamento. O laboratório foi criado e, rapidamente, ajudou a física experimental a se tornar a atividade principal do grupo. Esse êxito não foi obra do acaso. Wataghin atuou de forma a ter em seu laboratório o técnico que ele julgava ser o mais competente para trabalhar na montagem da instrumentação de seu grupo. Francisco Bentivoglio Guidolin (anos de nascimento e morte ignorados), mecânico lotado na Escola Politécnica, prestava serviços ao Departamento de Física desde sua fundação. Ele era “mistura de torneiro mecânico, carpinteiro, eletricista, motorista e áspero filósofo do cotidiano”, segundo Alfredo Marques (1930-2021), pesquisador emérito do CBPF.

Para que o laboratório da USP se tornasse um centro produtivo, foi também importante a presença do físico italiano Giuseppe Occhialini (1907-1993), que, ao chegar a São Paulo, em 1937, fugindo do ambiente fascista em sua Itália natal, logo passou a colaborar com Wataghin.

Occhialini desenvolveu pesquisas sobre a componente ‘mole’ dos raios cósmicos, bem como medições envolvendo elementos radioativos. A personalidade alegre e espontânea dele fortaleceu o ambiente já descontraído estabelecido por Wataghin. Occhialini contribuiu igualmente para acentuar o caráter coletivo do departamento, publicando artigos científicos

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com Schenberg e Sonja Ashauer (1923-1948), ambos teóricos, bem como Yolande Monteux (1910-1998), a primeira mulher formada em física no Brasil.

Sua colaboração com a instituição permaneceu mesmo depois de ter retornado à Europa em 1944. Foi graças a carta enviada por ele a César Lattes (1924-2005) que este jovem físico tomou a decisão de embarcar para Bristol, logo após o final da Segunda Guerra Mundial. Uma característica do laboratório do Departamento de Física da USP era a de que seus professores, auxiliares e estudantes construíam seus próprios instrumentos. A construção desses equipamentos – na qual foi fundamental a presença de Occhialini, bem como a de Damy e Pompeia, formados em engenharia – colocava os físicos da USP diretamente em contato com possíveis dificuldades técnicas, o que podia gerar maior compreensão do fenômeno a ser estudado.

Aconstrução dos próprios instrumentos era usada como argumento de economia – frente ao alto preço para adquiri-los já prontos – nas negociações por verba com a administração da universidade – eis bom exemplo das qualidades administrativas de Wataghin.

Não foi só na administração de seu departamento que Wataghin obteve sucesso. Pensamos que outro motivo do êxito das atividades ligadas ao laboratório era o fato de o departamento conjugar pesquisa e ensino, os quais Wataghin tentava equilibrar por meio de trabalho de orientação que oferecia a seu grupo de estudantes e recém-formados. Se atentarmos para as áreas de pesquisa desenvolvidas pelo grupo em seus primórdios, elas são, grosso modo, continuações das investigações que interessavam a Wataghin na Europa.

Na Segunda Guerra Mundial, a circulação internacional de cientistas e periódicos sofreu redução significativa. Exceção se deu em 1941, quando se organizou, na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, simpósio sobre raios cósmicos que contou com a presença do norte-americano Arthur Compton (1892-1962), prêmio Nobel Física de 1927, e colaboradores – é preciso lembrar que, nesse momento, o conflito estava restrito à Europa e Ásia, sem ainda envolver países do continente americano. Só no segundo semestre de 1945 é que, aos poucos, o caráter internacional da ciência começou a ser retomado.

Wataghin e Damy foram convidados pela Fundação Rockfeller para se familiarizarem com os avanços ocorridos na física durante o conflito mundial e para selecionar equipamentos para introduzir a física nuclear experimental na USP. Era um momento em que uma nova configuração de influências, capitaneada pelos EUA, se espalhava pelo mundo, tendo o Brasil ficado sob a égide das estratégias de relações diplomáticas do governo norte-americano.

Wataghin pôde aproveitar a viagem para fazer conferências em cinco universidades norte-americanas sobre a pesquisa em raios cósmicos feita em São Paulo. É pertinente mencionar que ele procurou Ernest Lawrence (1901-1958), o construtor do cíclotron na Universidade de Berkeley, e pediu a esse também Nobel de Física (1939) sugestões de equipamentos para a investigação sobre o núcleo atômico destinados a seu laboratório, em São Paulo. Também requisitou autorização para visitar o acelerador.

A resposta de Lawrence não tardou. Ele expressou entusiasmo em poder receber os dois físicos do Brasil em seu laboratório para lhes dar as orientações solicitadas; mostrar o cíclotron de 60 polegadas – o qual Wataghin queria conhecer. Na ocasião, fez oferta ao físico ítalo-ucraniano: conhecer uma nova máquina, a de 184 polegadas. Lawrence deu acesso a Wataghin ao projeto do sincrocíclotron que os cientistas de seu laboratório estavam desenvolvendo.

Os intercâmbios internacionais voltaram a ocorrer com regularidade, com o fim da Segunda Guerra, e os primeiros físicos do grupo de Wataghin enviados ao exterior foram Paulo Bittencourt (anos de nascimento e morte ignorados), Sala, Ashauer e Lattes.

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Bittencourt foi para o laboratório de Donald Kerst (1911-1993), na Universidade de Illinois (EUA), em 1946. Sonja faleceu precocemente em São Paulo depois de terminar doutorado, em Cambridge (Reino Unido), com Paul Dirac (1902-1984). Em setembro de 1946, foi a vez de Sala ser enviado também a Illinois, na companhia de Bittencourt, trabalhar com Maurice Goldhaber (1911-2011) e se aperfeiçoar na área de medidas de tempos curtos – na casa do microssegundo (10-6 s) –, técnica que poderia ser aplicada para medir a vida de fenômenos nucleares.

Lattes saiu do Brasil pouco antes do que Sala, chegando a Bristol em fevereiro de 1946. Ele foi trabalhar no desenvolvimento do método de emulsões nucleares para a detecção de partículas na equipe de Cecil Powell (1903-1969), na Universidade de Bristol, a convite de Occhialini, que havia sido seu professor na USP no início dos anos 1940.

A chamada técnica das emulsões nucleares começou na década de 1910, com estudos voltados para a área da radioatividade. Ao longo das décadas seguintes, ela sofreu avanços importante, principalmente, na década de 1930 e, com mais intensidade, na seguinte, na Europa, quando empresas fotográficas desenvolveram, a pedido dos físicos, chapas fotográficas sensíveis ao elétron.

O detalhe pouco conhecido sobre o tempo de Lattes em Bristol é que ele operou o Cockcroft-Walton do Laboratório Cavendish e começou ali a adquirir familiaridade com aceleradores de partículas, o que contribuiu sobremaneira para que pudesse dominar o processo de produção, captura, observação e identificação de mésons, em 1948, no Laboratório de Radiação, em Berkeley, onde estava o sincrocíclotron de 184 polegadas.

Observada por perspectiva ampla – abrangente o suficiente para incorporar os 15 anos que passou no Brasil –, a trajetória de Wataghin no país permite afirmar que seu medo inicial não se concretizou. Ele não se isolou da comunidade científica internacional e ainda pôde retornar à Itália para ocupar cátedra em Turim, cidade onde vivia antes de sua partida para a ‘aventura tropical’.

Entre sua linha inicial de pesquisa quando chegou ao Brasil – eliminar os infinitos que acometiam a eletrodinâmica quântica – e a confirmação da presença do méson pi, em Berkeley, por Lattes, em 1948, seu nome não caiu no esquecimento.

A competência científica e a personalidade de Wataghin certamente foram elementos relevantes para que seu período brasileiro possa ser considerado muito bem-sucedido. A fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP representou decisão capital, porque permitiu às ciências naturais desenvolvimento relativamente autônomo no país, não sujeito às regras e aos costumes das engenharias.

Depois da volta definitiva de Wataghin para a Itália, no fim da década de 1940, todos seus ex-estudantes tornaram-se lideranças científicas no Brasil. Eles não só obtiveram resultados científicos dignos de citação, mas souberam formar outros jovens, bem como criar novas instituições científicas, as quais ainda hoje desempenham papel relevante na ciência brasileira.

Em que pese as transformações ocorridas na sociedade brasileira desde 1934, com a criação do Departamento de Física da USP, essa área, no Brasil, pôde crescer de modo vigoroso. Os físicos brasileiros souberam encontrar e propor soluções para os problemas que encontraram.

É certo que essas soluções nem sempre foram implantadas ou deram os frutos esperados. Mas, em certa medida, foram elaboradas a partir de modelo sugerido por Wataghin. Autonomia, persistência, criatividade e satisfação foram valores transmitidos por ele e assimilados por seus discípulos.

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ATO N O 2

NOSSO HERÓI DA ERA NUCLEAR_

Há quase oito décadas, a descoberta de nova partícula subatômica causou sensação na comunidade internacional e está na origem do gesto contido de um jovem físico brasileiro que, ao desembarcar de um avião no Rio de Janeiro (RJ), foi recepcionado pela imprensa, que percebeu no feito científico notícia do maior interesse para o grande público – algo raro à época.

A passagem descrita acima é emblemática de período em que ciência – alavancada por ideais desenvolvimentistas e ligados à segurança nacional – passou a integrar projeto de nação para o Brasil.

Aos 24 anos de idade, Cesare Mansueto Giulio Lattes (ou César Lattes) retornava ao Brasil no auge de sua fama, incensada por seus feitos científicos recentes na Inglaterra e nos EUA. Aquele curitibano – único físico formado na turma de 1943 da USP – havia chegado mais longe que seus planos iniciais de carreira previam: ser professor secundário. Lattes, agora, era ‘Nosso herói da Era Nuclear’.

A revista Nature de 24 de maio de 1947, em poucas páginas, detalhava a detecção de um novo fragmento de matéria, a partícula méson pi (hoje, píon), responsável por manter prótons e nêutrons ‘colados’ no núcleo atômico. O feito era do Laboratório H. H. Wills, da Universidade de Bristol, onde Lattes havia chegado no início de 1946, a convite de integrantes daquela equipe, ou seja, de Occhialini e Powell, chefe do grupo. A equipe de Bristol usava emulsões nucleares para capturar a trajetória e a desintegração de partículas subatômicas.

Quando Lattes chegou a Bristol, essas chapas haviam ganhado melhorias técnicas da indústria fotográfica e estavam em fase de calibração. Lattes pôde pôr em prática plano que havia traçado ainda no Brasil: usar aquelas placas para estudar os raios cósmicos, núcleos atômicos que, a todo instante, penetram a Terra e, ao se chocarem com moléculas da atmosfera, geram uma ‘chuveirada’ de partículas.

A esperança dos físicos que empregavam essa técnica era a de que um desses nacos de matéria fosse uma partícula ainda desconhecida. Para melhorar as chances dessa ‘captura’, as chapas eram expostas em montanhas, onde o fluxo de raios cósmicos é mais alto.

No final de 1946, Lattes pediu a Occhialini que deixasse, no Pic du Midi, nos Pirineus franceses (2,5 km de altitude), caixas de emulsões nucleares. Parte dessas chapas tinha algo novo: Lattes havia pedido ao fabricante, a empresa Ilford, que incluísse, na composição das placas (mais especificamente, na gelatina que as recobriam), o elemento químico boro.

Essa inovação facilitou a visualização das trajetórias dos dois mésons pi que ilustram o artigo de 24 de maio. Entusiasmado, Lattes apostou que, no monte Chacaltaya, na Bolívia, com o dobro da altura do Pic du Midi, ele poderia capturar mais mésons pi.

O H. H. Wills pagou a passagem até o Rio de Janeiro. “E, de lá, eu me viraria para chegar a Chacaltaya”. Montanhas, neve, cavernas, fundos de lago etc. Física experimental tinha algo de aventura à época. Do pico andino, Lattes trouxe centenas de mésons. Esses resultados foram publicados em outubro de 1947, também em Nature, revelando mais detalhes sobre essas partículas.

Ao final de 1947, o H. H. Wills já ganhava ares de ‘meca’ da técnica fotográfica aplicada à física. E a notícia da detecção do méson pi se espalhou. Do norte da Europa, veio o convite para Lattes dar palestras. Em Copenhague, Lattes encontrou-se com Niels Bohr (1885-1962), Nobel de Física de 1922.

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O dinamarquês ficou surpreso ao saber que o brasileiro pretendia deixar Bristol e seguir para os EUA, com a missão de detectar mésons no então mais potente acelerador de partículas do mundo, o sincrocíclotron de 184 polegadas. Essa máquina, que havia começado a funcionar há mais de um ano, tinha um propósito: produzir mésons. Mas, para o constrangimento geral, as partículas não haviam ainda sido detectadas.

Lattes chegou a Berkeley no início de 1948 e, cerca de dez dias depois, com a ajuda de Gardner, visualizou os mésons nas chapas fotográficas expostas ao feixe de partículas gerado por aquele equipamento.

Pela primeira vez, partículas detectadas apenas na radiação cósmica haviam sido produzidas artificialmente – a humanidade estava produzindo raios cósmicos, o que ia ao encontro do programa da física ainda do século 19 em que se almejava reproduzir a natureza em situações controladas, ou seja, em laboratórios.

Mais: a detecção dos mésons pi por Lattes e Gardner mostrava que a estabilização de fases funcionava. Estavam, assim, lançadas as sementes para nova forma de fazer física ‘Era das Máquinas’, que faria dos EUA o centro mundial dessa disciplina pelo próximo meio século.

A produção artificial do méson pi foi capa da revista Science News Times; ocupou as páginas de duas edições da revista Time-Life; mereceu coletiva de imprensa, publicada pela revista Nucleonics; rendeu reportagens no jornal New York Times, cuja editoria de ciência elegeu aquela detecção como o feito mais importante da física daquele ano, comparando-o à fissão do núcleo atômico. Segundo Lattes, ele fez cerca de 15 palestras sobre a produção do méson pi. “Foi um verdadeiro carnaval”, resumiu décadas mais tarde.

Adetecção do píon em Bristol foi fato científico importante, mas praticamente restrito à comunidade científica à época. Já a produção dessa partícula nos EUA teve repercussões políticas que extrapolaram os muros acadêmicos. Ela foi usada por Lawrence para angariar verbas com a Comissão de Energia Atômica para a construção o Bévatron, acelerador mais potente que o de 184 polegadas e de custo substancialmente mais alto. Nessa nova máquina, que começou a funcionar em meados da década de 1950, foi descoberto o antipróton, com a ajuda de detector complexo, uma câmara de bolhas de hidrogênio.

No Brasil, a repercussão dos feitos de Lattes também ganhou a mídia. Jornais, revistas e suplementos começaram a moldar o ‘Nosso herói da Era Nuclear’. Lattes era o representante brasileiro de uma nova ordem mundial: o reconhecimento de que conhecimento é sinônimo de poder (político, econômico e militar). No mundo, naquele momento, nascia uma aliança (até hoje duradoura) entre ciência, tecnologia, capital e Estado. Eram as raízes do chamado Complexo Militar-tecnológico dos EUA, uma das instituições ainda hoje mais poderosas do mundo.

O Brasil reagiu a esse novo cenário mundial. Cevada por mentalidade desenvolvimentista, campanha centrada na então capital, Rio de Janeiro, reuniu formadores de opinião de vários setores: ciência, indústria, artes, forças armadas, imprensa etc. O objetivo era a fundação de um instituto no qual se fizesse, em período integral, pesquisa em física.

Por sua parte, militares nacionalistas viram aí a chance de obter o ciclo completo da energia nuclear – algo de extrema importância geopolítica. O pleito do movimento se concretizou em janeiro de 1949, quando foi criado o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, como uma sociedade civil. Lattes era seu diretor científico.

Nos anos seguintes, essa primeira aliança entre físicos e militares criou dois projetos distintos – ambos incluíam ciência – para o país. O primeiro deles – o de um ‘Brasil grande’, capitaneado pelo físico-químico e almirante Álvaro Alberto (1889-1976) – tinha como frente principal a construção de um acelerador ainda mais potente que o de Berkeley. No outro, o do

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‘Brasil realista’, defendido por Lattes e colegas, propunha-se algo mais modesto: um acelerador de pequeno porte para treinamento de estudantes.

O acelerador do almirante Álvaro Alberto naufragou fragorosamente. O país nem mesmo tinha os equipamentos para a usinagem dos ímãs gigantescos usados nessas máquinas.

O cenário ‘Brasil grande’ evaporou por conta de um escândalo: o diretor financeiro do CBPF, então professor da Universidade do Rio Grande do Sul, gastou a verba do acelerador em corridas de cavalo.

Mesmo desaconselhado por colegas, Lattes foi à mídia, e o jornalista Carlos Lacerda (1914-1977) usou a história para atacar o governo de Getúlio Vargas (1882-1954), seu inimigo político. Lacerda publicou na capa de seu jornal, Tribuna da Imprensa, carta de Lattes – muito provavelmente redigida pelo próprio Lacerda e assinada pelo cientista brasileiro.

O que deveria ser caso de polícia virou de política. Lattes, aos 30 anos, por conta das pressões, teve um surto psiquiátrico. Viajou para os EUA, em busca de isolamento e tratamento. Passou um tempo em Chicago e Minneápolis, em período de pouca produtividade científica – talvez, por causa da doença.

Lattes voltou ao Brasil em 1957 – para tentar finalizar o que havia construído. Encontrou um CBPF em crise: salários baixos e inflação no país. Nessa altura, ele tinha família numerosa e quadro mental instável.

Esse somatório de fatores fez com que ele voltasse para a USP, em 1959, onde seguiu com projetos experimentais envolvendo o uso das placas fotográficas e o estudo dos raios cósmicos. Em 1967, transferiu-se para a então recém-inaugurada Universidade Estadual de Campinas (SP), onde se aposentaria.

Para o Brasil, o méson foi muito mais que o méson. E Lattes, muito mais que ele mesmo. Seus feitos impulsionaram o início da construção da estrutura político-administrativa de ciência no país. Os atuais Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) são frutos de um projeto de nação que elencou um cientista como seu herói nacional; são produtos de um país que percebeu que conhecimento era a ordem do dia para se adequar à nova geopolítica.

Como dissemos, até a década de 1920, praticamente tudo que havia de física experimental no Brasil era um laboratório didático na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Lattes elevou a física experimental a novos patamares para um país como o Brasil: na década de 1950, construiu, em Chacaltaya, um laboratório para estudar radiação cósmica, com logística complexa e número significativo de pesquisadores – algo que a física experimental no país nunca havia presenciado.

Nesse mesmo período, a Europa, recuperando-se da guerra, dava início ao Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), com sede em Genebra (Suíça). A chamada Big Science, que havia florescido nos EUA e seguia forte naquele país, dava seus primeiros passos no continente europeu. E, guardadas as proporções, o Brasil, com Chacaltaya, laboratório a 5,5 mil m de altitude do nível do mar, em outro país, adentrava esse novo modo de fazer física.

Arriscamos dizer que o Brasil tenha sido o único país do hemisfério Sul que tenha respondido de forma mais vigorosa à então nova geopolítica do pós-guerra, à ‘metafísica da Guerra Fria’.

E isso se deveu, a nosso ver, a fatores como: i) naquele momento, termos um cientista que havia participado de um descobrimento na fronteira da física; ii) a uma campanha pública que amalgamou aliança entre formadores de opinião da sociedade civil e militares nacionalistas; iii) aos interesses dos físicos brasileiros em ter um centro em que se pudesse praticar pesquisa em regime integral, sendo remunerados para isso; iv) ao desejo dos militares em obter o ciclo

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completo da energia nuclear – que o país detém hoje; v) e, principalmente, à mentalidade de que ciência deveria fazer parte de um projeto de nação para o Brasil.

Aquele era um Brasil – pelo menos, em ciência – protagonista da história. Aquelas trajetórias de partículas na forma de ‘risquinhos pontilhados’ que aparecem no artigo de 24 de maio na revista Nature mudaram a ciência brasileira. E esta, nas décadas seguintes, mudaria a cara do país.

Lattes, por sua vez, poderia ter feito carreira lá fora. Mas, como muitos de sua geração, optou pelo Brasil. “Prefiro ajudar a construir a ciência no Brasil do que ganhar um Nobel”, escreveu, na década de 1940, ao colega físico José Leite Lopes (1918-2006).

Lattes, até 1964, segundo os arquivos da Fundação Nobel, teve sete indicações para o prêmio – o maior número para um físico brasileiro até aquela data.

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ATO N O 3

FIM DE UM, COMEÇO DE OUTRO_

A Colaboração Brasil Japão (CBJ) foi estabelecida em 1962, em momento em que a física de partículas sofria processo de transformação na forma de obter e analisar dados. Naquele período, grandes máquinas assumiam boa parte da responsabilidade por gerar a energia necessária para acelerar partículas e provocar colisões entre elas, para a produção de imagens de suas ‘transformações’ (decaimentos, tecnicamente) em subpartículas.

Esses decaimentos duram fração diminuta de segundo, mas podem ser registrados por chapas de emulsões fotográficas preparadas com densidade, tamanho e elementos químicos controlados, ou por câmara de bolhas, de forma a criar imagens dos rastros das direções que as partículas e suas subpartículas tomavam.

Uma das características do estudo da física de partículas com aceleradores é o alto investimento financeiro necessário para sua concretização. Isso acaba por limitar esse tipo de investigação experimental a grupos de cientistas e instituições de pesquisa que recebem o suporte de governos com recursos (financeiros, humanos, logísticos e políticos) e que estejam dispostos a arcar com os custos necessários.

Como os aceleradores permitem experimentos controlados, seu grau de reprodutibilidade é muito alto, bem como o número de eventos registrados a partir de uma colisão entre partículas. Porém, mesmo hoje, os aceleradores alcançam energia limitada, o que limita os tipos de eventos que as colisões de partículas podem gerar.

Em décadas passadas, por mais que houvesse controle e possibilidade de reproduzir o experimento, havia eventos que os aceleradores de partículas não podiam criar e reproduzir em laboratório. Do lado da natureza, há os chamados raios cósmicos, núcleos atômicos de origem espacial (solar, galáctica, estelar ou extragaláctica) capazes de produzir fluxo de partículas altamente energético.

Como dissemos, altitude é fator crucial para o estudo dos raios cósmicos. Portanto, cientistas interessados nesse campo procuravam usar técnicas de captação – emulsões nucleares, eletrônica dedicada ou câmera de nuvens – expostas em balões, aviões ou montanhas com altitude de milhares de metros acima do nível do mar.

Atécnica de emulsões nucleares é consideravelmente mais barata se comparada ao investimento para a construção, manutenção e o uso de aceleradores. Essa característica facilita seu uso por grupos de cientistas de países que não tenham acesso a recursos financeiros elevados. Mas a reprodução dos experimentos feitos com emulsões é dificultada por causa, por exemplo, de sua confiabilidade – além do fato de ser trabalhosa. Exemplo bem conhecido diz respeito a uma das principais firmas que fabricavam essas chapas especiais, a Kodak, que não seguia padrão em suas produções – o que interferia diretamente nos resultados alcançados, pois poderia haver diferença de composição (principalmente, da gelatina) de lote para lote.

Entre a década de 1950 e a seguinte, houve diferentes formas de fazer física de partículas elementares – e estas disputavam verbas, adeptos e resultados. Concorrência é, em princípio, termo exagerado, pois essas técnicas eram usadas, por vezes, para comparar resultados alcançados, e alguns físicos transitavam por mais de uma delas e por diferentes laboratórios – por exemplo, Lattes foi tipicamente um físico experimental ligado às emulsões nucleares, mas também produziu trabalhos com aceleradores.

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Os físicos de partículas desse período faziam escolhas sobre que técnica adotar, pautadas pelas virtudes epistêmicas que eles detinham, aliadas às condições oferecidas por suas circunstâncias históricas, ressaltando a importância da localidade na prática científica.

No caso da CBJ, houve a aproximação de práticas científicas com base em virtudes epistêmicas distintas, as quais entraram em contato, trocaram experiências e moldaram nova prática científica – a da exposição de grandes áreas de placas fotográficas e de raios X (as chamadas câmaras de emulsão) em local de grande altitude (monte Chacaltaya).

Vale, assim, compreender melhor o que as comunidades de física de raios cósmicos brasileira e japonesa levaram para a CBJ – no Japão, oito universidades participavam da colaboração.

As iniciativas brasileiras em Chacaltaya exigiram a instalação e o aperfeiçoamento de infraestrutura (prédios, estradas, linhas de alta tensão, transporte de pessoal e equipamentos etc.), bem como certa capacidade organizacional e de administração.

Ainda no início da década de 1950, a chamada Missão Unesco – que reuniu físicos brasileiros e estrangeiros e pode ser vista como antecessora da CBJ – levou uma câmara de nuvens para um laboratório a aproximadamente 5,2 mil m acima do nível do mar, em Chacaltaya.

Esse feito merece ser visto como evento notável na história da física experimental brasileira. Uma câmara de nuvem (ou de Wilson) foi doada pela Universidade de Chicago ao CBPF, para ser instalada naquela montanha boliviana. Mas, apesar dos esforços da equipe internacional, o instrumento nunca funcionou – ou, segundo alguns relatos, funcionou precariamente por curto período de tempo. Com isso, esse grupo, liderado por Lattes, ficou sem detector para seus experimentos.

Vamos nos concentrar, agora, nos físicos japoneses envolvidos com a CBJ. Em particular, vale o esforço de tentar perceber características dessa parte da colaboração que, em geral, não são comentadas na literatura. Percebidas em seu conjunto, essas características valorizavam a autonomia científica e intelectual.

O físico teórico Hideki Yukawa (1907-1981) se formou, em 1929, na Universidade de Kyoto. Yukawa, que havia tido contato com o confucionismo e com o taoísmo em sua juventude, escolheu trilhar seu caminho sem sair do Japão, para não sofrer influência de professores estrangeiros. Em 1935, ele propôs teoria na qual a extensão de uma força estava inversamente ligada à massa das partículas envolvidas com a manifestação daquela força.

Em termos simples, o raciocínio de Yukawa foi o seguinte: se a força eletromagnética, que tem longo alcance, era intermediada por uma partícula com massa de repouso zero (fóton), então, uma força que age em distâncias curtíssimas (no caso, as do núcleo atômico) deveria ser ‘carregada’ por uma partícula massiva.

A partir dessa ideia, ele concebeu que a força nuclear estava relacionada a uma partícula que tinha sua massa entre a massa do próton e a do elétron, com cerca de 200 vezes a massa desta última. Yukawa publicou sua teoria sobre o méson em 1935, em inglês, o que deu novo fôlego para a física teórica em seu país – mesmo que esse resultado não tenha recebido muita atenção fora do Japão.

Em 1941, Yukawa se tornou professor na Universidade de Kyoto, onde dois de seus estudantes eram Shoichi Sakata (1911-1970) e Mitsuo Taketani (1911-2000). Além de estudar física na primeira metade da década de 1930, Taketani também era ativista cultural contra o regime militar no Japão. Ele chegou a fazer parte do corpo editorial do jornal Cultura Mundial, publicação que reunia intelectuais de diferentes campos do conhecimento – e não era manifestamente político.

A contribuição filosófica de Taketani teve bastante influência na física japonesa. Ele elaborou um modelo de três estágios para a compreensão da natureza, com o qual tinha a intenção de orientar a elaboração de toda e qualquer teoria.

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Esses estágios eram o fenomenológico, o substancialista e o essencialista. No primeiro, o cientista deveria se preocupar com o fenômeno em si. Era o momento do contato com a natureza e era dada grande importância à sua observação.

O substancialista era o estádio em que o pesquisador devia se concentrar na estrutura do objeto e perceber sua materialidade, sua organização. Por fim, o essencialista seria o momento das descobertas das leis que regem o fenômeno em si, tentando compreender os motivos que orientam a dinâmica de sua existência.

Havia relação direta e constitutiva entre a proposta científica de Taketani e o materialismo histórico de Karl Marx (1818-1883). Taketani também criticava o positivismo, por entender que este era culpado pela estagnação da teoria, pois seu foco principal era o fenômeno.

Em contraposição ao positivismo, a teoria de Taketani vislumbrava alcançar a lógica da matéria por meio da lógica da forma. Sakata também atacava as perspectivas positivistas, que, em sua visão, dominariam as sociedades científicas. Ele entendeu que a teoria de três estágios de Taketani poderia explicar o méson de Yukawa.

Para Sakata, o méson era a via que ligava o estágio substancialista ao essencialista. Por detrás disso, havia também o entendimento de que a natureza tem que ser investigada de formas distintas, segundo as quais não há estádio último da matéria – como defendido na parte filosófica do modelo proposto por Sakata.

Tendo essas bases como suporte para suas pesquisas, em 1953, os físicos japoneses, na Conferência Internacional sobre Física Teórica, em Kyoto e Tóquio, apoiaram o desenvolvimento de trabalhos experimentais sobre os mésons – especificamente, por meio do estudo de raios cósmicos e emulsões fotográficas.

Anos antes, a comunidade de japoneses no Brasil (principalmente, no estado de São Paulo) havia doado milhões de yens para o desenvolvimento de pesquisas científicas no Japão. Esse dinheiro havia sido arrecadado inicialmente para trazer ao país um representante renomado do Japão para dizer aos imigrantes se o país deles havia ou não ganhado a Segunda Guerra – isso mostra o grau de isolamento dessa comunidade.

A pessoa escolhida para vir ao Brasil foi Yukawa – o primeiro Nobel japonês e cidadão tido como acima de qualquer suspeita. Mas, por questões familiares, ele não pôde fazer a viagem.

Membros mais esclarecidos da comunidade de japoneses decidiram, então, que aquele dinheiro deveria ser usado para desenvolver pesquisas em física nuclear no Japão e incentivar a carreira de jovens físicos, incluindo experimentais. Aquelas verbas (substanciais à época) foram também usadas na organização da conferência de 1953 – a primeira de caráter internacional da física no Japão.

Esse grupo elaborou um plano para o futuro dessas pesquisas em um workshop no Instituto Yukawa, em 1956, no qual surgiu a ideia para o desenvolvimento de um detector chamado ‘sanduíche de várias camadas’ (multi-layered sandwich). Esse equipamento, como o nome indica, consistia em camadas de placas de chumbo alternadas com placas de emulsão fotográfica e de raios X, para a detecção dos ‘chuveiros’ eletromagnéticos gerados pelos raios cósmicos – a função das placas de raios X era a de indicar em que ponto os componentes desse chuveiro haviam penetrado o detector.

O instrumento funcionou bem em balões, mas a montanha disponível para sua exposição, o monte Norikura, a 2,8 mil m acima do nível do mar, não oferecia altura suficiente para o estudo de altas energias.

O lugar ideal para expor as novas câmaras-sanduíche, na visão do grupo japonês, era Chacaltaya, com o dobro da altitude. Essas dificuldades foram levadas ao conhecimento de

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Yukawa, que escreveu carta a Lattes – redigida por membros do grupo –, expondo a situação e propondo cooperação internacional.

A resposta de Lattes foi rápida e a favor do começo das negociações para o estabelecimento da colaboração. Os primeiros contatos pessoais entre Lattes e representantes japoneses ocorreram na 6ª Conferência Internacional de Raios Cósmicos (ICRC), em julho de 1959, em Moscou (então, USSR), mas as conversas não fizeram avançar os trabalhos rumo à colaboração.

Oprojeto só deslanchou na ICRC de 1961, no Japão, quando lá estavam Lattes e Occhialini, que se reuniram com o grupo de físicos experimentais e teóricos japoneses – incluindo Yukawa. Desse encontro, ficou inicialmente acertado que o Brasil contribuiria com o chumbo necessário para a fabricação das câmaras de emulsões, bem como com as passagens e estadas dos japoneses – as verbas para a física experimental à época eram irrisórias no Japão, segundo relato de membros da colaboração. Ao Japão, caberia entrar com as chapas (tanto as emulsões quanto as de raios X), preparadas pela empresa Sakura, semelhantes às usadas para a exposição no monte Norikura.

Ao longo das décadas seguintes à sua implantação – os trabalhos começaram efetivamente em 1962 –, os resultados obtidos no Laboratório de Física Cósmica de Chacaltaya – principalmente, os dados conseguidos pela CBJ – alimentaram número significativo de dissertações de mestrado e teses de doutorado, muitas delas com base nos chamados eventos exóticos.

Em um dos artigos publicados com os resultados da CBJ, Lattes, Shun-ichi Hasegawa (1928-2008?) e Yoichi Fujimoto (1925-2022) tratam esses eventos exóticos como produção múltipla de hádrons, que ocorre antes de eles se tornarem detectáveis – o que, segundo o modelo de Taketani, corresponderia a um estádio intermediário de matéria. Esse estado teria temperatura elevada e seria composto por mésons que variariam em quantidade e tipos (pi, k, eta etc.).

No domínio sub-hadrônico, ainda na década de 1930, tanto Wataghin quanto Yukawa estavam entre os físicos que trabalhavam com a ideia de que havia um limite para a aplicação da mecânica quântica. Lattes, Hasegawa e Fujimoto, em artigo de revisão publicado em 1980, defendiam a existência de linha de pensamento que começou com os trabalhos de Wataghin e Heisenberg, nos quais era sustentada a hipótese de que a teoria quântica de campos (i.e. eletrodinâmica quântica, a única então disponível) tinha limite de validade, a partir do qual ele não mais funcionaria.

Os dados obtidos pela CBJ eram resultados de choques de hádrons (partículas que ‘sentem’ a força forte nuclear) no arranjo de suas câmaras-sanduíche. O estudo indicou que, entre o momento do choque entre prótons e nêutrons e aquele do surgimento das partículas subatômicas (mésons, múons, elétrons, pósitrons, neutrinos etc.), era possível haver estado da matéria que eles denominaram ‘bolas de fogo’ (fireballs), ou seja, fenômenos exóticos. Em função do tipo de subpartícula gerada e sua quantidade, essas ‘bolas de fogo’ eram classificadas como mirim, açu e guaçu – nomes sugeridos por Lattes, como base em palavras de origem indígena.

Os resultados da CBJ refletem tensão existente na forma de como validar o conhecimento científico, o que se deu a partir de meados do século passado. De um lado, havia a técnica de emulsões nucleares, que forçou seus usuários a desenvolver estratégias para aumentar o número de eventos – normalmente, denominados eventos de ouro, por sua capacidade de elucidar uma nova descoberta, como ocorreu com aqueles publicados em 24 de maio de 1947 em Nature, onde se apresentaram apenas dois decaimentos de um méson pi em um múon (ou mésotron).

A técnica das emulsões – também chamada método fotográfico aplicado à física –necessitava de baixo orçamento (basicamente, chapas de emulsão, reagentes e microscópio). Mas enfrentava problemas, como dissemos, como o de reprodutibilidade, que dependia da fabricação

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padronizada de emulsões e da habilidade de microscopistas para encontrarem as trajetórias de novas partículas entre tantas deixadas por partículas já conhecidas.

No outro extremo, estavam os grandes aceleradores que geravam enorme quantidade de partículas (e, portanto, dados), o que obrigava os físicos a construírem argumentos por meio de estatísticas e os limitavam ao estudo de eventos que a energia gerada pela máquina propiciava, inferior à alcançada pelos raios cósmicos.

Os resultados da CBJ foram comparados com os dados de outros laboratórios em montanhas de grande altitude, como os experimentos nas montanhas Pamir (Ásia Central) e o monte Fuji, bem como com exposições de câmaras em balões. O italiano Carlo Rubbia, prêmio Nobel de Física em 1984, realizou, com sua equipe, no CERN, teste em que tentou reproduzir os fenômenos observados pela CBJ, chegando a resultados semelhantes aos alcançados pela CBJ.

A participação brasileira em Chacaltaya deve ser dividida em duas épocas. A primeira época corresponde ao período que compreende a fundação do laboratório em Chacaltaya até a saída de Fernando de Souza Barros (1929-2017) para o doutorado em Manchester (Reino Unido). Os anos aqui referidos são 1952 a 1956.

O segundo período corresponde à fase da CBJ, iniciada oficialmente em 1962. Entre 1957 e 1961, houve presença brasileira em Chacaltaya, mas o laboratório já não representava praticamente nada nos programas científicos das instituições envolvidas – inclusive, em 1961, Leite Lopes questionou, em reunião do Conselho Técnico-científico do CBPF, o interesse em se renovar o contrato entre essa instituição e a Universidade Mayor de San Andrés (Bolívia).

Se caracterizamos Big Science como sendo aquela modalidade de prática científica que envolve administração de recursos financeiros, humanos, logísticos, tecnológicos de envergadura, podemos afirmar que – guardadas as proporções com o que ocorria nos EUA –, a participação do CBPF na construção de Chacaltaya merece ser vista como sendo dessa natureza.

Essa determinação torna-se ainda mais coerente quando nos lembramos de que o CBPF estava longe de ser instituição consolidada – nessa época, seguia ainda como sociedade civil, como havia sido fundada –, bem como a própria realidade científica nacional passava por transformações de monta – nesse sentido, basta citar as criações do CNPq e da Capes.

Se juntarmos a essa lista os eventos políticos ocorridos em 1954 que culminaram no suicídio do então presidente, Getúlio Vargas, pode-se perceber facilmente que as condições externas não eram favoráveis a um empreendimento que demandava, para um país como o Brasil, não só verbas significativas, mas também uma forma de administração e logística com a qual os pesquisadores brasileiros ainda não estavam acostumados.

Em que pese o ‘gigantismo’ econômico, humano e instrumental da empreitada de Chacaltaya, os resultados científicos obtidos nesses primeiros anos (de 1952 a 1962) foram praticamente nulos, com exceção de um único artigo publicado, em 1958, pelo físico de origem tcheca Kurt Sitte (1910-1993) e colaboradores na revista italiana Il Nuovo Cimento – Sitte havia sido contratado pela USP, onde ficou apenas dois anos, para ocupar cadeira de física teórica no lugar do físico norte-americano David Bohm (1917-1992), que havia ido para Israel.

Além das transformações por que passava a ciência no Brasil nos anos imediatos ao final da Segunda Guerra, vale a pena lembrar que a área de raios cósmicos também sofria inúmeras transformações importantes – como, aliás, boa parte da própria física.

O ingresso das grandes máquinas e a formação de grandes laboratórios nacionais – símbolos marcantes da presença Big Science nessa ciência – é frequentemente citado para exemplificar essas mudanças. Para um país atrasado tecnologicamente como o Brasil, seria muito difícil, nas décadas de 1950 e 1960, construir máquinas cientificamente competitivas.

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Ainda assim, o país tentou construir aceleradores ou montar máquinas doadas ou compradas no exterior. Em todas essas situações, colecionou insucessos. Vale repetir aqui frase lapidar de Lattes, que, como dissemos, se opôs à construção de um grande acelerador: “Não tínhamos tecnologia nem mesmo para produzir lâmpadas elétricas” – nessa síntese de nossa capacidade tecnológica, ele se referia à produção de vácuo industrial.

Possível explicação para esses fracassos pode ser atribuída ao fato de que, já na década de 1950, os físicos já se dividiam em três categorias: teóricos, experimentais e construtores de aceleradores – esta última passou a ser uma especialidade em si, e o Brasil não tinha técnicos treinados nessa área.

Talvez, por ser país sem tradição relevante nas áreas das ciências naturais – e, principalmente, por querer se equiparar a países que faziam física de ponta à época –, os físicos brasileiros conceberam vários projetos científicos, muitos deles envolvendo instrumentação nova e sofisticada.

Para o Brasil, se mostrava complicada a colaboração até mesmo em projetos experimentais em que os instrumentos eram menos sofisticados e custosos. Não havia nem indústrias, nem recursos humanos com a competência necessária. Portanto, para o país, nunca se concretizou completamente sua participação em experimentos que demandavam a construção dos instrumentos (balões, câmaras de nuvem, foguetes, satélites etc.) necessários para a realização de experiências novas no domínio dos raios cósmicos.

Por curto período de tempo (entre 1959 e o ano seguinte), Lattes e colaboradores participaram das experiências da Cooperação Internacional para Voos de Emulsões (ICEF). O papel dos brasileiros consistia em analisar as chapas de emulsões nucleares expostas a altitudes estratosféricas por balões. Com a morte prematura de Marcel Schein (1902-1960) – líder do projeto e principal contato de Lattes no experimento –, o Brasil deixou de fazer parte da equipe –Schein foi o doador da câmara de nuvens que a Missão Unesco levou para Chacaltaya no início da década de 1950.

Desse modo, incapacitado de participar em experiências que exigiam instrumentos muito sofisticados, o Brasil acabou optando por estar próximo geograficamente de sítios muito altos. Em outras palavras, a escolha por um laboratório numa montanha de grande altitude era natural – e, talvez, óbvia, tendo em vista a realidade brasileira. Mesmo assim, não seria fácil instalar um laboratório em Chacaltaya.

Ainda que pouco citado, fator que causou enorme instabilidade na comunidade de físicos no Brasil foi o retorno definitivo, no fim de 1949, de Wataghin para a Itália. Não houve contratação imediata para substituí-lo. Sem a liderança de um cientista mais experiente, um grupo de três jovens – Andrea Wataghin (1926-1984), Jean Albert Meyer (1925-2010) e Georges Schwachheim (1926-2011), os quais Wataghin tinha formado na USP e que já trabalhavam em raios cósmicos – não teve condições de superar os obstáculos que se apresentaram.

O curioso, nesse caso, é que os raios cósmicos foram a área em que o Brasil conseguiu uma série de resultados importantes e que foram fundamentais para a transformação do cenário cientifico nacional – e não apenas na área da física-: i) a participação de Lattes na detecção do méson pi; ii) a de Wataghin, Damy e Pompeia na descoberta dos chuveiros penetrantes; iii) os resultados da CBJ.

Andrea (filho de Wataghin) e Schwachheim se formaram em física pela USP na mesma turma (1947). Apesar de ter cursado todas as disciplinas do bacharelado em física – também na turma de Wataghin e Schwachheim –, Meyer não se formou, pois não tinha diploma de conclusão do ensino médio.

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A chamada ‘Era das Máquinas’ teve início nos EUA na década de 1950 – é possível atribuir a origem dela à detecção do méson pi em Berkeley, em 1948. A enorme quantidade de eventos gerados nesses aceleradores levou, já em meados da década de 1950, ao início do ocaso da física de raios cósmicos, que, como reação, começou a construir detectores terrestres com grandes áreas ou mesmo empregar emulsões nucleares a bordo de foguetes.

Por razões diversas – ocaso da física de raios cósmicos, início da era dos aceleradores, controle sobre os experimentos, dinheiro mais abundante para a pesquisa no estado de São Paulo, formação de nova geração de pesquisadores em máquinas etc. –, os físicos de São Paulo passaram a trabalhar com aceleradores, o que poderia ser considerado ‘fazer ciência em escala Big Science ’. Mais tarde, o Rio de Janeiro também reagiria a essa nova forma de fazer física, com aceleradores instalados no CBPF – ainda que de menor tamanho e para fins diferentes.

No caso da USP, a instabilidade causada pela saída de Sitte cresceu a ponto de jovens pesquisadores, como Meyer, recomendarem, já por volta de 1953, a seus estudantes a não ingressarem na área de raios cósmicos. Some-se a isso o fato de o grupo paulistano de raios cósmicos ser oficialmente ligado à cátedra de física teórica e superior, apesar de serem experimentais – essa vinculação explica-se pelo fato de Wataghin ser o primeiro ocupante dessa cátedra, bem como o criador da seção de raios cósmicos.

Enquanto Wataghin esteve na USP, essa relação funcionou bem, pois ele se interessava bastante por essa área. Mas o mesmo não se passou com o seu sucessor, Bohm, que procurou salvar o grupo, mas sem atuar diretamente com ele. A ida de Sitte para a USP foi tentativa de manter vivo o grupo. Porém nem Bohm, nem Sitte se adaptaram ao Brasil e ficaram poucos anos trabalhando lá.

Andrea Wataghin e Schwachheim estiveram em Chacaltaya por curto período, tentando fazer funcionar a câmara de Wilson que havia sido transportada de forma heroica até lá pela Missão Unesco. Eles já tinham experiência em trabalhar a grandes altitudes, pois, em 1952, fizeram experiências em Morococha (Peru), cerca de 4 mil m acima do nível do mar.

Nessa época, os planos de trabalho eram fixados por Wataghin (pai), apesar de ele já ter retornado a Turim. O fluxo de publicações do grupo era bom, e vários artigos foram publicados na Physical Review e nos Anais da Academia Brasileira de Ciências

Em 1955, o físico austríaco Guido Beck (1903-1988) assume a cátedra teórica da USP e, preocupado com a impossibilidade de manter ativo o grupo de raios cósmicos, propõe – em relatório oficial de atividades por ele realizadas no 1,5 ano que lá passou no instituto – a extinção da seção de raios cósmicos.

Aparentemente, a sugestão dada por Beck não foi acatada pela direção da Faculdade de Filosofia e Letras da USP, mas, mesmo assim, o pequeno grupo de experimentais se desagregou. No momento em que ele fez tal proposta, só Schwachheim e Andrea estavam em São Paulo, e ambos se transferiram para o CBPF.

Schwachheim permaneceu no CBPF até a sua aposentadoria em 1985 e, a partir do início da década de 1960, se dedicou à computação. Em 1956, Andrea se transferiu para a Europa – primeiro para Bristol, onde ficou cerca de dois anos, e, em seguida, para a Itália, onde se radicou. Ele retornou uma única vez ao Brasil, em 1975. No início da década de 1950, Meyer estava na França, para se aperfeiçoar em instrumentação na área de raios cósmicos. Chegou a retornar ao Brasil, mas por pouco tempo. Em 1955, já estava de volta à Europa – na França, teve papel preponderante na construção de aceleradores.

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Schwachheim continuou a trabalhar em raios cósmicos por mais tempo que os demais. Participou do Ano Internacional Geofísico (1957-1958), com um monitor de nêutrons que ele montou e usou. Sua participação resultou em artigo escrito em colaboração com físicos argentinos e bolivianos, bem como outro publicado nos Anais da Academia Brasileira de Ciências – este último foi redigido com colaboradores do CBPF.

Além disso, Schwachheim tomou parte num congresso dedicado aos raios cósmicos, em 1959, em Bariloche (Argentina). Além dessas atividades, participou de reuniões científicas em 1961, na Cidade do México, e, no ano seguinte, em La Paz (Bolívia). Foi o representante brasileiro no conselho diretor do Clarc (Conselho Latino-americano de raios cósmicos).

Nesse período, o fluxo de cientistas do Brasil para a Bolívia era grande. O mesmo ocorria no sentido inverso. Bolivianos vinham para o Brasil, para passar períodos mais ou menos longos. Por exemplo, Ismael Escobar (1918-2009) chegou a ser professor titular do CBPF. O apoio financeiro para a permanência deles no Brasil era garantido pelo CBPF, por meio de verbas do CNPq.

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ATO N O 4

BRASIL: ALTAS ENERGIAS

(1980-2022)_ O quarto e último ato deste breve esboço da história da física experimental de altas energias no Brasil levanta suas cortinas após a reforma universitária de 1968 e o início oficial da pós-graduação no país, o que se deu naquela altura.

Não só o sistema universitário de ensino e pesquisa passava por reforma profunda e necessária, mas também a área da física, no país, sofreria transformações significativas cujas consequências perdurariam por décadas.

Quase três anos após a criação da Sociedade Brasileira de Física (julho de 1966), seis físicos foram aposentados compulsoriamente por meio do Ato Institucional n. 5 (AI-5), privando as mais importantes instituições brasileiras de física de suas lideranças históricas.

A área de altas energias, por exemplo, não pôde mais contar com as contribuições de Jayme Tiomno (1920-2011), Leite Lopes, Schenberg e Elisa Frota-Pessôa (1921-2018) – esta última, experimental e uma das pioneiras da área de física no Brasil. Essas cassações correspondiam a deixar a área acéfala. Esses expurgos – que atingiram até mesmo pesquisadores sem militância política – representavam retrocesso enorme para a física no país como um todo. No caso das altas energias, a área teve que se adaptar aos novos tempos, procurando novas lideranças e locais onde pudesse sobreviver.

Foram principalmente dois os locais onde a física de altas energias se refugiaria a partir de finais da década de 1960: o Departamento de Física da PUC-Rio e o Instituto de Física Teórica, na capital paulistana. Na instituição carioca, formou-se grupo teórico, liderado por Erasmo Ferreira, Nicim Zagury, Jorge André Swieca (1936-1980) e Antonio Luciano Leite Videira (1935-2018). Em São Paulo, estavam os irmãos Paulo Leal Ferreira (1925-2005) e Jorge Leal Ferreira (1928-1995), bem como Abraham Zimmerman. Mas nenhuma das duas instituições produziu resultados experimentais em física de altas energias.

Oagora Instituto de Física da USP, que também perdeu lideranças, viu diminuída sua capacidade de contribuir para a área. Muitos jovens foram enviados ao exterior para se doutorarem, retornando ao Brasil anos depois.

O principal nome na universidade paulistana no fim da década de 1960 foi Yoshiro Hama, físico teórico. Na área experimental, a principal realização da USP nesse período foi a inauguração, em 1972, do Pélletron, máquina para o estudo da física nuclear – sua energia era insuficiente para a pesquisa em partículas elementares.

A fase mais recente no desenvolvimento da física de altas energias no país começou de forma lenta e tímida no início da década de 1980, por meio do envolvimento de Anna Maria Freire Endler e seu grupo, do CBPF, em pesquisas com câmaras de bolhas no CERN, no experimento NA22 (North Area 22).

Essa colaboração se deu a partir de sugestão de Gerhard Otter, da Universidade de Aachen (Alemanha), que passou período trabalhando com Endler no CBPF. Como desdobramento, foi estabelecido acordo formal entre o porta-voz do NA22, Wolfram Kittel, e o então diretor do CBPF, Roberto Leal Lobo e Silva Filho.

Endler sempre se dedicou à área de altas energias, desde o seu ingresso no CBPF, ainda na década de 1950. Por cerca de 10 anos, entre meados da década de 1960 e a seguinte, atuou na CBJ, até se mudar para a Alemanha – ela foi casada com o matemático Otto Endler (19291988), que trabalhou no Brasil por diversos períodos.

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A colaboração entre o CBPF e o CERN mostrou-se muito produtiva, sendo publicados cerca de 60 trabalhos em revistas indexadas. Mas, talvez, por ter sido estabelecida em época ainda dominada pelos expurgos provocados pelo regime de 1964, a cooperação não ultrapassou os limites do CBPF – instituição, cabe recordar, desfalcada de suas principais lideranças nesta área da física.

A participação de Endler é, sem dúvida, o marco inicial da entrada do Brasil na física de altas energias no sentido mais moderno do termo.

Com a anistia de 1979, os físicos cassados puderam retomar suas posições na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na USP e no CBPF. A essa altura, vários jovens haviam sido formados, recebendo títulos de mestre e doutor em física. Havia, portanto, mais recursos humanos disponíveis para a pesquisa em altas energias.

O impulso mais importante para que a física de altas energias no Brasil pudesse incluir experimentos, de forma mais ampla, em nível nacional, veio de fora. Desde o fim da década de 1970, o então diretor do Fermilab, Leon Lederman (1922-2018), prêmio Nobel de Física em 1988, mantinha forte interesse em ampliar as colaborações internacionais de seu laboratório –talvez, preocupado com a expansão de seu ‘concorrente’ europeu, o CERN.

Vale lembrar que, no CERN, estava Roberto Salmeron (1922-2020), que havia pouco tinha retomado seu emprego no Brasil, depois da demissão coletiva da Universidade de Brasília, em meados de 1965, em resposta à interferência militar na recém-criada instituição. Nas décadas seguintes, Salmeron – como consequências de sua rede de contatos internacionais – promoveu o estabelecimento de parcerias e colaborações nas áreas de altas energias para o Brasil.

Em fins de 1981, Lederman enviou convite a Tiomno, para que este participasse de reunião que ocorreria no início de janeiro do ano seguinte em Cocoyoc (México). Essa reunião inaugurou a série de simpósios pan-americanos dedicados à física de partículas elementares. Tiomno foi ao encontro como membro de comitiva oficial de físicos brasileiros, organizada pela SBF. Seus companheiros de viagem foram H. Moysés Nussenzveig (1933-2022), então presidente da SBF e ainda na USP – no ano seguinte, ele se transferiria para o Departamento de Física da PUC-Rio–; Souza-Barros, da UFRJ; e Fernando Zawislaki, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A presença dos físicos brasileiros permitiu que o elemento essencial que faltava à física experimental de altas energias no Brasil fosse concretizado: a participação em colaborações internacionais de envergadura – desta vez, estabelecida com órgão federal, o CNPq.

No Brasil, os primeiros anos da década de 1980 eram vividos sob o clima de mudanças políticas importantes. O regime militar mostrava-se exaurido, caminhando para impasse que só poderia ser superado (sem mais violência) com o retorno de civis à Presidência da República. Enquanto essa transição não acontecia, a extinção da validade do AI-5 e a anistia devolveram certa normalidade também à prática da ciência.

A física brasileira – que, até então, não tinha avançado no ritmo desejado pelos próprios físicos – procurava recuperar o tempo perdido com as cassações e perseguições políticas. Os físicos brasileiros voltavam a fazer grandes planos para a construção de novos laboratórios. Como exemplo, vale citar o caso do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, que, anos mais tarde, entraria em funcionamento no estado de São Paulo – o historiador da ciência argentino Diego Hurtado vê nesse empreendimento o início da Big Science no Brasil.

Ao receber o convite de Lederman, Tiomno já estava de volta ao CBPF desde 1980. Não apenas ele, mas também Elisa. Leite Lopes, ainda na França, pensava em retornar de forma definitiva. O retorno de fundadores fez com o que o CBPF recuperasse algo do espírito empreendedor que tanto o caracterizou em seus primeiros anos de existência.

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Tiomno tornou-se o principal avalista da participação brasileira na colaboração que se desenhava com o Fermilab. E, talvez, incensado por essa liderança, retomou seu interesse pela física de partículas elementares, área na qual havia ganhado reputação internacional – desde a cassação, ele se dedicava à relatividade geral.

Uma das primeiras iniciativas de Tiomno a partir da perspectiva aberta por Lederman foi encontrar pesquisadores do CBPF que quisessem ir para o Fermilab. Naquela altura, a única pessoa que trabalhava na área experimental era Anna Maria Endler, quem, por conta de sua colaboração com a Alemanha, não pôde assumir novos compromissos.

Ressalte-se que o Brasil, à época, não tinha tradição em colaborações internacionais e, portanto, não havia mecanismos administrativos para financiamento de viagens de curto período de brasileiros ao exterior.

Foram físicos teóricos do CBPF que perceberam que estavam diante de oportunidade importante. Alberto Santoro, João Carlos dos Anjos e Moacyr Henrique Gomes e Souza (1944-2016) atenderam ao convite de Tiomno e aceitaram fazer estágios de pós-doutoramento prolongados no Fermilab, migrando, assim, para a área experimental.

Aos três, se juntou um quarto físico, paulistano, igualmente teórico, Carlos Ourivio Escobar. Em meados da década de 1980, os quatro estavam no laboratório norte-americano, onde permaneceriam por dois anos – entre 1984 e 1986, aproximadamente.

Até a ida dos quatro físicos para os EUA, o CBPF, em parceria com a SBF, procurou promover reuniões de trabalho, para organizar a participação brasileira no Fermilab. Um desses encontros ocorreu no próprio CBPF, em 5 e 6 de abril de 1982. Outro, na PUC-Rio, foi o II Simpósio Pan-americano de Colaboração em Física Experimental, entre os dias 29 de julho e 3 de agosto do ano seguinte.

Apesar de a década de 1980 poder ser vista como período de avanços políticos – retorno ao regime democrático, promessa de nova constituição, anistia a cassados e exilados políticos, liberdade de imprensa e de expressão etc.) – muitos problemas permaneceram, e outros surgiram com a crise fiscal: em 1982, o Brasil ‘quebrou’, por causa, principalmente, do peso da dívida externa nas contas nacionais.

Como sempre foi frequente no país, as dificuldades econômicas foram sentidas em setores menos valorizados, como educação e ciência. Os cortes sofridos pelas agências de fomento colocaram em risco a continuidade da colaboração com o Fermilab. Para evitar que a presença dos cientistas brasileiros fosse prejudicada, Lederman tomou a decisão de que o Fermilab apoiaria financeiramente os quatro físicos.

A migração de Santoro, Escobar, Souza e Anjos para a física experimental pode ser entendida como momento importante no processo de consolidação da participação brasileira em experimentos na área de altas energias. Ainda na década de 1980, Ronald Cintra Shellard (1948-2021) – mais um teórico de partículas que migrou para a área experimental de altas energias – solicitou apoio do CNPq para passar mais uma temporada no CERN, onde já tinha estado em meados de 1982, ainda como teórico.

Shellard, perto do fim de seu período de dois anos no laboratório europeu, escreveu ao então presidente da SBF, Nussenzveig, longa carta – que pode ser lida no capítulo 3 deste livro. Nela, defendia a necessidade de firmar colaboração com aquela instituição – e não apenas com o Fermilab. As negociações com o CERN não tardaram – em parte, isso se deu graças à mediação feita pelo físico português Mário Pimenta, com quem Shellard colaborou por anos.

Essas colaborações simultâneas com Fermilab e CERN não eram percebidas como excludentes. Talvez, o mais acertado seja dizer que refletiam estratégia deliberada de multiplicar frentes e extrair o máximo de proveito delas.

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O contato frequente com cientistas estrangeiros – em particular, com aqueles que trabalhavam em grandes aceleradores – se mostrou importante para a consolidação internacional da física brasileira de altas energias. Consequência disso foi o Brasil sediar mais uma vez o encontro mais importante da área no continente: entre 19 e 23 de outubro de 1987, ocorreu, no CBPF, o III Simpósio de Colaboração Pan-americana em Física Experimental, que teve Alberto Santoro como um dos dois secretários científicos – o outro foi o norte-americano Roy Rubinstein.

Para um país que, até o início da década de 1980, contava com reduzida participação na área de física de altas energias, o Brasil, a partir de 1982, viu a multiplicação de iniciativas nesse campo. A chave para essa rápida e bem-sucedida inserção no mundo dos grandes aceleradores foi apostar nas colaborações internacionais.

Ao longo das décadas de 1980 e da seguinte, físicos brasileiros passaram, em número cada vez maior, a participar de experiências, seja no Fermilab, seja no CERN, que levaram a descobertas importantes, como o quark top e os bárions charmosos.

O ingresso do Brasil nos grandes laboratórios internacionais não fez com que os raios cósmicos fossem esquecidos – basta lembra que, na década de 1980, a CBJ continuava ativa. A profissionalização e internacionalização da física brasileira se deu por meio de seus resultados em raios cósmicos (chuveiros penetrantes, méson pi, eventos exóticos etc.) e foi por meio dessa área que o Brasil iniciou suas primeiras colaborações transnacionais (Missão Unesco, Chacaltaya, ICEF etc.). Permitiu também que o Brasil fizesse pesquisa de ponta de forma barata (balões, detectores de coincidência, emulsões nucleares, por exemplo).

No período em que físicos brasileiros trabalhavam no Fermilab, James Cronin (19312016), Nobel de Física em 1980, passou a se interessar por raios cósmicos – segundo ele, a física experimental de altas energias, seu campo até então, tinha ficado “grande demais”. Cronin desempenhou papel crucial na criação do projeto Pierre Auger. Tal como Lederman, fez várias viagens em busca de colaboração. Em 1995, por exemplo, ajudou na organização de reunião em Bariloche – onde, décadas antes, já haviam acontecido reuniões sobre raios cósmicos, para discutir a criação de um laboratório internacional no hemisfério Sul. Em novembro daquele ano, na sede da Unesco, em Paris, foi tomada a decisão de que a Argentina seria o país a receber a sede austral do Observatório Pierre Auger. O Brasil foi representado por físicos do CBPF, da PUC-Rio, USP e Unicamp.

A participação de físicos, engenheiros e técnicos brasileiros tanto na construção de instrumentos (participação da indústria nacional) quanto no planejamento de experiências no Auger foi visível desde o início do projeto, voltado para o estudo de raios cósmicos ultraenergéticos, com base numa rede imensa de detectores terrestres (tanques com água pura e eletrônica dedicada) espalhados por milhares de km nos pampas argentinos.

E, como ocorreu em outras colaborações internacionais, as contribuições científicas e tecnológicas foram crescendo com o decorrer do tempo. Em parte, esses resultados foram obtidos pelo aumento da participação de instituições nacionais nas colaborações. Em pouco menos de uma década, o Brasil marcava presença em experimentos e laboratórios internacionais, como CERN, Fermilab, Pierre Auger.

Mais tarde, vieram outras colaborações, como CTA (sigla, em inglês, para Rede de Telescópios Cherenkov), para o estudo de radiação gama, e, mais recentemente, SWGO (sigla, em inglês, para Observatório Austral de Campo Amplo para Radiação Gama), fusão de projeto idealizado por brasileiros, portugueses e italianos (Lattes) com experimento alemão e norte-americano (SGSO).

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O aumento das atividades da comunidade brasileira em experimentos internacionais se deu em consonância com a realização periódica de atividades de divulgação voltadas para estudantes e professores do ensino médio. Três delas: a Lishep (originalmente, LAFEX International School of High-Energy Physics) desde 1993; o CERN Masterclass; e a visita anual a esse laboratório europeu de professores de física do ensino médio.

No início deste século, decidiu-se pela criação de organismo que coordenasse as atividades dos grupos brasileiros na área de altas energias. Em 2008, foi criada a Renafae (Rede Nacional de Física de Altas Energias), que trabalha em prol das seguintes metas, segundo descrição de seu portal:

1. promover no país o avanço científico e tecnológico da investigação das propriedades das partículas e suas interações fundamentais;

2. consolidar e ampliar a pesquisa em física de altas energias, expandindo a capacitação científica e técnica necessária para explorar os benefícios resultantes dos desenvolvimentos associados e suas implicações tecnológicas;

3. desenvolver um programa de mobilização de empresas instaladas no Brasil para atuar no desenvolvimento da instrumentação e do software para as colaborações internacionais da área;

4. caberá ao CTC da Renafae coordenar as atividades dos grupos atuantes em física de altas energias e, em particular, as atividades associadas às grandes colaborações internacionais.

Os objetivos da Renafae ecoam conjunto de sentimentos e ideais presentes entre os físicos brasileiros desde que se profissionalizaram, ainda em meados dos anos 1930: contribuir para o avanço da ciência em escala internacional, ao mesmo tempo que colaboram para o desenvolvimento científico e cultural do país.

A recente adesão do Brasil ao CERN como membro associado inaugura nova etapa, sem que possa ser compreendida como ruptura com o passado. Ao contrário, ela deve ser percebida como continuidade com as ações que Wataghin e colaboradores realizaram na primeira metade do século passado – e dos esforços individuais de cientistas brasileiros que se dedicaram à pesquisa sem que houvesse ambiente e apoio estatal para essa prática no país.

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ATO FINAL

COMENTÁRIOS GERAIS_

Este ensaio – ainda que breve e, certamente, com lacunas e omissões – nos oferece a oportunidade de analisar parte da história da física no Brasil – no caso, a da área de altas energias.

No Brasil, a área de altas energias tem suas origens nos raios cósmicos – campo que, por sinal, foi importante para o estabelecimento da física experimental em vários países da América Latina, com destaque para México, Argentina, Bolívia e Chile. Os resultados obtidos por Lattes, na década de 1940, ‘contaminaram’ o ambiente científico de vários países da região. O caso emblemático foi o surgimento de pequeno grupo de estudantes – liderados pela física Estrella de Mathov (1911-1991), na Argentina – que passou a fazer pesquisa nessa área, incensados pelo fato de a técnica das emulsões nucleares ser barata.

A construção de um laboratório no monte Chacaltaya, no início da década de 1950, demonstrou tremendo salto quantitativo e qualitativo da física experimental no Brasil. Mas o empreendimento, pouco anos depois, praticamente mingou, em consequência de problemas técnicos, falta de mão de obra especializada em máquinas, escândalo financeiro no CBPF e a instabilidade política proveniente do suicídio de Vargas. Some-se a isso, a inflação que pouco depois afetaria os salários de pesquisadores daquela instituição, fundada como sociedade civil e dependente de verbas tanto do setor privado quanto governamentais.

Oescândalo financeiro pôs fim a projeto de grandes proporções – um acelerador de 400 MeV – que já demonstrava estar fadado ao insucesso, pela falta de capacidade tecnológica do país. Com isso, a vertente de um ‘Brasil grande’ (pelo menos, para a física) estagnou.

Aos poucos, o CBPF – cujo ‘B’ é de brasileiro – teve diminuída sua influência tanto científica quanto política, deixando de ter a envergadura nacional e internacional que se esperava da instituição. A partir de meados da década de 1950, inflação, golpe militar e incerteza financeira jogaram o centro em situação que só iria se resolver de modo definitivo cerca de 20 anos mais tarde. Esse período – com raras exceções de resultados científicos importantes, como a proposição de nova partícula, o k linha – pode ser classificado como ‘de sobrevivência’ do projeto como um todo.

A proximidade do CBPF com setores militares – e a presença na instituição dos chamados ‘cientistas de farda’ – permitiu que não só a crise de 1954 (escândalo financeiro) quanto a de 1975 (crise salarial) fossem solucionadas por militares de alto escalão – na primeira, o general Macedo Soares (1901-1989), que trouxe com ele novo administrador financeiro; na segunda, o general Ernesto Geisel (1907-1996), então presidente da República, que assinou a transferência do CBPF para o CNPq.

A entrada do país nesse campo das colaborações internacionais foi tardia, se comparada aos padrões de países com tradição científica. Deu-se inicialmente por causa de acordo entre uma instituição europeia (CERN) e a participação nele de pequeno grupo do CBPF. No entanto, esse marco – e assim podemos chamá-lo –, por vezes, é omitido em relatos (ainda que informais) sobre o desenvolvimento da área no Brasil. Costuma-se dar prioridade para o primeiro acordo institucional, que ocorreu entre um laboratório norte-americano e um órgão do governo brasileiro.

Essa questão sobre a primazia, no entanto, nos revela algo subjacente ao modo como, no Brasil, os próprios cientistas gostam de contar a história: não há amálgama entre passado e

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presente. Há, sim, relatos com cortes temporais e espaciais que refletem justamente aquilo que relator se propõe a contar, conforme seus interesses. Por exemplo, o Observatório Pierre Auger não foi visto como ‘sucessor’ da CBJ até que um dos líderes do primeiro pedisse – ainda que diplomaticamente – autorização a Lattes para levar adiante o novo experimento sobre raios cósmicos.

Ahistória relatada pelos pesquisadores de altas energias no Brasil parece ter (pelo menos, historicamente) vários ‘começos’, vários ‘pioneiros’ e várias ‘primazias’. Ou seja, é exemplo de uma história fragmentada, sem coesão – talvez, pelo fato de o país nunca ter tido política de Estado para a ciência.

Lederman, sem dúvida, teve papel preponderante na criação de grupos de física de altas energias no Brasil – Salmeron teve mais influência na física portuguesa nessa área, mas, mesmo do exterior, contribuiu para projetos nessa área no Brasil.

Os motivos que levaram Lederman a essa iniciativa ainda não são claros. Os relatos mostram que havia ‘afinidade’ dele com físicos brasileiros e latino-americanos. Porém, não sabemos se essa aproximação se deu por escolhas meramente pessoais ou i) por temor de que o concorrente europeu, CERN, ampliasse sua influência no continente, ou ii) em resposta a uma possível geopolítica norte-americana para a América Latina, um tipo de soft power, como se costuma designar. São temas abertos para trabalhos em história da física.

Não é incomum que pesquisadores da área de altas energias não reconheçam ligação daquilo que fazem com projetos anteriores – principalmente, se de outros grupos e outras universidades ou centros de pesquisa. Mas, paradoxalmente, costumam citar com frequência os feitos dos ‘pioneiros’ (Lattes, Tiomno, Leite etc.) como argumentos para justificar a importância das pesquisas que realizam.

Deslocamento importante com a física de raios cósmicos parece ter se dado no 2º Simpósio de Colaboração Pan-americana em Física Experimental, em 1983, na PUC-Rio, quando a tradição dessa linha de pesquisa foi deixada de lado, assumindo-se que a área havia sido dominada por máquinas de grande porte – estas, obviamente, no exterior. O encontro alavancou a ida dos primeiros brasileiros para o Fermilab.

Para o CBPF, a ida de três de seus pesquisadores para o laboratório norte-americano, fez com que o ‘B’ do CBPF fosse reforçado. Mais: que fosse retomada a internacionalização, marca do centro à época de sua fundação. Esse processo, interrompido ainda em meados da década de 1950, estava agora sendo responsável por nova fase na história da instituição.

De que forma a abertura política e anistia influenciaram esse marco da física de altas energias ainda permanece sem resposta. O fato é que ele ainda se deu dentro do regime militar – cujo fim só ocorreria em 1985 –, com o qual a comunidade de física no Brasil teve relações ora de aproximação, ora de atrito, mas com participação em projetos de segurança nacional.

A inclusão do Brasil em grandes projetos internacionais sempre foi motivo de polêmica envolvendo os próprios físicos, bem como cientistas de outras áreas. A razão é o alto volume de verbas necessário para essas iniciativas. De um lado, tanto a física quanto a astrofísica alegam (com razão) que, hoje, não é mais possível fazer pesquisa de ponta sem participar de grandes colaborações internacionais.

Essas críticas, em geral, vêm de físicos teóricos ou daqueles de áreas em que ainda não demandam equipamentos tão custosos – ou seja, em que ainda se pode fazer pesquisa de bancada’. E o argumento segue mais ou menos a seguinte linha: nesses montantes (em geral, na casa de milhões de dólares) poderiam ser investidos no desenvolvimento de várias (outras) áreas de pesquisa.

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A entrada no Brasil no CERN suscitou esse tipo de debate – astrônomos e astrofísicos brasileiros enfrentaram situação semelhante com projetos de grandes telescópios, por exemplo. Críticos alegam que o papel do país será secundário no laboratório europeu; os defensores rebatem, alegando que haverá vasta formação de mão de obra, compartilhamento de tecnologias de ponta, bem como a possibilidade de a indústria nacional participar de licitações para os experimentos, entre outras vantagens da filiação.

Essa discussão traz à tona outro problema que, a nosso ver, aflige a ciência brasileira como um todo: o Brasil tem ‘geopolítica científica’ pífia. Países com PIBs bem inferiores ao nosso costumam ter representantes em posições importantes de organismos ligados à ciência ou à representação de entidades científicas – bem como prêmios Nobel. A entrada do Brasil no CERN é passo para diminuir essa falta de representação política em termos globais.

A participação do Brasil em projetos internacionais de física de altas energias trouxe resultados significativos para o aumento do impacto mundial da ciência brasileira, a ponto de, em pesquisas que medem esse fator, haver o costume de excluir a área para se ter quadro mais ‘realista’ da qualidade da física feita no país.

A partir de 2005, o programa Helen (sigla, em inglês, para Rede Europeia-Latino-americana para a Física de Altas Energias), apresentado à União Europeia com chancela do CERN, praticamente triplicou, em cerca de quatro anos de atuação, o número de pesquisadores latino-americanos no laboratório europeu – o programa incluía também o Observatório Auger. Em 2009, essa cifra já alcançava 125 pesquisadores mais pós-doutorandos. Estiveram envolvidas no Helen 22 instituições da América Latina, de oito países da região – e sete da Europa.

O programa – que dispendeu cerca de 3 milhões de euros entre 2005 e 2009 – também instalou na América Latina centros de computação avançada para análise de dados.

Um dos idealizadores do Helen, o físico italiano Luciano Maiani, a partir de 2011, criou o EPlanet, que garantiu a participação no CERN de aproximadamente 250 pesquisadores e pós-doutorandos latino-americanos, mas o programa – por mudanças de orientação da Comunidade Econômica Europeia em relação à América Latina – foi descontinuado em 2015. Depois de um pico em 2017 (267 pessoas), tem havido declínio significativo da participação de pesquisadores da região no CERN.

Desde a década de 1980 – quando houve o acordo com o Fermilab e CERN –, pesquisadores brasileiros participaram de equipes que fizeram descobertas importantes, como o quark top, Z0 e bóson de Higgs, sem contar um sem-número de novas partículas. E o país, a partir do fim da década de 1990, começou a prover os experimentos (Selex, Focus, Auger, Dzero etc.) com hardware especializado. O Brasil tem hoje representantes nos quatro grandes experimentos do CERN (Atlas, LHCb, Alice e CMS), bem como no Alpha.

Ainda no Fermilab, o Brasil também participou dos experimentos sobre partículas com quarks strange (híperons) e charm (bárions charmosos).

Também houve participação brasileira, por meio de grupo do Instituto de Física da USP, em experimentos no RHIC (sigla, em inglês, para Colisor de Íons Pesados Relativísticos), no Laboratório Nacional Brookhaven (EUA), a partir de meados da década de 1990.

Há, no Brasil, desequilíbrio marcante que tem a ver com o modo como se deu o desenvolvimento da física no país: em cada 100 físicos, 13 trabalham em partículas e campos e, entre estes últimos, apenas 3% são experimentais. Isso reflete quadro geral da física no país, onde 46% dos físicos são experimentais, e 54% teóricos – em países desenvolvidos, experimentais estão em torno de 75%. Esses números são de 2000, mas, com algum grau de certeza, correspondem ao quadro atual.

Uma das características da própria área – o fato de, não raramente, milhares de cientistas

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assinarem um artigo – tem como consequência o ‘anonimato’ dos próprios pesquisadores – o destaque, em geral, sempre vai para os líderes do experimento, e são estes que, geralmente, ganham renome internacional e são recipientes de prêmios.

Como foi dito, a Era das Máquinas fez com que a física se deslocasse do continente europeu – onde ela historicamente se desenvolveu – para os EUA, o que ocorreu principalmente depois da Segunda Guerra. Mas, no início da década de 1990, o cancelamento do que seria o maior acelerador de partículas do mundo, o SSC (Superconducting Super Collider), previsto para ter cerca de 80 km de circunferência, deixou a física de altas energias nos EUA em compasso de espera.

Com a inauguração do LHC, no CERN – máquina que entrou em operação em 2008 –, a física de altas energias retornaria à Europa, e os físicos de altas energias nos EUA se encontraram num tipo de penumbra, pois vários aceleradores de grande porte encerrariam os trabalhos, tanto na costa leste quanto oeste. Neste momento, o foco está voltado para a física de neutrinos – principalmente, com a construção (ainda em andamento) de um novo acelerador de prótons no Fermilab para esse propósito.

Hoje, a física de altas energias no Brasil tem boa estrutura. A Renafae – apesar de palco de disputas entre grupos – tem garantido a continuação em bons termos dos avanços da área. Falta ainda maior colaboração com a indústria nacional – algo que os físicos sempre desejaram. Parece haver empecilhos e incompreensão dos dois lados, pela dificuldade desses setores em entender o ethos um do outro. Se esses obstáculos são superáveis, só o tempo dirá.

A física de altas energias é historicamente geradora de grande número de inovações, que acabam na indústria e, por conseguinte, em vários setores do mercado internacional, trazendo bem-estar e riqueza para as nações – o que é inegável. O CERN tem, porém, outro papel importante e pouco divulgado: seu surgimento conseguiu unir nações europeias que haviam estado em guerra cerca de 10 anos antes de seu início, em meados da década de 1950. E, desde então, tem mantido esse papel diplomático por meio da ciência – em outros termos, o CERN amalgamou o que a política desuniu.

A entrada do Brasil como membro associado do CERN inicia, certamente, nova fase da área no país. É uma história que está por se construir e, portanto, não sabemos de que modo ela alterará os rumos de nossa física experimental de altas energias.

Vale dizer que agências de fomento tiveram papel preponderante na disponibilização de verbas para o desenvolvimento da física experimental de alta energias, com destaque para o CNPq, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Outras agências contribuíram, mas em menor escala.

Uma história da física de altas energias no Brasil mereceria, sem dúvida, pela riqueza e diversidade dos fatos, bem como por sua importância histórica no desenvolvimento da ciência no país, projeto de estudo amplo e minucioso. O que oferecemos aqui a quem leu estas páginas é, como foi enfatizado, só um ensaio, com boa dose da visão pessoal dos autores.

AGRADECIMENTOS_

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Alaor Chaves (UFMG), Sérgio Ferraz Novaes (IFT/Unesp), Takeshi Kodama (UFRJ), Anna Maria Freire Endler (CBPF), João do Anjos (CBPF), Ignácio Bediaga (CBPF), Gilvan Alves (CBPF), José Abdalla Helayël-Neto (CBPF), Vicente Pleitez (IFT/Unesp), João Torres de Mello Neto (UFRJ), Ulisses Barres (CBPF), Lauro Tomio (Unesp), Edison Shibuya (Unicamp), Alexandre Bagdonas (UFLA), Heráclio Duarte Tavares (UEMT) e Akinori Ohsawa (Universidade de Tóquio).

1. Gleb Wataghin (Crédito Arquivo IFUSP)

2. Leite Lopes em seu concurso para a cátedra de física teórica na Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, em 1948 (Crédito CBPF)

3. Mário Schenberg (Crédito Arquivo IFUSP)

4. César Lattes e Eugene Gardner no sincrociclótron na Universidade da Califórnia em Berkeley em 1948 (Crédito CBPF/Time-Life)

5. Da esquerda para a direita Juan José Giambiagi, Jayme Tiomno, Luiz Marques, Samuel MacDowell, Erasmo Ferreira (Crédito CBPF)

6. Em sentido horário, começando pelo alto à esquerda Lattes, Yukawa, Schützer, Tiomno, Leite e Hervásio, em Princeton (Estados Unidos), em 1949 (Crédito CBPF)

7. Chapas de emulsões nucleares com o decaimento de um méson pi (traço horizontal, acima) em um múon, com dedicatória de César Lattes, Giuseppe Occhialini e Cecil Powel (Crédito CBPF)

8. Câmara de emulsões da Colaboração Brasil Japão, no monte Chacaltaya (Bolívia) (Crédito Edison Shibuya)

9. Vista geral do Observatório de Física Cósmica, no monte Chacaltaya (Bolívia)

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1. Da esquerda para a direita, Joaquim da Costa Ribeiro, César Lattes e Giuseppe Occhialini

2. Equipamentos científicos embarcando da primeira sede própria do CBPF para o monte Chacaltaya no início da década de 1950 (Crédito CBPF)

3. Gleb Wataghin (à frente) fazendo experimentos sobre raios cósmicos a bordo de avião (Crédito Arquivo IFUSP)

4. Detector Delphi, do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, com sede em Genebra (Suíça) (Crédito CERN)

5. Um dos detectores (tanque de água pura com eletrônica dedicada) do Observatório Pierre Auger, em Malargue (Argentina), para o estudo dos raios cósmicos (Crédito Observatório Pierre Auger)

6. Detectores do Observatório Pierre Auger –à frente, tanque de água pura com eletrônica dedicada – ao fundo, telescópio "olhos de mosca" (Crédito Obsrevatório Pierre Auger)

7. Foto de César Lattes na Galeria dos Notáveis na Universidade de Bristol (Reino Unido)

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PARA MIM, SEMPRE FOI SHELLARD IMPRESSÕES PESSOAIS SOBRE UM AMIGO GENEROSO
Cássio
Leite Vieira Jornalista

DISTÂNCIA E PROFUNDIDADE AUSENTES

Distância e profundidade. Este texto deveria, obrigatoriamente, oferecer a quem o ler essas características, para que fosse coerente com os preceitos tanto do jornalismo quanto da história da ciência. Mas nenhuma delas estará nele.

A distância (ou, no jornalismo, imparcialidade) estará borrada nestas páginas pela proximidade de décadas entre este signatário e o biografado; a profundidade (ou, na história da ciência, a pesquisa meticulosa de documentos e arquivos) nasce asfixiada por imposição impiedosa do tempo para finalizar esta obra – e, de certo modo, pela pressa com que esse meu amigo nos deixou.

Então, o que oferecer a quem se interessar por estas notas biográficas um tanto tortas e enviesadas do físico experimental Ronald Cintra Shellard? Resposta: aqui, como sugere o título, se encontrará apreciação pessoal e, certamente, enviesada de nossa personagem, baseada em fatias finas do cotidiano que, com ele, dividi no trabalho, em conversas formais e informais, em passeios, em visitas. É tarefa das mais árduas esboçar uma vida e obra a partir dessa argamassa imaterial, a qual o tempo cuida de mesclar a visões e memórias pessoais. Neste texto, minhas palavras estarão cumprindo basicamente duas tarefas:

i) explicitar passagens factuais da carreira de Shellard;

ii) preencher sem-número de lacunas e omissões sobre a vida dele com o amálgama de minhas impressões.

Vale aqui citar que obra densa de detalhes sobre Shellard foi recentemente publicada pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, em número especial da série Ciência e Sociedade, com depoimentos de amigos e colegas de Shellard de longa data.

Essa edição especial trouxe perfil amplo do cientista e colega – por vezes, amigo. Aqui, gostaria de ir além. Apresentar um pouco do homem, filho, marido, pai e avô, com traços que, para mim, eram os mais marcantes à pessoa dele: bom humor e generosidade.

A ideia inicial deste capítulo era oferecer biografia curta, tipo de cronologia, com os principais fatos da vida profissional de Shellard. Resolvi repensá-la, pela temeridade de não surgir outra oportunidade para relatar a pessoa com quem convivi por décadas.

Será relato tendencioso? Certamente, sim – voltamos, portanto, à ausência da profundidade e do distanciamento. Mas é aquele que posso oferecer – que outro o faça com suas próprias palavras e experiências.

Talvez, o melhor título seria algo semelhante a What little I remember (algo como ‘O pouco de que me lembro’), autobiografia do físico nuclear austríaco Otto Frisch (19041979). Certamente, nem sou a pessoa mais adequada para isso, mas essa honrosa tarefa tocou a mim, e tentarei cumpri-la da melhor forma possível, mesmo ciente dessa temerosa responsabilidade.

Para fazer jus à imparcialidade deste relato, devo dizer que ele me ajudou muito – principalmente, em momentos difíceis –, o que não significa que minhas impressões omitirão equívocos, tensões, desentendimentos, arrependimentos etc.

A quem interessar, a produção científica de Shellard está em seu currículo na Plataforma Lattes.

O que me alenta nesta empreitada é o fato de este texto ser homenagem a ele. E, para isso, ajudam em demasia o respeito e a admiração que sempre tive por Shellard.

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POSSÍVEL INÍCIO

Por onde começar? Quando há dúvida sobre esse tópico, creio que o melhor é aceitarmos sugestão do dito popular da língua ingles: “As primeiras coisas primeiramente”.

Ronald Cintra Shellard nasceu em São Paulo (SP) em 22 de julho de 1948. Sua identidade foi emitida apenas aos 18 anos de idade, em 1966. Talvez, à época, a maioridade fosse necessária para a emissão do documento. Era muito comum, em São Paulo, até essa altura da vida, usar ou a identidade de estudante, ou a carteira de trabalho como identificação – naquela década de 1960, esta última era preferível quando a pessoa era revistada pela polícia de um estado de exceção. Estudante, para ela, era “playboy”.

Nunca me havia dado conta de que o ano de nascimento de Shellard coincide com grande feito experimental da física brasileira da produção pioneira do méson pi (ou píons) em acelerador de partículas em Berkeley (EUA), obra do físico brasileiro César Lattes em coautoria com o norte-americano Eugene Gardner.

O tema acima é parte do capítulo 1 deste livro, mas vale contextualização: a detecção dessa partícula, que age como uma ‘cola’ para prótons e nêutrons no núcleo atômico, teve desdobramentos políticos de suma importância para o estabelecimento da chamada Era dos aceleradores nos EUA. Há autores que veem nessa produção o começo da física de partículas. Quanto à importância científica, basta citar a manchete de grande jornal norte-americano: “Raios cósmicos produzidos pelo homem”.

Shellard nasceu em família de classe média (ou alta, dependendo do referencial) de São Paulo. Certa vez, mostrou-me foto da casa onde havia passado a juventude. Era construção que poderia ser classificada como mansão, com várias edificações em um terreno grande, em rua aparentemente calma, no bairro do chamado ‘alto’ Ipiranga.

Por sinal, o Ipiranga foi assunto das primeiras conversas que tive com ele. Depois de me contar em que parte desse vasto bairro ele havia morado, ele me perguntou: “E você?”. Minha resposta: “Da parte baixa, que inunda”.

Ele achou engraçado e, a partir daí, sempre que me apresentava a alguém, repetia essa história, dizendo que havíamos nascido no mesmo bairro, mas... ele na parte alta, “nobre”, e eu na “parte que inundava”. Por vezes, acrescentava, dependendo do grau de descontração da conversa e intimidade com o interlocutor, que, por isso, nem mesmo deveríamos ser amigos, mas, como ele era “generoso”, permitia que “gente como eu” estivesse em seu círculo de amizades. E, às vezes, acrescentava que eu exercia essa profissão de jornalista, esse profissional visto com tanta desconfiança hoje.

Nas décadas seguintes, esse tipo de brincadeira sempre permeou nossas conversas e as tornava agradáveis e descontraídas – voltaremos ao bom humor de Shellard.

Shellard era o mais velho de quatro irmãos: Philip, administrador de empresas; Eleonora, publicitária; e Dora, historiadora e pesquisadora. Ele era curioso sobre suas origens e mantinha, como hobby, anotações sobre o tema.

Os Shellard – até onde a árvore genealógica familiar conseguiu chegar – remontam à Inglaterra e Irlanda do século 19. O avô, inglês, nasce de família irlandesa. Era contador, filho de artista (pintor).

A avó, Dayse Gertrude von Söhsten, tinha familiares que parecem ter trabalhado na Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (poderoso empreendimento comercial do século 17), porque há registros dos von Söhsten em Colombo (Sri Lanka) e grupo grande deles em Pernambuco, invadido pelos holandeses naquele século.

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O avô paterno, Charles Josep Shellard, chegou ao Brasil nas primeiras décadas do século passado, para trabalhar em uma companhia de trens no Paraná. Mais tarde, a família se mudaria para São Paulo. Morreu na segunda metade da década de 1940, sem nunca aprender o português. Era muito asmático.

O pai, Charles James Shellard, era contador. Primeiramente, trabalhou na Light, companhia de eletricidade de origem canadense. Por volta de 1960, foi para a Thompson, multinacional do ramo de publicidade. Na década seguinte, trabalhou no Consulado Americano, na capital paulista, emprego no qual se aposentou. Era anglicano, mas só no papel. Na igreja não ia – era frequentador do Clube Inglês da capital.

George Duncan Shellard (Chefe Toby), irmão do pai, foi membro importante e condecorado do escotismo no Brasil. John Robert Shellard, o irmão mais velho, alistou-se no exército britânico no início da Segunda Guerra. Depois de lutar no conflito, continuou morando na Inglaterra.

A mãe, Dora da Silveira Cintra Shellard, era de família tradicional paulista, os Cintra, ligados à cafeicultura e considerados ‘paulistas quatrocentões’, ou seja, ligados à oligarquia do estado. Os avós dela tinham terras em Ribeirão Preto (SP).

Dora teve educação refinada, europeia – talvez, pelo fato de o pai ter nascido em Paris. Saía-se bem com o francês, conhecia algo de alemão e acabou aperfeiçoando o inglês com o marido – ambos só se comunicavam nessa língua. Com os filhos, no entanto, só falava em português.

A atividade artística do bisavô paterno de Shellard foi retomada por uma tia materna, Marília Moreira, apresentadora do Pullman Jr., programa infantil na TV, na década de 1960, na Record, patrocinado pela fábrica de bolos Pullman – seus costumes eram considerados ‘modernos’ para a época.

Os nomes dos filhos refletem essa divisão cultural familiar: os filhos ganharam nomes britânicos, Ronald e Philip, ambos registrados no Consulado Britânico; as filhas, Dora (como a mãe) e Eleonora (homenagem à avó materna). Os filhos foram para o Santo Américo, colégio de padres da capital paulista; as filhas, para o Rainha da Paz, de freiras.

Entre os Cintra, havia um tio engenheiro, Luiz Cintra do Prado, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), da qual foi diretor de 1941 a 1943. Foi um dos pioneiros da pesquisa com materiais radioativos no Brasil, consequência de estudos que fez na Europa, na segunda metade da década de 1930.

Shellard gostava de contar que, entre os Cintra – a linhagem é grande e inclui os Cintra do Prado e Silveira Cintra –, havia Joaquim Pinto de Araújo Cintra, terceiro barão de Campinas, título criado por D. Pedro II – em nossas conversas informais, por vezes, ele exigia ser chamado ‘barão Shellard’.

Shellard e os irmãos nasceram em casa na rua Francisco Leitão, no bairro de Pinheiros. Mais tarde, se mudariam para a rua Marcondes de Andrade, no Ipiranga, onde nasceriam as irmãs. Essa casa, anos depois, foi vendida, para a compra de apartamento, no Edifício Duque de Aragão, à rua Peixoto Gomide, no Jardim Paulista, região de classe alta da cidade.

Shellard (pelo menos, em nossas conversas) citava pouco o pai. De sua mãe, a primeira vez que ouvi falar foi sobre o fato de ela viver numa chácara em Jundiaí (SP) e já estar com algo de senilidade. Dela, ele falava com carinho – e dose de resignação pelo quadro. Ela morreu em 2011; o marido, em meados da década de 1990.

O relacionamento entre Shellard e os pais era harmonioso. Mas ele gostava de irritar a mãe, com temas que, ele sabia, iam contrariá-la. Ela parece ter descoberto método eficaz para finalizar essas discussões: começava a chorar – se ‘lágrimas de crocodilo’, ninguém sabe.

Shellard não parece ter sido influenciado pelo ‘espírito de rebeldia’ típico da juventude da década de 1960, marcado pelo surgimento do movimento hippie, os protestos estudantis de maio de 68 e o psicodelismo.

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Do ‘drogas, álcool e rock’n roll’, ficou com a opção do meio e, segundo colega de longa data, gostava de um rock na graduação, mas sem fanatismo. Já adulto, decidiu, para desespero de alguns, ouvir música caipira tradicional (não eletrificada), o que fazia em alto volume.

Acredito que ele tenha sido típico jovem de classe média alta: aventuras, mas até certo limite; brincadeiras, só as inocentes, como o clube que ele fundou com colegas da adolescência em que o estatuto obrigava os membros a “praticarem, pelo menos, uma maldade por dia”.

No ensino médio, parece ter sido bom aluno – apesar de nunca ter se vangloriado disso. Na vida adulta, a formação religiosa do Santo Américo ficou distante – ou ele a abandonou por completo: nunca o ouvi manifestar crença metafísica. Minha impressão, no entanto, é que ele estaria mais para agnóstico do que ateu.

Esses estudos da juventude o marcariam de forma positiva. Lembrava-se dos dias de escola com certo saudosismo e, por vezes, falava dos diálogos provocadores que mantinha com os padres – semelhantes aos que costumava ter com a mãe, acho. Só para irritar.

Mais tarde, já nos EUA, ele aparece em fotos com cabelo e barba longos, vestindo roupas informais. Camisetas e calças, ambas ‘sem grife’, o acompanharam ao longo da vida adulta, ainda que sob o protesto de sua terceira esposa e artista plástica, Maria Elisa Shellard, que reformou o guarda-roupa dele com vestimentas ‘mais adequadas’ aos cargos que o marido passou a ocupar. Mas, nos momentos de folga, voltavam a vigorar o ‘chinelão’, a camiseta e bermuda.

A barba nunca voltou a ser tão grande, e os cabelos foram minguando com o passar das décadas – a ponto de ele mesmo dizer que, no alto da cabeça, havia sobrado só uma “chuquinha”, que ele gostava de comparar com a de colega físico com o mesmo cenário capilar.

GRADUAÇÃO

Shellard sempre teve interesse – ainda que não muito expresso – por filosofia, e chegou a cursar aulas com o filósofo e professor de origem tcheca Vilém Flusser, dadas na casa deste último para pessoas interessadas no tema. Creio que o contato com Flusser tenha se dado com base no fato de este último ter sido professor de filosofia na Escola Politécnica da USP na década de 1960, período justamente no qual Shellard frequentou a instituição.

Shellard pouco falava desse período curto de graduação na engenharia. Ainda no segundo ano da Politécnica – onde cursava eletrônica, a mais disputada à época e com maior carga de matérias de física e matemática –, prestou vestibular para a física, com o colega José Bonilha, com quem manteve amizade ao longo da vida.

Shellard, por um ou dois anos, cursou simultaneamente as duas graduações. Seus currículos não citam esse período, restringindo-se a citar apenas o título “Bacharel em física pelo Instituto de Física da USP”.

A entrada de Shellard na Escola Politécnica mostra que ele estava bem preparado para vestibular, pois o número de candidatos por vaga para essa tradicional instituição de ensino paulistana sempre foi alto – no Brasil, o mesmo sempre ocorreu com duas outras profissões ditas ‘imperiais’, medicina e direito.

Shellard e Bonilha se conheceram na Politécnica e juntos cursaram à noite a graduação em física. Lá pelo terceiro ano, ambos desistiram da engenharia. Shellard terminou o novo curso em quatro anos, com notas muito boas. Nesse período, tinha já inclinação pela esquerda (ou, talvez, pelas causas sociais), mas nunca foi militante – apesar de ter sido amigo de vários deles à época.

Arrisco dizer que, para um filho de classe média alta de São Paulo, com tendência às ciências exatas – na juventude, tinha, como hobby, construir e soltar foguetes, por exemplo –,

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engenharia era carreira tida como ‘natural’ pela família. Física, àquela época (e ainda hoje), não tem o mesmo apelo para o mercado de trabalho.

Daí, eu sempre ter visto essa mudança de Shellard como ato de alguma coragem, quando levamos em conta os anseios de uma família tradicional como a dele. A reação da família, com sua desistência da engenharia, deixou o pai algo triste, mas não foi nada doloroso.

POLÍTICA?

Shellard nunca teve militância política, mesmo tendo vivido, em sua graduação, um dos períodos mais efervescentes do movimento estudantil na USP. Mas, como foi dito, parecia ter simpatia pela esquerda ou por causas sociais. Certa vez, ajudando colegas militantes a distribuírem ‘panfletos revolucionários’ no centro de São Paulo, cruzou com seu pai, que quase resvalou seus ombros. Mas Charles James não o viu, por causa de alto grau de miopia que, mesmo corrigido por óculos, o faziam enxergar mal, a ponto de nunca ter dirigido.

Há outros dois episódios de cunho político, mas mais incisivos. O primeiro, ocorrido por volta da virada da década de 1960 para a seguinte, diz respeito ao parto da mulher de um dos amigos de Shellard à época, Honestino Guimarães (ou, simplesmente, Gui), líder estudantil mais tarde assassinado pelas forças de segurança do Estado.

Há duas versões para o se passou em 1970. Na primeira delas, Shellard teria levado Isaura Botelho, grávida, mulher de Gui, para a casa dos pais no Ipiranga. Dora, a mãe, mesmo com perfil conservador, deu guarida à parturiente, acompanhou-a ao hospital e a trouxe para casa da família no pós-parto com o bebê, Juliana. A segunda versão é que Dora foi visitá-la no hospital – a porta do quarto estava vigiada por policiais – e a levou para casa para a recuperação.

O segundo episódio diz respeito a uma ‘batida’ de policiais do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), órgão repressor do regime militar, na casa dos pais no Ipiranga. Os motivos dessa ‘blitz’ não são claros. Parecem estar ligados ao fato de o irmão de Shellard, Philip, em época de vestibular, estudar com amigos, na edícula da casa, até altas horas da noite – reunião de jovens era coisa suspeita à época.

Como adendo de interesse, vale citar que o médico pessoal de Dora, mãe, era Harry Shibata, acusado de assinar laudos de necropsia falsos de presos políticos assassinados pela ditadura. Não se saber se essa relação teve algo a ver com a batida.

O fato é que os policiais do DOPS entraram, deram uma olhada geral sem muito interesse no ambiente, se defrontaram com um quadro de Che Guevara pendurado na parede da tal edícula, fizeram algumas perguntas e se foram. O episódio não teve maiores consequências para a família.

PÓS-GRADUAÇÃO

Shellard graduou-se como bacharel em física em 1970, partindo imediatamente para o mestrado no Instituto de Física Teórica (IFT) – à época, sociedade civil, como foi o CBPF até meados da década de 1970 –; hoje, o IFT é ligado à Universidade Estadual Paulista (Unesp).

A dissertação foi defendida em 1973, orientada por um dos fundadores desse instituto, Paulo Leal Ferreira. O título do trabalho é ‘Amplitude de decaimento eletromagnético no modelo a quarks simétrico’, feito com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

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Para o doutorado, Shellard foi para a Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara –instituição com a qual o IFT mantinha convênio –, com bolsa, agora, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

A essa altura, já estava casado com Lenita Nicoletti, assistente social – hoje, funcionária aposentada do Ministério da Saúde. Ambos se conheceram na Bahia. Ela trabalhando; ele de férias. Lenita, inicialmente, o achou antipático. Mas o reencontro já em São Paulo aparou as arestas do relacionamento. O casamento ocorreu só no civil. Foram viver na rua Tabapuã, no bairro de Pinheiros.

A filha do casal, Sofia Nicoletti Shellard – hoje, consultora empresarial para assuntos ambientais no Rio de Janeiro – nasceu em 1972, em São Paulo (SP). A família foi para os EUA e morava em uma residência para pós-graduandos na universidade. Sofia tinha nove meses.

Shellard fez parte das disciplinas do doutorado em Santa Bárbara. Mas ele parecia não estar feliz nem com o nível do ensino, nem com a interação com os professores. Em 1974, Lenita decidiu fazer também seu mestrado, mas no campus de Los Angeles, pois em Santa Bárbara não havia a pós-graduação para sua área, voltada para a saúde pública – mais tarde, faria o doutorado pela USP em saúde pública.

Shellard usou como ‘desculpa’ a pós de Lenita, para também se transferir para Los Angeles, onde ele sabia haver teóricos mais competentes. Lá, teve como orientador da tese o norte-americano Michael Cornwall, que ficou conhecido pela invenção de uma técnica (pinch technique) ligada ao estudo da força forte nuclear.

Defendeu tese, em 1978, com o título ‘Quebra dinâmica de simetria em nível de dois laços e além’. Os resultados dessas pesquisas foram publicados na forma de artigo em Physical Review D (v. 18, p. 1.216, 1978).

História que escutei de Shellard. Poucas horas antes da defesa, para relaxar, ele estava lendo revisão bem ampla sobre neutrinos – tema que pouco tinha a ver com sua tese. Na banca de defesa, estava Jun John Sakurai, físico japonês radicado nos EUA e autor de livros-texto clássicos. Sakurai, para testar os conhecimentos do candidato, decidiu questioná-lo sobre... neutrinos. Shellard considerava essa uma das felizes coincidências de sua carreira.

Em 1974, ocorreu a chamada ‘Revolução de novembro’, como ficou conhecida a descoberta da partícula J/psi, que comprovou a existência de mais um tipo de quark – no caso, o chamado charm. Agora, eram conhecidos quatro quarks: up, down, strange e charm. Outros dois, top e bottom, seriam detectados mais tarde.

Na edição especial de Ciência e Sociedade, o físico vietnamita P. Q. Hung – professor da Universidade da Virgínia (EUA) e colega de Shellard nos tempos de doutorado, em Los Angeles – relata que seu amigo brasileiro deu seminário detalhado sobre as implicações da descoberta da nova partícula e diz que ele e colegas ficaram impressionados com o conhecimento de Shellard sobre tema tão recente.

O casamento com Lenita terminou ainda nos EUA, e ela voltou com Sofia (então, com cinco anos) para o Brasil. Shellard só retornaria em 1978, depois da defesa, para se tornar professor visitante do IFT, passando a assistente em dezembro daquele ano. No ano seguinte, se tornaria pesquisador do CNPq – terminaria sua carreira no nível mais alto, pesquisador 1A.

Em seus anos no IFT, Shellard orientou uma tese de doutorado e uma dissertação de mestrado. A primeira foi de Adriano Natale, com o tema ‘Quebras de simetrias em teorias de gauge’, defendida em março de 1982; a segunda, de Sérgio Ferraz Novaes, ‘Produção do bóson de Higgs em colisões próton-antipróton via fusão de quarks e glúons’, com defesa em abril do mesmo ano.

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NO CERN

Ainda em 1982, entre abril e junho, ele iria pela primeira vez ao Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), com sede em Genebra. (Suíça). Foi como teórico, e não sabemos muito de suas atividades lá, além do fato de, nesses três meses, ter tido contato com fenomenologistas, como relatado em Ciência e Sociedade.

Em setembro do mesmo ano – segundo o currículo apresentado anos mais tarde (1993) para o CBPF –, consta que ele voltou ao CERN. Nessa viagem, segundo o físico teórico e amigo de longa data Carlos Alberto Aragão de Carvalho Filho, Shellard frequentou a Escola Les Houches de Física, ligada à Universidade de Grenoble-Alpes (França), encontro tradicional, iniciado em 1951, idealizado pela física francesa Cécile DeWitt-Morette, que trabalhou no CBPF, poucos anos depois de sua fundação, em 1949.

Shellard foi ao CERN em momento interessante da história daquela instituição, pois começavam então as atividades para a construção do LEP, finalizada em 1988. Ao longo de seus quase 27 km de circunferência, essa máquina abrigaria quatro detectores (ou experimentos): Aleph, Delphi, L3 e Opal. Em 2000, o LEP foi desmontado, para dar lugar ao atual LHC (Grande Colisor de Hádrons), com quatro novos detectores (Atlas, Alice, LHCb e CMS).

Mais: em 1983, foram detectados os bósons W e Z0, nos experimentos UA1 e UA2, do Supersíncrotron de Prótons, acelerador do CERN. Essas duas partículas são as ‘carregadoras’ da chamada força fraca nuclear, envolvida em certos fenômenos radioativos.

Essas descobertas renderam o Nobel de Física de 1984 ao italiano Carlo Rubbia e ao holandês Simon van der Meer – em tempo: um físico brasileiro, José Leite Lopes, está entre os que fizeram as primeiras previsões teóricas do Z0.

Shellard voltaria ao CERN em março de 1988 – desta vez, para período de aproximadamente dois anos. Ele, em teoria, ainda era teórico, mas o experimento Delphi mudaria para sempre sua vida – ele seria “contaminado pelo espírito do CERN”, nas palavras do colega português Mário Pimenta, em Ciência e Sociedade

Neste momento, Shellard já estaria vivendo com a Vera Lucia Oliveira de Araújo, que ele conheceu ainda no doutorado nos EUA. O casal teria dois filhos: Alexia Helena de Araújo Shellard, nascida em São Paulo (SP), em 1981; e Carlos Andreas de Araújo Shellard, no Rio, em 1983. Alexia, geógrafa com doutorado, mora hoje em Portugal, com o marido e três filhos; Carlos, um mestre em literatura e um quase historiador, carioca, tem empreendimento no ramo literário com mãe, no Rio de Janeiro (RJ).

NO RIO

Em 1983, Shellard trocaria o IFT pelo Departamento de Física da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) – a transferência deve ter tido influência do fato de Vera ser carioca. O cargo era o mesmo que em seu emprego anterior: professor assistente, que ele manteve até 1987, quando passou a professor associado.

Na PUC-Rio, deu inicialmente os cursos básicos de física: física I e II, mecânica geral I e II. Ele só ofereceu o primeiro curso de introdução à física de partículas depois de voltar do período de dois anos no CERN.

Lá também exerceu cargos de chefia. Foi presidente da Associação de Docentes da PUC-Rio – período sobre o qual sabemos pouco – e coordenador da graduação em física por dois anos (1984-1985). Seu currículo de ainda 1993 mostra cerca de uma dúzia de participações em comitês e organizações de eventos.

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Para mim, esses e outros cargos que ele viria a ocupar no futuro coincidem com sua convicção de que essa atuação política é estratégica para a ciência. Ou seja, Shellard gostava de ‘fazer política’ – pelo que conheci dele, acho que podemos descartar o tom pejorativo que a expressão carrega no Brasil, mas há quem diga o contrário.

A ida de Shellard para a PUC-Rio coincide com a retomada da área de física de altas energias no Brasil. Esse novo momento – no qual houve descolamento com o passado (entenda-se, Lattes, Leite Lopes, Tiomno, Salmeron etc.) e compreensão de que essa área estava fadada a ser feita com aceleradores – começou com o encontro, em agosto de 1983, naquela universidade, a Colaboração Pan-americana em Física Experimental, que ajudou a impulsionar a área no Brasil. Como consequência, pouco depois, iria, para o Fermilab, grupo de quatro brasileiros –para mais detalhes, ver Capítulo 1. Para o CBPF, foi o momento em que suas relações internacionais foram retomadas com mais intensidade.

Nesse período, Shellard já estava ciente de que o Brasil deveria ter acordo formal com o CERN. O teórico, tudo indica, havia se tornado experimental – pelo menos, em convicção. Ele escreveu carta para o então presidente da Sociedade Brasileira de Física, H. Moysés Nussenzveig, manifestando essa vontade, sugerindo o fortalecimento da física experimental de altas energias no país – esse documento está no Capítulo 3.

Talvez, por causa disso, ele escreveria, entre 1983 e o ano seguinte, cinco artigos de divulgação científica (todos sobre física de altas energias) para a então recém-criada revista Ciência Hoje – naquele momento, ainda ligada à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

Arrisco dizer que foi o modo de disseminar o novo momento dessa área no Brasil. Ele sempre soube que a informação do grande público tinha papel importante – esses artigos também estão no Capítulo 3.

Tiomno foi o grande interlocutor brasileiro na colaboração entre o Brasil e o Fermilab. E a ideia desse teórico brasileiro era ampliar a área no CBPF – e isso tem a ver com a ida de Shellard tanto para o CERN no fim da década de 1980 quanto para o CBPF em meados da década seguinte.

Essa ida de Shellard ao CERN foi estimulada por Tiomno, como mostra documentação histórica depositada no Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), no Rio de Janeiro (RJ). Nessas cartas, ambas de 16 de dezembro de 1987, Tiomno escreve para o chefe de Departamento de Física da PUC-Rio (à época, Aragão) e recomenda a ida de Shellard para o CERN. Na outra, para funcionário do setor administrativo do CERN, Tiomno recomenda o brasileiro, dizendo que ele é “competente em física experimental voltada para fenomenologia e simulação numérica de teorias de campo”. Ressalta ainda a capacidade de Shellard “para organizar escolas e workshops”.

Interessante notar que Tiomno, na carta para Aragão, se autodenomina o responsável pela conversão de Shellard para a física experimental. Se isso é verdade, então, Shellard saiu do Brasil, para aqueles dois anos no CERN, já convertido, e o laboratório europeu teria apenas reforçado essa convicção.

No CERN, como relata Pimenta, Shellard aproximou-se de colegas (principalmente, dos portugueses) que participavam do experimento Delphi. De volta ao Brasil, tornou-se o Shellard que muitos conheceram: o físico que tinha alta predileção por instrumentação científica, no sentido mais amplo da palavra.

O mais provável é que essa passagem tenha sido um processo e não uma ruptura. Como dissemos, Shellard, provavelmente, chegou ao CERN como teórico – Pimenta defende essa hipótese –, mas já com a semente que o transformaria em experimental. E a aproximação com o grupo do Delphi ajudou a germiná-la.

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Nunca escutei Shellard falar muito sobre o Delphi. Fiquei ciente dessa ligação com o experimento do CERN em artigo dele para a Revista do CBPF, publicada, em 2002, na gestão de João dos Anjos, então diretor da instituição e um dos quatro brasileiros que foram para o Fermilab em consequência do acordo com esse laboratório norte-americano.

Shellard vai para o CBPF em 1994, em momento em que não havia concursos no sentido em que entendemos hoje pelo termo. À época, a instituição formava banca e julgava os currículos do candidato.

Shellard, então, passaria a acumular suas funções na nova instituição e no Departamento de Física da PUC-Rio, o que se manteve até 2010, quando – por pressões da reitoria desta última universidade para a dedicação integral – ele foi forçado a optar por um dos dois cargos. Como sabemos, ficou com o CBPF. Pouco antes, esse departamento passaria por crise financeira substancial, o que levou à transferência de vários de seus membros para o Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, evento que causou polêmica na comunidade carioca de físicos.

No CBPF, Shellard associou-se a novo experimento internacional ligado ao estudo de raios cósmicos: o Observatório Pierre Auger, que, nos anos seguintes, seria instalado nos pampas argentinos – a localização tem a ver com o fato de o experimento necessitar tanto de grandes áreas planas quanto de proximidade com a indústria (no caso, brasileira) para a fabricação de cerca de 1,5 mil tanques com grandes volumes de água pura, ‘coração’ do experimento.

Nos anos seguintes, o Auger tornou-se a menina dos olhos de Shellard. A participação brasileira sempre foi reconhecida como importante no experimento. Shellard, mais uma vez, tratou de divulgar o máximo possível essa iniciativa. À época, lembro-me de longa reportagem para a revista Superinteressante, em momento em que os membros dessa colaboração se reuniam em lugar paradisíaco no litoral do Rio de Janeiro.

TRABALHO HERCÚLEO

Tiomno fala da capacidade de Shellard de organizar ‘workshops’. Em 2013, fui testemunha disso. Acompanhei de perto – e colaborei – com seu trabalho hercúleo – aqui, o adjetivo não é exagero – para organizar a Conferência Internacional de Raios Cósmicos (mais conhecida pela sigla ICCR), que ocorreria no Rio de Janeiro (RJ). Como chairman, ele impôs mudanças na edição brasileira – segundo contam colegas na edição especial de Ciência e Sociedade, essas alterações permaneceram desde então.

Vale aqui destacar a parte de assessoria de imprensa do evento. Plano para essa atividade foi estabelecido com meses de antecedência, com ampla participação do setor do Núcleo de Comunicação Social do CBPF. A ideia era seguir o modelo comum na mídia norte-americana: vários comunicados à imprensa foram lançados antes do início do evento, para ‘atiçar’ a mídia.

A conferência tinha, pelo menos, dois ‘ganchos’ de interesse para a imprensa: i) o fato de a natureza da matéria escura (misterioso componente responsável por cerca de 25% da massa do universo) poder ser anunciada – o que acabou não acontecendo; ii) a sonda Voyager I estava prestes a deixar o Sistema Solar – o que ocorreu, e, pela primeira vez, um artefato romperia essa fronteira.

O encontro ganhou as reportagens em jornais, rádios, blogues, TVs etc. Ou seja, em termos de divulgação, o evento foi um sucesso, arrisco dizer.

Shellard, diferentemente de cientistas de sua geração, reconhecia a importância da mídia para a ciência. Foi o responsável por fortalecer o setor de comunicações do CBPF e dar apoio

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incondicional a ele. Contratou pessoal; apoiou a expansão das notícias da instituição para as mídias sociais; ampliou as relações com a imprensa; montou estúdio de mídia para a realização de vídeos – o EMC2 (Estúdio de Mídia para Comunicação de Ciência).

Uma das consequências dessas ações foi que, com base em levantamento informal nas mídias sociais feito à época, metade das notícias de física no Brasil era sobre o CBPF.

Relacionava-se bem com jornalistas, por exemplo, da Folha de S. Paulo, de O Globo, Jornal da Ciência, Ciência Hoje e Pesquisa Fapesp – nesta última, aparece em oito entrevistas sobre raios cósmicos.

Devemos lembrar que o Grafite da Ciência, que ocupa a totalidade de muro externo do CBPF – talvez, a maior manifestação artística sobre ciência do mundo –, foi idealizado, realizado e inaugurado na gestão dele, iniciativa que apoiou com fervor. A inauguração foi feita ‘em grande estilo’, com a presença de autoridades governamentais, formadores de opinião, cientistas, jornalistas etc. O Grafite da Ciência ganhou também amplo destaque na mídia nacional e internacional.

DE VICE A DIRETOR

Conheci Shellard em meados de 1995, quando ele chegou ao CBPF. Nossa relação se estreitou quando ele se tornou editor da área de ciências exatas da Ciência Hoje – atualmente, publicada pelo Instituto Ciência Hoje. Eu havia ido para lá em 1991 – trabalho que mantenho até hoje. Ele foi do corpo editorial da revista de 1994 a 2000.

Nosso primeiro trabalho mais amplo foi um número que trazia três artigos sobre os 100 anos da descoberta do elétron, em setembro de 1997 (CH-131), para o qual ele convidou colegas da área. Pouco antes, havíamos feito entrevista com o James Cronin, prêmio Nobel de Física de 1980 e um dos idealizadores do Observatório Auger – a entrevista está no Capítulo 3. Quando era vice-diretor do CBPF, em meados da década de 2000, ele me convidou para trabalhar meio período na instituição. Tentamos, à época, fortalecer o Núcleo de Comunicação Social, mas havia entraves significativos para pagamento de salário, o qual, segundo legislação, só podia ser feito a cada três meses, pois eu era prestador de serviços. Nessa época, eu ainda era freelancer, mas, pouco depois, voltaria a ter vínculo empregatício com a Ciência Hoje, interrompido desde minha ida, em 1996, para a Inglaterra, onde trabalhei para as revistas Superinteressante, da editora Abril e Marie Claire, da editora Globo.

Shellard deu amplo apoio também à publicação de livros de divulgação científica pelo CBPF. Por exemplo, biografia de Lattes; coletânea sobre história da física; coletânea de textos de pesquisadores do CBPF publicados no caderno ‘Ilustríssima’, da Folha de S. Paulo, jornal com o qual a instituição manteve colaboração; livro com cartas de Guido Beck, um dos pioneiros da física no Brasil e ex-diretor científico do CBPF; livro de pesquisador do CBPF (Alberto Reis) sobre física de partículas; e biografia da pesquisadora emérita do CBPF Anna Maria Freire Endler. Pouco antes de morrer, ele havia concordado em publicar mais dois: uma biografia de Beck e uma do matemático português António Monteiro, que trabalhou no CBPF logo após sua fundação.

Some-se a isso folder sobre a entrada do Brasil no CERN – acordo, pelo qual ele lutou por décadas, que ele não pôde ver assinado este ano. Todas essas publicações são distribuídas gratuitamente para o grande público, em vários formatos eletrônicos.

Voltei ao CBPF quando ele se tornou diretor pela primeira vez, em 2015 – fato que fiquei sabendo de antemão, na casa dele, em uma das inúmeras visitas minhas, pois éramos praticamente vizinhos no bairro da Urca.

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Nossa interação se tornou ainda mais próxima. Muitas tardes, depois do expediente, que terminava às 17h, costumávamos conversar na sala dele para discutir a agenda de comunicações do CBPF ou simplesmente jogar conversa fora.

Não era incomum encontrar sobre a mesa dele esboços feitos a lápis de instrumentos, aparelhos, detectores etc. E também pilhas de artigos, que ele imprimia e fazia questão de apertar os grampos com um alicate que ficava sempre ao alcance da mão. Eu costumava brincar, dizendo que, pela presença da ferramenta, era fácil saber que a sala era de um experimental.

Na verdade, descobri que, para ele, valia o dito popular “casa de ferreiro, espeto de pau”, pois era incapaz de trocar uma lâmpada em casa ou ler um manual de instruções – certamente, soa paradoxal para um experimental apaixonado por máquinas e instrumentos.

FILHOS E ‘FILHOS’

Shellard conhece Elisa. Na verdade, ela o notou um dia em que ele foi conversar com o então diretor da Ciência Hoje, o físico Ennio Candotti – hoje, diretor do Museu da Amazônia (MUSA). Shellard sempre teve presença marcante: tinha 1,90 m ou por aí.

Passado algum tempo, Elisa – com quem sempre tive muita amizade, porque trabalhamos juntos na revista por cerca de 20 anos –, me pegou pelo braço e me levou para fora da sede da revista, a famosa ‘Casa Rosa’, antigo laboratório de pesquisas de física nuclear e radioatividade do CBPF, no campus da Praia Vermelha da UFRJ.

Da frente da casa, ela apontou para um homem alto no meio de um aglomerado de pessoas e disse: “Eu vou me casar com ele”. Perguntei: “Ele sabe disso?”. E ela respondeu: “Ainda não!” e deu risadas.

O casamento de 25 anos com Elisa somou a Shellard dois enteados, Tiago Santos de Mello Leitão, administrador de empresas, e João Cândido Santos de Mello Leitão, presidente do Grupo A Tarde, que publica o jornal A Tarde, na Bahia, ligado à família do pai. O primeiro mora em Salvador; o segundo, no Rio.

E, como o casal gostava de dizer, havia mais um sem-número de ‘filhos’ caninos. Começou com Hope e Tim; depois, ficaram com Tom, da primeira ninhada – este último, Shellard dizia, era meio “bobão”, por ser sempre enganado por outros cachorros na hora de brincar. Depois, veio a Nina. Todos labradores.

Shellard deixou três outros filhos caninos: Isaac Newton (popularmente, Zeca), pastor bernese; Cecília Beatriz, shitzu; e Play(boy), bull terrier, que arrancou alguns ‘filés’ do dedo do dono – hoje, mais calmo, depois de tratamento com duas doses diárias de fluoxetina.

Faça constar da lista o papagaio ‘bicador e mal-humorado’ Joca, que só obedecia à Elisa, e a tartaruga Margarida, que, pela longevidade da espécie, deve estar ainda em sua primeira infância.

O casal viveu por um tempo em um apartamento na Lagoa; depois, mudou-se para casa no bairro do Horto; e, finalmente, passou a morar em ampla casa na Urca, onde viviam também os sogros, Hélio de Andrade Santos, médico, e sua mulher, Margarida da Costa Santos, ambos já falecidos. Lá, recebiam muitos amigos – o que eles faziam com prazer. Eram ótimos anfitriões.

Shellard – que, geralmente, caminhava os dois ou três quarteirões até o CBPF – tinha um quarto de trabalho, com biblioteca de respeito sobre física, divulgação científica e literatura – para esta última, era eclético, mas só lia bons autores. Como os livros já não cabiam mais na estante, que ocupava uma parede inteira, eles passaram a se acumular nas mesas, no chão, nas cadeiras.

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O estúdio de artes de Elisa – onde ela fazia seus desenhos, suas colagens e aquarelas –ficava no térreo, em quartinho pelo qual se entrava pela lavanderia – casa oficial de Play. Zeca tinha passe livre pela casa, inclusive com direito a noites dividindo a cama com o casal, apesar de seus quase 60 kg e pelagem que dá a ele ares de um ‘urso simpático’.

Joca (in memoriam) passava o dia na gaiola, fazendo ‘comentários’ sobre fatos diversos; e Cecília Beatriz, medrosa, sempre que possível, no colo de Elisa. Margarida, no jardim.

MINHAS IMPRESSÕES

Gostaria de começar este tópico – ainda que a ordem dos temas a seguir seja aleatória – com uma das marcas mais características de Shellard: seu bom humor. Ele o exercia de modo agradável e leve. E não perdia a chance de usá-lo para descontrair o ambiente – muitas vezes, rindo de si mesmo, o que, para mim, sempre foi sinal de inteligência.

Lá por volta dos 65 anos, quando a barriga começou a crescer (para frente) com mais ímpeto – de costas, ela não aparecia –, suas roupas passaram a ser doadas religiosamente para mim, por Elisa. Os botões das camisas já não fechavam, e as camisetas começaram a não cobrir o cinto da calça. Em certo momento, meu armário ficou tomado pela ‘grife Shellard’. Tínhamos praticamente a mesma altura.

Quando ele me via com uma de suas camisas, dizia: “Você tem bom gosto para se vestir”. Nas conversas informais com colegas, costumava dizer: “Acho que minha mulher está me engordando só para dar as roupas para o ‘Ricardão’ dela” – no caso, eu. Por sinal, várias vezes, ele me apresentava assim para colegas.

Ríamos muito frente ao constrangimento causado em interlocutores que não entendiam bem o contexto da piada. O adjetivo pegou, e Elisa engatou na brincadeira. Eu sempre acrescentava que a ‘função’ era exercida “com carteira assinada, férias, fundo de garantia e 13º salário, como exigia o sindicato da categoria”.

Uma das passagens mais engraçadas em relação a esse epíteto foi quando Elisa e eu terminamos uma corrida de 10 km no Rio, no aterro do Flamengo. Fizemos várias, e Shellard sempre nos levava de carro e esperava na chegada, tomando uma cerveja em alguma barriquinha. Elisa me apresentou a uma amiga como “Este é o meu Ricardão”. Resposta (séria) da interlocutora: “Poxa, Elisa, você tem marido e Ricardão, e eu não tenho nenhum dos dois. Não é justo”.

Voltamos para casa quase chorando de rir, depois de contar a passagem para nosso ‘motorista oficial’, que sempre prometeu se juntar a nós dois em tal prática esportiva. Ele só precisaria “emagrecer um pouquinho”. Nunca cumpriu a promessa de retomar a atividade física que ele praticou com assiduidade até a idade madura.

Shellard sempre trabalhou muito – o que, às vezes, lhe tirava convívio com a família. Costumava dormir cedo, acordar lá pelas 4h da manhã e trabalhar até as 6h. Depois, voltava para cama, para soneca de meia-hora.

Por volta das sete, já estava passeando pela Urca com os cachorros – principalmente, Zeca, seu companheiro mais próximo. Nós nos encontrávamos com frequência – eu com a minha querida Elvira-Lata, de poucos amigos humanos e caninos – e aproveitávamos para discutir trabalho, planos, comentar as notícias do dia ou só bater papo.

Lembro-me bem de um desses encontros. Foi na manhã seguinte ao assassinato da socióloga e vereadora pelo Rio de Janeiro Marielle Franco, em 14 de março de 2018. Estávamos ambos chocados, pois considerávamos o ato ataque à democracia e tentativa de calar críticas feitas às forças paramilitares que agem abertamente no estado fluminense.

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Decidimos que o CBPF deveria fazer uma carta aberta, para ser amplamente divulgada. Fomos cedo para o trabalho e a redigimos. Para Shellard, era dever da comunidade científica se manifestar em horas assim.

Arrisco dizer que Shellard sempre se deu conta de que não seria bom teórico. Creio que um dos motivos foi o fato de essa atividade ser feita, geralmente, de modo mais isolado ou em pequenos grupos. Ele adorava interagir. As colaborações internacionais deram, a meu ver, essa chance a ele. Certa vez, desculpou-se com um de seus orientados por ter sido o “desorientador” dele. Com outro, com o qual havia tido desentendimentos décadas antes, retomou amizade, que perdurou até sua morte.

Como era de se esperar, suas duas gestões como diretor do CBPF lhe roubaram tempo considerável dos projetos em que estava envolvido. “Sua sala parece um confessionário. É preciso ter paciência de Jó”, eu dizia. Mas ele adorava ser gestor. Ele adorava o que fazia.

No CBPF, ele administrava bem os problemas – ou, pelo menos, boa parte deles. Nunca o vi ser deselegante com ninguém – quanto mais humilde, maior o respeito. Não era de falar palavrões para se referir a outras pessoas – mas ouvi vários em relação a ele, de críticos. Nunca o vi nervoso, com raiva.

O maior atrito que presenciei no CBPF em sua gestão foi em relação às verbas da Rede Nacional de Física de Altas Energias (Renafae). O CBPF e a Renafae haviam conseguido verbas em Brasília de, se não me engano, emendas parlamentares. Em certo momento, surgiu dúvida sobre o quanto deveria ir para cada um. Como jornalista, devo dizer que os argumentos eram procedentes dos dois lados. Depois de algum enfrentamento (por vezes, duro) entre as partes, a maior monta ficou com o CBPF. Mas isso lhe causou inimizades.

Shellard sempre manteve relação cordial com os ministros de Ciência, Tecnologia e Inovações que passaram por suas duas gestões. Mais com uns do que outros. Alguns o chamavam para pedir aconselhamento sobre temas gerais da ciência brasileira – cheguei a presenciar algumas dessas chamadas.

Em 2013, Shellard se viu diante de dificuldades para a liberação de verbas estatais para a realização do ICRC. Diante desses entraves, tomou medida extrema: foi ao banco e pediu empréstimo de monta, que pagou ao longo de anos. Chegou a me dizer: “É um absurdo o que fiz, mas sem isso não se consegue fazer ciência decentemente neste país”.

Sua cultura ia bem além da física. Por exemplo, no casamento da filha Alexia, leu parte do poema Wasteland, de T. S. Eliot. Entre outras revistas e periódicos, assinava a The Economist –que tem seção de ciência de alta qualidade – e o The New York Review of Books, que, para mim, é uma das melhores publicações sobre cultura da atualidade.

Eu herdava os exemplares antigos das duas publicações, que lia com o maior prazer. Ele também gostava de comprar, aos montes, livros em papel. Nos últimos anos, aderiu às versões eletrônicas – talvez, pela falta de espaço em sua biblioteca.

Descuidou-se da saúde nos últimos anos. Engordou muito e passou a ter dificuldade para caminhar – ciático, acredito. Contratou treinadora pessoal, para, principalmente, alongar a musculatura. Não durou muito, segundo Elisa. Certa vez, me explicou que havia iniciado programa próprio de dieta: perderia cerca de 150 gramas por semana. Também não funcionou. Seu ‘treinamento’, dizia, era caminhar com o Zeca todas as manhãs.

Quando os tempos estavam tensos na administração no CBPF, optava por chegar em casa e “tomar uma talagada de uísque”, seu ansiolítico para momentos difíceis. Quando soube de sua doença, contou apenas para quatro pessoas – eu, honrado em dizer, fui uma delas. Fiquei triste e preocupado, mas, no momento, não imaginei o desfecho.

Ele criticava, ainda que à boca miúda, colegas que punham a ideologia política à frente

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tanto do CBPF quanto da ciência, bem como aqueles que se achavam mais importantes do que eram cientificamente. Ele sabia que ciência era empreitada coletiva.

Para ele, o Brasil, para fazer ciência de fronteira (pelo menos, a experimental), tinha que participar de grandes projetos internacionais. Em nossas conversas no fim de tarde, lamentávamos a pífia ‘geopolítica científica’ do Brasil, ou seja, a representação do país em organismos mundiais ligados à ciência. Para nós, o país seguia provinciano nesse respeito.

Shellard tinha consciência disso e, sempre que possível, tentava fazer com que o Brasil –entenda-se, ele ou colegas – ocupasse cargos de liderança em colaborações internacionais. Foi o caso dele no Auger, por exemplo, na Rede de Telescópios Cherenkov (CTA) e, mais recentemente, no Observatório Austral de Campo Amplo para Raios Gama (SWGO).

Diferentemente de colegas, Shellard gostava de ver continuidade entre os trabalhos de Lattes na década de 1940, a Colaboração Brasil Japão, no início da década de 1960, e o Auger, que deu os primeiros passos em 1995.

Shellard, às vezes, era muito direto em suas críticas – e isso era visto como sinal de certa empáfia. Foi o caso de seu tempo como editor de exatas na CH. Fazia análises incisivas às edições da revista, e estas, por vezes, eram entendidas como pessoais.

Shellard não era consenso. Foi muito criticado – como alerta, fica o dito popular “Desconfie de pessoas sem inimigos”. Mas, até onde sei, nunca levou as críticas para o lado pessoal. Certa vez, escutei de um ex-diretor do CBPF algo nessa linha – reproduzo mais a ideia do que as palavras exatas: “Pode criticá-lo o quanto você quiser que ele não guardará rancores”. Acredito que isso seja boa percepção de como Shellard era.

Gostava de viajar – e era muito prático para isso. Mala pequena e mochila, com notebook e apetrechos – parte deles, canetinhas coloridas que ele adorava colecionar. Ele as mantinha em um copo de cerâmica feito por Elisa, que ele afastava de mim quando eu me sentava à mesa dele, porque dizia que eu as queria ‘furtar’.

Eu costumava brincar com a secretária dele no CBPF, Cláudia Vanise, dizendo: “Esconde aí esse PTA [passagem aérea] dele; caso contrário, ele embarca, até mesmo se for para Muzambinho” – com todo o respeito pelos habitantes da cidade mineira.

Era vaidoso. Penso que gostaria de ser lembrado só pelas boas coisas que fez. Mas não se sentia importante. Conhecia a lição ensinada pela física experimental de altas energias: cada um põe um tijolo. Penso que sabia que os tempos em que um só cientista construía ‘catedrais’ haviam ficado no passado, como fez Einstein com sua teoria da relatividade geral, em 1915.

Não fazia drama, mas também não gostava de lidar com eles – nem os profissionais, nem os familiares. Talvez, fugisse deles. No período de sua doença, Elisa, depois de muito insistir, criou grupo de WhatsApp para atualizar a família sobre o desenvolvimento do quadro. Shellard, segundo ela, também membro, sempre minimizava os problemas, a ponto de ser convidado para se retirar do grupo. Fez isso com mensagem assinada “Shellard Poliana”.

Naquele um ano da doença, o escutei reclamar apenas uma vez, dizendo estar se sentido meio baqueado com uma das sessões de quimioterapia. Só isso. No restante, a resposta era padrão: “Está tudo bem”. Elisa o obrigava a ir para a casa da família em Petrópolis, para afastá-lo do trabalho. Não adiantava. Às vezes, ele me ligava e ficávamos por horas conversando, madrugada adentro.

Tinha muito jeito com crianças, a ponto de ser denominado por uma das filhas “líder estudantil da garotada”. Adorava reunir grupo de pimpolhos e comandá-los, em aventuras a pé ou motorizadas. Certa vez, alugou Kombi, para caber a meninada e familiares.

Numa das incursões florestais, bancou o ‘pai herói’, ao salvar a boneca da filha Alexia que havia caído nas águas algo tormentosas de um rio. Imagem semelhante ficou em Carlos,

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para quem o pai juntava o mundo “das ideias e ações”, à la Indiana Jones, ou seja, intelectual e aventureiro – o gosto de história do filho veio dos ‘questionários’ (tipo “o que foi a guerra do Peloponeso?”) que Shellard preparava para distrair o garoto de menos de 10 anos nas viagens longas de carro.

Muitos os chamavam Ronnie; outros, Ronald; para mim, sempre foi Shellard – e seguirá sendo. Em momentos da redação deste capítulo, eu, várias vezes, inconscientemente, pensei em enviar este texto para ele, para checar as informações...

Sua presença ainda se faz marcante para mim.

A esta altura, vale esclarecer questão sobre a qual muitos se perguntarão. Por que este livro sobre ele? A resposta pode ser: Shellard sempre quis um Brasil com ciência; um país em que ciência fosse política de Estado; uma nação em que a pesquisa científica estivesse involucrada intimamente com a resolução de grandes problemas nacionais, como violência, saneamento básico, urbanização irregular, transportes, fome, desigualdade etc.

Muitos pensam assim. Mas poucos, como ele, agiram nesse sentido. E isso requer política, que ele praticou.

Ele sempre repetiu que a herança da escravidão era fortíssima no Rio de Janeiro, cidade que, para ele, ainda se dividia em ‘Casa Grande’ e ‘Senzala’. Dizia que grande parte dos problemas do Brasil decorria da mentalidade escravagista, nunca superada.

Mas, para mim, a resposta extrapola o âmbito do cientista. Por isso, termino estas impressões com as palavras que escrevi em um portal, poucos dias depois de sua morte:

"Podia dizer muitas coisas boas sobre esse amigo de longa data. Apaixonado pela física experimental; batalhador incansável pela ciência no Brasil; ótimo chefe; paciente; educado; fiel; engraçado; justo; culto; protetor dos mais humildes; amante dos animais (principalmente, dos cachorros); ótimo pai; ótimo marido; ótimo avô...

Mas a maior homenagem que posso fazer a ele neste momento é dizer que ele foi uma das pessoas mais generosas que conheci na vida. Generosidade é matéria raríssima. Mas ele a tinha a qualquer momento, sempre em excesso. Ele me ajudou muito, e eu nunca vou me esquecer disso.

Para mim, ele foi o que mais alto podemos almejar na vida: ser uma boa pessoa. O restante são detalhes.

Vou sentir sua falta, amigo.”

Já nos estádios finais da doença, disse a Elisa: “Tive uma vida ótima; sempre fiz o que quis; tive filhos ótimos; e uma mulher ótima; fui feliz”.

Neste mundo tresloucado, ele foi tudo isso. E muito generoso. Certamente, não é pouco.

AGRADECIMENTOS_

Ciência Hoje), Ulisses Barres (CBPF), Adriano Natale (IFT/Unesp), Cláudia Vanise (CBPF), Carla Lustoza (CBPF), Márcia Cristina Ferreira Aguiar (CBPF).

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Maria Elisa Shellard, Dora Shellard Corrêa, Sofia Nicoletti Shellard, Carlos Andreas de Araújo Shellard, Alexia Helena de Araújo Shellard, P. Q. Hung (Universidade da Virgínia, EUA), José Roberto Bonilha (AT&T), João dos Anjos (CBPF), Bianca Encarnação (Instituto

1. Shellard (à esquerda) com irmãos

2. Shellard (à direita) com pais e irmãos

3. Shellard provavelmente na década de 1960

4. Foto da tela da reunião virtual em que ficou decidida a elaboração deste livro em homenagem a Shellard

5. Primeiro 'Bar do Shellard' presencial, em homenagem ao ex-diretor do CBPF; o evento, que, até então, ocorria virtualmente, com os diretores das unidades de pesquisa degustando suas bebidas favoritas, se deu na casa de Shellard e Elisa, no bairro da Urca, no Rio de Janeiro (RJ)

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1. Elisa e Shellard

2. Shellard (à frente) com familiares em casa de campo

3. Shellard 'dialogando' com o pastor bernese Zeca

4. Shellard e um de seus cães, Tim

5. Shellard e Joca

6.Shellard (atrás) com irmãos e cunhados de Elisa (roupa escura)

7. Shellard (à esquerda.) com irmãos

8.Filhos de Shellard; Alexia e seu filho Tito (à esquerda), Sofia e Carlos

9. Shellard com a sogra Margarida, o neto Davi e o pastor bernese Zeca

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1. Shellard no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares em 2010

2. Shellard (quinto, da esquerda para direita) em visita ao experimento Lhaaso (China)

3. Shellard (segundo da direita para a esquerda na mesa) em evento sobre física de partículas no Vietnã

4. Shellard (à direita) em visita ao experimento Lhaaso, na China

5. Shellard (à esquerda) e o físico experimental português Mário Pimenta

6. Diploma de reconhecimento pelos serviços prestados à ciência no Brasil

7. Shellard em palestra na Itália

8. Shellard tomando posse como membro da Academia Brasileira de Ciências

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1. Shellard, assinando a posse como diretor do CBPF

2. Shellard (ao centro, com gravata escura) formando mesa com o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, ex-diretores do CBPF e autoridades

3. Shellard (à esquerda) com Celso Pansera, então ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações.

4. Termo de posse de Shellard como diretor do CBPF

5. Shellard (à esquerda) com diretores de unidades de pesquisa do MCTI, colegas pessquisadore e servidores do CBPF

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1. Shellard (ao centro, de óculos) no evento comemorativo dos 70 anos do CBPF; ao microfone, o físico experimental Ricardo Galvão, ex-diretor do CBPF

2. Shellard (centro) com o engenheiro e investidor Guy Perelmuter (à esquerda) e Armand Perelmuter

3. Shellard (à direita) e Amós Troper, ex-diretor do CBPF

4. Shellard (à esquerda) cumprimentando o pesquisador do CBPF Ivan dos Santos Oliveira Júnior

5. Shellard (quarto, da esquerda para a direita) e colegas diretores das unidades de pesquisa do MCTI

6. Shellard (à direita) com o fisico Antônio César Olinto de Oliveira, ex-diretor do CBPF

7. Presente dado aos homenageados no evento de 70 anos do CBPF

8. Shellard (à direita) e o matemático Lindolpho de Carvalho Dias

9. Shellard (à direita), a servidora do CBPF Zélia Quadros e o pesquisador emérito do CBPF Alfredo Marques

10. Shellard (à direita), com o tecnologista Márcio Portes de Albuquerque, atual diretor do CBPF, e Cláudia Vanise, secretária e assessora de Shellard

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1. Shellard (centro) na inauguração do mural Grafite da Ciência; da esquerda para a direita, o repórter da TV Globo Álvaro Pereira Júnior, o engenheiro e investidor Guy Perelmuter, a química Joana D'Arc Félix de Sousa e a professora de física Elika Takimoto

2. Shellard 'conversando' com a estátua de Einstein em Sobral (CE)

3. Mosaico do mural Grafite da Ciência, que ocupa a totalidade de um dos muros externos do CBPF; considerada a maior manifestação artística do mundo dedicada integralmente à ciência e tecnologia, o mural foi idealizado pelo tecnologista Márcio Portes de Albuquerque, atual diretor do CBPF

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TEXTOS SELECIONADOS DE RONALD CINTRA SHELLARD

ESCLARECIMENTO_

Todo o esforço foi feito pelos editores para reunir aqui os principais textos escritos pelo físico experimental brasileiro Ronald Cintra Shellard. Mas é provável que haja omissões nesse sentido – há publicações que não têm a totalidade de suas coleções digitalizadas.

Também houve empenho para que fosse reproduzida aqui a versão mais atualizada desses escritos.

Quando isso não foi possível, indicou-se que se trata de texto preliminar ou esboço. Decidimos pela seguinte classificação dos textos selecionados:

I_POLÍTICOS; II_CARTAS; III_ENTREVISTAS (DELE E POR ELE); IV_MEMORIAL; V_DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA.

A maioria deles é de autoria de Shellard, mas há também coautorias ou criações coletivas.

Esses textos – que não estão apresentados aqui em ordem cronológicas – foram recuperados dos arquivos digitais tanto de Shellard quanto do Núcleo de Comunicação Social do CBPF. As poucas alterações nos originais (por exemplo, atualização ortográfica) foram no sentido de padronizar a linguagem do livro. Evitamos a reprodução de figuras e gráficos, pela dificuldade de obtê-los ou refazê-los neste curto período de tempo.

Vale ressaltar que a coletânea a seguir não inclui artigos científicos ou técnicos, pois esta obra tem ênfase no administrador de ciência e divulgador científico e não no pesquisador. Porém, abrimos exceção: o último texto, escrito para o livro sobre a ida de professores de física brasileiros ao CERN, tem caráter de divulgação, mas com passagens técnicas (fórmulas, gráficos, tabelas e referências) que foram eliminadas na versão apresentada aqui. Os editores

TEXTOS POLÍTICOS

OS 70 ANOS DO CBPF E OS INSTITUTOS DE PESQUISA DO MCTIC*

(Preparado com editorial para o portal do CBPF, 2019)

OCentro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), completou 70 anos de existência em 15 janeiro deste ano, e sua comunidade celebrará essa efeméride em 18 de outubro próximo. Portanto, é um bom momento para refletir sobre os sucessos e reveses da ciência brasileira.

Os sucessos são visíveis e têm grande impacto na qualidade de vida de nossa população. Portanto, é fácil saudá-los. Mas, talvez, seja tão ou mais importante examinar as fragilidades de nosso sistema de Ciência e Tecnologia (C&T), pois, enfrentando-as, poderemos adequar nossa infraestrutura para dar um salto qualitativo em nossa produção científica e tecnológica.

Desnecessário ressaltar, neste momento, a dificuldade de o Estado brasileiro aportar recursos para a C&T, pois o problema é real e bem visível. Isso ameaça nossa C&T, que ‒ apesar disso e por causa de um esforço de décadas ‒ segue competitiva, hoje, em nível internacional. Nosso desafio é ‒ e sempre será ‒ apontar rumos para que ela siga fazendo pelo Brasil o que fez até este momento.

O CBPF foi fundado por um grupo de pessoas preocupadas em modernizar a infraestrutura do Brasil e inspiradas pelo ideal de que ter um parque de C&T robusto seria vital tanto para a expansão econômica do país quanto servir à sociedade. O papel dos cientistas na Segunda Guerra Mundial, bem como o advento da energia nuclear como um tipo de panaceia, foram o motor da fundação do CBPF.

É interessante observar o perfil dos fundadores desta instituição: eram um grupo expressivo das lideranças do país. Nele, encontramos empresários, como César Guinle, Francesco Matarazzo e Euvaldo Lodi; políticos da estirpe de Santiago Dantas e Osvaldo Aranha; militares de alta patente, como Álvaro Alberto da Mota e Silva, Henry Lins de Barros, Edmundo de

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Macedo Soares e Armando Dubois; intelectuais, do calibre de Augusto Frederico Schmidt e Anísio Teixeira.

E, claro, cientistas, como Joaquim da Costa Ribeiro, Luís Cintra do Prado e os jovens César Lattes, José Leite Lopes e Jayme Tiomno. Mulheres cientistas também estão lá: Maria Laura Mouzinho e Branca Fialho, por exemplo. No quadro dos primeiros integrantes, estavam também, por exemplo, o antropólogo Darcy Ribeiro, o político e ex-militar Renato Archer, o físico Ugo Camerini e nosso grande amigo e matemático Lindolpho de Carvalho Dias.

AMBIÇÃO E ILUSTRES

O programa inicial do CBPF era ambicioso e incluía, por exemplo, a operação de aceleradores de partículas, equipamentos que passavam a ser parte integrante da física de fronteira à época. Algumas dessas máquinas, por falta de expertise local, foram importadas; outras, projetadas e construídas aqui.

Aquela ambição pode ser ilustrada com base no renome de visitantes que tivemos, por exemplo, em 1953, apenas quatro anos depois da fundação, quando já ocupávamos um edifício no campus da praia Vermelha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (então, Universidade do Brasil). A lista incluía nomes como Richard Feynman, que descreve esse período em sua autobiografia, Só pode ser brincadeira, Sr. Feynman!. Outros visitantes não menos ilustres: Robert Oppenheimer, Isidor Rabi, Cecile De Witt, Giuseppe Occhialini e Leon Rosenfeld.

Os fundadores do CBPF seriam, nos anos seguintes, agentes da transformação do cenário científico brasileiro, ao participarem, direta ou indiretamente, da criação de instituições que até hoje são parte da estrutura político-administrativa da ciência no país. Assim, logo depois do CBPF, vieram, por exemplo, o CNPq, a Capes, a CNEN, para ficar em poucos exemplos.

O ponto-chave para essa transformação ‒ até então sem precedentes ‒ foi a percepção de que era preciso criar os alicerces da infraestrutura que, dali em diante, iriam gerenciar e planejar as atividades de nosso cenário de C&T, que já incluía instituições mais antigas que o CBPF, como o Observatório Nacional, o INT e institutos agrícolas e biológicos ‒ estes últimos iriam induzir a criação da Embrapa.

Porém, é a fundação do CBPF que sinaliza tanto a modernização de nossa infraestrutura científica quanto os primeiros passos rumo à expansão do sistema universitário federal, que ganhou momento a partir da década de 1960. No período que se inicia na década de 1950 e se estende pelas duas décadas seguintes, o Brasil é um dos países com maior crescimento econômico no mundo, fenômeno que tem correlação direta com a expansão das universidades e dos institutos de pesquisas.

Agora, 70 anos depois, quando olhamos em retrospecto, podemos identificar o que, em minha opinião, é o calcanhar de Aquiles da C&T brasileiro: o crescimento da infraestrutura dos institutos de pesquisas não acompanhou a expansão da pesquisa na universidade, e essa disparidade levou a uma situação que cada vez mais se agrava.

Gostaria primeiramente de expor onde está o problema; depois, argumentar sobre o porquê de essa situação ser problemática.

ENFATIZANDO PROPORÇÕES

Costumo ver, em apresentações de colegas cientistas, gráficos que mostram que um dos problemas da C&T brasileira é a falta de pesquisa nas empresas. Esse material, comumente, exibe a proporção entre pesquisadores nas universidades e na iniciativa privada.

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No Brasil, em 2000, 52% dos pesquisadores estavam nas universidades. Na China, no mesmo ano, esse percentual era de 21%, com 51% deles nas empresas. Em 2014, no Brasil, tínhamos 70% de pesquisadores nas universidades versus 26% nas empresas. Para a China, naquele ano, esses percentuais eram, respectivamente, 19% e 62%.

Mas, em nosso país, o baixo número de pesquisadores nas empresas tem pouco a ver com C&T. Está mais relacionado com coisas que parecem mais complicadas que a mecânica quântica. Aquele baixo número tem a ver com alta taxa dos juros, impostos, custo e qualidade da mão de obra, retorno de investimento etc. Portanto, coisas mais ligadas à política econômica do que à pesquisa científica.

Outro problema daqueles gráficos: neles, nunca é enfatizada a proporção de pesquisadores nas universidades e nos institutos de pesquisas. No Brasil, em 2000, tínhamos mais de sete pesquisadores nas universidades para cada um deles em institutos de pesquisas. De lá para cá, a situação tornou-se muito mais dramática: 23 para um, respectivamente. Na China, onde essa razão mantém-se constante, ela é um para um. Na Alemanha, também em 2000, era de 1,7 e, em 2016, baixou para 1,3.

Mas a China é socialista, país com decisões centralizadas, e a Alemanha tem uma economia muito superior à nossa, diriam alguns. Certo, vamos, então, comparar com uma economia mais similar à nossa. Na Coreia do Sul, aquela proporção é um mero 1,38.

Obviamente, não estou dizendo que há excesso de pesquisas nas universidades. Repito meu argumento: o calcanhar de Aquiles é haver um número ridiculamente pequeno de pesquisadores em institutos de pesquisas no Brasil.

FAZEMOS BEM

Dito isso, procede perguntar: quais as diferenças entre fazer pesquisa nas universidades e nos institutos de pesquisas? A maior delas está na característica dessa atividade. Na universidade, ela é feita sob a égide da liberdade acadêmica e tem como objetivo formar gente; nos institutos, ela deve cumprir uma missão e formar gente para poder atender a esse propósito. Há, claramente, alguma superposição, mas essa redundância é saudável.

Essa missão é acordada em seu Plano Diretor e tem vida longa, perpassando governos. Os institutos têm como missões resolver desafios científicos e tecnológicos com que se defronta o país, o que foge ao ethos tanto das universidades, por suas características, quanto das empresas, por não disporem de capacidade humana para tal.

Para abordar esses desafios, é necessário, com frequência, desenvolver tecnologias e processos que não estão disponíveis no mercado. Essa atividade é um excelente mecanismo para o treinamento avançado de jovens pesquisadores e engenheiros, os quais, mais tarde, irão trabalhar no setor privado ou mesmo público, em atividades em que a formação científica e tecnológica é essencial. Essa é a experiência de países com parques tecnológicos avançados e produtivos.

O CBPF tem como padrões de comparação instituições internacionais e renomadas e, nesse universo, tem se saído razoavelmente bem. Nossa produtividade científica está entre as mais altas do Brasil na área de física. Somos o ponto fulcral (backbone) de toda a rede de internet do Rio de Janeiro, atendendo a universidades, outros institutos, agências de fomento, hospitais, serviços públicos e privados, forças armadas. Damos apoio logístico e administrativo a outros institutos. Temos vários laboratórios abertos para uso da comunidade científica. Somos a sede da Rede Nacional para a Física de Altas Energias, do Centro Latino-Americano de Física, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Sistemas Complexos. Nossa pós-graduação ‒ que foi a primeira em física no Brasil e está entre as mais bem avaliadas pela

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Capes e por outros institutos ‒ já formou mestres e doutores de todas as regiões do país e de grande parte dos países latino-americanos. Promovemos o Mestrado Profissional em Física, com ênfase em instrumentação científica, único no país. Somos um instituto nacional, com ramificações internacionais e convênios com a indústria, como Petrobras, Vale, FIT etc.

Nossa missão é realizar pesquisa básica ‒ e esse é nosso foco principal ‒, mas sediamos e coordenamos o Núcleo de Inovação Tecnológica dos institutos da regional do Rio de Janeiro (NIT-Rio). Nossos estudantes têm sido muito bem-sucedidos em vários hackathons pelo país e ‒ o que talvez surpreenda puristas ‒ organizamos cursos de empreendedorismo para nossos alunos.

Essa excelência é fruto do trabalho de gerações e gerações de cientistas, tecnologistas, técnicos e pessoal administrativo. Ou seja, não surgiu da noite para o dia.

Fazemos bem o que temos que fazer!

PROBLEMA ALARMANTE

No entanto, temos um problema bem alarmante que põe em risco até mesmo a existência de nossa instituição: somos pequenos. Já fomos, pelo menos, duas vezes maiores do que somos hoje. Pior: nosso quadro humano tem idade média bastante alta. Traduzindo: podemos perder parte significativa de nossos recursos humanos, pois quase metade dos servidores do CBPF já pode se aposentar. E não há perspectiva de substituí-los e, menos ainda, de expandir nosso quadro, para adequá-lo às necessidades de competitividade internacional da economia brasileira.

Falo do CBPF, mas poderia usar argumentos semelhantes em relação a todos os outros institutos associados ao MCTIC. Temos todas as virtudes e problemas, mas estes últimos podem ser facilmente corrigidos com pessoal novo e jovem, bem como com parte de nossas missões mais bem delineada.

Porém, mais do que em outras épocas, vemos, hoje, quadros jovens, com formação sofisticada, indo trabalhar em outros países, e poucos deles com planos de voltar. No passado, o vaivém de pesquisadores (sempre saudável para uma comunidade científica) incluía muitos estrangeiros. Estamos, agora, numa época de ‘vai’ apenas. Precisamos reverter essa situação. Mesmo em meio a dificuldades, o CBPF e os outros institutos têm tido apoio do MCTIC. Mas tanto o problema quanto a solução residem em outro canto de Brasília.

Apelamos, então, para as lideranças políticas e empresariais de todo o Brasil para que observem o que ocorre nos países desenvolvidos e convençam os economistas, aqueles com responsabilidades no governo, de que ciência não é gasto, é investimento.

Entender a mecânica quântica, talvez, seja mais fácil do que induzir o crescimento do país!

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Ronald Cintra Shellard do CBPF * Extrato deste editorial foi publicado em Notícias da ABC

SOBRE CIÊNCIA, NO BRASIL, NEM O ÓBVIO É ÓBVIO

Hoje, há consenso no mundo de que ciência é um patrimônio importante para qualquer sociedade. Não só pelos valores culturais que traz para a humanidade, mas também pela percepção de que é instrumento importante para criar riqueza e bem-estar.

Não é diferente no Brasil. E, por causa da pandemia, a palavra ciência é uma das mais citadas em noticiários, declarações etc. – em quase tudo que se refere à crise. Mas não causará espanto caso, passada a crise, voltemos à habitual afirmação dos dirigentes da nação de que ‘ciência é muito importante, mas não há dinheiro’. E uma das razões pelas quais não haverá dinheiro para a ciência é porque os investimentos em... ciência (!) foram – e seguem sendo –inadequados, tendo como referência o tamanho da economia do Brasil.

Um país do tamanho do Brasil para ter uma economia competitiva no cenário internacional – e, mais ainda, com o perfil de país continental e, consequentemente, com as responsabilidades intrínsecas dessa estatura – tem que ter uma infraestrutura científica lastreada em institutos de pesquisas e universidades, complementada pela pesquisa empresarial.

A situação atual – herança antiga – é ridiculamente precária e instável. A pesquisa universitária sofre com a fragilização das agências de fomento, bem como a falta de recursos e bolsas para a formação científica. Mas a outra ‘perna’ do sistema – o sistema de institutos de pesquisas, que tem papel estratégico nas políticas públicas – é ainda mais frágil.

Em geral, há um balanço entre o número de cientistas que atuam em universidades e institutos de pesquisas em boa parte dos países desenvolvidos. No Brasil, porém, essa relação é muito desequilibrada: cerca de 20 vezes mais cientistas nas universidades do que nos institutos de pesquisas – e não se pode argumentar que há muitos cientistas nas universidades.

O trabalho dos cientistas em universidades e institutos de pesquisas é complementar, mas com importantes diferenças. Enquanto, na universidade, cientistas contam com a liberdade acadêmica, nos institutos, o trabalho deles está alinhado com as missões especificas de cada instituição.

Por sua vez, essas missões estão alinhadas às estratégias públicas do Estado (não de governo!) e têm como foco resolver desafios científicos e tecnológicos. Por exemplo, neste momento, cabe à Fiocruz coordenar todo o trabalho de pesquisa associado à pandemia no Brasil.

Os institutos de pesquisas têm o papel de gerar novas tecnologias para atender aos desafios científicos e deveriam ser centros de treinamento avançado para quadros técnicos que, depois de um tempo no ambiente científico, levam essa cultura para o meio empresarial. É assim que funciona em inúmeros países.

Retrato da situação dos institutos de pesquisas do Brasil está em uma comparação global de institutos de pesquisas: http://research.webometrics.info/en/world. Nela, podemos ver que a primeira instituição brasileira é a Fiocruz, em posição 82 em número de pesquisadores. Nesse mesmo quesito, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro (RJ) – sexta instituição brasileira no ranking da avaliação – ocupa a posição 821, mas está mais bem classificado (322) em produção científica.

Fortalecer a infraestrutura de institutos de pesquisas é um desafio importante para qualquer governo interessado em melhorar a economia do país. Mas esses institutos têm um papel mais importante do que isso: são instrumentos relevantes para melhorar o bem-estar da população deste país. Parece trivial, mas isso precisa ser dito e repetido, pois, no Brasil, quando o assunto é ciência, parece que nem o óbvio é óbvio.

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Ronald

PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO DOS INSTITUTOS DE PESQUISA DO MCTIC

INTRODUÇÃO

O mundo passa hoje por uma das mais rápidas transformações, na história da humanidade, com as consequências inevitáveis para a civilização humana. Claramente, o próprio sistema econômico mundial sofrerá transformações com profundo impacto no cotidiano das pessoas. O motor destas transformações tem como alicerce a maturidade do conhecimento científico e a capacidade para transformações tecnológicas, atividades intrinsicamente associadas. Essas transformações, que têm induzido um bem-estar para todas as populações da Terra, evidentemente de forma bastante inomogênea, trazem também riscos para a civilização, exemplificadas de forma mais dramática pela questão de mudanças climáticas. Temos hoje ferramentas que podem nos ajudar a mitigar os efeitos de catástrofes naturais como as pandemias que assolam as populações, terremotos, ou erupções vulcânicas, para citar algumas. Porém, elas têm que ser aprimoradas, para maior eficiência.

Um país com as dimensões do Brasil, com seus desafios e oportunidades, para ter uma economia competitiva no cenário internacional – e, mais ainda, com o destino de país continental e, consequentemente, com as responsabilidades intrínsecas dessa estatura – tem que ter uma infraestrutura científica robusta e moderna, lastreada em institutos de pesquisas, bem como em universidades, complementada pela pesquisa empresarial, formando um consistente sistema integrado de CT&I.

No entanto, há de se reconhecer que, mesmo hoje, o tema Ciência e Tecnologia não tem a visibilidade e nem é considerado, nos centros de poder do país, como essenciais para a preparação do futuro. É paradoxal essa percepção, pois se olharmos para o histórico do desenvolvimento do país, quando o crescimento econômico nos levou a estar entra uma das dez maiores economias, durante a segunda metade do século passado, com um dos maiores índices de crescimento, ele está profundamente associado ao processo de expansão do sistema universitário brasileiro e à introdução dos programas de pós-graduação pelo país afora.

O Brasil conta hoje com um aparato científico e tecnológico significativo, com um potencial para expansão a um custo compatível com os desafios econômicos. Passamos por um processo de crise econômica que, em breve, completará uma década. Superá-la passa, claro, por mudanças estruturais, mudanças legislativas, processos nem sempre triviais. No entanto, um elemento, para qualquer programa de superação de nossas dificuldades, é cristalino: o fortalecimento da nossa infraestrutura de Ciência e Tecnologia. É óbvio que o termo Inovação tem que estar associado a este processo e é consequência de um ambiente vigoroso de C&T, sem esquecer, claro, de ambiente estimulante para negócios.

Por outro lado, a pauta, hoje, dos países de qualquer natureza, é o Desenvolvimento Sustentável e o alicerce para essa agenda requer um sistema bem estruturado de Ciência e Tecnologia.

O PAPEL DOS INSTITUTOS DE PESQUISAS

O Brasil, por razões históricas, oferece um contraste marcante com a prática científica de grande número de países. Nos países que têm situação econômica próspera há um balanço entre o número de cientistas atuando em universidades e institutos de pesquisas. Este equilíbrio é chave para sua competência no desenvolvimento em C&T e, principalmente, em Inovação.

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No Brasil, porém, essa relação é bastante desequilibrada, com número pequeno de cientistas em institutos de pesquisas – sem que sequer se possa argumentar que haja muitos cientistas trabalhando nas universidades.

O trabalho dos cientistas em universidades e institutos de pesquisas é complementar, mas com importantes diferenças. Enquanto, na universidade, cientistas têm a liberdade acadêmica como norteador de suas agendas de pesquisas, nos institutos, nosso trabalho está alinhado às missões especificas de cada instituição. Por sua vez, essas missões, alinhadas às estratégias e políticas públicas do Estado, têm como foco resolver os grandes desafios científicos e tecnológicos com que se confronta a nação.

A sociedade organizada sempre buscou entender as complexidades do seu universo num sentido bastante amplo. O conhecimento foi sempre visto como elemento de vantagem competitiva entre as diferentes sociedades. O próprio exercício de conceber desafios científicos é parte importante do avanço do conhecimento, pois implica em conceber as ferramentas que permitam abordar os desafios e a experiência mostra que ferramentas desenvolvidas para determinado fim acabam encontrando aplicações completamente inesperadas (e frequentemente disruptivas), claramente sendo indutores de inovações.

INSTITUTOS DE PESQUISAS E INOVAÇÃO

Os institutos de pesquisas têm o papel de gerar novas tecnologias com o objetivo de atender aos desafios científicos impostos ao País e deveriam ser centros de treinamento avançado para quadros técnicos que, depois de um tempo em ambiente científico, levam essa cultura para o meio empresarial. É assim que funciona em grande número de países.

No entanto, o que move os cientistas é a busca de conhecimento, a solução de problemas e a busca para os problemas de natureza científica com muita frequência é o motor da geração de novas tecnologias. Estas tecnologias, geralmente, encontram aplicações de interesse da sociedade, que amiúde não eram a intenção inicial de seus inventores ou desenvolvedores.

O exemplo, relativamente recente, mais emblemático desse processo foi a invenção da world wide web, ou simplesmente a web, inventada no CERN no início dos anos 1990, originalmente uma ferramenta para troca de informações de cientistas trabalhando em grandes colaborações internacionais no então acelerador LEP. O impacto econômico gerado por essa invenção é fantástico, mas não previsto pelos seus inventores. A propósito, o primeiro locus de uso desta ferramenta foi em institutos do então MCT. A invenção da microeletrônica está muito associada ao programa de pesquisas espaciais do século passado. Vários equipamentos de diagnóstico médico moderno têm origem em pesquisas que não tinham nenhuma relação com a saúde.

Porém, há outro aspecto, que tem lugar especial no Brasil, que é o desenvolvimento de uma economia que tenha um lastro significativo no uso do conhecimento da nossa biodiversidade, de forma sustentável, com aplicações que vão de alimentos a medicamentos. Não só isso. A compreensão do impacto ambiental das mudanças climáticas, com as consequências para nosso futuro como civilização, as consequências desse impacto sobre todas as atividades sociais e econômicas são hoje ferramentas essenciais para guiar o estado em suas decisões políticas. Esse conhecimento e os consequentes estudos estão dispersos e fragmentados e é uma tarefa central estabelecer uma razoável coerência para que sejam mais eficientes.

A organização do conhecimento sobre os biomas brasileiros também está dispersa e fragmentada e sua organização é também um objetivo essencial quando nos referimos a uma Sociedade Sustentável.

Os temas mencionados acima fazem parte das missões de alguns dos institutos de pesquisas brasileiros e é seu papel gerar as ferramentas que permitam a organização e expansão do conhecimento referidos.

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FINANCIAMENTO DOS INSTITUTOS DE PESQUISAS

A situação atual dos institutos de pesquisas do MCTI enfrenta grandes dificuldades. A principal delas é a dificuldade em expandir seu corpo de funcionários e, em particular, contratar e atrair pesquisadores, tecnologistas e técnicos jovens. No contexto atual dos institutos, há pouquíssimas possibilidades de que essa situação possa ser equacionada e solucionada, no arranjo jurídico presente. Por outro lado, a persistir o atual arranjo, os institutos têm grande chance de simplesmente se desfazerem devido ao grande número de funcionários que já estão aptos a pedir aposentadoria. Na ciência, jovens são parte importante do processo.

PAINEL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Este documento complementa os outros estudos realizados dentro deste contexto de Planejamento Estratégico associado à Ciência e Tecnologia. Seu objetivo é propor a criação de um Painel de Ciência e Tecnologia que oriente as ações das instituições associadas ao Ministério e estabeleça um guia que guie a expansão dos instrumentos do Estado Brasileiro para abordar desafios que possam ser entendidos como responsabilidades do Estado, em suas diferentes configurações.

Um Painel de Ciência e Tecnologia, que evidentemente tem o caráter de referência, deve ser intrinsecamente atualizado com periodicidade bem definida. A criação e atualização deste painel, certamente, deve envolver os cientistas, os agentes econômicos, os agentes políticos e os diferentes segmentos da sociedade comprometidos com os temas em questão.

CIÊNCIAS BÁSICAS E APLICADAS

Grande número de países avançados dedica uma fração de seus investimentos de ciência e tecnologia na abordagem de conhecimentos mais básicos sobre a natureza, num sentido genérico, estudando desde a matéria nos seus detalhes mais fundamentais até a grande estrutura do cosmos. Geralmente, essa classe de pesquisas envolve grandes organizações de natureza internacional. A razão para isto é que o conhecimento hoje nestas áreas está aquém da capacidade de um único país realiza-las. A gama de tópicos em ciência básica é muito ampla. A distinção entre ciência básica e aplicada nem sempre é óbvia. Neste contexto, não as separamos, e são temas com frequência associados em institutos de pesquisas. Uma pequena amostragem de temas relevantes:

• Física das altas energias e astropartículas, astronomia

• Nanotecnologias

• Física teórica

• Computação quântica

• Matemática

• Desenvolvimento de instrumentação científica

• Aceleradores de partículas (Sirius) e suas aplicações

• Ciências nucleares

• Materiais avançados

• Aceleradores para aplicações em saúde

• Instrumentos para aplicações médicas

• Outros

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BIOMAS BRASILEIROS

O Brasil tem grandes biomas com características específicas que exigem atenção dedicada. Para cada bioma, é importante definir os desafios implícitos, as metas a serem alcançadas e a descrição de ferramentas necessárias. Uma definição mínima comporta os principais biomas brasileiros. Cada um deles comporta uma gama enorme de desafios e delineamentos de prioridades a serem estudadas.

• Amazônia

• Mata Atlântica

• Caatinga

• Cerrado

• Pantanal

• Oceano

• Rios, lagos, pântanos

• Outros

MEIO AMBIENTE

Definição de objetivos para caracterização de questões de meio ambiente separando-as dos biomas, nem sempre possível.

• Mapeamento e caracterização dos solos e subsolos brasileiros

• Mapeamento e caracterização da atmosfera e seus componentes

• Monitoramento de poluição atmosféricos e das águas

• Mudanças climáticas

• Mudanças nas características ambientais locais

• Outros

BIODIVERSIDADE

Definição de objetivos para caracterização da biodiversidade. Estabelecimento de metas para serem alcançadas. Ferramentas necessárias para levar a cabo o enfrentamento dos desafios.

• Mapeamento e caracterização de animais macroscópicos, mamíferos, aves, répteis, insetos etc.

• Mapeamento e caracterização dos biomas microscópicos, na superfície e em ambientes não visíveis.

• Mapeamento e caracterização dos diferentes biomas vegetais.

• Estudo da estabilidade das diferentes formas de vida

• Estudos das modificações nas características ecológicas de ambientes

• Outros

CLIMA

Definição de objetivos para caracterização da estrutura climática. Hoje, a compreensão deste tema não está restrita apenas ao território nacional, mas se estende a todo o globo, devido às sutis interações entre os diferentes ambientes.

• Mapeamento e caracterização do clima ao redor do mundo

• Interação do clima e meio ambiente

• Efeito da poluição atmosférica e das águas

• Simulações sobre mudanças climáticas

• Outros

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CIÊNCIA ESPACIAL

Descrição dos objetivos do programa espacial, suas metas presentes e futuras e definição de tecnologias necessárias para levar a cabo o programa. Programas de cooperação internacionais.

• Satélites para monitoramento ambiental e do espaço nacional

• Satélites para transmissão de informações

• Satélites para aplicações científicas

• Satélites para aplicações de defesa nacional

• Desenvolvimento de instrumentação para o espaço

• Desenvolvimento de lançadores

• Outros

ENERGIA

A mudança na matriz energética dos países, buscando tecnologias que tenham um impacto mais brando na natureza, requer bastante estudo e pesquisas.

• Energias renováveis

• Energia nuclear

• Desenvolvimento energético

• Outros

BEM-ESTAR E ESPORTES

Explicar por que pesquisa em temas de natureza esportiva e modos de vida onde cabe ao Estado agir. Foi incluído aqui como um tema a ser explorado mais adiante.

MEMÓRIA CIENTÍFICA

Preservação da memória científica, em arquivos digitais, arquivos físicos, museus, são em muitas situações responsabilidade do Estado.

• Arquivamento da memória científica do país

• Museus e exposições científicas

• Segurança e preservação da informação científica

• Outros

CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

Tecnologia da informação apresenta hoje muitas faces e é hoje um dos principais instrumentos acessíveis que permeiam a sociedade.

• Informação científica

• Distribuição de informação científica

• Inteligência artificial

• Grande quantidade de dados (Big Data)

• Sociedade digital

• Outros

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CIÊNCIAS E TECNOLOGIAS SOCIAIS

Os problemas que afligem os grandes aglomerados humanos são hoje foco de pesquisas científicas e novos desenvolvimentos tecnológicos.

• Integração metropolitana

• Tecnologias para saneamento básico

• Tecnologia de transportes

• Cidades inteligentes

• Construções eficientes

• Segurança pública

• Outros

SAÚDE

Temas gerais de saúde. Este tema é prioritariamente do Ministério da Saúde, mas na área de instrumentação científica, informação científica, simulações numéricas, os institutos do MCTIC têm muito a contribuir.

• Instrumentos de diagnóstico médico

• Aplicações de aceleradores para tratamento de câncer

• Tecnologia digital aplicada ao cenário de cirurgias

• Tecnologia digital para diagnósticos médicos, aplicando inteligência artificial.

• Outros

DEFESA

Aqui também temos temas que são da alçada dos institutos de pesquisas militares. Porém, novamente aqui os institutos do MCTIC podem contribuir com temas como instrumentação científica e tecnológica, processamento de informações, simulações numéricas. Ferramentas para o monitoramento de diferentes aspectos do território nacional não são encontradas em prateleiras. Nunca é demais lembrar que países sempre buscaram no aparato científico e tecnológico, quando foi necessário dar um salto em sua capacidade de defesa.

• Ciência e tecnologia para a defesa

• Outros

ALIMENTOS

O tema de segurança alimentar está conectado com o Ministério da Agricultura e tem sua expressão na Embrapa. No entanto, aqui também vale explorar as tecnologias que estão associadas aos institutos do MCTIC. Neste tema, o avanço da ciência tem papel central em agregar valor ao processamento de material agrícola natural, onde hoje o Brasil é um dos países mais eficientes. Há um enorme campo de desafios nesta área, que vale a pena ser desdobrada neste texto.

SUMÁRIO

Este texto tem a função de ser provocativo; é um mero rascunho em explorar uma ideia. Os grandes temas aqui expostos, de modo algum, são exaustivos e deveriam ser expandidos para incluir outros temas relevantes. Há alguns temas com profunda inter-relação, exemplo: Clima e Meio Ambiente, ou Biomas e Biodiversidade. Este texto deve ser visto apenas como o início de uma discussão, se ela couber no processo de Planejamento Estratégico das instituições dedicadas às pesquisas científicas e tecnológicas do Estado brasileiro.

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OITO DISCURSOS PARA SEREM LIDOS NO SENADO

IMPORTÂNCIA DA CIÊNCIA

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, quero falar sobre a importância, para o Brasil, das cerca de 20 Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais vinculadas ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.

Ciência já foi classificada como a cultura mais importante do século passado. E, pelos mesmos motivos, esse papel segue ainda mais relevante nas últimas duas décadas: entre outros benefícios, ciência traz riqueza e bem-estar para as nações, pavimentando o caminho rumo ao desenvolvimento sustentável.

Uma nova geopolítica surgiu depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Em termos simples, podemos defini-la assim: conhecimento é poder. Poder político, econômico e militar.

Os Estados Unidos se tornaram a grande nação que são hoje porque levaram a sério essa geopolítica. O Brasil foi dos poucos países do então chamado Terceiro Mundo a pô-la em prática, por meio da fundação de centros de pesquisa e de órgãos de infraestrutura político-administrativa da ciência, como CNPq e Capes. Naquele momento – único em nossa história – ciência era parte de um projeto de nação.

Poderíamos citar aqui um sem-número de exemplos de produtos e serviços que nasceram de resultados científicos. Mas vamos nos deter àqueles mais destacados pela literatura: transistor, o laser e as páginas www da internet. É impossível imaginar o mundo hoje sem esses artefatos.

O Produto Interno Bruto das nações desenvolvidas está diretamente relacionado à pesquisa científica. Por exemplo, Alemanha e Holanda exportam o mesmo valor, em dólares, em alimentos que o Brasil, cujo território é muito maior que os daqueles dois países somados. Isso tem explicação: é resultado dos valores investidos em ciência naquelas nações.

Estima-se que cerca de um terço do PIB norte-americano seja resultado de tecnologias ligadas à mecânica quântica, teoria que lida com os fenômenos do diminuto mundo atômico e subatômico. Os já citados laser e transistor são dois exemplos nesse sentido e, vale enfatizar, nasceram da pesquisa dita desinteressada, ou seja, sem finalidade prática, o que ressalta a importância crucial de investimentos também em ciência básica.

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, ciência, em seu sentido mais amplo e de qualidade, é o que fazem as unidades de pesquisa e as organizações sociais vinculadas ao MCTI. Ao longo da história de nosso país, as contribuições dessas instituições científicas têm sido inestimáveis tanto para a riqueza material quanto cultural de nossa nação.

IMPORTÂNCIA DA INTERDISCIPLINARIDADE

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, quero falar mais uma vez da importância, para o Brasil, das cerca de 20 Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais vinculadas ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, o MCTI.

Nestas sete décadas que nos separam do fim da Segunda Guerra, acumulamos mais conhecimento do que nos 2,5 mil anos anteriores. Esse vertiginoso acúmulo fez da ciência cultura das mais complexas, essencialmente interdisciplinar.

Ciência tornou-se um uno multidimensional que reúne, de forma indissociável, as áreas de exatas, biológicas e humanas, bem como tecnologia e inovações.

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Daí, a importância de o Brasil cultivar, de modo equânime, esses três campos do saber. Por quê? Porque a solução de questões de amplitude nacional – como transportes, urbanização, violência, saneamento básico, poluição, meio ambiente – demandam bem mais do que política. Exigem, sim, soluções científicas e tecnológicas de tal envergadura que se tornou impossível para uma só disciplina ou mesmo área atacar, de forma isolada, esses problemas.

Ciência estanque é passado. A ciência de hoje é múlti e interdisciplinar.

Há quem ainda pense em ciência como atividade desvinculada do cotidiano, sem ramificações com a sociedade, a economia e mesmo a política. Equívoco dos mais profundos.

A complexa estrutura de conhecimento formada pelas três grandes áreas da ciência –exatas, biológicas e humanas – tem conexões profundas com a sociedade em que está inserida. Hoje, não há tema em que a ciência, em seu sentido mais amplo, não esteja envolvida.

Alguns exemplos nesse sentido. Informação, tecnologia, quadros especializados, território, biodiversidade, água, espaço, minérios são questões de segurança nacional. Inovações, novas matérias-primas, controle de qualidade, exportações são também essencialmente científicos e tópicos relativos à indústria. Colaborações científicas internacionais dizem respeito à diplomacia e geopolítica.

O mundo contemporâneo é baseado na informação. Não há como negar isso. Informação é conhecimento, e conhecimento é poder. E a ciência, em sua forma interdisciplinar, é a fonte primordial de conhecimento. Portanto, dela emana poder político, econômico e militar para uma nação.

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, no Brasil, são as unidades de pesquisa e as organizações sociais vinculadas ao MCTI que formam essa riquíssima malha interdisciplinar de geração de conhecimento. Essa ampla e sofisticada rede de pesquisa científica, de renome internacional, é o instrumento do estado brasileiro para a resolução de grandes problemas nacionais. É, portanto, orgulho para povo do Brasil. Obrigado.

FORMAÇÃO E TREINAMENTO DE PESSOAL

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, quero, novamente, falar sobre a inestimável importância, para nosso país, das cerca de 20 Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais vinculadas ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, o MCTI.

A sociedade contemporânea tem nos mostrado, de forma veemente, que ciência é sinônimo de riqueza e bem-estar para as nações. Mas, não raramente, nos esquecemos de que essa cultura é, por assim ser, atividade essencialmente humana. O repositório do conhecimento são pessoas.

Portanto, formar, treinar e aperfeiçoar pessoal altamente qualificado estão entre as tarefas mais nobres e valorosas de uma nação. Países desenvolvidos assim o são porque entenderam – e há mais de um século têm posto em prática – essa lição.

Por décadas, essa tem sido tarefa exercida, com maestria, por essas instituições de pesquisa ligadas ao MCTI. Esse trabalho, ainda que silencioso, tem dado, ao Brasil, uma de suas maiores riquezas: quadros altamente treinados, capacitados para não só fazer pesquisa de ponta, mas também para entender, analisar, criticar e, se necessário, adaptar novas tecnologias.

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, o valor dessa contribuição para a sociedade brasileira é inestimável.

Essas pessoas com alta qualificação – em sua maioria, com doutorado ou mestrado – vão para universidades, empresas estatais e setor privado. Ou se tornam empreendedoras e empreendedores.

Talvez, seja apropriado aqui diferenciar o papel desses institutos daquele da universidade. Além da formação de quadros altamente qualificados, as Unidades de Pesquisa e as Orga-

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nizações Sociais vinculadas ao MCTI servem como infraestrutura para a pesquisa feita por instituições congêneres de todo o território nacional – para isso, muitas delas são dotadas de laboratórios de ponta abertos à comunidade científica.

A rede complexa e sofisticada de geração de conhecimento formada por essas instituições são poderoso instrumento do Estado brasileiro para enfrentar – pela perspectiva das três grandes áreas, exatas, biológicas e humanas – problemas de envergadura nacional, como transportes, poluição, violência, urbanização, desflorestamento, entre outros.

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, vale enfatizar: as cerca de 20 Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais do MCTI têm gerado para o Brasil o que talvez seja o mais precioso dos bens nesta sociedade altamente científica e tecnológica em que vivemos: cidadãs e cidadãos capacitados para trabalhar nas fronteiras do conhecimento. Obrigado.

REPOSIÇÃO DE QUADROS

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, volto a esta tribuna para falar sobre a inestimável importância, para o Brasil, das cerca de 20 Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais vinculadas ao MCTI, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.

Em meu pronunciamento anterior, ressaltei que essas renomadas instituições de pesquisa científica estão provendo a nação brasileira com um de seus mais preciosos bens: pessoas capazes de produzir conhecimento de fronteira. Essa tarefa, de extremo valor, tem ajudado o Brasil a se inserir de forma mais contundente no mundo atual, que, como sabemos, é essencialmente tecnológico.

No entanto, Senhoras Senadoras e Senhores Senadores, essas renomadas instituições de ciência vivem uma situação paradoxal cujas consequências anunciadas só podem ser qualificadas como drásticas.

Ao mesmo tempo que têm cumprido, de forma exemplar, o honorável dever de formar e treinar pesquisadores, tecnologistas e técnicos altamente gabaritados, essas cerca de 20 instituições de pesquisa estão enfrentando situação paradoxal: sofrem severamente com a falta e a perda de quadros igualmente capacitados.

As Unidades de Pesquisa e as Organizações Sociais do MCTI precisam urgentemente repor quadros, para que possam não só seguir prestando grande serviço ao Brasil, mas também ir além, crescer e gerar mais conhecimento de ponta. Esse problema tem números que, no mínimo, podem ser classificados como muito preocupantes: nessas instituições, em média, 30% de servidoras e servidores já são aposentáveis. E isso em um cenário deficitário de quadros.

Para o Brasil, essa é uma tragédia – infelizmente, até agora, silenciosa. E ela tem que ser enfrentada e revertida, pois estamos minando, como já dissemos aqui, o que talvez seja a maior riqueza de uma nação: cidadãs e cidadãos com altíssimo grau de educação e capazes de, com seu trabalho, enfrentar, pelo viés da ciência, grandes problemas nacionais e desafios de um mundo essencialmente científico e tecnológico.

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, as cerca de 20 Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais do MCTI estão amargando uma perda sem precedentes de seus quadros em todos os níveis e, assim, são obrigados a trabalhar no limite de suas capacidades. E isso não é só gravíssimo para essa rede geradora de conhecimento, que, certamente, é um orgulho para o Brasil. É, além de tudo, um desastre anunciado com consequências que, sem dúvida, serão extremamente deletérias para a nação brasileira. Obrigado.

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UPS/OSS: EXATAS

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, em meus últimos discursos, nesta tribuna, tenho me referido, de forma genérica, às cerca de 20 Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais vinculadas ao MCTI, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, e à importância, para o Brasil, dessa rede de conhecimento e infraestrutura de pesquisa.

Hoje, quero ser mais específico. Vou me deter às Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais do MCTI que atuam na área de ciências exatas, no sentido mais amplo desse termo.

Como já mencionamos aqui, a sociedade contemporânea está fortemente calcada na tecnologia. Deste microfone, com o qual me dirijo às senhoras e aos senhores, aos celulares, computadores, eletrodomésticos, carros, aviões, equipamentos médicos, satélites, e-mail, internet... Paro aqui, pois essa lista é interminável. Basta que olhemos ao nosso redor, para nos deparar com um utensílio do gênero.

Todos esses equipamentos e serviços são frutos diretos ou indiretos de pesquisas – a maioria delas, desinteressada – das ciências exatas, com forte aporte das engenharias e processo de inovação. A área de exatas é, portanto, responsável por fatia substancial da riqueza material das nações.

Parte da rede formada pelas Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais do MCTI se dedica à pesquisa científica e tecnológica no campo das exatas e áreas afins. Repito aqui o que já enfatizei em discursos anteriores: o papel desempenhado por essas instituições para o progresso do Brasil e bem-estar de nossa população tem sido inestimável.

Essas instituições científicas têm nome. E nada mais justo do que citá-los: Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Instituto de Matemática Pura e Aplicada, Observatório Nacional, Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres, Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, Centro de Tecnologia Mineral, Centro de Tecnologias Estratégicas do Nordeste, Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Instituto Nacional de Tecnologia, Laboratório Nacional de Astrofísica, Laboratório Nacional de Computação Científica, Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais e Comissão Nacional de Energia Nuclear.

Listar – ainda que só as principais contribuições para o Brasil de cada uma dessas instituições, bem como de suas congêneres das áreas de biológicas e humanas – seria, pela extensão, tarefa impossível para estes poucos minutos de tribuna.

Mas, Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, estejam certos de que essas instituições de ciência têm contribuído enormemente para o progresso do Brasil, para a cultura material e imaterial de nossa nação. E, vale enfatizar, para gerar uma das maiores riquezas que um país pode ter: gente altamente capacitada. Obrigado.

UPS/OSS: BIOLÓGICAS

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, hoje, gostaria de ressaltar outra parte igualmente essencial da vasta e complexa rede geradora de conhecimento científico formada pelas Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, o MCTI.

Neste pronunciamento, gostaria de destacar o papel mais do que evidente das ciências biológicas e áreas afins. Desses campos do conhecimento brotam vacinas, medicamentos, exames de diagnóstico, técnicas de tratamento – e, muitas vezes de cura – de doenças como câncer, Alzheimer, Parkinson, Chagas. A saúde de cada um de nós depende dos avanços científicos nessas áreas. A lista de benfeitorias das instituições da área de biológicas do MCTI é certamente longa. E inclui também – o que é igualmente crucial para a nação brasileira – o conhecimento e estudo de nossa fauna e flora, bem como da biodiversidade de nossos biomas, como florestas, cerrado, semiárido, entre outros. Desses estudos nascem substâncias isoladas de espécies autóctones e tecnologias inovadoras para o desenvolvimento sustentável do Brasil.

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Como em minha fala anterior, vou aqui fazer jus a essas instituições e citá-las nominalmente. Por favor, colegas parlamentares, atentem para esses nomes: Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Instituto Nacional da Mata Atlântica, Instituto Nacional do Semiárido, Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Museu Goeldi.

As contribuições para o Brasil de cada uma dessas instituições são, mais uma vez, muito longas para que possamos relacioná-las na breve permanência desta tribuna. O papel dessas Unidades e Organizações na área de biológicas ficou ainda mais evidente com a contribuição que têm dado ao país em tempos de epidemias e pandemias.

É nosso dever, como parlamentares, defender esse magnífico trabalho e, mais ainda, apoiá-lo com os meios e a constância que necessitam, para que essas instituições possam alargar a contribuição que têm dado ao Brasil. Ou seja, crescer com o país. Porque o trabalho de cada uma delas tem feito avançar o progresso de nossa nação. E tem dado ao Brasil algo que não tem preço: conhecimento e profissionais altamente treinados. Obrigado.

UPS/OSS: HUMANAS

Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, nesta oportunidade, volto a ressaltar a importância, para nosso país, das Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, o MCTI. Desta vez, detenho-me às instituições que atuam na grande área das humanidades.

Já ressaltamos aqui o fato de a ciência ser atividade essencialmente humana. Daí, a importância das humanidades, cujo foco de estudo são as relações sociais, políticas, culturais e econômicas dos seres humanos.

O objeto de estudo das humanidades é imensamente intricado. Afinal – e aqui lanço mão de uma analogia –, diferentemente das ciências ditas exatas, os ‘átomos’ sociais – as pessoas –têm vontade própria. Portanto, entender e analisar os fenômenos sociais estão entre as tarefas científicas mais complexas e, assim, trabalhosas.

Os resultados das pesquisas em humanidades são, assim como os das outras duas grandes áreas da ciência, essenciais para uma nação – principalmente, para um país como o Brasil, que busca lugar entre as nações desenvolvidas.

Informação, filosofia, sociologia, linguística, antropologia, museologia, arquivologia, comunicação, direito, história, história da ciência... Colegas desta Casa, eu afirmo, com toda a certeza, que o valor desses campos do conhecimento para um país não pode ser classificado com um adjetivo menos enfático do que indispensável. A razão é simples: isso nos define como povo, como nação.

Vou além: os resultados e produtos que brotam das pesquisas nessas áreas são ferramenta poderosa de geopolítica e diplomacia, pois dão ao Brasil identidade no cenário mundial.

Três Unidades de Pesquisa do MCTI atuam em humanidades. Mais uma vez, faço jus e cito-as nominalmente, pois é nosso dever parlamentar conhecê-las: Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Museu de Astronomia e Ciências Afins e, volto a repetir aqui, o Museu Goeldi.

Arrisco dizer que a maioria das senadoras e dos senadores desta Casa tem um título em humanidades. Portanto, para essas pessoas, o caminho até aqui foi pavimentado pelo cabedal de conhecimento adquirido nessa área. E é com a ajuda dele que estamos aqui, tentando tornar este país mais rico e justo.

Das instituições citadas hoje aqui, têm saído profissionais altamente gabaritados e conhecimento que, tão importante como fazer progredir o Brasil, nos ajuda a entender mais profundamente nossa cultura e nossa nação – e nós, como seres humanos. O valor disso é, simplesmente, inestimável. Obrigado.

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UPS/OSS: ENCERRAMENTO

Caras Senadoras, Caros Senadores, tive a chance de apresentar aqui, nesta tribuna, ao longo de uma série de pronunciamentos, o valor da ciência para qualquer nação que busca bem-estar e riqueza para seu povo. Também ressaltei a importância de um país fomentar as três grandes áreas – exatas, biológicas e humanas –, pois o conhecimento, hoje, é essencialmente interdisciplinar.

Enfatizei a grande contribuição que as Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, o MCTI, têm dado para o desenvolvimento sustentável, geopolítica, riqueza e imagem do Brasil, bem como para o bem-estar de nossa população.

A cultura material e imaterial que essas instituições têm gerado para nosso país é inestimável, certamente. E é igualmente importante o fato de elas formarem recursos humanos altamente qualificados para a academia, o governo e o setor privado deste país.

Repito: essas contribuições estão entre os mais altos valores que uma nação pode aspirar.

No entanto, nos preocupa profundamente pensar que, neste momento, elas enfrentam dificuldades sérias que as põem em situação crítica, por causa dos cortes orçamentários e da necessidade urgente de reposição de pessoal.

Não é possível, colegas parlamentares, construir, hoje, um projeto de nação sem que nele esteja incluída, de forma incisiva, a mais importante cultura dos últimos 100 anos, a ciência.

Nos últimos 80 anos, desde o fim da Segunda Guerra, não foi o desenvolvimento que permitiu às nações fazer ciência de fronteira; foi, sim, a ciência de fronteira que as tornou desenvolvidas. Os beneficiários? As populações de cada um desses países.

Então, devemos nos perguntar: queremos, para o povo brasileiro, bem-estar e riqueza, como as que tem a população das nações desenvolvidas? Se a resposta for sim – e acho que devemos optar aqui por um fervoroso sim –, o caminho rumo a esses propósitos é claro: fazer ciência de qualidade.

Justamente o que as Unidades de Pesquisa e as Organizações Sociais do MCTI vêm fazendo. Mas elas podem – e devem – ir além.

Portanto, é nosso dever cívico, como parlamentares, não só atentar para as extremas dificuldades que essas valorosas instituições enfrentam neste momento, mas também tentar, com nosso trabalho, aqui no Senado, saná-las com a maior brevidade possível. Obrigado mais uma vez.

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DISCURSO NO LANÇAMENTO DO SELO EM HOMENAGEM A CÉSAR LATTES

(Pronunciado em evento no CBPF em 2018)

Se voltarmos nosso olhar para a história da ciência no Brasil no século passado, veremos que este país teve, pelo menos, três pesquisadores cujo nome e fama extrapolaram os muros da academia e alcançaram o grande público: Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e César Lattes.

Hoje, vamos nos deter a falar um pouco sobre Lattes, físico experimental e um dos fundadores desta instituição, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.

Nascido em 11 de julho de 1924, em Curitiba, Paraná, Cesare Mansueto Giulio Lattes ‒ ou apenas César Lattes ‒ já foi chamado ‘nosso herói da era nuclear’. Tal classificação é justificada pelo fato de ele ter, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, participado, em Bristol, Inglaterra, em 1947, como membro da equipe do físico britânico Cecil Powell, da detecção de uma partícula subatômica denominada méson pi, responsável por manter o núcleo atômico coeso. Do ponto de vista científico, essa descoberta foi extremamente importante, pois solucionou um problema ao qual as então mentes mais brilhantes da física tanto teórica quanto experimental se dedicam havia dez anos.

A detecção do méson pi, a partir do estudo da radiação cósmica ‒ núcleos atômicos que vêm do espaço ‒ mostrou que o méson mi, detectado em 1937, não poderia ser o méson pi, partícula subatômica proposta pelo físico japonês Hideki Yukawa ainda em 1935 ‒ e esta sim aquela que agia como ‘cola’ das partículas nucleares.

No entanto, Lattes foi além. No ano seguinte, transferiu-se para Berkeley, Califórnia, para trabalhar com o colega norte-americano Eugene Gardner no então maior acelerador de partículas do mundo, o sincrocíclotron de 184 polegadas, na Universidade da Califórnia.

Aquela máquina havia custado cerca de 1,7 milhão de dólares ‒ fortuna para a época ‒ e havia sido construída com uma função básica: produzir mésons. No entanto, desde que começou a funcionar, em 1 de novembro de 1946, essas partículas subatômicas não haviam sido detectadas naquele equipamento ‒ o que causava certo constrangimento nos construtores daquele acelerador.

Lattes chegou a Berkeley e, em cerca de 10 dias, visualizou os mésons pi nas chapas fotográficas usadas como detector no sincrocíclotron ‒ Lattes havia se aperfeiçoado nessa técnica fotográfica nos cerca de dois anos que havia passado em Bristol.

Essa produção do méson pi em um acelerador ganhou a mídia da época ‒ era interesse do próprio laboratório de radiação, onde Lattes fez a descoberta juntamente com Gardner, que esse feito fosse propagandeado, pois o líder do laboratório, Ernest Lawrence, prêmio Nobel de 1939, tinha planos de, com base nesse feito de Lattes e Gardner, angariar fundos governamentais para construir uma máquina ainda maior ‒ acelerador que, por sinal, começou a funcionar cerca de cinco anos depois e produziu o primeiro antipróton da história, dando o Nobel aos autores da descoberta.

A mídia brasileira também repercutiu o caso, incensada por uma campanha pública que tinha como um de seus líderes o físico José Leite Lopes, cujo nascimento, por sinal, completa 100 anos agora ‒ convido a todos os presentes a apreciarem a exposição sobre Leite na parte externa deste prédio, ao final desta cerimônia.

Essa campanha foi marcada por uma aliança entre cientistas, militares, intelectuais, artistas, jornalistas, empresários, escritores etc. Ou seja, reunia a fina nata dos formadores de opinião naquele Rio de Janeiro do final da década de 1950. O objetivo desse movimento eram basicamente dois: 1. Formação de um centro brasileiro em pesquisas em física ‒ este aqui

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onde estamos hoje; 2. Regime de dedicação integral à pesquisa, um pleito que vinha desde a década anterior, fomentado nos corredores e nas salas das universidades. Os militares, por sua vez, tinham interesse em dominar o ciclo completo da energia nuclear – hoje, graças àqueles visionários, o Brasil tem esse conhecimento e tecnologia.

Lattes tornou-se então nosso herói da era nuclear. Seus feitos mostravam que o Brasil ‒ talvez, pela primeira vez na história da física neste país ‒ havia participado do que ocorria nos centros mais avançados de física. Talvez, o Brasil tenha sido o único país do dito Terceiro Mundo a perceber a mudança geopolítica que ocorria no mundo depois do fim daquele trágico conflito: conhecimento é poder. Poder político e econômico. Alguns historiadores denominam essa percepção como ‘metafísica da Guerra Fria’.

Lattes, ao voltar ao Brasil, impulsionou a física experimental neste país a ponto de, sem errarmos, podermos dizer que a história dessa área no Brasil divide-se entre antes e depois de Lattes. Para se ter uma ideia, o CBPF, fundado em 15 de janeiro de 1949 ‒ portanto, ano que vem completamos 70 anos ‒, tinha um laboratório a 5,5 mil metros de altitude, no monte Chacaltaya, para estudar a radiação cósmica. Levou para lá, no início da década de 1950, uma câmara de nuvens, por meio de uma logística complicada. Como base de comparação, a Europa, destruída pela guerra, unia-se para construir o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, CERN, onde está hoje o mais potente acelerador de partículas do mundo.

Vale a esta altura dizer o que havia de física experimental nesse país até a década de 1920: o Laboratório Didático da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, montado pelo astrônomo e físico Henrique Morize. Na década seguinte, a Universidade de São Paulo, por meio do ítalo-ucraniano Gleb Wataghin, havia lançado equipamentos eletrônicos com a ajuda de balões. Os resultados desses experimentos representam as primeiras inserções da física brasileira no cenário internacional. Mas, mesmo assim, era uma física, apesar de avançada, barata.

O laboratório de Chacaltaya, com base no dinheiro nele gasto e pessoal envolvido, pode ser classificado como um tipo de ‘nossa Big Science’. E Lattes foi seu grande mentor, como também esteve à frente de outro grande projeto experimental, também em Chacaltaya, chamada Colaboração Brasil-Japão, iniciada por volta de 1960 e cujos trabalhos se estenderam até a década de 1980.

Poucos sabem, mas recebeu sete indicações para o Nobel de Física ‒ o porquê de não ter ganhado é ainda tema para os historiadores da física.

Por seus feitos, Lattes foi amplamente premiado e reconhecido. Hoje, recebe mais esta homenagem, certamente justa, reconhecimento dos correios aos cientistas brasileiros.

Podemos arriscar dizer que Lattes se sentiria muito orgulhoso, pois tinha grande apreço por este país e pela cultura de nosso povo.

Obrigado.

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O CBPF, 70 ANOS: CONHECIMENTO COMO ALAVANCA DO PROGRESSO

Este ano, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), completa 70 anos de sua fundação, ocorrida no cenário do desenvolvimentismo e em um momento, logo após o fim da Segunda Guerra, em que ciência havia se tornado parte de um projeto de nação para o Brasil.

Os fundadores do CBPF ‒ importantes formadores de opinião à época ‒ eram cientistas renomados, como Carlos Chagas Filho e César Lattes; militares da mais alta patente, como o Almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva e o General Edmundo de Macedo Soares; grandes empresários, como Euvaldo Lodi e César Guinle; diplomatas, como Osvaldo Aranha e San Tiago Dantas; intelectuais respeitados, como Augusto Frederico Schmidt e Roberto Marinho de Azevedo. Eles atuaram como modernizadores do país, ao entenderem a essência de uma nova geopolítica que se estabelecia: conhecimento como sinônimo de poder (tanto econômico quanto político).

O CBPF foi um salto qualitativo não só para a física, mas também para a ciência no Brasil. Afinal, tratava-se de uma instituição envolvida exclusivamente em pesquisa, em regime de dedicação integral a essa atividade intelectual. Nesse sentido, foi um marco na história deste país.

Hoje, é necessário ao país dar novo salto qualitativo na ciência – e temos capital humano qualificado para tal ‒, semelhante àquele que a criação do CBPF representou. O objetivo seria expandir ‒ por meio das unidades de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) ‒ a infraestrutura nacional voltada para a pesquisa em ciência e tecnologia, a qual é ainda inadequada para as necessidades da ciência que se faz atualmente aqui e para as demandas induzidas pela inserção internacional do país. Essa iniciativa teria como consequência maior expansão econômica do Brasil, impulsionada pelo conhecimento avançado em várias áreas, e a inclusão expressiva da população brasileira na cultura científica.

Em 2022, completaremos 200 anos de nossa independência. Essa data seria excelente oportunidade para, desde já, colocar em prática o que talvez seja a lição mais importante que aqueles modernizadores nos legaram: um Brasil moderno tem que necessariamente ter ciência, tecnologia e inovação robustas como parte de seu projeto para o futuro.

‘IndependenCiência’. Deixamos esse neologismo como sugestão para nomear o conjunto de atividades ‒ capitaneadas pelo MCTIC ‒ que levariam ao fortalecimento da infraestrutura de pesquisa no país. E, num gesto extra de ousadia, sugerimos como patrono dessa efeméride um grande cientista brasileiro, José Bonifácio de Andrade e Silva (1763-1838), intelectual, estadista e poeta que, não por acaso, é conhecido como o Patriarca da Independência.

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DESAFIOS EM C&T: IPS E O DESENVOLVIMENTO HUMANO E SUSTENTÁVEL

(Editorial para o portal do CBPF, 2018)

Quando se comparam as estruturas dedicadas à ciência e tecnologia em grande parte dos países ditos avançados com aquelas do Brasil, fica flagrante uma diferença muito acentuada em todas aquelas nações, há uma infraestrutura de institutos de pesquisas científica e tecnológica bastante significativa, com número de cientistas, engenheiros e técnicos comparável ao das universidades.

No Brasil, há grande desequilíbrio na relação que acabamos de mencionar: o número de pesquisadores nas universidades é, pelo menos, dez vezes maior do que aquele nos institutos de pesquisas. Essa discrepância ‒ praticamente inexistente nos países desenvolvidos ‒ revela-se aqui não só extraordinária, mas também preocupante, pois não se pode dizer que há um número excessivo de pesquisadores em nossas universidades.

Tipicamente, os institutos de pesquisas têm missões bem definidas, associadas a grandes desafios científicos e tecnológicos dos países. É um trabalho complementar ao realizado pelas universidades.

Também está na lista de missões dos institutos: i) o desenvolvimento de novas tecnologias necessárias para resolver desafios científicos ‒ as quais, em geral, não estão comercialmente disponíveis; ii) dar acesso a pesquisadores externos ‒ por meio dos chamados laboratórios multiusuários ‒ a equipamentos cujo porte está além das possibilidades das universidades e cuja operação eficiente exige pessoal especializado e bem treinado.

Enfatize-se que a operação de equipamentos científicos de grande porte e complexidade é uma excelente oportunidade de treinamento para jovens pesquisadores e engenheiros, ao serem expostos ao rigor da pesquisa antes de entrarem no mercado de trabalho corporativo. Esse ambiente é também fecundo ao surgimento de ideias que podem se tornar inovações para a sociedade e o mundo empresarial.

Institutos de pesquisas, assim como as universidades, são instâncias indutoras de inovações, como mostra a experiência de países desenvolvidos. Mas não são ‒ é importante ressaltar ‒ o ambiente em que essas inovações irão se realizar ‒ exceto quando necessárias para o próprio avanço científico.

Neste momento, os institutos de pesquisas brasileiros passam por dificuldades significativas, tanto pela falta de recursos quanto (e mais importante) pelo envelhecimento e encolhimento de seus quadros. Tomo a liberdade de me fixar aqui ao exemplo do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ). Esse instituto, mesmo submetido a tais limitações, bateu, ano passado e este ano, seu recorde de produção científica. E, antes de que se chegue a uma conclusão (errônea) de que menos é mais, a pergunta procedente aqui não é “O que o CBPF fez este ano?”, mas, sim, “O que o CBPF poderia ter feito com recursos e pessoal adequados?”.

A instalação de um novo governo sempre traz a possibilidade de novas políticas públicas. Nesse sentido, ousamos sugerir aqui a formação de um grupo de trabalho para delinear os desafios científicos e tecnológicos que os institutos de pesquisas deveriam abordar. A função desse grupo seria traçar um roteiro que permita ao país adequar, de modo satisfatório, sua infraestrutura científica e tecnológica até 2022, quando o Brasil irá comemorar o bicentenário de sua Independência.

Claramente, um processo dessa natureza se alimenta das dezenas de estudos já reali -

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zados pela comunidade científica e tecnológica brasileira. No entanto, inclui um elemento novo na questão do desenvolvimento científico e tecnológico deste país: a responsabilidade estratégica do Estado em relação a temas vitais para a sociedade e para os quais a infraestrutura e expertise dos institutos de pesquisas são cruciais.

DE MOTIVOS:

OS INSTITUTOS DE PESQUISAS DO BRASIL

(Versão preliminar, 2017)

Há exatos 70 anos, o físico brasileiro César Lattes (1924-2005) teve participação decisiva em uma das descobertas científicas mais importantes do século passado: a detecção do méson pi (ou píon), partícula que mantém prótons e nêutrons unidos no núcleo dos átomos. Por esse feito, Lattes foi indicado sete vezes ao prêmio Nobel de Física. Inspirados pelo feito de Lattes, um grupo heterogêneo de cientistas, políticos e empresários iniciou um processo de estruturação da até então incipiente infraestrutura de Ciência e Tecnologia do País. Deste movimento nasceu o CBPF, o IMPA, o INPA, o CNPq, a Capes, o IBICT. Foram também mudadas características de institutos já existentes, como o do já então centenário Observatório Nacional, Instituto Nacional de Tecnologia e o Museu Paraense Emílio Goeldi. Mais tarde, foram criados o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Laboratório Nacional de Computação Científica, o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), entre outros que compõem atualmente as chamadas unidades de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), listados abaixo com seu ano de fundação.

Hoje, o Brasil conta com um número significativo de institutos dedicados à pesquisa científica e a seus desdobramentos tecnológicos. São instituições estratégicas para atacar os desafios enfrentados pelo Estado brasileiro, dando a essas tarefas uma abordagem científica e tecnológica. Praticamente todas são conhecidas pela excelência internacional de suas pesquisas, por seus laboratórios multiusuários e por servirem de infraestrutura de apoio aos grupos de pesquisa do Brasil e exterior, bem como interagirem ativamente com empresas nacionais. Seus pesquisadores e tecnologistas participam de grandes colaborações científicas internacionais, nas quais muitos projetos têm participação da indústria brasileira, estreitando, assim, a relação desta com a ciência e a tecnologia.

Os institutos do MCTIC têm, além de função estratégica na relação entre ciência básica e setor produtivo, outra característica importante: seus cientistas mantêm ampla rede de contatos internacionais, com acesso privilegiado a avanços científicos e tecnológicos, antes de estes virem a público. Além disso, são polos formadores de cientistas, engenheiros e técnicos altamente capacitados e com experiência internacional.

Porém, ao analisarmos a infraestrutura dos institutos de pesquisas do Brasil – e ao comparará-la com a de países cujo desenvolvimento é equivalente ao nosso – fica flagrante sua fragilidade, pois o número de cientistas e tecnologistas em nossos quadros é significativamente menor, com a agravante de vagas não repostas por aposentadorias. Some-se a esse cenário a redução sistemática nos orçamentos desses institutos ao longo dos últimos anos, estrangulando-os a ponto de ameaçar sua existência.

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Porém, momentos de crise podem também ser vistos como oportunidades para a estruturação do futuro. Claramente, a expansão do sistema de institutos de pesquisas associadas ao Estado Brasileiro é o alicerce que permite que o investimento em universidades e em Ciência e Tecnologia tenha o efeito multiplicador na produção e economia do País. O amadurecimento da comunidade científica e tecnológica permite antever o potencial para um salto qualitativo no impacto social de sua ação. A expansão dos institutos de pesquisas deve ser programada de forma paulatina e com a aderência da missão dos institutos aos desafios científicos e tecnológicos do Estado brasileiro.

Medidas simples, que ajudem a desburocratizar a ação dos institutos e que os instrumente adequadamente para a abordagem adequada dos enormes desafios, podem ser tomadas e terão enorme impacto na ação dos institutos.

• Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF, 1949)

• Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI, 1982)

• Centro de Tecnologia Mineral (Cetem, 1978)

• Centro de Tecnologias Estratégicas do Nordeste (Cetene, 2005)

• Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden, 2011)

• Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (Cnpem, 1997)

• Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT, 1954)

• Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (Mamirauá, 2004)

• Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA, 1949)

• Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA, 1952)

• Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA, 1952)

• Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE, 1971)

• Instituto Nacional de Tecnologia (INT, 1921)

• Instituto Nacional do Semi-árido (INSA, 2004)

• Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA, 1989)

• Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC, 1980)

• Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST, 1985)

• Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG, 1866)

• Observatório Nacional (ON, 1827)

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JAMES CRONIN (1923-2016): LEGADO ATEMPORAL

(Texto publicado no portal do CBPF, 2016)

Do norte-americano James Cronin, bastaria dizer que ele é Nobel de Física de 1980. É

o tipo de informação que resume um currículo – e uma vida. Mas, obviamente, ele, em vários aspectos, foi bem mais do que alguém que ganhou um prêmio importante. Para a física brasileira, por exemplo, teve importância ímpar.

O Nobel de Cronin veio por conta de experimento que mostrou, em termos simples, que a natureza privilegia a matéria em detrimento da antimatéria, o que, de certa forma, explica o universo visível – e a nossa existência, indiretamente.

Aqueles resultados – assimetria matéria/antimatéria, ou, mais tecnicamente, violação de CP – de Cronin e de seu colega norte-americano Val Fitch, com quem dividiu o prestigioso prêmio, são ainda hoje tema de intensa pesquisa e esbarram em fronteiras filosóficas. Afinal, por que não vemos uma abundância de antimatéria no universo, já que, segundo a física, elas foram criadas na mesma proporção há cerca de 14 bilhões de anos, quando um processo deu origem ao universo?

No final da década de 1980, Cronin – doutorado pela Universidade de Chicago (EUA), em 1955 – mostrou-se um pouco desiludido com os rumos que a física de altas energias havia tomado naquele período. Decidiu, então, mudar os rumos de seus interesses. E, a partir de então, voltou seu olhar para os raios cósmicos, protagonistas de um dos grandes mistérios que assolavam a física deste o início do século passado: qual a origem e a natureza dessas partículas ultraenergéticas que bombardeiam a Terra a todo instante e que, ao se chocarem contra núcleos atômicos da atmosfera, criam ‘chuveiradas’ de fragmentos de matéria que viajam velozmente em direção ao solo.

Naquele período, Cronin convenceu, entre outros, o físico britânico Alan Watson – que seria seu amigo pelos próximos 30 anos – a participar de um projeto de proporções gigantescas que seria inaugurado oficialmente em 2005: o Observatório Pierre Auger, nos pampas argentinos, aos pés das cordilheiras dos Andes, onde, em uma área de 3 mil km2, estão distribuídos detectores para capturar e estudar essa radiação.

CERN SEM ACELERADORES

O Brasil foi participante de primeira hora no Observatório Auger, ainda em meados da década de 1990, durante o período de planejamento inicial do projeto. E o entusiasmo e energia de Cronin foram fundamentais para amalgamar essa colaboração.

O Auger, de certa forma, fez com que a América do Sul retomasse a tradição de usar sua natureza (desertos, montanhas, planícies, cordilheiras etc.) em prol do estudo dos fenômenos naturais. Na física, de certa forma, essa tendência foi inaugurada com o então jovem brasileiro César Lattes (1924-2005), que, em meados de 1947, expôs emulsões nucleares (chapas fotográficas especiais), no alto do monte Chacaltaya (Bolívia), para capturar, nesses detectores, as partículas então recém-descobertas chamadas píons, responsáveis pela coesão do núcleo atômico – Lattes teve papel importante naquela descoberta. No início da década de 1960, também sob a tutela de Lattes, Chacaltaya foi também palco da Colaboração Brasil-Japão, também voltada para o estudo da radiação cósmica.

Sem dúvida, Cronin e o Observatório Auger impulsionaram a ideia recente de se fazer um tipo de ‘CERN sem acelerador’ na América do Sul, aproveitando a geografia da região para a implementação de projetos científicos de grande envergadura, como já é o caso do Auger, na Argentina, e de telescópios, no Chile. Há também planos para que se retome Chacaltaya como

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observatório para o estudo da radiação cósmica e raios gama, bem como para a construção de um laboratório subterrâneo nas cordilheiras dos Andes, no qual os experimentos estariam protegidos da radiação indesejável (múons, por exemplo). O Chile segue sendo o sítio para a construção da colaboração CTA (sigla, em inglês, para Rede de Telescópios Cherenkov), para a busca de novas fontes cósmicas de radiação gama.

Vale repetir: Cronin foi bem mais do que um prêmio Nobel. Para a física do Brasil e da América do Sul, foi um amigo, cujo entusiasmo e motivação deixam um legado atemporal que, certamente, a partir de agora, deve ser continuado pelas novas gerações.

Abaixo, a homenagem do CBPF a James Cronin.

Caros Colegas: Recebemos a triste notícia do falecimento nessa quinta-feira (25/08) do Professor Jim Cronin, um dos fundadores – e a alma – do Observatório Pierre Auger, na Argentina.

James Watson Cronin compartilhou o Nobel de Física em 1980 com outro norte-americano, Val Fitch (1923-2016). O prêmio foi concedido a ambos por uma das mais importantes descobertas na física, a chamada ‘violação de CP’, fenômeno essencialmente associado à existência da flecha do tempo.

Jim – como era conhecido pelos colegas – foi professor na Universidade de Chicago (EUA) e, mês que vem, completaria 85 anos.

Aqueles que o conheceram certamente passavam a entender, com mais profundidade, o sentido da expressão ‘uma pessoa inspiradora’! Quando dava palestras, tinha sempre o cacoete de esfregar um dedo no outro. Os amigos sabiam que isso era um sinal de que deveriam prestar muita atenção no que ele diria a seguir. Quando na audiência, era comum, da parte dele, depois da apresentação de resultados complexos, emitir a seguinte observação: “Mas não seria mais simples assim?”.

E ele sempre tinha razão.

Em Malargue, na Argentina, onde está instalado o Observatório Pierre Auger – voltado para o estudo da radiação cósmica –, Jim era considerado um ‘local’, um amigo para os habitantes daquela cidade aos pés da cordilheira dos Andes. Lá, ele estabeleceu uma escola – que também tinha aulas em inglês – com o apoio de fundações norte-americanas. Em homenagem mais do que justa, a escola leva seu nome.

Apesar do diabetes, era grande fã de um bom uísque, que sempre carregava na mala – “Just in case!”, justificava ele. Era um homem de grande vigor físico e porte atlético. Lembro-me de uma passagem que ocorreu há muito tempo – quando eu ainda era capaz de correr grandes distâncias. Fomos, juntamente com colegas do Auger, visitar uma montanha em Utah (EUA), onde pretendíamos construir o sítio norte do observatório. Ao subirmos um terreno íngreme, de uns 200 m, em areia, eu e colegas mais jovens, quase ao final da jornada, já exaustos, assistimos a Jim nos ultrapassar, como se estivesse andando no plano.

Foi graças à sua visão e energia – e com a inestimável ajuda do físico britânico Alan Watson, amigo de longa data de Cronin – que conseguimos, comandados pela batuta de ambos, construir o Observatório Pierre Auger, um feito que orgulha a todos os seus colaboradores.

Jim deixa esposa, duas filhas e um filho. E um profundo sentimento de orfandade em toda a comunidade Auger. Seu legado já é, sem dúvida, atemporal.

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OS 100 ANOS DO FÍSICO COSTA RIBEIRO

Descobridor do efeito termodielétrico, que depois levou o seu nome, Costa Ribeiro ajudou a projetar internacionalmente a física feita no Brasil, sempre preocupado com uma ciência geradora de riquezas e bem-estar para o povo brasileiro.

Celebramos, este ano, o centenário de um pioneiro da física e da ciência no Brasil: o engenheiro e físico Joaquim da Costa Ribeiro (1906-1960), descobridor do efeito termodielétrico, mais tarde batizado com seu nome, e um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).

Não se trata de reverenciar Costa Ribeiro com um sentimento saudosista, mas, sim, como oportunidade de olhar o futuro com a visão de uma geração de pioneiros do passado, homens que, como Costa Ribeiro, tinham para o Brasil um projeto de nação intimamente ligado à estruturação e ao fortalecimento da pesquisa científica no país.

Um projeto em que a ciência seria geradora de riqueza e bem-estar para o povo brasileiro.

Acreditamos ser este o momento propício para tal reflexão.

Costa Ribeiro faz parte de uma geração de cientistas brasileiros cujos trabalhos foram responsáveis por dar início ao reconhecimento internacional da física feita então no Brasil, poucos anos depois da institucionalização da pesquisa nessa área, em meados da década de 1930, na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade do Distrito Federal – esta última pouco depois fechada por motivos políticos por Getúlio Vargas.

A geração a que pertenceu Costa Ribeiro soube superar inúmeras dificuldades e fazer ciência de elevado nível em um ambiente muitas vezes indiferente ou mesmo hostil à prática científica.

Muitos daqueles pioneiros – entre eles, Costa Ribeiro – visionariamente defenderam uma ciência aplicada e voltada para a resolução de problemas do país, inserida em um contexto que pudesse produzir dividendos sociais e econômicos para a sociedade brasileira.

Exemplo disso em Costa Ribeiro foram suas primeiras pesquisas voltadas à radioatividade de minerais brasileiros, bem como sua luta em prol das aplicações pacíficas da energia nuclear na década de 1950, quando passou a desempenhar um papel relevante em organismos nacionais e internacionais ligados a essa área.

O reconhecimento de seu profissionalismo e de sua capacidade intelectual como homem e cientista veio com o convite para ocupar cargo de destaque na então recém-criada Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

Ainda em 1943, Costa Ribeiro, então professor livre-docente da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, no Rio, percebeu, na cera de carnaúba (material mau condutor de eletricidade), um efeito relacionado à retenção permanente de cargas elétricas, quando esse material era submetido à mudança de estado físico em que uma das fases era sólida.

No ano seguinte, concluiu que esse efeito estava presente em várias outras substâncias. Batizou-o efeito termodielétrico. A história lhe fez jus, sendo o fenômeno hoje conhecido como Efeito Costa Ribeiro.

Essa descoberta ganhou ampla repercussão internacional. Para César Lattes (1924-2005), outro grande nome da ciência brasileira, ela foi o marco inicial do reconhecimento internacional da pesquisa física realizada no Brasil.

Costa Ribeiro, homem de grande formação humanista, poeta e pai exemplar, levou o nome da física e da ciência brasileiras a vários países, através dos vários convites que recebeu para falar sobre suas pesquisas. Tornou-se membro de várias academias científicas internacionais de prestígio.

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No Brasil – durante sua curta, porém intensa vida –, foi ampla e justamente homenageado. Sua vida e obra, fortemente orientadas pela dedicação a seu país, permanecem como exemplos a serem seguidos, principalmente neste início de século, quando a física brasileira tenta se inserir, de forma mais enfática e marcante, na produção de riqueza para o país, através de sua aproximação com o sistema produtivo.

FÍSICA DE ASTROPARTÍCULAS -

PROYECTOS ARGENTINA-BRASIL

(Novembro de 2017)

Argentina y Brasil forman parte de grandes proyectos internacionales de Física de Astropartículas. Estos experimentos son posibles por la colaboración de científicos y técnicos de varios países. En particular, la alianza entre los científicos y técnicos de Argentina y Brasil maximiza la viabilidad y el alcance de objetivos de los proyectos. Se hace notar que la ciencia internacional de vanguardia depende fundamentalmente de los avances en sus tecnologías habilitantes y que la capacidad de diseñar, construir, instalar y mantener grandes observatorios depende también del nivel de gerenciamiento. Este vínculo entre la ciencia básica y sus tecnologías habilitantes se lleva a cabo realizando diseños conceptuales y de detalle, la construcción de prototipos y su posterior validación. En cuanto al gerenciamiento, en el Observatorio Auger hemos servido como Head del Collaboration Board (órgano de máxima decisión del Proyecto), Editor Científico, Project Manager y Observatory Spokesperon.

Se describirán aquí brevemente 4 experimentos internacionales: uno en operación, otro en su fase de prototipos y dos proyectos en la mesa de discusión.

OBSERVATORIO PIERRE AUGER

El Observatorio Auger es la mayor instalación científica del mundo ocupando un área de 3000 km2 (poco más que la mitad del área del Distrito Federal de Brasil). Está localizada en el departamento de Malargüe a 300 km al sur de la ciudad de Mendoza, Argentina. Auger comenzó a tomar datos en 2004 y fue formalmente inaugurado el 13 de Noviembre de 2008. Es una colaboración internacional de 16 países, 500 científicos y 90 instituciones.

Debido al impacto del Observatorio Auger y de su ciencia, las Agencias Internacionales decidieron el 15 de noviembre de 2015, continuarlo por 10 años más y mejorar sus sistemas de detección construyendo dos nuevos detectores: Amiga (Auger Muons and Infill for the Ground Array) y SSD (Surface Scintillator Detector). Asimismo, en el predio de Amiga se montará la celda unitaria de Marta (Muon Array with RPC for Tagging Airshowers).

Los objetivos del Observatorio Auger son establecer una nueva rama de la ciencia (la astronomía de partículas cargadas) y estudiar las interacciones atómicas a las más altas energías. Se hace notar que hace pocos días, Auger publicó un importante descubrimiento

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en la revista Science (The Pierre Auger Collaboration, Science 357, 1266-1270 (2017) 22 de septiembre de 2017) en la búsqueda de las fuentes de las partículas cargadas.

El costo del experimento (excluyendo salarios) fue de USD 50 millones, siendo la inversión argentino-brasilera de cerca USD 15 millones la cual fuera, muy fundamentalmente, realizada en equipamiento construido en ambos países (São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Buenos Aires y Mendoza). El costo de la operación anual de mantenimiento y operación del Observatorio es de aproximadamente USD 2 millones. Los aportes económicos de Argentina y Brasil son realizados a través del MinCyT, el Gob. de Mendoza, la CNEA, el Conicet, Finep, Fapesp, CNPq y Renafae.

Recomendación: Se sugiere a los Ministerios expresar gran satisfacción por el éxito de la colaboración, que sirve de ejemplo para las colaboraciones internacionales y que se continuará apoyando fuertemente el programa experimental hasta 2025.

OBSERVATORIO QUBIC (Q & U BOLOMETRIC INTERFEROMETER FOR COSMOLOGY)

QUBIC es una colaboración internacional con aproximadamente 100 científicos y técnicos. Su primer prototipo de detección será instalado en la provincia de Salta, Argentina en 2018. Fue originalmente planeado para su instalación en la Antártida, pero debido al respeto cosechado por nuestros científicos y técnicos en la construcción y operación del Observatorio Auger, su instalación se realizará en Latinoamérica cerca de San Antonio de los Cobres (Salta), en Alto Chorrillos, a 4.900 metros de altitud pues allí se está instalando el Observatorio argentino-brasilero LLAMA – Large Latin American Millimeter Array (http://www.iar.unlp. edu.ar/llama-web/prensa.htm).

QUBIC detectará radiación de fondo cósmico de microondas que guardan vestigios de ondas gravitacionales primordiales del universo temprano (10-35 segundos, época de la inflación universal) y podrá, además, determinar a futuro la masa de los neutrinos. Cada uno de estos estudios podría contribuir a un Premio Nobel de Física y ayudarían a entender la creación del Universo.

Se busca colaborar en microfabricación de sensores de radiación de microondas de fondo trabajando en criogenia en la zona de transición de superconductor-conductor.

Luego de instalado el primer módulo en 2018 (3,7 M€), se construirán 9 módulos más (2,1 M€ cada uno) que permitirán una sensibilidad y precisión sin precedentes. Estos costos no incluyen trabajos de infraestructura en el sitio.

Recomendación: Se sugiere a los ministerios apoyar al proyecto y en particular, en esta fase de desarrollo, en el diseño y construcción de prototipos.

ANDES (AGUA NEGRA DEEP EXPERIMENTAL SITE)

El Proyecto Andes (http://andeslab.org/) es un emprendimiento que tiene por objetivo aprovechar la construcción del Túnel Água Negra (TAN), que unirá la provincia de San Juan de Argentina y la IV Región de Chile, para radicar y desarrollar allí un Laboratorio Subterráneo de primer nivel, único en el Hemisferio Sur, destinado a albergar facilidades experimentales para realizar investigación en Física, Geología, Biología, Medio Ambiente, Microelectrónica e incluso Historia y Paleontología. Se realizarán mediciones con poco ruido de fondo (profundidad 1750 m de roca que bloquea a los rayos cósmicos). El estudio conceptual de Andes ya ha sido realizado.

La colaboración argentina-brasilera se involucrará en la construcción de sistemas de detección para materia oscura y neutrinos: TPC (Time Projection Chambers) basándonos en los años de experiencia ganados en desarrollos tecnológicos de sistemas de detección del Observatorio Auger.

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El TAN es de responsabilidad del Ebitan (Ente Binacional del Túnel Agua Negra), quien, con fecha 4/7/17, ha decidido incorporar la construcción del ‘Laboratorio Andes’ dentro del Proyecto de construcción del TAN. El BID (Banco Interamericano de Desarrollo) ha otorgado un crédito para la construcción del TAN habiendo desembolsado este año USD 250 millones.

Recomendación: Se sugiere a los ministerios apoyar al proyecto y ayudar a construir el marco diplomático-legal para la creación de una entidad internacional para la construcción y operación del Observatorio.

EXPERIMENTOS DE RAYOS GAMA

Se desea construir en los altiplanos de los Andes un Observatorio de rayos gama, una clase especial de rayos cósmicos, capaces de operar día y noche. Su gran virtud sería la de observar transitorios cósmicos, es decir, eventos de corta duración capaces de emisión de rayos gamma de gran energía. Los avances recientes en la observación de ondas gravitacionales hacen que un observatorio de esta naturaleza sea una prioridad en la agenda científica mundial, colocando a Argentina y Brasil en posición privilegiada. Este proyecto involucra a científicos de varios países y, en particular, de Portugal, Estados Unidos, Italia, República Checa, Suecia y Eslovenia (otros países se podrán agregar al proyecto, cuando esté más desarrollado).

Se hace notar que un posible sistema de detección pueden ser detectores RPC, como los de Marta que estamos instalando en el predio de Amiga/Auger. En el presente, los recursos utilizados por este proyecto son parte de lo que ya existe en los centros de investigación y universidades. Se buscan también instalar los telescopios de gran tamaño (LST, Large Size Telecope) de CTA (Cherenkov Telescope Array) en Salta en colaboración entre Argentina, Brasil, España y Japón. La ventaja de los telescopios es que pueden focalizarse con alta resolución una zona determinada del cielo.

Se realizará un congreso internacional en la Universidad Nacional de San Martín, Buenos Aires, del 13 al 15 de diciembre para avanzar en el diseño conceptual de este Observatorio.

Recomendación: Se sugiere a los ministerios la construcción de una plataforma común para evaluar y estimular los esfuerzos en conjunto para la construcción de un Observatorio de Rayos Gama.

Recomendación Global: Los ministerios se comprometen a activar el Instituto Regional Latinoamericano para las Astropartículas.

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ABC PUBLICA OBITUÁRIO DE ROBERTO SALMERON*

A diretoria da Academia Brasileira de Ciências (ABC) publica obituário – em colaboração com Ronald Shellard, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro (RJ) – do físico experimental brasileiro Roberto Salmeron (1922-2020), falecido ontem, na França, onde morava. Salmeron, membro titular da ABC, teve papel de destaque na construção da comunidade de pesquisa em altas energias do Brasil.

A seguir, reproduzimos a íntegra do texto.

A diretoria da Academia Brasileira de Ciências lamenta informar que faleceu, no dia 17 de junho de 2020, seu membro titular Roberto Aureliano Salmeron, em Paris, França.

Roberto Salmeron nasceu em 16 de junho de 1922, em São Paulo, tendo se formado em engenharia elétrica, pela Universidade de São Paulo (USP). Ele foi um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em 1949. Trabalhou na área de raios cósmicos, no início de sua carreira, sob a influência de Gleb Wataghin e Giuseppe Occhialini. Fez parte de uma geração que contou com outros físicos ilustres, como Marcelo Damy, Oscar Sala, Cesar Lattes, entre outros. Foi para o Reino Unido, para a Universidade de Manchester, onde defendeu sua tese de doutorado em 1955, sob a orientação de Patrick Blackett, já ganhador do prêmio Nobel de Física.

Foi trabalhar no então Conselho Europeu para a Pesquisa Nuclear (CERN, na sigla em inglês), no início da história daquela instituição, onde ficou até 1963, quando aceitou participar da organização do Departamento de Física da nova Universidade de Brasília (UnB), num projeto inovador.

Este projeto foi frustrado pelo golpe militar de 1964, e, em 1965, ele demitiu-se da UnB, em solidariedade a outras duas centenas de colegas das diferentes áreas acadêmicas. Voltou para o CERN em 1966 e, logo em seguida, assumiu uma posição na Escola Politécnica, em Paris. Liderou vários experimentos no CERN, na área da física de partículas. Lá orientou várias teses de doutorado, dentre as quais a de José Mariano Gago, que foi mais tarde ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior em Portugal, por vários anos. No final dos anos 80 foi o incentivador e promotor da construção de um grupo experimental brasileiro, junto ao experimento Delphi, no CERN, que hoje se expandiu para mais de duas centenas de cientistas brasileiros trabalhando naquele laboratório, em vários experimentos.

Ao longo dos anos Salmeron manteve estreito contato com a comunidade de física brasileira, visitando o país com frequência e, em particular, o CBPF, e teve papel decisivo na formulação e construção do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, atuando como consultor do então Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT).

Foi agraciado com a Grã Cruz da Ordem do Mérito Nacional do Mérito Científico pelo governo brasileiro, em 1998, e recebeu o título de diretor de pesquisas emérito do Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS, na sigla em francês).

A diretoria da ABC expressa suas condolências à família do Prof. Salmeron, aos seus estudantes e colaboradores, e se junta ao pesar de toda a comunidade científica brasileira pela perda de um colega que teve papel relevante na estruturação da comunidade atual de física no Brasil.

* Ascom ABC, com colaboração do acadêmico Ronald Shellard

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PREPARATIVOS PARA A INTERNATIONAL COSMIC RAY CONFERENCE

Rio de Janeiro, fevereiro de 2012.

Prezados Senhores:

Permitam-me, antes de pontuar o objetivo desta consulta, fazer breve histórico sobre o tema ao qual esta iniciativa está relacionada.

O Brasil foi encarregado de promover, no ano que vem, a XXXII International Cosmic Ray Conference (ICRC), sob a égide da Iupap (International Union of Pure and Applied Physics). Essa série de conferências, iniciada em 1947, acontece em anos ímpares, com tão somente duas falhas na regularidade desde então: uma em 1951, quando não houve a conferência, e outra, em 1990, por conta das dificuldades enfrentadas pelos organizadores australianos. Portanto, nestes 64 anos, a ocorrência de apenas duas falhas indica a importância que a comunidade e os governos depositam na organização do evento.

Pela primeira vez, uma edição desse encontro ocorrerá num país sul-americano – na América Latina, somente o México o sediou, o que se deu por duas vezes (Guanajuato, 1955; Mérida, 2007).

Para um bom desempenho desse acontecimento, é necessário que haja apoio decisivo não só dos órgãos governamentais de fomento à pesquisa, mas também de instituições privadas, como tem ocorrido, por exemplo, nos eventos relacionados à Rio+20, à Copa das Confederações de Futebol, à Copa do Mundo de Futebol e aos Jogos Olímpicos, bem como ao Congresso Eucarístico da Juventude Católica. Também no campo da ciência o Brasil está no foco global.

A tradição brasileira nas pesquisas sobre raios cósmicos iniciou-se quando da criação da Universidade de São Paulo em 1934, quando para lá vieram eminentes cientistas europeus, como o físico ítalo-russo Gleb Wataghin, o italiano Giuseppe Occhialini e, mais tarde, o austríaco Guido Beck.

Os mestres europeus da física trabalharam na fronteira do conhecimento da época na área de raios cósmicos e, ainda em 1938, foi publicado por Wataghin artigo teórico preconizando importantes resultados para a área, a chamada produção múltipla de mésons, que continua sendo objeto de pesquisas em prestigiosos laboratórios internacionais, como o CERN (Centro Europeu para a Pesquisa Nuclear), na fronteira entre França e Suíça.

Discípulos brasileiros daqueles primeiros mestres europeus – notadamente, Marcello Damy de Souza Santos, Mário Schenberg, Oscar Sala e Cesar Lattes – deram continuidade às pesquisas em raios cósmicos. Em particular, Lattes ganhou fama internacional, a partir do papel decisivo na observação da partícula denominada méson pi, que tem papel central na coesão do núcleo atômico e foi importante não só para o entendimento da estrutura da matéria, mas também para o do universo.

O descobrimento do méson pi e de outras partículas na década de 1940 foi um dos fatores que motivaram a comunidade científica internacional a criar, a partir de um primeiro evento, em Cracóvia (Polônia), em 1847, essa série de conferências, as ICRC.

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OBJETIVO DESTA CONSULTA

Por meio desta, vimos consultar sua Instituição, bem como instituições coligadas, sobre o interesse em participação na organização e no apoio financeiro a este evento internacional.

Em caso de manifestação favorável a esta consulta, solicitaríamos, então, reunião formal para detalhar as formas de apoio.

No aguardo da manifestação dos senhores, subscrevemos.

Atenciosamente,

Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (Rio de Janeiro, RJ) Chairman da XXXII ICRC

PROJETO MURAL GRAFITE DA CIÊNCIA DO CBPF

Prezado Sr./Prezada Sra.:

Estamos entrando em contato para apresentar-lhe o Projeto do Painel da Ciência, que está sendo proposto e organizado pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Esse é um projeto cultural de divulgação da ciência para a sociedade carioca e de revitalização do espaço público no entorno da rua Lauro Müller, em Botafogo.

Entendemos que o patrimônio cultural é constituído por saberes, lugares, monumentos, objetos, modos de fazer etc. O conhecimento científico é um dos maiores patrimônios da sociedade moderna. O CBPF tem, entre seus pilares de atuação, a divulgação e disseminação científica, com participação em diversos eventos nacionais e regionais que levam o saber científico ao grande público – incluindo professores e estudantes.

Dentro desse conceito, pretendemos utilizar o muro externo do CBPF, junto à rua Lauro Müller, como mais uma de nossas iniciativas de divulgação científica. Para isso, planejamos fazer, naquele muro, uma pintura artística vinculada às ciências físicas, área de atuação de nosso centro.

Estamos convidando-o a participar dessa iniciativa, na esperança de que sua instituição possa apoiar financeiramente esse projeto único de popularização do conhecimento.

Certos de contar com sua colaboração, estou à sua disposição para apresentar em detalhe o projeto e discutirmos seu apoio.

Atenciosamente,

CBPF

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FORTALECIMENTO DOS IPS

PARA

O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DO BRASIL

(Campanha pelos institutos de pesquisa do MCTI)

Neste momento de crise e incertezas é justamente quando se faz tão necessário o fortalecimento dos Institutos de Pesquisa do Brasil (IPs). Essas instituições – vinculadas a vários ministérios – são as que:

i) têm missões alinhadas às estratégicas públicas de Estado; ii) desenvolvem tecnologias (instrumentação, vacinas, satélites etc.) de ponta; iii) fazem pesquisas que alimentam a inovação; iv) mantêm ampla colaboração com a indústria nacional; v) formam quadros especializados para empresas.

No Brasil, o número de IPs não condiz nem com o tamanho da economia nacional, nem com o protagonismo geopolítico que é responsabilidade do país. Nos países desenvolvidos, há equilibro entre o número de pesquisadores nos IPs e nas universidades. No Brasil, nestas últimas, há, pelo menos, dez vezes mais pesquisadores.

Pelo fortalecimento dos institutos de pesquisas para a retomada do crescimento econômico!

UPS DO MCTIC SÃO

INFRAESTRUTURA

PARA

O

DESENVOLVIMENTO HUMANO E SUSTENTÁVEL

(Campanha pelos institutos de pesquisa do MCTI)

As Unidades de Pesquisa (UPs) do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) são parte importante da infraestrutura de ciência, tecnologia e inovação (C&T&I) do país. No entanto, têm tido suas ações limitadas por sucessivos cortes orçamentários e encolhimento de seus recursos humanos. Em países com alto índice de desenvolvimento humano, a infraestrutura de UPs é significativamente maior do que no Brasil.

C&T&I são a força-motriz do desenvolvimento sustentável e bem-estar das populações. Portanto, é urgente expandir as UPs para que possam realizar melhor suas missões: estar na fronteira do conhecimento; desenvolver novas tecnologias; estimular a inovação e competitividade; popularizar a atividade científica.

É um trabalho de toda a sociedade, mas deve ser fortalecido por uma política de Estado.

Ciência é base; tecnologia, instrumento; inovação, riqueza!

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CANDIDATURA PARA DIRIGIR O CBPF

Rio de Janeiro, 15 de abril de 2020

Apresento-me a este Comitê de Busca para seleção do próximo diretor do CBPF com a experiência, ao longo de minha vida profissional, de quatro anos de direção, iniciada em 2015; a de cinco anos de direção substituta, na gestão integral do Prof. Ricardo Galvão; dois anos na gestão do Prof. Fernando Lázaro; e experiência de vários anos de gestão de projetos científicos, nacionais e internacionais. Descrevo, a seguir, atividades que me parecem relevantes para a apreciação deste Comitê.

Sou paulista (paulistano) de nascimento e carioca por adoção. Tenho 71 anos, sou casado, tenho três filhos, dois enteados e seis netos. Ao longo de minha carreira científica, trabalhei no Instituto de Física Teórica (hoje, associado à Unesp), no Departamento de Física da PUC-Rio, no CERN e no CBPF, onde estou desde 1994.

Um tema recorrente ao longo de minha vida profissional tem sido sempre o de criar, estruturar ou fortalecer instituições, pois são elas os instrumentos que possibilitam avanços na sociedade.

Em 1978, voltei de meu doutorado na UCLA, para trabalhar no Instituto de Física Teórica, onde fiquei até 1983. Nesse período, fui um dos fundadores dos Encontros Nacionais da Física das Partículas e Campos, tendo participado da organização das duas primeiras edições – e de várias outras, ao longo das 40 edições desse evento. Fui um dos fundadores, também, da Escola de Física Jorge André Swieca, quando também organizei as duas primeiras da série, tendo como tema ‘Física das Altas Energias’. Esse evento, promovido pela SBF, está em operação até hoje, já tendo chegado à 20ª edição.

Nos experimentos científicos dos quais participei – por exemplo, colaborações internacionais de grande porte, como o Delphi (detector instalado no anel de colisões LEP, no CERN) e o Observatório Pierre Auger, na Argentina –, tive várias posições de liderança que podem ser identificadas em meu Lattes. No Auger, presidi o Conselho da Colaboração. Sou, atualmente, um dos mentores de um projeto de colaboração internacional criado originalmente com o nome Lattes (Large Array Telescope for Tracking Energetic Sources), cujo objetivo é construir um detector de partículas geradas por raios gama com energias acima de 100 GeV, em altitudes de 5000 m, na América do Sul. Este projeto juntou-se, recentemente, a outra iniciativa semelhante, que hoje tem o nome SWGO (Southern Wide-field Gamma-ray Observatory). Faço parte do Steering Committee do projeto.

117 MEMORIAL

Em 2013, fui o organizador da 33rd International Cosmic Rays Conference, no Rio de Janeiro (RJ), uma das conferências de maior visibilidade em todas as áreas da física naquele ano e a principal sobre o tema de raios cósmicos no mundo. Tive papel central ao propor e realizar uma mudança na estrutura da conferência, quebrando uma tradição de décadas e, acredito, modernizando-a. Desde então, essa série de conferências seguiu rigorosamente essa mudança.

Ao longo das últimas décadas, servi nos Comitês Internacionais de várias das mais importantes conferências em física das partículas e astropartículas. Neste período, tive a oportunidade de servir em várias missões internacionais, das quais destaco ter coordenado o Grupo de Trabalho que negociou as condições de adesão do Brasil ao CERN como país-membro associado, nomeado ainda na gestão do ministro do MCT, Sérgio Machado Rezende. Essa missão, com várias etapas, foi concluída de forma satisfatória até o estágio no qual o Conselho do CERN convidou o governo brasileiro a fazer parte daquela instituição.

Com a crise econômica, esse processo ficou suspenso. Atualmente, o ministro Marcos Pontes retomou essa iniciativa, tendo visitado aquela instituição em junho passado, quando o acompanhei. Servi também como ‘sherpa’ (terminologia diplomática para assessor) do ministro Marco Antônio Raupp, na reunião do grupo Carnegie (formado pelos ministros de Ciência e Tecnologia dos países que formam o G8 e os Brics), em Constança (Alemanha), em 2012.

Tive, ao longo de minha carreira, atuação de serviço à comunidade de física, em várias funções diferentes. Servi no Comitê Assessor (FA) do CNPq, em Comissões de Avaliação da Capes e como consultor de várias FAP’s do País, bem como de várias agências de fomento internacionais. Fui Editor de Ciências Exatas da revista Ciência Hoje por seis anos e editor adjunto ao Brazilian Journal of Physics.

Servi como vice-presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF) em dois mandatos, entre 2009 e 2013, bem como, em diferentes ocasiões, como membro do Conselho da SBF. Destaco minha contribuição a dois estudos realizados pela SBF que tiveram impacto relevante na discussão dos temas que associam Ciência, Tecnologia e Inovação. O primeiro, Física para o Brasil, publicado em 2005, procurou fazer uma projeção do papel da física no desenvolvimento do País na década seguinte; o segundo, Física para um Brasil Competitivo, foi um estudo encomendado pela Capes em 2007, no qual procuramos identificar os gargalos que dificultam um impacto mais expressivo do desenvolvimento científico no processo de inovação brasileiro – este último motivou a criação da Embrapii. Fui também Secretário Regional da SBPC no Rio de Janeiro.

Em 2016, fui eleito membro titular da Academia Brasileira de Ciências, tomando posse no ano seguinte.

Claramente, a direção de uma instituição da envergadura e importância do CBPF, nestes tempos difíceis, não é tarefa para alma pequena. Apresento-me para continuar essa tarefa com a clareza das dificuldades que enfrentaremos e com a experiência de um período passado – que já foi bastante delicado.

O primeiro desafio a ser enfrentado é a questão recorrente do envelhecimento dos pesquisadores e servidores da instituição. Fração significativa do quadro de servidores deverá aposentar-se ao longo da próxima gestão. Há dois problemas associados a esse tema. O primeiro é a substituição dos aposentados por novos servidores; o segundo, a expansão de quadros, para atender a uma demanda crescente de desafios. Em um horizonte imediato, tendo como pano de fundo o atual quadro econômico do País, essas duas questões parecem sem solução óbvia –pelo menos, no futuro imediato.

No entanto, são os períodos difíceis que, com frequência, acabam orientando as soluções

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que tenham caráter duradouro. Nesse sentido, vale citar que, no momento, faço parte de um grupo de diretores de institutos de pesquisas do MCTIC que tem a missão de desenhar um planejamento estratégico para os institutos, sob a coordenação do CGEE. Nesse grupo, estamos estudando novas alternativas para superar o problema da limitação de servidores nas nossas instituições.

Essa questão, a meu ver, tem contornos mais dramáticos, pois o problema extrapola em muito a mera substituição ou expansão do quadro de pesquisadores, tecnologistas, técnicos e pessoal administrativo. Quando o Brasil é comparado com qualquer país onde a ciência está avançada, nota-se enorme disparidade entre o número de pesquisadores trabalhando nas universidades e nos institutos de pesquisa. Enquanto, naqueles países, a relação oscila em torno de dois; ou seja, para cada dois pesquisadores atuando na universidade, em países como EUA, Alemanha, Reino Unido, França, Itália etc., há um trabalhando em um instituto de pesquisa, no Brasil, essa relação está completamente distorcida: temos, pelo menos, 20 pesquisadores na universidade para cada um deles nos institutos de pesquisa, segundo dados encontrados na página do MCTIC – sem querer afirmar que temos excesso de pesquisadores nas universidades.

Esse enorme fosso deve ser vencido para seguir com o processo de colocar a ciência brasileira em um patamar de competitividade com os países avançados. Institutos de pesquisa são elos importantes na cadeia de transmissão do conhecimento científico e das tecnologias geradas em busca de respostas às grandes questões científicas. Estabelecem, também, conexão entre a universidade e o setor produtivo, apoiando o desenvolvimento, por exemplo, de instrumentação científica e de software avançado.

Éóbvio que uma expansão significativa dos institutos de pesquisa deve estar associada a um protocolo bem definido de relação com as universidades. A meu ver, os institutos devem ser vistos como elementos da infraestrutura para a pesquisa no país, trabalhando em consonância com as universidades.

O CBPF tem papel central nessa redefinição por duas razões: i) seu papel histórico, central e emblemático na concepção de modelos de estruturação de novas instituições; ii) o papel ímpar que tem a física na liderança de transformações da política científica do País, somado ao fato de que o CBPF é tido como referência, no país, no campo da pesquisa e pós-graduação em física no Brasil.

O CBPF tem como missão realizar pesquisas em física básica e desenvolver suas aplicações. Esses objetivos são perfeitamente consistentes com a ênfase que a administração atual e as anteriores do País têm dado ao tema da Inovação. Programas ambiciosos de pesquisas nas áreas de física das altas energias, cosmologia, desenvolvimento e caracterização de novos materiais, nanociências, biofísica etc., quando ancorados no desenvolvimento de instrumentação científica, têm desdobramentos relevantes para a área de Inovação.

Coloco a ênfase na atividade experimental nos institutos – e, certamente, ela é central –, mas deve-se atentar igualmente para o papel estruturante que deve ter a atividade teórica. A missão central do CBPF é o desenvolvimento de física – em seu mais amplo escopo –, buscando, assim, respostas para os problemas de fronteira, sejam em física básica, sejam em aplicada.

Um elemento-chave em um programa ambicioso de pesquisa do CBPF é instrumentação científica. A meu ver, um dos calcanhares de Aquiles da ciência brasileira é nossa fragilidade na infraestrutura de apoio para o desenvolvimento da instrumentação científica em todas as áreas da ciência. Devemos reconhecer os progressos recentes nessa área – em particular, com o sucesso do projeto Sirius –, mas, certamente, eles estão muito aquém das necessidades de um país com uma economia diversificada como a do Brasil, com pretensões de exercer um papel relevante na produção de bens e serviços para o mundo.

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Outro desafio que enfrentará o novo diretor será o de continuar a mobilização dos pesquisadores e tecnologistas jovens para desempenharem papel de maior relevância nos mecanismos de decisão no CBPF. Esse é um problema que permeia toda a estrutura de decisões (científicas) do Brasil. Os pesquisadores jovens têm pouca voz ativa hoje. Claramente, há razões históricas para essa deformação, mas é tempo de iniciar um programa para corrigi-lo e gerar novas lideranças científicas. Porém, mais relevante ainda, será o de conseguir ampliar a participação de mulheres nas atividades do CBPF. Temos ainda, em nossa instituição, um desequilíbrio de gênero muito agudo, refletindo situação que, infelizmente, caracteriza a física, tanto no Brasil quanto no mundo.

O desenvolvimento dessas ideias de forma mais abrangente pode ser encontrado no meu ‘Projeto de Gestão e Visão de Futuro para o CBPF’. Estive envolvido na concepção e redação dos ‘Planos Diretores do CBPF’ de 2006-2010, 2011-2015 e aquele que cobre o período de 2017-2021 – este último em vigor. Reafirmo aqui meu compromisso em aderir à orientação estabelecida pelo Plano Diretor, caso seja indicado para continuar dirigindo o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.

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CARTAS

PARA A SBF: PROGRAMA DE ALTAS ENERGIAS NO BRASIL

(Publicada no Boletim da SBF, ano 4, n. 13, 1982)

CERN, 24 de junho de 1982

Prof. H. Moisés Nussenzveig

Presidente da Sociedade Brasileira de Física

Caro Sr. Presidente:

Estou terminando uma visita prolongada ao CERN, durante a qual aproveitei para discutir com físicos de várias nacionalidades, experimentais e teóricos, sobre a questão de se fazer física de altas energias num país como o Brasil. Estou escrevendo-lhe esta carta para sistematizar minhas ideias e expressar minhas opiniões à Sociedade Brasileira de Física, na pessoa do seu presidente. Não tenho nenhuma pretensão a originalidade, pois creio que por agora o assunto já terá sido discutido ‘ad nauseam’, e pontos de vista parecidos são expressos no país; fica aqui de qualquer modo um registro.

Minhas opiniões são tendenciosas, pois sou francamente favorável e entusiasta da ideia de criar-se um programa de física experimental de altas energias no Brasil. Já tem um programa experimental de raios cósmicos, mas estou interessado em discutir a criação de programas para utilização de aceleradores. Sou de opinião de que devemos sonhar e planejar um programa ambicioso em física de altas energias dentro de um prazo, vamos dizer, de 10 anos.

Um programa de física de altas energias é a nossa contribuição, enquanto um povo, ao esforço coletivo da humanidade em desvendar a natureza da matéria, e também a maneira de incorporar à nossa cultura e tradições este conhecimento científico. Evidentemente a única maneira de adquirir conhecimento científico é participar da sua geração. No nosso país, temos esta deformação de grande ênfase em física teórica, que evidentemente deve ser corrigida. Estes são os motivos nobres que justificam a necessidade de física experimental perante os olhos de qualquer cientista. No entanto, há motivos mais prosaicos que justificam o programa experimental, que não devem ser desprezados.

A física de altas energias carrega um charme especial, pois entre as ciências pode se dizer que é a de mais vanguarda; é uma ciência que só pode ser praticada em colaborações internacionais. Ela tem o poder de atrair jovens mais promissores para a carreira científica. Eu tenho a impressão

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de que no Brasil os melhores alunos ainda procuram as escolas de engenharia ou medicina e é importante para o país reverter esta tendência, atraindo-os para a carreira científica. Ela pode servir de ponte para um maior acesso aos meios de divulgação. Nestes tempos onde nossas esperanças de democratização do país têm alguma chance de se concretizar, o acesso aos meios de divulgação para sensibilizar a população em geral, e os políticos em particular, para a necessidade de maior apoio à ciência básica, para o benefício geral do país, é bastante crucial.

Por outro lado, como vários estudos mostram, o investimento na área de altas energias tem um retorno econômico muito importante na forma de desenvolvimento de novas tecnologias e novos produtos. Qualquer programa de física de altas energias tem que ter em mente este aspecto econômico.

Qual seria a escala de grandeza razoável para investimentos nesta área no Brasil?

Podemos estimar isto por comparação. A Espanha, que é um país com um PNB bem menor do que o Brasil, voltará a ingressar no CERN em 1982. Esta volta ao CERN será gradativa, mas em cinco anos ela arcará com 7% do orçamento do CERN, o que atualmente significaria 21 milhões de dólares. Por outro lado, há uma condição de que ela gaste 50% deste valor no país na área de altas energias. Isto significa que em cinco anos a Espanha gastará 30 milhões de dólares por ano, em física de altas energias. Esta é uma soma perfeitamente razoável para se gastar no Brasil daqui a 10 anos. Se considerarmos que 1/3 desta quantia seria gasta com salários de físicos e tomando um salário anual da ordem de 25 mil dólares, significam 400 físicos trabalhando em altas energias. Para gerar este número de físicos em 10 anos, assumindo que temos cerca de 100 cientistas nesta área no presente, requer um crescimento na formação de PhDs da ordem de 15 por ano, por agora, crescendo até atingir cerca de 50 por ano em 10 anos. Parece exagerado, não? Pois devemos pensar nestes termos. Caso esse crescimento fosse seguido, depois de alguns anos começaria a haver saturação do mercado. Este problema tem uma solução obvia. O excesso de físicos, principalmente os experimentais, seria absorvido pelo parque industrial. Esta é uma prática muito incomum hoje no Brasil, mas um trabalho de sensibilização de industriais por parte da SBF poderia mudar o quadro. Como é bem conhecido, esta é uma prática usada por países desenvolvidos. Aliás, este é um dos outros aspectos que devem ser encorajados num programa de altas energias, isto é, ela visa também à formação de quadros com preparo sofisticado para o parque industrial do país. Em geral, a ênfase na formação de um engenheiro é diferente daquela de um físico e a fusão dos dois é bastante crucial para o desenvolvimento tecnológico autônomo do país.

Quando pensamos num programa de física de altas energias, temos que tomar cuidado com a mordaça de expressões como ‘vamos nos adaptar à realidade brasileira’. Eu acho que devemos ter em mente a formação de pessoal que tenha capacidade de participar de experimentos nos aceleradores mais avançados, ou seja, LEP, HERA, SLC etc. Vamos nos adaptar é realidade brasileira usando nossos recursos de forma inteligente e otimizada. Se os italianos, espanhóis, poloneses, suecos, noruegueses, chineses etc. podem participar destes experimentos, nós também podemos, é sim uma questão de tempo e esforço.

Eu acho que devemos dar uma ênfase grande na formação de pessoal na área de ‘hardware’ experimental. Se a colaboração com o Fermilab frutificar, o país certamente entrará com parte dos custos de equipamentos experimentais. É perfeitamente razoável pensar-se na ideia de que uma fração grande deste dinheiro seja gasta no Brasil. Temos condições de fornecer equipamentos para laboratórios já no presente. As indústrias de aço podem construir magnetos, temos indústrias de mecânica de precisão, de equipamentos para oficinas, indústrias de cabos elétricos, de transformadores de potência, indústria elétrica e eletrônica, equipamento de vácuo etc. Eu acredito que, se o Brasil tivesse que cobrir gastos com equipamentos neste momento no Fermilab, poderia fazê-lo fornecendo outros equipamentos. Qualquer colaboração com o Fer-

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milab tem que envolver este aspecto, i. e., eles devem se comprometer a comprar equipamentos no Brasil no valor de nossos gastos.

Um programa de altas energias deve incluir entre suas metas a construção de detectores, ou pelo menos de parte deles, dentro do país, e dentro de um prazo curto. Isto é perfeitamente possível; a Espanha, por exemplo, construiu um dos Cherenkov grandes do EHS, aqui no CERN. Neste sentido, seria interessante atrair pessoas com a formação de engenheiros, principalmente eletrônicos, para a física. A SBF poderia promover uma campanha de divulgação das possibilidades em física de altas energias, nas escolas de engenharia. A possibilidade de estágios no exterior poderia servir de atração para engenheiros com gosto pela pesquisa. Bolsas preferenciais com algum tipo de complementação podem dar bons resultados.

Soube que está se planejando construir um síncrotron de elétrons, para ser usado como fonte de radiação de síncrotron. Creio que talvez isto seja um bom começo para treinar pessoal na área de construção de aceleradores. O feixe do síncrotron pode ser útil para testar detectores e eventualmente produzir resultados em física nuclear. Mas este é um programa multidisciplinar que deve ser dissociado de um programa de altas energias. Talvez, possamos ser ambiciosos e pensar na construção de um acelerador maior dentro de um prazo de 10 anos. Tenho em mente, por exemplo, um síncrotron de prótons com energias da ordem de 1 GeV, que possa ser usado também como acelerador de íons pesados. Um acelerador deste tipo seria útil para testar detectores, produzir feixes de píons intensos e também produzir resultados em física nuclear. Um projeto deste tipo custaria algo como 15 milhões de dólares espalhados num período de cinco anos, e seria factível num orçamento anual para física de altas energias da ordem de 30 milhões de dólares.

O elemento crucial em qualquer programa experimental evidentemente é o pessoal disponível. Há no Brasil muitos pesquisadores que já tiveram alguma experiência em altas energias, que poderiam ser atraídos para o programa. Soube por terceiros que alguns colegas teóricos pretendem voltar-se para a física experimental. Acho louvável esta atitude — eles certamente serão essenciais para dar andamento a um programa mais ambicioso. Eles poderiam exercer o papel de catalizadores dos nossos esforços. A SBF e os órgãos de fomento à pesquisa, assim como seus colegas que se mantêm fiéis às suas origens teóricas, devem oferecer todo apoio e incentivo a eles. Por outro lado, já existem pesquisadores de instituições brasileiras trabalhando em colaboração com universidades europeias em experimentos no CERN. O trabalho deles deve ser apoiado, encorajado e também divulgado.

Eu acho que devemos ter algum cuidado em não nos vincularmos exclusivamente ao Fermilab; contatos com outros laboratórios devem ser buscados. Os americanos não são conhecidos pela estabilidade dos seus compromissos.

A SBF poderia tentar estabelecer contato com as indústrias, via organizações como a Fiesp e fazer um levantamento ainda que grosseiro do potencial para a produção de equipamentos úteis à física de altas energias e do interesse em produzi-los.

Eu creio que precisamos de programas mais concretos, com planos bem definidos e cronogramas realistas. Evidentemente, o amadurecimento destes planos leva tempo e muita discussão. Eu acho que talvez fosse conveniente a SBF organizar um ‘workshop’ em algum local isolado, reunindo um grupo de físicos com interesse e alguma experiência no assunto. Um grupo de 20 físicos seria razoável. Este ‘workshop’ teria como objetivo desenhar um programa mais efetivo para os próximos cinco anos e principalmente tentar focalizar os esforços de uma maneira otimizada.

Atenciosamente, Ronald C. Shellard

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PARA O MCTIC: CORTES ORÇAMENTÁRIOS

Brasília, 10 de junho de 2020

Exmo. Senhor Marcos Cesar Pontes

Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações - MCTIC Esplanada dos Ministérios, Bloco E CEP 70067-900 - Brasília - DF

Senhor Ministro:

Nós, diretores das Unidades de Pesquisas do MCTIC, trazemos ao seu conhecimento a nossa insegurança e preocupação, diante da potencial diminuição dos orçamentos propostos para as unidades para o próximo ano. Entendemos que o Ministério tem realizado um grande esforço para prover os recursos para nossa sobrevivência; no entanto, estes cortes causam grandes aflições sobre a manutenção e a própria existência de alguns dos nossos institutos.

Há, hoje, um consenso no mundo da política, no mundo empresarial e na sociedade como um todo, de que o desenvolvimento da ciência é o principal patrimônio de qualquer país. Não só apenas pelos valores culturais que ele traz para a humanidade, mas também pela percepção de que é o instrumento fundamental para a segurança sanitária, segurança alimentar, para a defesa e o principal insumo para se criar riqueza e bem-estar para uma sociedade.

Ultimamente, em consequência da pandemia da covid-19, a palavra ciência é uma das mais citadas em noticiários, declarações e em quase tudo que se refere à presente situação. No entanto, nem passamos ainda pela crise e já voltamos a negligenciar os investimentos em ciência, sob a alegação de que ‘não há dinheiro’. Mas reafirmamos que uma das razões pelas quais não há – e não haverá dinheiro – é que os investimentos em ciência foram historicamente – e seguem sendo – inadequados, tomando como referência o tamanho da economia brasileira e o papel protagonista que o Brasil deveria assumir, mais vigorosamente, no cenário científico, tecnológico e da inovação.

Um país com as dimensões do Brasil, com seus desafios e suas oportunidades, para ter uma economia competitiva no cenário internacional – e, mais ainda, com o destino de país continental e, consequentemente, com as responsabilidades intrínsecas dessa estatura – tem que ter uma infraestrutura científica robusta e moderna, lastreada em institutos de pesquisas (em especial, os do MCTIC), bem como em universidades, complementada pela pesquisa empresarial, formando um consistente sistema integrado de CT&I.

A pesquisa universitária tem sofrido com a fragilização das agências de fomento, bem como com a falta de recursos e bolsas para a formação científica. Mas o outro componente do sistema – o conjunto de institutos de pesquisas, que tem papel estratégico nas políticas públicas – tem se tornado ainda mais frágil.

Temos reiterado, repetidamente, que vivemos no Brasil, onde, por razões históricas, há um contraste marcante com a prática científica de grande número de países. Nos países que têm situação econômica próspera, há um balanço entre o número de cientistas atuando em universidades e institutos de pesquisas. Esse equilíbrio é chave para sua competência no desenvolvimento em C&T e, principalmente, em inovações. No Brasil, porém, essa relação é bastante desequilibrada – sem que sequer se possa argumentar que haja muitos cientistas trabalhando nas universidades.

O trabalho dos cientistas em universidades e institutos de pesquisas é complementar, mas com importantes diferenças. Enquanto, na universidade, cientistas têm a liberdade acadêmica

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como norteador de suas agendas de pesquisas, nos institutos, nosso trabalho está alinhado às missões especificas de cada instituição. Por sua vez, essas missões, alinhadas às estratégias e políticas públicas do Estado, têm como foco resolver os grandes desafios científicos e tecnológicos, com que se confronta a nação. Por exemplo, neste momento, cabe à Fiocruz, instituto associado ao Ministério da Saúde, coordenar todo o trabalho de pesquisa associado à pandemia no Brasil.

Os institutos de pesquisas têm o papel de gerar novas tecnologias com o objetivo de atender aos desafios científicos impostos ao país e deveriam ser centros de treinamento avançado para quadros técnicos que, depois de um tempo em ambiente científico, levam essa cultura para o meio empresarial. É assim que funciona em grande número de países.

Poderíamos listar aqui as contribuições importantes que o grupo de instituições de pesquisas associadas ao MCTIC trouxe ao país; porém, lembramos que já vamos para décadas de orçamentos reduzidos e quadro de pessoal sendo degradado em seu número. Em grande parte dos nossos institutos, se aplicarmos índices de correções monetária sobre um orçamento – que já era escasso, há uma década – e comparamos com o atual, chegamos a parcos 30% daquele valor, isso sem contar com a proposta atual de redução de orçamento, que inviabilizará atividades fundamentais de suas missões e sua própria subsistência. Vivemos hoje o paradoxo de que a redução de nossos orçamentos acabará por custar mais ao país do que pequenos aumentos que apontem para a direção de uma correção no papel que é da responsabilidade dos nossos institutos. Reiteramos, novamente, que a grande questão para nossas instituições não é o que fazemos – o que já representa muito se comparado com países desenvolvidos e respectivas relações de orçamentos –, mas, sim – de muito maior valor –, o que poderíamos fazer, com recursos suficientes.

Ao persistirem os cortes, propostos para a PLOA 2021 nos institutos do MCTIC, o país não fará nenhuma economia significativa, mas, sim, colocará em maior nível de risco uma componente importante para melhorias em seu resultado econômico em curto e médio prazos.

Finalmente, cabe a nós diretores alertar o MCTIC de que o fortalecimento da infraestrutura e operacionalidade dos seus institutos de pesquisas é um desafio importante e permanente para qualquer governo interessado em promover novos níveis de economia e bem-estar da nação brasileira.

Aproveitamos a ocasião para expressar nosso apreço pelo esforço que o Sr. tem realizado ao longo de sua gestão no sentido apontado no nosso texto. Esperamos que esses argumentos possam contribuir para convencer a Presidência da República e o Congresso Nacional sobre a urgência em rever os orçamentos previstos para 2021.

Com toda a nossa consideração, expressamos nossas cordiais saudações.

Ronald Cintra Shellard

CBPF

Darcton Policarpo Damião

INPE

Osvaldo Luiz Leal de Moraes

Cemadem

Mônica Tejo Cavalcanti

INSA

Fernando Antonio Freitas Lins Cetem

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Fernando Cosme Rizzo Assunção INT

Giovanna Machado Cetene

Wagner José Corradi Barbosa LNA

Jorge Vicente Lopes da Silva CTI

Augusto César Gadelha Vieira LNCC

Cecilia Leite Oliveira IBICT

Anelise Pacheco MAST

Sérgio Lucena Mendes INMA

Ana Luisa Kerti Mangabeira Albernaz MPEG

Antônia Maria Ramos Franco Pereira INPA

João Carlos Costa dos Anjos ON

PARA O MCTIC: ADESÃO AO CERN

Rio de Janeiro, 19 de outubro de 2016 Exmo. Sr. Gilberto Kassab, Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações – MCTIC, Esplanada dos Ministérios, 70067-900 Brasília, DF.

Excelentíssimo Sr. Ministro: Nós, os signatários desta carta – pesquisadores; dirigentes de instituições nacionais de ensino e pesquisa, bem como de fomento à ciência; dirigentes de empresas de base tecnológica; dirigentes de associações de classe; professores de física do ensino médio —, que participamos do programa ‘Escola do CERN’, vimos aqui manifestar nosso desejo e interesse de que o processo de adesão do Brasil, como um país membro associado, à Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN) seja concluído e que o Brasil possa associar-se àquele laboratório internacional.

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O CERN é o maior laboratório científico do mundo, frequentado por mais de 12 mil cientistas de mais de 70 países, com 120 nacionalidades diferentes. Seu foco principal é a exploração da ciência básica da estrutura da matéria. Para investigar esse universo, foi desenvolvida uma miríade de tecnologias de fronteira que hoje estão embutidas em produtos que fazem parte de nosso cotidiano. A mais emblemática delas é certamente a web, mas há um sem-número de outros desenvolvimentos que nasceram naquele laboratório europeu, como plásticos para a embalagem de alimentos; aprimoramento de válvulas cardíacas; aperfeiçoamento de fraldas infantis.

O CERN é também um centro de treinamento de cientistas e tecnologistas, onde são preparadas teses acadêmicas. Mais da metade dos 12 mil cientistas que usam o laboratório tem menos que 30 anos de idade, e fração significativa deles irá desenvolver suas atividades profissionais fora do ambiente acadêmico. Portanto, não é acidental que os países europeus invistam recursos consideráveis na manutenção e no desenvolvimento das instalações daquele centro de pesquisa.

Hoje, a ciência e tecnologia brasileiras têm maturidade suficiente para se beneficiar de uma participação mais intensa nas atividades daquele laboratório, explorando as oportunidades que ele oferece a seus países membros. O CERN é um laboratório aberto, e o Brasil tem cerca de 130 pesquisadores, de 17 instituições, participando de experimentos lá instalados, com impacto significativo nos indicadores de produção científica do País, medidos por parâmetros internacionais.

No entanto, os desdobramentos dessa produção científica, em grande parte, ainda têm se restringido ao mundo acadêmico. A adesão do Brasil ao CERN como país membro associado abrirá oportunidade para que nossas indústrias compitam em processos licitatórios daquele laboratório – o que vai além de simples processos de compra, por envolverem, com frequência, desenvolvimentos tecnológicos e inovação de produtos, atividades feitas de forma colaborativa entre pesquisadores e empresas.

A adesão também abrirá novas oportunidades para o treinamento e a formação de engenheiros e técnicos em áreas avançadas, como eletrônica, instrumentação, ciência dos materiais, mecânica, criogenia, aceleradores, bem como tecnologia da informação. Permitiria também expandir um programa de grande sucesso, feito em colaboração com Portugal, que é a ‘Escola do CERN’, a qual leva professores de física do ensino médio para passar um período de treinamento no laboratório – com cursos ministrados em português.

Por fim, vale ressaltar aqui outro aspecto – cuja mensuração dos benefícios é certamente não trivial: contribuir para o resgate do prestígio científico e tecnológico do Brasil, qualificando suas indústrias com uma chancela de rigor e precisão associada à reputação de um laboratório do mais alto prestígio internacional, ajudando, assim, na retomada de um crescimento econômico sólido e sustentável.

O acima exposto visa a exemplificar e a fornecer, de maneira breve, algumas das razões pelas quais nós consideramos que a adesão do Brasil como país membro do CERN é estratégica e fundamental para o desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia no País.

Cordialmente, Ronald Cintra Shellard, Diretor do CBPF (Em nome dos signatários)

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PARA O COMANDANTE MILITAR DO LESTE: CONVITE

Rio de Janeiro (RJ), 18 de abril de 2018

Excelentíssimo Senhor Walter Souza Braga Netto General de Exército da Arma de Cavalaria, Comandante Militar do Leste

Estimado General de Exército Braga Netto, tive o prazer de conhecê-lo hoje de manhã, no passeio que fazíamos com nossos cães, Johnnie, Jack e Zeca.

Por favor, permita-me, mais uma vez, apresentar-me. Sou o professor doutor Ronald Cintra Shellard, físico experimental da área de altas energias e diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), uma das Unidades de Pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

Localizado no bairro da Urca, no Rio de Janeiro (RJ), à rua Dr. Xavier Sigaud, 150, o CBPF é um instituto voltado para a pesquisa básica e aplicada em física e áreas afins. Foi fundado em 1949, como resultado de uma aliança entre cientistas, militares e empresários, entre outros formadores de opinião à época.

O CBPF tem um parque tecnológico ‒ formado por equipamentos de última geração ‒que, em seu conjunto, estão orçados em torno de R$ 100 milhões ‒ aparato tecnológico que, desde já, fica à disposição do senhor e seus subordinados, para o uso em caso de necessidade de análises científico-tecnológicas das mais variadas, no campo da física e ciências correlatas.

Posto isto, gostaríamos, por meio desta, de convidá-lo a visitar o CBPF, em data e horário convenientes para o senhor. Adiantamos que seria uma honra recebê-lo em nossa unidade. Sem mais, subscrevo-me com estima e apreço,

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PARA O MCTIC: CORTES ORÇAMENTÁRIOS

Brasília, 10 de junho de 2020

Exmo. Senhor Marcos Cesar Pontes

Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações - MCTIC Esplanada dos Ministérios, Bloco E CEP: 70067-900 - Brasília - DF

Senhor Ministro: Nós, diretores das Unidades de Pesquisas do MCTIC, trazemos ao seu conhecimento a nossa insegurança e preocupação, diante da potencial diminuição dos orçamentos propostos para as unidades para o próximo ano. Entendemos que o Ministério tem realizado um grande esforço para prover os recursos para nossa sobrevivência; no entanto, estes cortes causam grandes aflições sobre a manutenção e a própria existência de alguns dos nossos institutos. Há, hoje, um consenso no mundo da política, no mundo empresarial e na sociedade como um todo, de que o desenvolvimento da ciência é o principal patrimônio de qualquer país. Não são apenas os valores culturais que traz para a humanidade, mas também pela percepção de que é o instrumento fundamental para a segurança sanitária, segurança alimentar, para a defesa e o principal insumo para se criar riqueza e bem-estar para uma sociedade. Ultimamente, em consequência da pandemia da covid-19, a palavra ciência é uma das mais citadas em noticiários, declarações, e em quase tudo que se refere à presente situação. No entanto, nem passamos ainda pela crise e já voltamos a negligenciar os investimentos em ciência, sob a alegação de que ‘não há dinheiro’. Mas reafirmamos que uma das razões pelas quais não há – e não haverá dinheiro – é que os investimentos em ciência foram historicamente – e seguem sendo inadequados -, tomando como referência o tamanho da economia brasileira e o papel protagonista que o Brasil deveria assumir, mais vigorosamente, no cenário científico, tecnológico e da inovação.

Um país com as dimensões do Brasil, com seus desafios e oportunidades, para ter uma economia competitiva no cenário internacional – e, mais ainda, com o destino de país continental e, consequentemente, com as responsabilidades intrínsecas dessa estatura – tem que ter uma infraestrutura científica robusta e moderna, lastreada em institutos de pesquisas, em especial os do MCTIC, bem como em universidades, complementada pela pesquisa empresarial, formando um consistente sistema integrado de CT&I.

A pesquisa universitária tem sofrido com a fragilização das agências de fomento, bem como a falta de recursos e bolsas para a formação científica. Mas o outro componente do sistema – o conjunto de institutos de pesquisas, que tem papel estratégico nas políticas públicas – tem se tornado ainda mais frágil.

Temos reiterado, repetidamente, que vivemos no Brasil, por razões históricas, um contraste marcante com a prática científica de grande número de países. Nos países que têm situação econômica próspera há um balanço entre o número de cientistas atuando em universidades e institutos de pesquisas. Este equilíbrio é chave para sua competência no desenvolvimento em C&T e, principalmente, em Inovações. No Brasil, porém, essa relação é bastante desequilibrada – sem que sequer se possa argumentar que haja muitos cientistas trabalhando nas universidades.

O trabalho dos cientistas em universidades e institutos de pesquisas é complementar, mas com importantes diferenças. Enquanto, na universidade, cientistas têm a liberdade acadêmica como norteador de suas agendas de pesquisas, nos institutos, nosso trabalho está alinhado às

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missões especificas de cada instituição. Por sua vez, essas missões, alinhadas às estratégias e políticas públicas do Estado, têm como foco resolver os grandes desafios científicos e tecnológicos, com que se confronta a nação. Por exemplo, neste momento, cabe à Fiocruz, instituto associado ao Ministério da Saúde, coordenar todo o trabalho de pesquisa associado à pandemia no Brasil.

Os institutos de pesquisas têm o papel de gerar novas tecnologias com o objetivo de atender aos desafios científicos impostos ao País e deveriam ser centros de treinamento avançado para quadros técnicos que, depois de um tempo em ambiente científico, levam essa cultura para o meio empresarial. É assim que funciona em grande número de países.

Poderíamos listar aqui as contribuições importantes que o grupo de instituições de pesquisas associadas ao MCTIC trouxe ao país, porém, lembramos que já vamos para décadas de orçamentos reduzidos e quadro de pessoal sendo degradado em seu número. Em grande parte dos nossos institutos, se aplicarmos índices de correções monetária sobre um orçamento, que já era escasso, há uma década, e compararmos com o atual, chegamos a parcos 30% daquele valor, isso sem contar com a proposta atual de redução de orçamento, que inviabilizará atividades fundamentais de suas missões e sua própria subsistência. Vivemos hoje o paradoxo de que a redução de nossos orçamentos acabará por custar mais, ao país, do que pequenos aumentos que apontem para a direção de uma correção no papel que é da responsabilidade dos nossos institutos. Reiteramos, novamente, que a grande questão para nossas instituições não é o que fazemos, que já representa muito se comparado com países desenvolvidos e respectivas relações de orçamentos, mas sim, de muito maior valor, o que poderíamos fazer, com recursos suficientes.

A persistir os cortes, propostos para a PLOA 2021 nos institutos do MCTIC, o País não fará nenhuma economia significativa, mas colocará em maior nível de risco uma componente importante para melhorias no resultado econômico do País a curto e médio prazos.

Finalmente, cabe a nós diretores alertar o MCTIC de que o fortalecimento da infraestrutura e operacionalidade dos seus institutos de pesquisas é um desafio importante e permanente para qualquer governo interessado em promover novos níveis de economia e bem-estar da nação brasileira.

Aproveitamos a ocasião para expressar nosso apreço pelo esforço que o Sr. tem realizado ao longo de sua gestão no sentido apontado no nosso texto. Esperamos que estes argumentos possam contribuir para convencer a Presidência da República e o Congresso Nacional sobre a urgência em rever os orçamentos previstos para 2021.

Com toda a nossa consideração expressamos nossas Cordiais saudações,

Ronald Cintra Shellard CBPF

Darcton Policarpo Damião INPE

Osvaldo Luiz Leal de Moraes Cemadem

Mônica Tejo Cavalcanti INSA

Fernando Antonio Freitas Lins Cetem

Fernando Cosme Rizzo Assunção INT

Giovanna Machado Cetene

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Wagner José Corradi Barbosa

LNA

Jorge Vicente Lopes da Silva CTI

Augusto César Gadelha Vieira LNCC

Cecilia Leite Oliveira IBICT

Anelise Pacheco MAST

Sérgio Lucena Mendes INMA

Ana Luisa Kerti Mangabeira Albernaz MPEG

Antônia Maria Ramos Franco Pereira INPA

João Carlos Costa dos Anjos ON

PARA O MCTIC: CBPF-BELÉM

Rio de Janeiro, 17 de agosto de 2016 A Sua Excelência o Senhor Elton Santa Fé Zacarias Secretário-Executivo 70067-900 - Brasília - DF Assunto: Projeto de criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas-Belém (CBPF-B)

Sr. Secretário-Executivo:

Encaminhamos minuta de projeto de criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas – Belém (CBPF-B).

A proposta de criação do CBPF-B tem como fundamento o reconhecimento de que a biodiversidade da região amazônica constitui um imenso reservatório a ser ainda conhecido e utilizado de maneira sustentável visando contribuir para o desenvolvimento da região, do país e do mundo. Este desenvolvimento, indubitavelmente, deverá ter a ciência, tecnologia e inovação, simultaneamente, como orientadores e parceiros.

Esta iniciativa deve ser encarada como parte de um plano mais geral do MCTIC de dotar o País de institutos de pesquisa alinhados com suas políticas de Estado.

Em complemento a alguns dos itens mencionados no documento, propomos, também,

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a criação de uma Comissão Mista integrada pelo CBPF, Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e Universidade Federal do Pará para implementação da proposta.

Na oportunidade, coloco-me à sua disposição para esclarecimentos adicionais.

Atenciosamente, Ronald Cintra Shellard Diretor do CBPF

PARA O MCTIC: COMPETÊNCIAS DO CBPF

Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 2019 Ilmo. Sr.

Lorenzo Jorge Eduardo Cuadros Justo Júnior MD. Subsecretário de Unidades Vinculadas Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações Esplanada dos Ministérios, Bloco E CEP: 70.067-900 - Brasília, DF Assunto: Competências do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF)

Senhor Subsecretário:

Em resposta à sua solicitação para atendimento à demanda do ministro Marcos Pontes, descrevemos a seguir, de forma sucinta e objetiva, as principais competências do CBPF no contexto de sua história, missão e objetivos.

O CBPF foi fundado em 1949, no Rio de Janeiro (RJ), como resultado de um momento histórico em que ciência era parte de um projeto de nação. O CBPF – hoje, vinculado ao MCTIC – é um instituto de excelência internacional na pesquisa e pós-graduação em física. No ano em que completa 70 anos, o CBPF conta com vários laboratórios multiusuários e serve de infraestrutura para grupos de pesquisa no Brasil e no exterior, bem como para a indústria nacional.

O aspecto mais importante na fundação do CBPF – e motivação ainda hoje presente na instituição – é seu papel de fomentador da infraestrutura de C&T do país. O CBPF – assim como outros institutos do MCTIC – tem, além de função estratégica na relação entre ciência básica e setor produtivo, manter uma ampla rede de contatos internacionais, participando de avanços científicos e tecnológicos, antes destes virem a público. Além disso, a instituição é também um polo formador de pessoal altamente capacitado e com experiência internacional.

O CBPF tem como missão a realização de pesquisa básica em física e o desenvolvimento de suas aplicações, atuando como instituto nacional de física do MCTIC e polo de investigação científica e formação, treinamento e aperfeiçoamento de pessoal científico.

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PARA O EMBAIXADOR DO BRASIL NO VIETNÃ: CONVITE

Exmo. Sr. Embaixador

Fernando Apparicio da Silva Embaixada do Brasil 44b Ly Thuong Kiet, Hoan Kiem Hanói, Vietnam

Rio de Janeiro, 23 de junho de 2019 Prezado Sr. Embaixador:

Sou Ronald Cintra Shellard, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), uma Unidade de Pesquisas do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, sediado na Urca, no Rio de Janeiro.

Nosso instituto tem por missão a pesquisa básica em temas da fronteira da física. Participamos de grandes colaborações internacionais nas áreas da física das altas energias, cosmologia, física da matéria condensada, computação quântica, física teórica etc. Temos uma vasta gama de colaboradores internacionais.

Trago à sua atenção a assinatura de um acordo de cooperação, ou melhor, um Memorando de Entendimento (MOU) entre o CBPF e o International Center for Interdisciplinary Science and Education (ICISE), em Quy Nhon, no dia 5 de julho próximo. A primeira ação desta cooperação é a realização de um workshop conjunto CBPF-ICISE, tendo como tema física de altas energias, com o título: New Physics with Exotic and Long-Lived Particles.

A raiz desta cooperação pode ser traçada ao meu doutoramento na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Lá compartilhei um escritório por quatro anos com o Prof. Pham Quang Hung, no período de 1974 a 1978 e mantivemos a amizade até hoje. O Prof. PQ Hung leciona hoje na Universidade da Virgínia em Charlottesville, nos EUA. Há muito tempo ele tem colaborado com a comunidade de físicos do Vietnã organizando escolas e conferências. Ao longo dos anos sempre insistiu em que nós, comunidade de físicos brasileiros, estreitássemos relações com nossos pares vietnamitas.

O centro ICISE foi fundado e é dirigido pelo também físico Prof. Jean Tran Thanh Van, que fez sua carreira científica na França. Organiza todos os anos uma conferência que acabou ficando muito famosa entre os físicos do mundo todo, a chamada Les Rencontres de Moriond, na França.

Nosso objetivo, mais adiante, será o de atrair estudantes vietnamitas para terminarem sua formação em física no Brasil e, em particular, nas áreas de astropartículas, em função de um grande número de observatórios estarem localizados, hoje, na América do Sul.

No entanto, o ICISE tem um escopo científico mais amplo e este MOU pode ser replicado, mais adiante por outras comunidades científicas que possam ter interesse em interagir com cientistas daquele país.

Gostaria de convidá-lo, e a outros membros de nossa embaixada em Hanói, para estarem presentes na cerimonia da assinatura do MOU, em Quy Nhon no dia 5 de julho. Nesta data, farei uma apresentação do CBPF e uma palestra sobre a física das astropartículas na América do Sul. Caso aceite este convite, alerte-me para que o Prof. Than Van faça um convite oficial da direção do ICISE. Devem estar presentes também autoridades vietnamitas associadas à ciência.

A propósito, num tom mais pessoal, o Prof. Fernando Lins, diretor do Cetem, instituição irmã do CBPF, contou-me que seu irmão Marcelo irá dar uma palestra sobre nióbio naquele centro, amanhã. Pois este é um dos temas da visita do ministro Marcos Pontes ao CERN,

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agora no dia 28 de junho. Farei parte da delegação. Fico ao seu dispor para qualquer informação adicional que considere necessária. Cordialmente, Ronald Cintra Shellard Diretor do CBPF

PARA O SENADO E A CÂMARA: CORTES ORÇAMENTÁRIOS

Aos Excelentíssimos Senhores

Senador Rodrigo Otavio Soares Pacheco Presidente do Senado Federal Deputado Arthur César Pereira de Lira Presidente da Câmara dos Deputados Brasília, 11 de outubro de 2021

Senhores Presidentes: Nós, diretores das Unidades de Pesquisa vinculadas ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), viemos manifestar nossa perplexidade com os cortes promovidos pelo Ministério da Economia ao mudar a destinação dos recursos prevista no PLN 16/2021. Rogamos que o Congresso Nacional reverta essa decisão, pois é uma importante fonte de recursos para a ciência nacional.

Aproveitamos a ocasião para chamar atenção à situação bastante dramática pela qual passam as Unidades Vinculadas do MCTI. Somos instituições do Estado Brasileiro, com responsabilidades de cumprir metas científicas e tecnológicas, além do papel de infraestrutura científica para toda a comunidade científica nacional.

Apesar dos esforços do ministro Marcos Pontes em recompor parte dos orçamentos de nossas instituições, estamos muito aquém de períodos anteriores e das necessidades para cumprir nossas responsabilidades. Podemos citar algumas dessas responsabilidades: a) o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) deve substituir o supercomputador Tupã por um modelo mais atualizado, para prover a sociedade brasileira com previsões meteorológicas mais apuradas; b) o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC) deve modernizar e operar o supercomputador Santos Dumont ininterruptamente para oferecer à comunidade científica brasileira um instrumento competitivo com seus pares no exterior; c) o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) deve oferecer à comunidade brasileira de física das altas energias e astropartículas o suporte para participação nas grandes colaborações internacionais, mais ainda neste momento, quando o ministro Pontes e o Governo Brasileiro decidiram aderir ao Centro Europeu para Física de Partículas (CERN) como país membro associado, adesão essa esperada há muito tempo por toda comunidade cientifica brasileira; d) O Laboratório

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Nacional de Astrofísica (LNA) e o Observatório Nacional (ON) devem prover os recursos necessários para que a comunidade astronômica brasileira tenha acesso aos grandes observatórios internacionais. Cada uma das UPs tem responsabilidades análogas em importância para o desenvolvimento nacional.

No entanto, o lado mais dramático da crise pela qual passamos tem a ver com pessoal. O último concurso público para prover quadros para nossas instituições ocorreu em 2012. Cientistas jovens são essenciais para uma ciência de boa qualidade. Nossos institutos têm uma forte tradição de treinar pessoal avançado, em nível de pós-doutorado, que depois de um período de treinamento migram para o setor privado. Essas oportunidades estão diminuindo e observamos uma migração de cientistas jovens para o exterior buscando melhores oportunidades de trabalho. Nossos quadros têm uma idade média bastante alta. Para ilustrar isso, no CBPF, em 2021, mais de 10% dos pesquisadores pediram aposentadoria. Nenhum tem menos de 70 anos!

É nosso entendimento que o Brasil, como um dos poucos países continentais no mundo, tem um dever moral de ser um protagonista importante na determinação da agenda científica do mundo. Ciência é um patrimônio fundamental para qualquer país, não apenas pelos valores educacionais e culturais que traz para a humanidade, mas também por ser um instrumento importante para combater doenças e pandemias, garantir a segurança alimentar, aprimorar a defesa e, fundamentalmente, para criar riqueza e bem-estar para a sociedade. Hoje, em consequência da pandemia, nunca foi tão dramática a importância da ciência para orientar as decisões que devem nortear as ações dos agentes políticos da sociedade.

E a existência dos instrumentos de Estado, como o caso de nossas UPs são fundamentais para uma ciência vigorosa.

Gostaríamos de convidar Vossas Excelências e todos os Parlamentares para visitar os institutos de pesquisa do MCTI, pois presencialmente terão melhor ideia do papel relevante que exercem em prol do avanço científico e tecnológico do País.

Cordialmente, a serviço do País.

Ana Luisa K. Mangabeira Albernaz Diretora, MPEG

Jorge Vicente Lopes da Silva Diretor, CTI

Antonia Maria R. Franco Pereira Diretora, INPA

Marcus Granato Diretor, MAST

Cecilia Leite Oliveira Diretora, IBICT

Mônica Tejo Cavalcanti Diretora, INSA

Clezio Marcos de Nardin Diretor, INPE

Osvaldo Luiz Leal de Moraes Diretor, Cemadem

Fábio Borges de Oliveira Diretor, LNCC

Ronald Cintra Shellard Diretor, CBPF

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Giovanna Machado Diretora, Cetene Sérgio Lucena Mendes Diretor, INMA Ieda Maria Vieira Caminha Diretora, INT Sílvia Cristina Alves França Diretora, Cetem João Carlos Costa dos Anjos Diretor, ON Wagner José Corradi Barbosa Diretor, LNA

PARA O MCTIC: DECLARAÇÕES SOBRE O INPE

Exmo. Sr. Astronauta Marcos Cesar Pontes Ministro de Estado da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações Campo Grande, 21 de julho de 2019

Senhor Ministro: Tomamos conhecimento das declarações do Exmo. Sr. Presidente da República, Jair Bolsonaro, proferidas em entrevista a jornalistas estrangeiros no último dia 19, questionando a confiabilidade dos dados sobre o desmatamento da Amazônia, coletados pelo INPE e divulgados pelo Ibama. Acreditamos que o Senhor Presidente está mal informado sobre o processo envolvido na coleta de dados científicos, sobre os mecanismos de aferição da confiabilidade e transparência dos dados. Como qualquer atividade humana, os dados poderiam ter falhas. No entanto, os mecanismos de controle e da validação dos dados asseguram que a existência de falhas seja rapidamente corrigida e, quando publicados, eles sejam confiáveis. Dados científicos não devem ser passíveis de manipulação para atender a conveniências políticas.

Por outro lado, nesta entrevista, a integridade do Senhor Diretor do INPE, Prof. Ricardo Galvão, também é questionada. Pedimos ao Senhor Ministro que esclareça ao Sr. Presidente que toda a vida científica do Prof. Galvão, como de resto de todos os cientistas deste País, é pública e pode ser consultada facilmente por qualquer cidadão, usando o Currículo Lattes, do CNPq. As informações contidas no Lattes são auditadas pelo CNPq.

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Não bastassem os mecanismos públicos de aferição da respeitabilidade científica do INPE, como de resto de todas as Unidades de Pesquisas deste Ministério, sofremos todos intensos escrutínios dos órgãos de controle da República.

O Senhor Presidente da República apresentou Ciência e Tecnologia como uma das prioridades de seu governo, o que foi recebido com grande esperança. A prioridade começa com a isenção das atividades das unidades de pesquisas deste Ministério de injunções de caráter político ou de interesse econômico. Confiamos na sua habilidade em convencer o Sr. Presidente de que as unidades deste Ministério são fontes confiáveis de informação, que permitam ao governo federal planejar ações para alavancar o desenvolvimento do País.

Atenciosamente, Ronald Cintra Shellard CBPF

Osvaldo Luiz Leal de Moraes Cemaden

Fernando Antonio Freitas Lins Cetem

Lygia Vilmar Britto Cetene

Jorge Vicente Lopes da Silva CTI

Cecília Leite Oliveira IBICT

Antonia Maria R. Franco Pereira INPA

Salomão de Souza Medeiros INSA

Fernando Cosme Rizzo Assunção INT

Bruno Vaz Castilho LNA

Anelise Pacheco MAST

Ana Luisa K. Mangabeira Albernaz MPEG

João Carlos Costa dos Anjos ON

Sergio Lucena Mendes INMA

Márcio de Miranda Santos CGEE

Antonio José Roque da Silva Cnpem

Marcelo Miranda Viana da Silva IMPA

Jorge Almeida Guimarães Embrapii

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PARA O SENADO E A CÂMARA: DERRUBADA DE VETOS

Aos Excelentíssimos Senhores

Senador Rodrigo Otavio Soares Pacheco Presidente do Senado Federal Deputado Arthur César Pereira De Lira Presidente da Câmara dos Deputados Brasília, 14 de março de 2021

Senhores Presidentes:

Nós, membros atuais e ex-membros dos Conselhos Técnicos e Científicos e amigos das Unidades de Pesquisas e Organizações Sociais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), trazemos ao conhecimento de Vossas Excelências nosso apoio à derrubada dos vetos aos dispositivos da Lei Complementar n0 177/2021 de 12 de janeiro de 2021, referentes ao contingenciamento dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).

É nosso entendimento que a ciência é um patrimônio fundamental para qualquer país. Não são apenas pelos valores educacionais e culturais que traz para a humanidade, mas também por ser um instrumento importante para o combate a doenças e pandemias, para a segurança alimentar, a defesa e, fundamentalmente, para criar riqueza e bem-estar para a sociedade. Não é diferente no Brasil. Hoje, em consequência da pandemia, nunca foi tão dramática a importância da ciência para orientar as decisões que devem nortear as ações dos agentes políticos da sociedade. O FNDCT é um mecanismo vital para o financiamento das atividades científicas e tecnológicas no País.

Aproveitamos a ocasião para também chamar a atenção do Congresso Nacional para a situação bastante crítica dos institutos de pesquisas científicas e tecnológicas vinculados ao governo federal. Ao longo do tempo, esses institutos tiveram seus orçamentos reduzidos significativamente e seu quadro de pessoal drasticamente diminuído em número, com o agravante de que uma fração expressiva pode se aposentar de imediato.

Se essas reduções de orçamento e de pessoal persistirem, o sistema dos institutos de pesquisa, em particular do MCTI, em breve entrará em colapso. Isto não trará qualquer economia

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João

para o País; ao contrário, deixaremos de contar com um componente importante no esforço de melhorar nossa situação socioeconômica.

Fortalecer a infraestrutura de institutos de pesquisas é um desafio importante para qualquer governo comprometido em melhorar a economia do país e o bem-estar dos seus cidadãos.

Gostaríamos de convidar Vossas Excelências e todos os Parlamentares para visitar os institutos de pesquisa do MCTI, pois presencialmente terão melhor ideia do papel relevante que exercem em prol do avanço científico e tecnológico do País.

Cordialmente, a serviço do País.

Documento assinado por cerca de 200 pessoas.

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ENTREVISTAS

JAMES W. CRONIN O ENIGMA DAS MICROPARTÍCULAS COM MACROENERGIA

(Entrevista publicada na revista Ciência Hoje, n. 124, 1996)

Prêmio Nobel de Física de 1980, James Watson Cronin, de 65 anos, é professor da Universidade de Chicago e membro da Academia Americana de Artes e Ciências e da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Cronin é o líder científico do Projeto Auger, que até 2002 construirá dois equipamentos detectores de raios cósmicos, um nos Andes, na Argentina, e outro no hemisfério Norte, no estado de Utah (Estados Unidos). Trata-se de empreendimento estimado em US$ 100 milhões, com a participação de 20 países, inclusive o Brasil. Cronin visitou o Brasil em maio, quando discutiu com o ministro da Ciência e Tecnologia, José Israel Vargas, a participação brasileira no Projeto Auger.

Nesta entrevista, Cronin fala sobre o Projeto Auger e sobre a comprovação da violação da simetria CP, que lhe deu o Prêmio Nobel em 1980. O tema atrai há tempos o interesse dos físicos. Por algum tempo, eles acreditaram que se todas as partículas fundamentais fossem transformadas em antipartículas e pudessem ser vistas em um espelho, a imagem seria idêntica à original - condição conhecida como simetria por paridade e conjugação de carga (Charge conjugation-Parity, ou CP, em inglês).

A experiência conduzida por Cronin e seu colaborador Val Fitch, em 1963, no entanto, mostrou que essa simetria não é válida para os káons neutros. Essa violação da CP - que equivale à violação da reversão temporal - permite explicar por que o universo é dominado pela matéria e tem importantes implicações filosóficas.

Entrevista concedida a Ronald Cintra Shellard (PUC/RJ) e Cássio Leite Vieira.

Qual o interesse científico do Projeto Auger?

Sabemos, desde 1911, que existem radiações provenientes do céu. Há toda uma bela e complexa história sobre esse fenômeno. Sabemos hoje que tais radiações são, principalmente, partículas carregadas. Ao longo dos anos, tais partículas foram estudadas para se saber o que são e de onde vêm. Seu espectro é conhecido até energias bastante elevadas. Creio que sendo Ciência Hoje uma revista científica, posso usar unidades de energias como elétron-volts (eV) ou joules (]). À medida que foi sendo estudado o espectro de energia dos raios cósmicos – ou seja, sua intensidade em função da energia – viu-se que essa intensidade diminui rapidamente para energias muito elevadas. Entretanto, verificou-se em alguns experimentos que existem ainda

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raios cósmicos de energia superior a 1020 eV. Em unidades práticas, isso corresponde a 16 J de energia, o que significa energia macroscópica em partícula microscópica. Seria o equivalente a deixar cair uma pedra grande sobre seu pé. Então, como em qualquer projeto científico, tentamos entender todos os aspectos da natureza. Não compreendemos que tipos de objetos poderiam existir, presumivelmente, fora de nossa galáxia, capazes de acelerar uma partícula microscópica a energias extraordinariamente elevadas como essas.

O senhor tem alguma ideia sobre os mecanismos que aceleram raios cósmicos a tal nível de energia?

Até essas energias, não. Não se tem nenhuma ideia concreta, mas há mecanismos básicos, que, acredita-se, são capazes de explicar os processos de aceleração dos raios cósmicos para energias baixas. Os mais comuns em nossa galáxia são as ondas de choque dos materiais produzidos quando ocorre a explosão de uma estrela do tipo supernova. De cada lado das ondas de choque dessa explosão, são produzidos campos magnéticos extremamente turbulentos. Isso permite que os raios cósmicos, ao atingirem essas ondas, adquiram a energia do choque e sejam jogados de volta. É como se as partículas fossem refletidas por um espelho em movimento. O outro campo magnético, então, reflete novamente as partículas, e assim por diante. A cada reflexão, essas partículas ganham uma fração de sua energia original. Isso parece funcionar, pelo menos numericamente, para os raios cósmicos situados em uma ordem de magnitude cinco vezes mais baixa (em energia) do que os raios que queremos estudar. Mas fenômenos equivalentes não ocorrem com outros objetos astrofísicos conhecidos, tais como buracos negros, radiogaláxias e outros, que simplesmente não têm a capacidade de produzir a aceleração dessas partículas.

O estudo desses raios cósmicos pode revelar alguma surpresa? Sim. Se soubéssemos o que, teríamos melhores condições de pesquisa. Até agora, porém, temos algumas evidências indicando que esses raios se originam em regiões do espaço aparentemente não associadas a qualquer objeto astrofísico grande. Isso pode significar que eles seriam acelerados por algum tipo novo de objeto astrofísico, não-visível, mas detectável exatamente através dessa aceleração. É também possível que existam pressões e estresses no próprio espaço-tempo capazes de liberar, de maneira relativamente súbita, a energia responsável pela aceleração de tais partículas. Os físicos teóricos chamam isso de ‘defeitos topológicos’ e tal fenômeno está relacionado com teorias de partículas elementares. Pessoalmente, creio que não é bem isso o que acontece, mas acredito que, quando não se entende algo e não há boa explicação, é quase certo que haverá alguma surpresa. Não posso dizer exatamente o que será, porque aí não seria surpresa.

O estudo dos raios cósmicos pode levar a uma descoberta com o impacto da violação da reversão temporal?

É difícil responder. Usamos a noção da violação da reversão temporal para explicar por que estamos num universo dominado por matéria. O físico soviético Andrey Sakharov foi o primeiro a sugerir isso, em 1967. Na realidade, não sei como os raios cósmicos se relacionariam com a violação da reversão temporal.

Considera válido que um país como o Brasil gaste 10 milhões de dólares em pesquisa básica? Não seria melhor essa quantia em projeto tecnológico?

Se o país tem na mão um projeto tecnológico bem definido, está certo de que esse projeto terá algum resultado importante e aceita confrontá-lo com o Projeto Auger, esquecendo qualquer outra coisa, então, creio que poderia ser válido escolher o projeto tecnológico. Mas acho que o

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Brasil tem economia de porte e vem gastando muito em grandes projetos tecnológicos. Penso que devemos ter muito cuidado ao fazer ciência, mesmo ciência pura como astronomia, astrofísica ou esses raios cósmicos. Será que podemos ter tanta certeza de que, com esses estudos, vamos encontrar algo cuja importância ultrapasse em muito a de projetos tecnológicos com objetivos restritos?

Não sei responder, mas creio que, de modo geral – e isso tem sido verdadeiro em toda a história –, os países desenvolvidos que investem em aspectos mais culturais da ciência trazem muitos benefícios a seus cidadãos.

Certeza não podemos ter. A preocupação com entender a natureza não faz parte da cultura do país? Todo o processo de civilização no mundo é feito por pessoas que ignoram o lado prático da vida para questionar e procurar respostas nas coisas da natureza. Qualquer criança é curiosa sobre o mundo, pergunta o que há no céu, e quando cresce quer saber mais. Entendo que é decisão do país gastar um pouco de seus recursos no que chamaríamos de cultura científica. No Brasil, estamos assistindo à deterioração do ensino de matemática e de ciência nas escolas, e creio que o mesmo acontece nos Estados Unidos. Quais as consequências disso lá? Nos Estados Unidos, estamos perdendo parte cada vez maior da população que poderia participar da atividade econômica do país. Vemos jovens inteligentes condenados a uma vida infeliz. Eles acabam pertencendo a uma classe que temos a obrigação de manter e ajudar, porque somos seres humanos e não queremos que suas vidas sejam tão miseráveis. Mas eles não participam da economia. É um enorme problema para eles. Não creio que os EUA percam sua vantagem tecnológica, pois há sempre imigração da Ásia, América do Sul, Central, México, que procura tirar proveito das vantagens oferecidas na tecnologia, na educação. Os imigrantes entram no setor tecnológico da economia, cada vez mais dominante. Acredito que há um lado trágico, que tem suas consequências na qualidade de vida das pessoas. Isto é a questão mais séria, porque quando um país tem 20, 30, 40% de sua população não suficientemente educada para ter emprego decente, esse país vive, na realidade, uma tensão, sobretudo do ponto de vista humano. Não conheço soluções para esses problemas, mas eles certamente existem e também ocorrem nos Estados Unidos.

Qual será o resultado, para os Estados Unidos, da queda do orçamento para ciência e tecnologia? A pergunta, se bem entendi, refere-se à queda do orçamento para a ciência básica. Quando a diminuição é pequena, provavelmente não faz muita diferença, contanto que o orçamento tenha boa administração. Em ciência, como em muitas outras coisas, você fica experimentando e experimentando. As chances de sucesso de um projeto qualquer não são especialmente grandes. Então, se você sofre um corte pequeno, isto não afeta muito. A longo prazo, sim, afetaria. Mas não creio que isso ocorra nos EUA. É muito evidente que os investimentos em ciência e tecnologia são efetivamente rentáveis. Ali está o desenvolvimento econômico do país. Creio que os cortes cessarão tão logo os políticos se apercebam de que estão lidando com perda de competitividade econômica. O que pode acontecer é que a proporção do financiamento para pesquisas orientadas para objetivo determinado, como a cura do câncer, seja aumentada à custa da pesquisa básica. No campo da medicina, certamente ficou muito bem demonstrado que, no final, a pesquisa básica mostrou-se muito mais importante que a pesquisa dirigida.

Nas ciências duras, como a física, talvez seja mais difícil ter certeza disso. Na astrofísica ou na astronomia, o financiamento pode sofrer cortes e a produção cair, mas, se os projetos aprovados ganham maior prioridade, não creio que seja um desastre. Temos um longo caminho pela frente. O financiamento da ciência nos Estados Unidos é, de fato, muito bom, embora todo mundo se queixe.

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Voltando à violação da CP, duas perguntas: Que mecanismo induz esta violação nos káons –mésons K- neutros? E como vê as implicações filosóficas da violação da CP? A violação da CP foi descoberta há muito tempo, mas a resposta ainda é esta: não sabemos. Entretanto, há uma enorme área em física de partículas tentando entender a origem da violação da CP. Terei de ser um pouco técnico aqui. Suspeita-se fortemente que a violação esteja relacionada ao fato de existir três famílias de quarks e de léptons. Isso foi mostrado num artigo dos japoneses Makoto Kobayashi e Toshihide Maskawa. Não creio que isso seja suficientemente satisfatório. Toda a pesquisa feita hoje sobre isso baseia-se no comportamento de um parâmetro que aparece numa matriz 3 por 3. Se esse parâmetro existe, ele dá conta da violação da CP. Acho que isso só desloca o problema um passo à frente: devemos perguntar então por que esse parâmetro tem o valor numérico encontrado, e também por que os outros elementos dessa matriz têm os valores que têm. Considero isso um pouco desconcertante, pois a violação da CP está relacionada a propriedades fundamentais do espaço e do tempo, e, provavelmente, é responsável pela própria existência de coisas como as galáxias, porque nunca sobreviveríamos se houvesse misturas em partes iguais de matéria e antimatéria. A violação pode ser detectada nos káons neutros porque é um sistema extremamente sensível, formado por um equilíbrio delicado entre partículas e antipartículas. Basta romper esse equilíbrio, em um valor extremamente pequeno, para que o efeito apareça. Só para dar uma ideia, o parâmetro que mede a violação da CP nesse sistema corresponde a uma energia de 10-17 eV e a massa do káon atinge cerca de 108 eV. Devido a tal sensitividade, o efeito aparece primeiro nesse sistema. No entanto, há um sistema análogo no caso dos mésons B. Pode-se predizer o efeito com bastante precisão, se a origem da violação da CP for essa matriz numérica, ou seja, se estiver relacionada com o fato de que há três famílias de quarks. Eu estimaria que 1.500 físicos no mundo inteiro estão trabalhando no problema da violação da CP para os mésons B. Esse é um número excessivo, a meu ver. Um dos artigos mais bem escritos sobre a violação da CP é o de Murray Gell-Man e Abraham Pais. Eles escreveram sobre as consequências da interação das partículas no início dos anos 1950. Esse artigo foi escrito em 55. Eles dizem que deve existir um méson K de longa vida, capaz de viajar centenas de metros. Uma previsão tão poderosa partindo de elementos tão simples foi realmente notável. Os mésons K já tinham dado informações sobre a violação da paridade. São realmente partículas notáveis, que sinalizaram para nós propriedades maravilhosas da natureza.

O que vou dizer agora é algo pessoal. A pessoa precisa ter sorte para descobrir uma coisa como essa. Quando você descobre, tende a pensar que deve ser algo especial, e não apenas mais um, na coleção de números que caracteriza a natureza. Então temos de pensar: por que deve ser assim? Essa é provavelmente a mais fundamental pergunta em física de partículas. Certamente, sabemos muito bem como as coisas funcionam. Considerando a máquina do LEP (Large Electron-Positron Collider), no CERN, podemos prever, talvez com 99,9% de precisão, qualquer coisa que se possa medir nela. É um grande sucesso na ciência. Podemos dizer que é assim que as coisas funcionam, mas a questão é o porquê. Por que existem todas essas famílias de quarks? Por que eles têm as massas que medimos? Mesmo quando esse famoso méson de Higgs for descoberto, teremos um mecanismo, mas ainda não teremos a resposta. Não sei se a resposta virá da construção de uma máquina maior, ou dos céus, ou de alguma intuição teórica. Esse é o grande problema da física de partículas. A resposta pode vir de algo que nem imaginamos hoje. Quando o senhor fez a experiência com káons neutros, já estava procurando a violação da CP ou ela apareceu de forma inesperada? Havia uma experiência que mostrava a regeneração de káons de longa vida. Quando se gera um feixe de káons de vida longa em um material, isso perturba o balanço entre partículas e

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antipartículas, e emergem muitos káons de vida curta. O físico Robert Adair fez uma experiência em hidrogênio e interpretou os resultados como mostrando uma regeneração anômala e desenvolveu bela teoria a respeito. Projetamos um experimento para verificar isso. Devido à nova tecnologia de câmara de centelha que usamos, podíamos aumentar a resolução por um fator de 50. Quando analisamos as fotografias, depois do Natal de 1963 e no início de 1964, lá estava o efeito que tínhamos visto no verão de 1963. A experiência fora feita em 1963. No verão de 1964, já tínhamos quase tudo pronto para publicá-la. Ela foi publicada na Physical Review Letters. Nosso objetivo era usar a nova tecnologia para reduzir o limite, mas acabamos encontrando um sinal. A experiência era tecnicamente boa o suficiente para tornar clara a existência do sinal. O alvo inicial, no entanto, não tinha sido esse. Mas não é assim que a ciência progride? Não suspeitávamos da existência de um efeito. Na época, era um sinal pequeno. Mas, com o avanço da tecnologia dos detectores, o sinal tornou-se tão grande em relação a outros em nossos planos de observação que é necessário mascará-lo para ver outro fenômeno.

Fale um pouco das implicações filosóficas desse conceito. Consideramos que é verdade, e em tal perspectiva essa é talvez a razão pela qual eu gostaria de pensar que, de algum modo, é mais profundo e fundamental do que ter simplesmente que medir parâmetros da teoria da natureza. Posso estar errado sobre isso, mas talvez todos estejam procurando saber se os parâmetros da violação da CP têm também status similar ao da massa do quark top, do méson T. A existência da violação da CP sugere – se você realmente acredita nisso – que este seja o mecanismo responsável por termos um Universo todo de matéria. Mas há – outras questões filosóficas ainda mais profundas. O que me surpreende também, quando mais aprendo sobre ciência, é se há realmente algo. É um acaso, é uma sorte, que todos esses parâmetros tenham o valor correto, e você pode até argumentar mais, como o fato de que o gelo flutua sobre a água em lugar de afundar e de que a ligação atômica não é um pouquinho diferente. Se cada uma dessas coisas tivesse pequenos desvios, na vida, pelo menos como nós a conhecemos, não existiria.

Acho que os cientistas levam desvantagem em relação a pessoas religiosas: não aceitam admitir que as coisas são como são por razões sobrenaturais.

Como decidiu tornar-se físico?

Já me fizeram essa pergunta e vou tentar contar como aconteceu. Eu diria que foi como os franceses costumam dizer: au pifomètre (por intuição). Não se deve só a um fator, mas a um conjunto de circunstâncias, tais como estar interessado em uma coisa, ter uma boa professora no ginásio.

Outra coisa que me fascinou foi que eu adorava medir coisas, não importa o que fossem. Nas aulas de laboratório do curso elementar, eu media cuidadosamente o ângulo de plano inclinado. Tanto quanto possa lembrar, sempre gostava de fazer medidas como essas. Isto me dirigiu para a física e para a física experimental. Penso que o que aconteceu em minha carreira foi grande dose de sorte: estar no lugar certo na hora certa. E todos esses prêmios... Você deve ter muito cuidado para não se deixar levar pelo sucesso, porque isso pode acontecer com muita gente. Refiro-me a esse Prêmio Nobel que parece ter tanto prestígio, e as pessoas (não falo de Einstein, ou Bohr, ou outros) precisam saber que, se estamos lá, isso deve-se em boa parte à sorte. Mas, voltando à sua pergunta, creio que andei passeando pela física. Quando terminei a pós-graduação, em 1955, tinha a opção de ir trabalhar na indústria, na General Electric, para construir melhores reatores para aviões. A outra alternativa era ir para a pesquisa básica. Não tenho certeza de ter tido sentimentos fortes nem para uma nem para outra. Se tivesse ido para a GE, a situação teria sido completamente diferente.

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Por que escolheu partículas?

Fiz minha tese em física nuclear. A física de partículas estava apenas começando. Era física de partículas de alta energia. Parecia bastante interessante e um de meus professores, Valentine Telegdi, sugeriu esse campo, embora o salário não fosse muito alto naquele tempo. Sempre se preza o conselho dos professores ou dos colegas. É como um passeio ao acaso. Eu imagino que até o Einstein deve ter se perguntado como ele se envolveu em física. Será que ele estava olhando para uma bússola? Aposto que sim. É fácil montar essas lendas, mais tarde.

Tem algum hobby?

Se ler é hobby, então sim. Leio muito. Não leio ficção científica. Se gosto de um autor, leio sua obra até a exaustão. Há três anos, li uma novela dessa maravilhosa mulher americana, Willa Cather. Gostei muito. Então li tudo que ela escreveu. Dostoiévski é outro. Também gosto de ler memórias de políticos e de presidentes, história moderna da França, desde a guerra franco-prussiana. Também leio sobre a transformação da União Soviética. E, devido ao Projeto Auger, tenho entrado em contato com muitos países diferentes. Gostaria de aprender mais sobre a América do Sul. Não quero fazer previsões, mas gostaria de aprender espanhol. Minha única língua estrangeira, no momento, é o francês. Mas tenho 64 anos, e não sei se será fácil aprender uma nova língua.

E música? Gosto de ouvir música, mas não toco nenhum instrumento. Minha esposa toca piano, temos um piano em casa. Como vivemos em um apartamento na cidade, construímos uma casa no campo, em Wisconsin. Outra coisa que faço é jardinagem. São os meus exercícios físicos!

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DIRETOR DO CBPF É RECONDUZIDO AO CARGO

(Entrevista dada ao Núcleo de Comunicações do CBPF, 2020)

Ofísico experimental Ronald Cintra Shellard, atual diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), uma das unidades de pesquisa do ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), foi reconduzido ao cargo, no qual ficará até dezembro de 2023.

Shellard foi escolhido por Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, a partir de uma lista tríplice estabelecida pelo Comitê de Busca para o CBPF, instituído pelo MCTI e sob a presidência de Sylvio Canuto, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.

Nesta entrevista, Shellard faz balanço de sua gestão, iniciada em dezembro de 2015, fala de planos para o próximo quadriênio, incluindo o fortalecimento dos institutos de pesquisa no Brasil.

Como o senhor recebeu a notícia de que seria reconduzido à direção? Recebi telefonema do subsecretário das Unidades Vinculadas do MCTI, tenente-brigadeiro do ar Gerson Machado de Oliveira, comunicando a decisão do ministro Marcos Pontes. Agradeci e me disse muito honrado pela confiança que o ministério mais uma vez depositava em mim e também muito agradecido ao Comitê de Busca, que me incluiu em sua lista tríplice.

Como o senhor avalia seus quatro primeiros anos de gestão? Algo que gostaria de destacar?

Foi um período difícil, pelo fato de que os recursos foram bastante irregulares, com pouca previsibilidade, em função dos problemas econômicos ao longo de todo esse período. Isso exigiu não só muita atividade política junto ao Congresso – cheguei a fazer discurso no plenário da Câmara dos Deputados em Brasília –, mas também interação constante com o ministério.

Mas, ao longo desse período, nós, diretores de unidades de pesquisa do MCTI [UPs], fizemos ação mais coordenada junto ao próprio ministério e Congresso, em defesa do sistema de institutos de pesquisas – entendidos aqui em sentido amplo – como um dos elementos importantes para o avanço da ciência no Brasil.

No plano interno, o CBPF manteve, ao longo destes quatro anos, seu nível de excelência e, mesmo com a diminuição de quadros, obteve aumento da produção científica e das atividades que fazem parte de nossas responsabilidades como infraestrutura de ciência e tecnologia para o país. Essas atividades incluem simpósios científicos, escolas para a formação de quadros qualificados, ações associadas à inovação tecnológica, apoio a laboratórios e, vale destacar, a infraestrutura de conexão de internet que o CBPF, como ‘espinha dorsal’ dessa tecnologia, fornece para não só instituições acadêmicas, mas também para instituições de estado, prefeituras, unidades militares, hospitais, escolas etc. no estado fluminense.

Quando iniciei minha gestão, ouvi relatos relacionados a assédio moral e sexual. Fizemos uma campanha de conscientização e criamos comitê para analisar denúncias. A questão do respeito – ou seja, o princípio de que as pessoas do CBPF são iguais e de que as diferenças são expressas apenas no grau de responsabilidade que cabe a cada membro desta comunidade –acabou sendo assumida por todos.

Em meu entender, tensões diminuíram, e fortaleceu-se o fato de que relações pessoais devem ser pautadas por estrito profissionalismo. A consequência disso é que as relações pessoais no CBPF são muito mais alegres, informais – noto isso nas celebrações que fazemos de tempos em tempos –, elementos essenciais para o espírito de comunidade que temos hoje.

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Talvez, o que possa ser atribuído como defeito meu é o fato de eu ter dificuldade em dizer ‘não’. Isso acarretou sucessos muito interessantes para o CBPF. Exemplos: a realização, com grande sucesso, de várias edições da Escola Avançada de Física Experimental, que a cautela com recursos recomendaria não ser apoiada, mas que nossos pesquisadores jovens insistiram em levar adiante; o Mural Grafite da Ciência, que, claramente, tinha tudo para dar errado e se tornou projeto fantástico, referência internacional para a instituição; o Hackcovid19, hackathon voltado para soluções para a pandemia e idealizado por dois de nossos pesquisadores, igualmente jovens, tinha tudo para não dar certo, mas teve participação recorde e grande repercussão na mídia.

Esses grandes sucessos do CBPF devem-se ao grande talento de nossa comunidade. E, devo admitir, minha contribuição foi a de não agir como gestor realmente responsável.

Gostaria de destacar que dirigir o CBPF é tarefa relativamente fácil por razão simples: somos uma instituição madura, dotada de grande profissionalismo, e nosso foco é claro e límpido: produzir ciência pautada por critérios de excelência, à altura das melhores instituições congêneres do mundo, e derivar deles, sempre que possível, desenvolvimentos tecnológicos, mesmo que isso se dê de forma indireta, para o bem-estar de nossa sociedade.

Vale lembrar que o CBPF são as pessoas que o formam. Então, é também nosso foco fazer com que elas tenham satisfação em cumprir suas tarefas profissionais, nos muitos aspectos que fazem com que cumpramos nossa missão de servir ao país.

Quais, em termos gerais, são seus planos para estes próximos quatro anos? Acho que enfrentaremos quadro complexo nos próximos anos. Claramente, essa tragédia pela qual passamos, a pandemia, trará mudanças para a sociedade. O cenário econômico que se esboça neste momento não é particularmente promissor.

Então, nossa primeira tarefa é a sobrevivência do CBPF como instituição de excelência. Temos necessidade urgente de expandir nossos quadros de pesquisadores, tecnologistas, analistas e técnicos, mas as perspectivas não admitem qualquer forma de otimismo. Nosso futuro, de certa forma, está vinculado à nossa capacidade de convencer o Congresso da relevância de nosso papel na sociedade e, assim, gerar um arcabouço legal que permita não só a reposição de quadros, mas também nossa expansão.

Claramente, em nosso dia a dia, temos que fazer grande esforço para manter os orçamentos. Com a pandemia, aprendemos a usar de modo bem mais efetivo ferramentas de videoconferência, por exemplo. Temos grande desafio em empregar melhor essas e outras tecnologias para atingir um público cada vez maior.

O sucesso do Hackcovid19 mostrou que temos potencial que, se explorado de forma correta, poderá expandir nossa contribuição para a sociedade. Essa iniciativa nos ensinou que podemos (e devemos) cooperar de forma mais efetiva com outras instituições, não só as unidades de pesquisa do MCTI, mas também com outros institutos de pesquisa científica.

Há outras novas ideias no forno que podem dar ainda mais visibilidade para as ações do CBPF. Cito, em particular, a iniciativa Open Universe, cujo projeto prevê a elaboração de um banco de dados mundial e aberto com tudo que sabemos sobre o cosmo, no sentido mais amplo possível.

O senhor idealizou recentemente campanha lançada pelo Núcleo de Comunicação Social do CBPF voltada para o fortalecimento dos institutos de pesquisa – entendidos aqui em sentido amplo, incluindo não só os do MCTI, mas também os de outros ministérios, como Embrapa e Fiocruz, e mesmo estaduais. Quais são os objetivos gerais dessa campanha para além do fortalecimento? E que metas a campanha gostaria de alcançar?

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Nós, diretores dos institutos do MCTI, tanto das UPs quanto organizações sociais (OSs), nos juntamos e passamos a articular ações políticas de forma conjunta.

A motivação vem de constatação óbvia – infelizmente, mas não é incomum o óbvio não ser óbvio. Temos usado o argumento de que, em grande parte dos países desenvolvidos economicamente – e, por consequência, cientificamente avançados –, há razoável balanço entre o número de professores nas universidades e pesquisadores e tecnologistas em seus institutos de pesquisa.

No Brasil, nesse aspecto, há enorme assimetria, a qual deve ser corrigida para melhorar a ‘saúde’ do ambiente de C&T no país. Não é tarefa simples e, certamente, tomará tempo e trabalho para corrigir isso. Mas esse é o principal objetivo do programa.

Há nessa iniciativa outro aspecto importante, mas muito negligenciado: a interação com o setor privado e com o próprio estado. Deveríamos ser centros de treinamento avançado para pessoal que, depois de passar um tempo conosco, em contato com ou fazendo pesquisa científica, vai levar essa cultura para as empresas e a iniciativa privada e, assim, promover a inovação nesses ambientes. Esse papel tem sido pouco explorado em nosso meio.

O senhor tem projeto para o CBPF que envolve a possibilidade de a instituição contratar doutores (pesquisadores, tecnologistas e analistas) por tempo determinado e para projetos específicos. Eles seriam pagos não com bolsas, mas, sim, com salários cujos valores seriam próximos àqueles recebidos por servidores concursados em início de carreira. O senhor poderia esboçar em linhas gerais essas ideias?

Se você olhar com atenção, uma bolsa para uma pessoa adulta, um profissional com 25, 30 anos, altamente gabaritado, não raramente com um doutorado, beira o que se poderia chamar exploração salarial. Devemos nos lembrar de que aquela pessoa é um ou uma profissional.

Como mencionei antes, a saída, hoje, para a expansão significativa de quadros nos institutos de pesquisas passa pela possibilidade de podermos contratar jovens por períodos limitados de tempo, seguindo as regras habituais de mercado, ou seja, CLT. Para isso ser possível, seria preciso nova legislação. E é justamente isso que está em discussão.

A saída oferecida pelo regime de OS também não é satisfatória, pois deixa as instituições muito vulneráveis, o que pode ser atestado por nossos colegas que dirigem os institutos de pesquisa que optaram por esse modelo.

Em resumo, estamos discutindo com o Congresso legislação que ofereça as possibilidades de OS, sem as vulnerabilidades desse regime.

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MOBILIZING BRAZILIAN SCIENTISTS FOR DUNE

For more than 30 years, many Brazilian scientists have called Fermilab experiments their scientific home. The partnership between Fermilab and scientists from Brazil dates back to the 1980s, when the laboratory brought four young scientists to Illinois to conduct research for two years before returning to their home institutions in São Paulo and Rio de Janeiro. Today, about 80 scientists and students from 16 Brazilian institutions participate in Fermilab experiments, including the neutrino experiments DUNE, NOVA and MINERVA and the Dark Energy Survey.

The Brazilian Center for Research in Physics (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, or CBPF) was the home of three of the four Brazilians who made the first trek to Fermilab in 1984 and today remains a leading institution for particle physics research in Brazil.

During a visit to Fermilab at which representatives from global funding agencies discussed the progress of and support for the Long-Baseline Neutrino Facility and Deep Underground Neutrino Experiment as part of the Resources Review Board, CBPF Director Ronald Shellard discussed the past, present and the future of collaboration between Brazilian scientists and Fermilab.

What were the origins of the connection between Brazilian physicists and Fermilab?

The history goes back to the 1980s when [Fermilab Director Emeritus] Leon Lederman wanted to mobilize Latin America to join high-energy physics experiments around the world. Lederman visited many places and corresponded with the Brazilian Physical Society, which at the time was dominated by condensed matter researchers. Lederman offered fellowships to young Brazilians who came to Fermilab, and then they brought their students to Fermilab. That provoked a reaction from CERN, who offered one fellowship to a young Brazilian scientist, which I took. Fermilab was absolutely essential in creating a large and quite vigorous community of high-energy physics researchers not only in Brazil, but in Latin America.

On which Fermilab experiments did Brazilian scientists leave their mark? The first Brazilian scientists at Fermilab worked on a fixed-target experiment exploring the charm quark. Later, there was a group that joined the DZero collider experiment, which has now moved to the CMS experiment [at the Large Hadron Collider]. Many Peruvian, as well from other Latin American countries, scientists took their degrees in Brazilian institutions on themes associated to Fermilab. Today they have a community in their countries. Also, there is a large collaboration of Brazilians working on the Pierre Auger Observatory. [Fermilab scientist] Paul Mantsch was crucial to making Auger happen on time and on schedule in a period when Argentina had a huge economic crisis. Now I am here because of my responsibilities as director of CBPF, which is involved in DUNE. As a scientist I have been following with much interest the development of DUNE. It’s an excellent opportunity to have new, young physicists tackling the main, exciting problems in high-energy physics. And neutrino research is one of the windows to solve some of the fundamental questions in particle physics.

How do you see the partnership between Brazil and Fermilab evolving over the next decade? I would like to see an increase in the amount of people in their 30s participating in Fermilab’s flagship experiment, so that they have leadership roles in DUNE in 10 years. I also see the possibility of mobilizing local resources, local industries for providing equipment and services

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to DUNE, which is very important to creating a solid base for the continued growth of high-energy physics in Brazil. We are at the stage where we need to get involved not only in doing the analysis from the experiment, but actually building parts of it here in Brazil. Some of our younger scientists have already been developing detectors for DUNE. We, in South America, are also building the ANDES project (which stand for Agua Negra Deep Experimental Site) that we hope to use for neutrino physics. This is connected to a road tunnel under the Andes that will connect Argentina and Chile all year long; the existing tunnel is closed two months a year. We need international collaboration to help fill it [with experimental equipment].

How has high-energy physics research had broader impacts in Brazil? Our high-energy physics community has now reached ‘adulthood,’ and we have people doing great work. We have a light source in Brazil [SIRIUS] in the final stages of construction, a state of the art synchrotron radiation facility, which will be open for all. There has also been an impact on education. For more than 10 years, high school teachers from Brazil have participated in a CERN course together with colleagues from Portugal. More than 300 teachers have participated from 23 states in Brazil. This has been very successful; they feel part of the scientific enterprise. The impact has been enormous.

Where do you see Brazilian high-energy physics heading next?

One of the paradoxes of science is that the more you know, the less you know. We are stuck with a Standard Model and lots of things that don’t fit. In the 1970s when I did my Ph.D., progress was slow. Now it’s fast, even though experiments take a long time to build. Brazilian science has come a long way. Within my lifetime we went from few scientists to a significant number of people and enough resources to give a big step forward and be more proactive in the experiment where we participate. We have work to do. We need to spread high-energy physics around our country more; at the moment it is concentrated in the south around Rio de Janeiro and São Paulo. We need to mobilize industry to serve and benefit from these experiments. These things are happening – not at the rate I would like, but they are happening.

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RAIOS DE ALTA ENERGIA: NOVA FRONTEIRA*

Após pesquisadores detectarem raios cósmicos ultraenergéticos, o desafio é saber exatamente como eles são produzidos em galáxias distantes.

Situado em Malargüe, região semidesértica no oeste da Argentina, o Observatório Pierre Auger é o maior do mundo em sua especialidade, o estudo de raios cósmicos. O observatório também é único no arranjo dos seus detectores, que cobrem uma área três vezes maior que a cidade do Rio de Janeiro. Além dos detectores terrestres, os pesquisadores contam com 24 telescópios especiais. Sua construção começou em 2000. Não havia nada similar no hemisfério Sul. A iniciativa envolveu 17 países e conta hoje com quase 400 pesquisadores de todo o mundo, entre eles brasileiros. O resultado mais importante obtido pelo Observatório foi desvendar, em 2007, a origem dos raios cósmicos ultraenergéticos, um dos maiores mistérios da natureza, fato que promete abrir um novo campo de estudo para a física. Uma nova unidade do Observatório deverá ser construída no Colorado, Estados Unidos, com estrutura maior que a do congênere argentino — exatamente sete vezes maior. Deverá custar em torno de US$ 120 milhões, valor barato se comparado a muitos experimentos realizados hoje em dia. Os cientistas do Observatório Pierre Auger desvendaram um dos maiores mistérios da natureza, a origem dos raios cósmicos ultraenergéticos.

O que são eles?

Em novembro de 2007, anunciamos que tínhamos identificado pela primeira vez raios cósmicos em relação aos quais podíamos dizer claramente que vinham de fora de nossa galáxia. E mais do que isso: conseguimos associá-los a certas regiões do espaço, as galáxias com núcleos ativos. Tomamos muito cuidado para não dizer que tais núcleos estão produzindo os raios cósmicos, mas que estão associados a eles, que há uma correlação. Quem defini-los de forma definitiva provavelmente ganhará o Prêmio Nobel. Estamos tentando desvendar, pelas beiradas.

Os raios cósmicos de alta energia são muito raros? Registramos cerca de milhões de eventos todos os anos e medimos sua energia. Os raios cósmicos ultraenergéticos têm energia mais de mil vezes maior do que aquela disponível numa colisão do LHC, o mais potente acelerador de partículas já construído. Nós estudamos somente raios cósmicos de energia muito alta, não os de baixa energia, pelos quais somos bombardeados o tempo todo - pelo menos uma centena de raios cósmicos atingem nossos corpos a cada minuto; se você colocasse um detector, ficaria alarmado, mas eles têm energia muito baixa, milhões de vezes menores que a dos raios ultraenergéticos. Quanto maior energia, mais raros são. Depois de três anos de pesquisa, eles não chegaram a uma centena.

A descoberta de vocês é considerada uma das mais importantes no último século. Por quê? Quanto aos raios cósmicos comuns, uma parte vem do Sol, outra das galáxias, provavelmente resultado da explosão de estrelas. Mas quando eles chegam à Terra, não apresentam nenhuma pista do local de onde saíram. Porém, as partículas com energia muito grande são pouco afetadas na trajetória até o nosso planeta, mantendo sua integridade. Descobrimos que elas vêm em linha reta de uma distância equivalente a mais de cem vezes a distância entre Terra e Andrômeda, uma galáxia vizinha.

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Qual a origem dessa limitação da distância?

Um fenômeno existente na natureza que conhecemos desde 1964 e que rapidamente as pessoas se deram conta de que isso iria afetar os raios cósmicos de energia muito alta, a radiação do fundo do universo. Hoje ela é conhecida em detalhe, uma espécie de retrato da luz remanescente da grande explosão inicial, do Big Bang.

Como é a participação dos brasileiros no Observatório Pierre Auger?

Esse é o primeiro grande experimento internacional onde todas as partes têm pesos equivalentes, não existe um país predominando. Nós brasileiros correspondemos a 10% da colaboração, os americanos talvez correspondam a 15%, os alemães, a 14%. O poder e as decisões são divididos de forma equitativa, em contraste com outros grandes experimentos, como o CERN, onde são os europeus que dão as cartas. No Observatório Pierre Auger, brasileiros e argentinos controlam uma parcela significativa das tarefas, dos programas. Detalhe: o Observatório foi construído na Argentina no meio da crise econômica do início dos anos 2000, e eles mantiveram seu compromisso, nós também.

A indústria brasileira também foi beneficiada? Nós contribuímos com cerca de 10% do custo do Observatório na Argentina, mas, detalhe: quase todo o dinheiro foi gasto em encomendas a indústrias brasileiras, que aprenderam a trabalhar com demandas mais rigorosas, sendo que algumas delas tiveram avanços. Por exemplo, a companhia que faz os detectores (que são uma espécie de grande tanque) é do Rio Grande do Sul e seu principal produto são implementos agrícolas construídos com plásticos. O que precisávamos não era da área de produção deles, que faziam tanques para agricultura. Então existe esse outro lado, de desenvolver a indústria, que é interessante.

* Coleção Caros Amigos, Grandes cientistas brasileiros, fascículo 2, Florestan Fernandes e César Lattes, Editora Casa Amarela, 2009.

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CIENTÍFICA

A CIÊNCIA NECESSÁRIA

(Texto para o Jornal do Brasil, 3 de abril de 1995)

Há poucos dias, um grupo de cientistas americanos, europeus e brasileiros anunciou a descoberta do sexto quark, o top. A existência deste quark, prevista teoricamente, vem confirmar as noções que os cientistas têm sobre a estrutura da matéria. Nos Estados Unidos e na Europa, este anúncio teve repercussão nos meios de comunicação, com manifestações de cientistas, das autoridades responsáveis pelo suporte à ciência, e até mesmo de políticos, explicando a importância desta descoberta para nossa concepção da natureza e da ordem do cosmos.

A contribuição do grupo brasileiro para esta descoberta foi relevante, reconhecimento expresso por John Peoples, diretor do laboratório onde estão sendo realizadas estas pesquisas, numa entrevista concedida ao Jornal do Brasil. No nosso país, houve menos atenção e não há como evitar certa sensação de desconforto quando o reconhecimento do trabalho dos nossos colegas necessita de validação externa da autoridade estrangeira, pois de certa maneira não conseguimos julgar o que é importante em ciência.

A pergunta mais frequente, quando se explicam temas de ciência básica, é – mas para que serve isto? A resposta, sempre frustrante para o interlocutor, invariavelmente é – Para nada! –seguida pelo comentário – a propósito, para que serve um bebê? Esta resposta reflete apenas certa arrogância pueril nossa, incomodados com a presumível falta de cultura de quem ousa formular tal questão. Mas é uma questão legítima, que deve ser enfrentada. Ela origina-se em dois pontos distintos, no cérebro e no bolso do cidadão.

Todos os estudos realizados sobre ciência básica indicam um retorno imediato em termos de desenvolvimentos tecnológicos e aplicações práticas. Por vezes, este retorno se dá de forma direta, como nas aplicações derivadas da decodificação genética; em outras, como consequência dos instrumentos desenvolvidos para a pesquisa, como na física das altas energias e na astronomia.

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DIVULGAÇÃO

A lista de aplicações derivadas dos instrumentos usados na física das altas energias, a física que estuda os quarks, é enorme. Aceleradores de partículas são usados em aplicações tão diversas quanto o tratamento do câncer e a esterilização de alimentos e dejetos industriais, tomógrafos foram inventados a partir de detectores de partículas, para mencionar apenas alguns deles.

O exemplo mais recente de contribuição desta área é a construção de um instrumento que já está revolucionando o mundo neste fim de milênio: a rede de bancos de dados www (world wide web). Esta rede, construída originalmente no CERN para resolver o problema de troca de informações dentro das colaborações experimentais, que envolvem centenas de físicos e engenheiros espalhados por dezenas de instituições e países, acabou se tornando um instrumento de museus, bibliotecas e, agora, de organizações comerciais.

A lição a ser tirada disto é que os problemas confrontados pelos cientistas, que esbarram no limite do conhecido, exigem soluções originais que, com frequência, vão encontrar aplicações inesperadas, não previstas e não planejadas. Quanto vale isto? É difícil quantificar, mas todos os investimentos feitos são amplamente compensados pelas tecnologias associadas desenvolvidas; porém, em contraste com a pesquisa aplicada, esta compensação se dá de forma difusa e inesperada.

O cérebro, mais romântico, quer saber como o quark top afeta não só o seu cotidiano, mas também o mundo que o cerca. Este questionamento é movido pela curiosidade e pelo fascínio do saber, e as respostas, mais sutis e complexas, exigem do interlocutor algum preparo formal para compreendê-las.

A assimilação adequada destas questões implica tornar o conhecimento científico como parte da cultura do processo de civilização científica. Quando se investigam as razões pelas quais uma nação deve investir em ciência básica, os argumentos vêm pautados, sempre, pelos benefícios econômicos gerados pelo processo de pesquisa.

No entanto, a motivação mais importante está nos benefícios que advêm da influência exercida pela ciência sobre os jovens, pela capacidade de incendiar-lhes a imaginação, de estimular sua curiosidade e o seu senso de amor-próprio. Uma nação em que os cidadãos têm um senso crítico mais apurado pelo rigor científico certamente está mais aparelhada para enfrentar os desafios modernos.

Há um fosso separando a comunidade científica da sociedade brasileira, tendo como causa e consequência, por um lado, o analfabetismo científico da população e, por outro, a falta de apoio político ao desenvolvimento de projetos científicos no país. Os cientistas podem contribuir para a redução deste fosso vindo a público, explicando e transformando seu trabalho em cultura.

Há uma grande dificuldade neste vir a público pela falta de canais adequados de expressão. Nas páginas dos jornais e revistas, assim como nos noticiários e programas das televisões, há pouco espaço para a ciência. Um canal natural para que isso ocorra está nas escolas de ensino médio. Há nelas um público do maior interesse para os cientistas: os estudantes, seus potenciais assistentes de pesquisa ou, pelo menos, cidadãos mais letrados em ciência, amanhã.

Está sendo lançado no Rio de Janeiro o programa ‘SBPC vai à Escola’, coordenado pelo físico José Leite Lopes, que levará cientistas às escolas de ensino médio, onde discutirão os temas relevantes da ciência de hoje, debatendo com estudantes e professores. Este programa visa a estabelecer um diálogo entre cientistas e a sociedade, procurando aproximá-los.

O tema subjacente é transmitir à nação que se faz uma ciência interessante no Brasil e que, mesmo que viva em Xapuri, no Acre, em Botafogo ou Cachambi, no Rio de Janeiro, ele pode participar da descoberta do top. Para isto, é necessário trabalho, dedicação e perseverança.

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Por outro lado, convencê-los, também, de que temas de pesquisas locais, como a ecologia da mata atlântica, as línguas dos indígenas brasileiros ou a história da república dos Palmares, são de interesse universal, fazem parte da aventura da ciência.

A DESCOBERTA DA PARTÍCULA W

(Texto publicado na seção ‘Tome ciência’, da revista Ciência Hoje, n. 5, 1983)

Oanúncio da descoberta das partículas W ganhou as manchetes dos jornais nas últimas semanas de janeiro, a notícia talvez tenha causado surpresa entre o público leigo, mas já era aguardada com grande ansiedade pelos físicos.

A história da partícula W remonta ao longínquo ano de 1934, quando o físico italiano Enrico Fermi formulou uma teoria para as interações fracas que sobreviveu, com algumas modificações, até a década de 1960, No início desta década, muitos físicos (entre eles o brasileiro José Leite Lopes) notaram a semelhança formal que havia entre a teoria de Fermi e a teoria do eletromagnetismo, mas com uma diferença crucial. Enquanto no eletromagnetismo a interação é transmitida pelo fóton (ou, mais prosaicamente, pela luz nas suas diferentes formas: raios gama, raios X, luz ultravioleta, luz visível, ondas de rádio etc.), que pode ser imaginado como uma partícula sem massa, nas interações fracas ela é transmitida por partículas de características semelhantes às do fóton, mas para as quais se previa teoricamente uma massa relativamente grande.

Uma nova teoria das interações fracas foi sendo montada, como um quebra-cabeças, ao longo dos anos, tendo seus contornos delineados pelo cientista norte-americano Sheldon Glashow. Em 1967, o também norte-americano Steven Weinberg e, independentemente, o paquistanês Abdus Salam completaram o quebra-cabeças das interações fracas, formulando uma teoria que engloba as interações fracas e as eletromagnéticas, a teoria das interações eletrofracas. Por este avanço, os dois cientistas compartilharam o prêmio Nobel de Física de 1979 com Sheldon Glashow.

Os elementos centrais dessa teoria são os transmissores da interação, os bósons vetoriais de gauge: o velho conhecido fóton, desprovido de massa, o bóson W, com carga elétrica e massa 90 vezes maior do que o próton, e o bóson Z neutro e de massa cem vezes maior que a do próton. Essas duas partículas previstas pela teoria, a W e a Z, eram pesadas demais para serem produzidas nos aceleradores em operação na época, e seus efeitos só podiam ser observados indiretamente.

É bem verdade que a teoria de Weinberg e Salam não causou muito entusiasmo no início. Para que os físicos manifestassem maior interesse, foi necessário esperar pelo trabalho de um jovem holandês, Gerardus ‘t Hooft, que demonstrou a consistência matemática de uma classe

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de teorias (à qual pertence à teoria das interações eletrofracas) chamadas teorias de gauge, e, por outro lado, pela descoberta experimental das correntes neutras (interações fracas transmitidas pelo bóson Z), ocorrida em 1973 no CERN (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares).

Durante toda a década de 1970 e no início dos anos 80, centenas de experimentos testaram diferentes aspectos das interações eletrofracas, obtendo sempre resultados coerentes com a teoria de Weinberg e Salam. No entanto, para que a teoria conquistasse a mesma legitimidade do eletromagnetismo, era necessário comprovar-se experimentalmente a existência dos bósons W e Z, com as massas previstas.

Os físicos experimentais observaram novos tipos de partículas, examinando os fragmentos produzidos por colisões de outras partículas com energias muito altas. Contudo, nem mesmo os maiores aceleradores de partículas existentes até 1981 eram capazes de gerar a energia necessária para criar as partículas W e Z. Para observá-las, foi necessário criar um novo tipo de acelerador.

Em 1976 um grupo de cientistas norte-americanos e ingleses propôs ao CERN converter o acelerador SPS (superpróton síncrotron) em um anel de colisão de prótons e antiprótons, com energia suficiente para criar as partículas W e Z. Este acelerador, um círculo com comprimento de seis quilômetros, atravessa a fronteira entre a França e a Suíça, na região de Genebra. Os prótons são acelerados até uma energia 400 vezes superior a sua própria massa, e depois jogados contra alvos estacionários. Os fragmentos dessas colisões são observados por detectores de partículas.

Num anel de colisão, os feixes de prótons e antiprótons viajam no mesmo tubo de aceleração, mas em sentido contrário. Os feixes colidem em pontos determinados, com uma energia efetiva muito maior do que a conseguida em aceleradores de alvo fixo. Anéis de colisão têm, portanto, a vantagem de possuir energia mais alta. Por outro lado, porém, apresentam a desvantagem de produzir um número menor de colisões, dificultando a detecção de fragmentos. A proposta do anel de colisão foi bastante ousada em sua época, já que não havia nenhuma experiência anterior de tecnologia destinada a formar e controlar feixes de antiprótons.

Apesar dessas dificuldades, o SPS foi convertido num anel de colisão, e, desde o final de 1981 funciona parte do tempo como anel de colisão e parte do tempo como acelerador de alvo fixo.

Grande parte do tempo que o acelerador funcionou como anel de colisão em 1982 foi tomada pelo ajuste do controle da densidade dos feixes, mas houve também um atraso no programa de observação das partículas W devido a um acidente que ocorreu em abril, quando houve um vazamento de óleo de uma bomba de vácuo no interior de um dos detectores do anel. Finalmente, as boas novas chegaram neste início de 1983.

Ironicamente, caso a partícula W não tivesse sido observada, a comoção teria sido muito maior entre os físicos. Nesse caso, muitas coisas precisariam ser revistas em maneira de conceber à natureza. Agora, devemos aguardar alguns meses para ouvir o anúncio da descoberta da partícula Z, e a comparação das massas previstas pela teoria com as medidas obtidas experimentalmente.

Para se entender com mais detalhe como é produzida a partícula W, é preciso conhecer a estrutura do próton. Ele tem partes menores, mais elementares: três quarks – dois do tipo u (de up, para cima) e um do tipo d (de down, para baixo) –, nomes adotados por tradição (e porque seus descobridores são americanos). Os antiprótons são formados por antiquarks, e quando um quark tipo u se encontra com um antiquark d, numa colisão com altíssima energia, eles se fundem e formam uma partícula W com carga positiva. De modo análogo, se um quark d encontra um antiquark u, forma- se uma partícula W com carga negativa.

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Uma vez formado, o bóson W tem vida muito efêmera, tão efêmera que praticamente não consegue mover-se, desfazendo-se em outros tipos de partículas. O modo como ele se desfaz, porém, é bem determinado e peculiar. Em particular, ele pode se desfazer em um elétron mais um antineutrino, ou em um pósitron e um neutrino. Os neutrinos atravessam o detector sem que sejam percebidos, mas os elétrons, assim como qualquer partícula com carga elétrica, deixam um rastro em seu caminho, e sua energia pode ser medida.

Assim, o sinal característico da produção de um bóson W é a observação de um evento em que um elétron sai sozinho do ponto de colisão, formando um ângulo grande com a direção dos feixes. A probabilidade de outro fenômeno qualquer criar um evento com as mesmas características é baixíssima, e é esse sinal tão característico que permite que a observação de poucos fenômenos desse tipo – da ordem de uma dezena – dê confiança aos físicos para tomarem-nos como indício da existência das partículas W.

A descoberta das partículas W dá uma grande satisfação aos físicos teóricos. A formulação da teoria das interações eletrofracas foi movida por um senso estético profundo de seus autores, e seu sucesso dá um grande impulso à procura da teoria unificada da matéria e do espaço-tempo, objetivo que hoje já não está tão distante quanto na época em que Einstein começou a sonhar com ele. Certamente, a descoberta das partículas W é um grande passo nessa direção.

QUARKS, LÉPTONS, GLÚONS, γ , W, Z... A MATÉRIA INVISÍVEL

(Artigo publicado na revista Ciência Hoje n. 14, 1984)

A descoberta das partículas W e Z no Laboratório Europeu para Física de Partículas (conhecido como CERN) completou o quadro que os cientistas construíram nas duas últimas décadas sobre os constituintes mais elementares da matéria e as forças que atuam entre eles.

Aexistência das partículas W e Z foi prevista por uma teoria formulada basicamente a partir de critérios de simplicidade, de elegância (no entender dos físicos ) e consistência matemática. Envolvendo uma quantidade enorme de cientistas, engenheiros, técnicos, e, também, de recursos, os experimentos que levaram à sua observação foram motivados pela confiança adquirida pelos físicos desde a década de 1970 na concepção que têm da estrutura fundamental da matéria. Para esse feito, foram desenvolvidas novas tecnologias para criação e armazenamento de antimatéria, assim como de seleção, estocagem e análise de dados. Neste artigo, vamos mostrar os ingredientes das teorias atuais sobre a natureza da matéria e suas interações.

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Na ciência contemporânea ainda nos inspiramos nos atomistas gregos ao formular uma estratégia para dissecar à estrutura da matéria. Decompomos a matéria em seus componentes mais elementares, e repetimos o processo a cada novo estágio de elementaridade. Assim, aprendemos que a matéria presente em nosso cotidiano é formada por moléculas, que são compostas por átomos, formados por elétrons e núcleos – estes últimos compostos por prótons e nêutrons. Por volta de 1930, o elétron, o próton, o nêutron e o fóton eram as partículas conhecidas. Desde então, centenas de outras partículas tão elementares quanto o próton e o nêutron foram descobertas. Inspirados pelo que se comprova no estudo da estrutura dos átomos, onde uma profusão de tipos diferentes é formada com poucos ingredientes, os físicos observaram que uma grande parte das novas partículas também é formada por entidades ainda mais elementares, os quarks.

A teoria sobre a natureza da matéria pode ser separada em dois aspectos fundamentais: a teoria das interações – isto é, aquela que descreve as relações entre as partículas elementares – e a teoria das partículas elementares, ou seja, a caracterização ‘zoológica’ delas.

As interações entre as partículas manifestam-se de quatro formas distintas: fortes, eletromagnéticas, fracas e gravitacionais; por outro lado, as partículas fundamentais são classificadas em três grupos: os quarks – constituintes, por exemplo, do próton e do nêutron –, os léptons (cujo exemplar mais familiar é o elétron) e os bósons de gauge, que contam, entre seus membros, com o fóton e com as partículas W e Z.

As interações fortes ou nucleares são responsáveis pela ligação de prótons e nêutrons nos núcleos atômicos. Essa interação é muito intensa; tem, no entanto, um raio de ação muito pequeno, e seus efeitos se dão somente na vizinhança imediata dos prótons e nêutrons. Pode-se fazer uma ideia dessa interação, imaginando-se os prótons e nêutrons com suas superfícies cobertas por uma cola muito poderosa. Enquanto a superfície dessas partículas não estiver em contato, o próton mantém-se indiferente à presença do nêutron, e vice-versa; mas basta que se toquem para criar uma forte ligação (neste exemplo, forma-se o dêuteron, núcleo de hidrogênio pesado).

As interações eletromagnéticas são bastante familiares, pois estão presentes de forma ostensiva em nosso cotidiano. As forças que intervêm nas reações químicas, a luz que recebemos do sol e as ondas de rádio e de televisão são formas diferentes das interações eletromagnéticas. A teoria clássica do eletromagnetismo foi formulada há mais de cem anos pelo físico inglês J.C. Maxwell, unificando os fenômenos elétricos, magnéticos e óticos; sua versão quântica, a eletrodinâmica quântica, tomou forma final no fim dos anos 40, e é uma das teorias mais precisas criadas pelo ser humano. Ela introduziu o fóton e explicou seu comportamento, esclareceu os mecanismos de emissão e absorção de luz, e levou à descoberta do conceito de antimatéria (ver ‘O leitor pergunta’, em Ciência Hoje n. 5).

Em contraste com as interações fortes, as eletromagnéticas são sentidas a qualquer distância. Evidência disso é a recepção de imagens fotográficas de Saturno, enviadas por naves espaciais, ou, ainda, a observação de objetos tão distantes quanto os quasares, cuja luz viaja por bilhões de anos antes de nos alcançar. Essas interações são também muito menos intensas que as fortes, nas regiões onde ambas podem competir.

As interações fracas são menos óbvias, mas, mesmo assim, importantes para nossa existência. Elas são responsáveis não só pela radioatividade natural de muitos elementos – e dos problemáticos resíduos nucleares (ver ‘Lixo atômico: o que fazer?’, em Ciência Hoje n. 12) –mas também pelas reações termonucleares nas estrelas, que entre outras coisas mantêm o sol queimando e aquecendo nossa atmosfera, o que cria, em última análise, as condições para a formação de estruturas moleculares suficientemente complexas (os homens capazes de pensar) sobre essas mesmas interações.

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As interações fracas têm, analogamente às fortes, um raio de ação muito curto: sua intensidade, além disso, é bilhões de vezes mais fraca que a das interações eletromagnéticas. Curiosamente, a impressão de que as interações fracas e eletromagnéticas são muito distintas é falsa. Foi o reconhecimento das características comuns dessas interações que permitiu a construção de uma teoria unificando-as e levou à previsão da existência das partículas W e Z.

Por fim, temos a prosaica interação gravitacional, que, apesar de ser extremamente mais fraca que as outras, é a mais perceptível. Seus efeitos fazem-se sentir tanto aqui na Terra, ao manter-nos presos a ela, como em escalas cosmológicas, por todo o Universo. Ao contrário das interações eletromagnéticas – em que cargas opostas (positivas e negativas) podem se compensar, anulando seus efeitos sobre outras partículas carregadas –, as interações gravitacionais são sempre atrativas, e não podem ser eliminadas. Isso explica por que, mesmo sendo as interações mais fracas, seus efeitos são sentidos em escalas cósmicas de distância.

As partículas fundamentais da natureza distinguem-se pelo tipo de interação da qual participam, e também pelo papel que desempenham. Os quarks e os léptons são as partículas da matéria propriamente dita; eles mantêm sempre certo tipo de identidade. Os bósons de gauge são os agentes das interações. As interações eletromagnéticas, por exemplo, podem ser caracterizadas pela troca de fótons – que são bósons de gauge – entre quarks e léptons carregados. Assim, os fótons de certo modo comunicam às partículas eletricamente carregadas a presença de outras também carregadas.

Os quarks sofrem os efeitos de todas as interações, e, em particular, das interações fortes que os fazem viver sempre agrupados; não são nunca vistos de maneira isolada na natureza, estão sempre confinados em sacolas, seja em grupos de três, formando partículas como os prótons e nêutrons, ou em pares quark-antiquark. formando mésons, como o píon (que foi descoberto em 1947 por um grupo de físicos do qual fazia parte o brasileiro César Lattes). Durante muito tempo, os físicos atribuíram ao píon o papel de agente das interações fortes, interpretação de uso restrito atualmente.

Em nosso cotidiano são importantes dois tipos ou, no linguajar dos físicos, dois sabores de quarks: o u (do inglês up) e o d (originalmente down). O próton é formado pela combinação de dois quarks u e um d, enquanto que o nêutron forma-se com dois d e um u. Esta possibilidade de existirem combinações de diferentes sabores de quarks, aliada à grande gama de movimentos possíveis destes quarks é uma das principais causas da variedade de partículas encontradas pelos cientistas.

Aexistência de dois sabores de quarks, u e d, explica por que o próton e o nêutron são diferentes. Do ponto de vista das interações fortes; porém, estas duas partículas são idênticas, ou, em outras palavras, as interações fortes não distinguem sabores de quarks. Mas, se os quarks estão associados às interações fortes, eles devem ter alguma qualidade que seja sensível a esta interação. A descoberta desta qualidade demorou muito tempo, sendo identificada apenas em 1973 e batizada com o termo cor (que não tem nada a ver com as cores do arco-íris ou do espectro de radiação; é apenas uma terminologia usada para designar os diferentes estados que um sabor de quark pode assumir).

Cada quark pode ter três cores. Cada um dos três quarks de uma sacola, ou o par quark-antiquark tem sempre cores complementares e formam um composto sem cor, isto é, ‘branco’. Os quarks mudam de cor dentro de uma sacola, e é esta propriedade que dá origem às interações fortes. Quando um quark muda de cor, ele deve comunicar isso aos outros quarks da sacola, de modo que todos reajustem suas cores. Isto é feito por intermédio de um mensageiro, um bóson de gauge, análogo ao fóton, que é emitido ou absorvido quando um quark troca sua cor. Esses bósons de gauge, chamados glúons (do latim glúons, cola) também carregam

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cor, e, portanto, também podem emitir ou absorver outros glúons, provocando uma interação bastante complexa.

A teoria das interações fortes, ou seja, da dinâmica das cores, é chamada cromodinâmica quântica, em analogia à eletrodinâmica quântica, que trata da dinâmica das cargas elétricas.

Os glúons carregam boa parte da energia das sacolas de quarks – como o próton e o nêutron –, e seus efeitos podem ser observados indiretamente em experimentos. Assim como os quarks não são observados fora de sacolas, também os glúons não são vistos isoladamente. Essa ideia, da existência de partículas que não podem ser isoladas na natureza, talvez possa parecer incômoda, mas mesmo partículas como o elétron e o próton são observadas apenas indiretamente, através do campo eletromagnético que produzem.

Mencionamos anteriormente que as interações fortes entre prótons e nêutrons poderiam ser comparadas a uma cola na superfície destas partículas, o que parece ser muito distinto da dinâmica das cores; no entanto, essa cola é o resíduo da interação de glúons e quarks, é análoga às forças de Van der Waals existentes entre átomos eletricamente neutros.

Os léptons têm também dois sabores distintos, o elétron e o neutrino – esta última uma partícula neutra. O nome lépton vem do grego leptos, leve, e foi atribuído a essas partículas porque eram, à exceção do fóton, as mais leves da natureza na época de sua descoberta.

O elétron é duas mil vezes mais leve que o próton, enquanto o neutrino, para todos os efeitos, tem mesmo massa nula (se o neutrino tem mesmo massa nula ou dez mil vezes menor que a do elétron é uma questão que atrai a atenção dos físicos teóricos e experimentais, e sua resolução trará consequências profundas para a cosmologia).

Os elétrons, como têm carga elétrica, sofrem os efeitos das interações eletromagnéticas; os neutrinos, porém, são sensíveis apenas às interações fracas (além das gravitacionais, a que todas as partículas estão sujeitas).

As interações fracas, em uma primeira abordagem, podem ser consideradas interações de troca de sabores; nelas um neutrino transforma-se em elétron ou o quark d transforma-se no u, emitindo ou recebendo simultaneamente um mensageiro, o bóson de gauge W. Como a carga elétrica não pode aparecer nem sumir espontaneamente, os cientistas sabem que esse bóson tem carga elétrica e pode emitir ou absorver fótons. Ao contrário dos fótons e glúons, é muito pesado, cerca de 90 vezes mais que o próton, e, nessa massa tão pesada está a razão pela qual as interações fracas são tão fracas e de curto alcance.

Os físicos Steven Weinberg e Abdus Salam, ao formularem, em 1967, uma teoria unificando as interações eletromagnéticas com as fracas, previram a existência de outro bóson de gauge neutro, a partícula Z, ligada ao fóton, como necessária à coerência da teoria.

Esse bóson é cerca de cem vezes mais pesado que o próton e também pode ser absorvido ou emitido por neutrinos ou qualquer outro sabor de quarks ou léptons. Assim, já não é mais apropriado caracterizar as interações fracas como unicamente de troca de sabor; há um setor delas, associado ao bóson Z0, que não troca de sabor.

Aliás, a previsão de existência de um bóson pesado neutro associado às interações fracas precede a teoria das interações eletrofracas; foi formulada em 1958 pelo físico brasileiro José Leite Lopes. A observação experimental das partículas W e Z no ano passado coroou de sucesso a teoria das interações eletrofracas.

Até agora, descrevemos dois sabores de quarks, com três cores cada, e dois de léptons, estes sem cor. No entanto, o número de quarks e léptons é muito maior. Podemos qualificar os descritos até aqui como pertencentes a uma família. Existem pelo menos duas outras famílias de quarks e léptons: uma formada pelos quarks c (de charm) e s (de strange) e os léptons µ (múon) e seu neutrino associado; a outra pelos quarks t (de top) e b (de bottom) e os léptons

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τ (tau) e seu neutrino associado. O quark foi observado recentemente, como foi noticiado nos jornais de 27 de junho último. Teria causado grande surpresa aos físicos se esse quark não viesse a ser observado, pois sua existência estava indicada pela simetria – muito- forte – existente entre o setor de quarks e léptons. O lépton múon e o quark s já são conhecidos há muito tempo, mas os quarks c e b e o lépton tau e seu neutrino foram descobertos nos últimos dez anos. A descoberta dessas partículas ocorreu tão tarde devido à grande massa que têm, o que somente torna possível produzi-las experimentalmente em aceleradores muito poderosos.

O avanço conquistado nos últimos dez anos na compreensão da matéria e suas interações foi fantástico. Existem, agora, teorias matematicamente consistentes e com a mesma estrutura básica (reunidas sob o nome técnico de teoria de campos relativísticos e quânticos com simetria de gauge local) para descrever as interações fortes, eletromagnéticas e fracas. Estas teorias têm importância crucial para o estudo da cosmologia, pois com elas pode-se reconstruir a história do Universo até instantes de trilionésimos de segundo após o que se imagina ter sido a grande explosão inicial.

Apesar do quadro consistente das teorias das interações, muitas questões permanecem em aberto e não podem ser respondidas por essas teorias. As cargas elétricas do próton e do elétron são exatamente iguais, sem que haja uma razão aparente para isso; os quarks e léptons devem ter, portanto, uma conexão mais profunda que não pode ser explicada pela cromodinâmica quântica ou pela teoria das interações eletrofracas. As massas dos sabores de quarks e léptons são muito diferentes, sem que haja uma compreensão sobre a origem delas.

As três famílias de quarks e léptons são idênticas em suas propriedades, exceto pelas massas, e é um grande mistério esta repetição de entidades fundamentais.

As partículas fundamentais já são bastante numerosas; existem pelo menos 18 quarks (6 sabores com três cores cada), 6 léptons, 8 glúons, 2 Ws, a Z e o fóton. Trinta e seis entidades, que formam um quadro muito regular, acionam novamente nossos mecanismos mentais, desta vez para buscar um novo nível de elementaridade: serão os quarks, léptons e bósons de gauge compostos por entidades ainda mais elementares?

A motivação principal para a unificação das interações eletromagnéticas e fracas originou-se da semelhança existente entre suas estruturas matemáticas. A identificação do parentesco delas com a cromodinâmica quântica levou os físicos teóricos a reunir as três interações em uma estrutura unificada, à que deram o nome de teoria da grande unificação, Neste novo estágio de unificação, quarks e léptons são apenas aspectos diferentes de uma mesma partícula, e podem, portanto, transformar-se uns nos outros.

Esta possibilidade tem uma consequência espetacular: o próton, que sempre foi considerado uma partícula indestrutível, poderia agora quebrar-se em um lépton e um píon. A probabilidade dessa quebra, porém, é extremamente pequena, e não deve ser causa de alarme. Para ter-se uma ideia, as chances de que um dos prótons do corpo de uma pessoa seja destruído em toda sua vida são menores que uma em cem, e, se isso viesse a acontecer, ela nem o notaria.

A teoria da grande unificação é, até o momento, uma proposta, e não há, ainda, nenhuma conclusão sobre suas previsões experimentais. No entanto, ela explica alguns dos mistérios mencionados anteriormente, como a igualdade entre as cargas elétricas do próton e do elétron. Além disso, a história da física tem mostrado que a busca da unificação nas leis da natureza sempre trouxe frutos.

Éirônico que a investigação das menores entidades da natureza requeira os maiores aparatos experimentais usados em ciência básica. Poucos países hoje em dia têm recursos para construir o instrumento básico de pesquisa nesse campo, o acelerador de partículas de grande porte. Com comprimentos de alguns quilômetros, em geral na forma de um anel, estas máquinas tem

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um custo da ordem de um bilhão de dólares, e estão localizadas em laboratórios que empregam milhares de cientistas, engenheiros e técnicos para operá-las e conduzir experimentos.

Estes laboratórios são muito caros, com orçamentos de centenas de milhões de dólares, e, em função disso, os países europeus formaram um consórcio para construir e operar o CERN, onde foram descobertas as partículas W e Z. Os experimentos em física de partículas são extremamente complexos, e envolvem centenas de cientistas de diversas nacionalidades trabalhando em colaboração. Apesar do alto custo de alguns experimentos, ele é disperso entre as dezenas de instituições e países que participam da colaboração, o que resulta em um investimento final, por físico participante, equivalente ao de outras áreas da física.

A descoberta de novas leis da natureza em seu aspecto mais fundamental dificilmente tem aplicações tecnológicas imagináveis em curto prazo; mesmo assim, todos os países desenvolvidos gastam somas vultosas apoiando esse tipo de pesquisa. O retorno imediato desse investimento surge com o desenvolvimento tecnológico que é subproduto da pesquisa fundamental. Com a construção de novos aceleradores e equipamentos para a detecção de partículas, os limites conhecidos de todas as tecnologias têm que ser expandidos, e, consequentemente, novas tecnologias são desenvolvidas e exploradas.

Por outro lado, a pesquisa fundamental é vital na formação de recursos humanos; o investimento nesse tipo de pesquisa é o investimento no futuro do país. É sempre difícil dizer a priori qual será a aplicação tecnológica de uma descoberta fundamental, mas com frequência ela tem um impacto vital na sociedade.

Aatividade de pesquisa na área da física de partículas tem uma característica especial: seu alto grau de colaboração internacional. Usualmente, são vistos, participando de colaborações experimentais, cientistas vindos de países com características políticas tão díspares quanto a China, Japão, Estados Unidos e União Soviética.

Desde o final da década de 40, o Brasil tem cientistas seus participando de experimentos em física de partículas – notadamente, César Lattes, que, desde o início da década de 60, lidera uma colaboração internacional que envolve instituições japonesas, bolivianas, e, no Brasil, a Universidade Estadual de Campinas e o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Este grupo estuda fenômenos de altíssimas energias produzidos por raios cósmicos. As suas descobertas permitem vislumbrar a física que será produzida em novos aceleradores ainda a serem construídos.

BOXE_DETECTAR UMA PARTÍCULA

As partículas elementares, os menores objetos que existem na natureza, não são diretamente vistas nos laboratórios, ou melhor, nos chamados detectores de partículas. Na verdade, seus traços é que são vistos: os detectores são capazes de reconstruir as trajetórias quando as partículas têm carga elétrica. Uma partícula carregada (como um próton ou um múon) é fonte de um campo eletromagnético que se desloca com ela e, ao passar pela matéria (tipicamente um gás ou um líquido) dá um empurrão nos elétrons atômicos situados ao longo do percurso. Alguns desses elétrons pulam fora dos átomos criando uma trilha ionizada que marca a passagem da partícula carregada.

Cada tipo de detector reconhece e transforma essa trilha ionizada em um sinal. Por exemplo, numa câmara de faíscas, há uma série de placas carregadas com elevados potenciais elétricos alternados, e gás entre elas. A trilha de gás ionizado produzida entre duas placas por uma partícula carregada dá origem a uma avalanche de elétrons entre elas (uma faísca). É a

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faísca que assinala o local de passagem da partícula. Já na chamada câmara de bolhas, muito usada até há poucos anos, as partículas carregadas atravessam um líquido superaquecido. Ao longo da trilha ionizada formam-se minúsculas bolhas de fervura, que são então fotografadas sincronicamente com os pulsos do respectivo acelerador. Há ainda outra classe de detectores, chamados calorímetros, cujo uso cresce ultimamente. Os calorímetros medem a energia de um conjunto de partículas que absorvem, emitindo um sinal luminoso cuja intensidade é proporcional à energia que neles se deposita. Qualquer aparelho experimental, atualmente, envolve um grande conjunto de diferentes detectores, cada um com uma tarefa específica e complementar aos demais. Esses grandes conjuntos recolhem uma quantidade enorme de informações, exigindo a utilização dos maiores computadores para o controle e a análise. Um exemplo desses equipamentos é o detector UAI (de Underground Area, pois localiza-se a 20 metros abaixo da superfície do solo), existente no CERN. O UAI está situado em volta da região de interseção onde prótons e antiprótons colidem, e registra o resultado dessas colisões. Tem 2.000 toneladas de equipamentos com tecnologia avançada, e é capaz de determinar a trajetória de partículas com uma precisão de fração de milímetro. Na sua região central, que tem um volume de 85m3, existe um forte campo magnético gerado por um eletromagneto convencional de 800 toneladas, que serve para curvar a trajetória das partículas, permitindo assim a medição da sua energia. Em torno do tubo central (dos feixes) há um conjunto de 6 câmaras de arrastão com cerca de 6.000 fios sensíveis, cada um com um microprocessador acoplado. Esse conjunto reconstrói a imagem das trajetórias das partículas que se movem no cilindro central de 6m de comprimento e 2,6m de diâmetro e produzem as imagens. Em torno deste cilindro há também uma camada de calorímetros eletromagnéticos, seguida por outra de calorímetros que absorvem as partículas que interagem fortemente (hádrons). O cilindro mais os calorímetros, por sua vez, são envolvidos pelas câmaras de múons, que são constituídas por 30 km de alumínio extrudido. O conjunto é acionado pelos gatilhos – um grupo de detectores especiais muito rápidos –, capazes de indicar a ocorrência de eventos de potencial interesse para o processo que se pretende estudar.

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ENCONTRADA A PARTÍCULA Z: CONFIRMA-SE A TEORIA DAS INTERAÇÕES

ELETROFRACAS

(Texto publicado na seção ‘Tome Ciência’, revista Ciência Hoje n.7, 1983)

Ao noticiar a descoberta da partícula W (‘Tome Ciência’, em Ciência Hoje n.5), afirmávamos que seria necessário aguardar mais alguns meses para ouvir o anúncio da descoberta da partícula Z. Os meses se passaram, e o mesmo grupo do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN) que observou as partículas W acaba de anunciar, em Genebra, a descoberta da partícula Z.

A descoberta foi feita em uma experiência na qual feixes de prótons e antiprótons percorrem, girando em sentido contrário, um tubo de vácuo em forma de anel com seis quilômetros de comprimento. Os feixes colidem em pontos predeterminados ao longo do anel, e em torno desses pontos são colocados gigantescos detectores destinados a medir as consequências das colisões.

O anel de colisão do CERN acelera os feixes criando uma energia efetiva por colisão equivalente a 600 vezes a massa do próton. Grande parte das colisões resulta na aniquilação dos antiprótons pelos prótons, mediada pelas interações fortes, com a consequente emissão de um grande número de píons (também conhecidos como mésons pi). Uma fração ínfima das reações, porém, é mediada pelas interações fracas, produzindo as partículas W e Z.

As partículas W e Z são quase cem vezes mais pesadas do que o próton, e para produzi-las os feixes de prótons e antiprótons devem ter uma energia enorme: o anel de colisão próton-antipróton do CERN foi o primeiro acelerador do mundo capaz de produzir energias desta ordem. Por outro lado, não é necessário apenas obter a energia suficiente para produzir essas partículas. Elas devem ser também observadas, tendo suas propriedades medidas por detectores.

A menos que tivessem um comportamento muito diferente das outras partículas, as Ws e Zs produzidas perder-se-iam, na enxurrada de píons emitidos na aniquilação próton-antipróton, como uma agulha no palheiro. Essas partículas não vivem o suficiente para chegar aos detectores; muito antes disso, decaem ou transformam-se em outras partículas. São justamente os modos de decaimento que as tornam visíveis em meio ao ‘palheiro’ de píons.

Apartícula Z é semelhante ao fóton em muitos aspectos, particularmente em sua capacidade de transformar-se num par partícula-antipartícula, como o par elétron-pósitron. Nas experiências do CERN, observaram-se dois eventos atribuídos ao decaimento de partículas Z, ambos com características semelhantes: no primeiro, os detectores acusaram a produção de um par elétron-pósitron, cada uma das partículas – emitidas em direções opostas – com energia equivalente a 50 vezes a massa do próton. No segundo, foi criado um par múon-antimúon (o múon é uma partícula idêntica ao elétron em todas as suas características, exceto pela massa, que é 200 vezes maior).

As probabilidades de pares elétron-pósitron ou múon-antimúon serem produzidos por mecanismos convencionais com uma energia tão grande é praticamente nula, restando então como única explicação serem frutos do decaimento da partícula Z. Obviamente, a confiança nesta explicação crescerá à medida que um número maior de eventos com essas características forem observados e medidos.

A descoberta das partículas W e Z coroa um feito notável da engenhosidade humana. Por um lado, a existência destas partículas está prevista pela teoria das interações eletrofracas, a

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teoria unificada das interações eletromagnéticas e das interações fracas (interações parcialmente responsáveis pelas reações termonucleares no Sol, que mantêm o clima da Terra suportável, e ainda pela radioatividade de substâncias naturais ou produzidas artificialmente).

A construção da teoria das interações eletrofracas (chamada modelo de Weinberg-Salam, em homenagem aos cientistas que lhe deram a forma final) foi um processo que durou quase 40 anos, envolvendo o esforço de várias gerações de físicos, e foi orientada por critérios de simplicidade, elegância (entendida de forma peculiar pelos físicos) e consistência matemática. Se Einstein tivesse vivido para apreciar a forma final da teoria das interações eletrofracas, certamente teria satisfação em repetir: “Sutil é o Senhor, mas não malicioso!”

A previsão da existência das partículas W e Z é um feito notável do intelecto humano. Por outro lado, temos o fantástico concerto de milhares de físicos, engenheiros e técnicos para construir os meios que possibilitaram testar experimentalmente as previsões da teoria das interações eletrofracas. Para executar esta tarefa, ampliaram-se os limites do conhecimento tecnológico: inventou-se um método para a produção e o controle de antiprótons (antimatéria), desenvolveram-se processos de controle operacional para a aquisição de grande quantidade de dados em tempo real, com escalas de nanossegundos, e criaram-se novos métodos para a detecção de grandes quantidades de partículas com altas energias. Este esforço envolveu a colaboração de dezenas de instituições espalhadas por vários países, cientistas de muitas nacionalidades e recursos vindos de várias fontes, da ordem de uma centena de milhões de dólares.

Curiosamente, não há nenhuma aplicação prática visível para as interações fracas em um futuro próximo. No entanto, os países desenvolvidos estão interessados em investir quantidades consideráveis de recursos nessas pesquisas. A razão é óbvia: é o avanço da fronteira do conhecimento humano que gera em sua esteira a evolução tecnológica, a inovação no setor produtivo da sociedade, a formação de cientistas, engenheiros e técnicos capazes de assegurar o progresso tecnológico desses países. Apesar do grande volume de recursos, eles são distribuídos entre os diferentes países e instituições, e são de uma escala tal que seria possível pensar-se na participação de grupos brasileiros nesses tipos de experiências.

O sucesso da unificação das interações eletromagnéticas e fracas torna mais realista o sonho dos físicos teóricos de criar uma teoria que unifique estas interações com as interações fortes, em uma grande unificação. A construção de uma grande teoria unificada da matéria e do espaço-tempo tem implicações profundas para a cosmologia, para nossa visão das origens do Universo, e muitos progressos já foram feitos nessa direção.

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Ronald Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

NOVAS PARTÍCULAS NO HORIZONTE DA FÍSICA

(Texto publicado na seção ‘Tome ciência’, da revista Ciência Hoje, n. 13, 1984)

Há indícios de que novas partículas, até agora desconhecidas, poderão ser detectadas em experiências a altíssimas energias no Centro Europeu para a Pesquisa Nuclear (CERN), em Genebra, Suíça. A suspeita, segundo os cientistas, é sugerida pela observação de eventos não explicados pelas teorias que hoje descrevem as partículas elementares e, caso confirmadas, poderão levar à formulação de novas leis da física.

O curioso é que o grupo de cientistas que realizou essa descoberta, trazendo a semente de uma nova física, é o mesmo que, há um ano, descobriu as partículas W e Z (ver Ciência Hoje n. 5 e 7), fundamentais para à consolidação da teoria das interações eletrofracas, que – com a cromodinâmica quântica e o estudo da gravitação – forma a teoria física contemporânea das forças da natureza.

Grande parte dos esforços dos cientistas especializados em partículas elementares foi dispendida, nos últimos 50 anos, na tentativa de descobrir quais das partículas são realmente fundamentais, bem como na formulação de teorias sobre sua interação, baseadas em critérios físicos de simplicidade, elegância e consistência matemática. Esses novos eventos ocorridos do CERN só podem ser entendidos a partir da compreensão de como os físicos chegaram às ideias atuais sobre a natureza da matéria.

Atualmente, as partículas fundamentais da matéria são agrupadas em três famílias: os quarks, os léptons e os bósons de gauge. Quatro forças atuam nessas partículas: as interações fortes, fracas, eletromagnéticas e gravitacionais.

Os quarks, agrupados em grupos de três, formam partículas maiores chamadas hádrons –como os conhecidos prótons e nêutrons – ou, em pares quark-antiquark, compõem os mésons, de massa inferior ao próton. Não há possibilidade de se observarem os quarks em liberdade na natureza. Por um fenômeno conhecido como ‘confinamento dos quarks’, consequência da força que atua entre eles, essas partículas só podem ser encontradas no que os físicos chamam de ‘sacola’ de quarks, as partículas maiores.

A compreensão das forças que atuam sobre esses corpos elementares é essencial para o estudo de sua natureza. A coesão de nêutrons e prótons no núcleo, por exemplo, é explicada pela ação das forças denominadas interações fortes. Uma característica do quark denominada cor pelos físicos (não tem nada a ver com as cores do arco-íris) dá o nome à teoria da interação nos quarks, a cromodinâmica quântica. Os quarks interagem trocando de cor com membros da mesma família e essa troca é feita por intermédio de partículas mensageiras, os bósons de gauge chamados glúons, que são enviados de um quark a outro, levando à cor a ser cambiada.

Há três cores diferentes para cada espécie diferente de quark. As espécies, ou sabores, como se diz em física, são seis: up, down, strange, charm, bottom e top, que dão nome, respectivamente, aos quarks u, d, s, c, b e t (este último alinda não foi observado pelos cientistas, embora a teoria dê fortes razões para que se suspeite de sua existência). São partículas que sofrem efeito de todas às interações.

Ao contrário dos quarks, os léptons – dos quais o elétron é o exemplo mais familiar – existem livremente na natureza, e não sofrem à ação das interações fortes. Os elétrons, o múon e o tau (suas cópias mais pesadas) e os neutrinos são sabores dos léptons. Os três primeiros são partículas com carga elétrica, sofrendo, portanto, o efeito das interações eletromagnéticas. Os neutrinos, no entanto, sofrem apenas os efeitos das interações fracas e gravitacionais.

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Os cientistas têm procurado pontos de contato em meio à diversidade de forças e partículas atuantes na composição da matéria, Em 1967, A. Salam e S. Weinberg propuseram a teoria das interações eletrofracas, que unificava as interações fracas e as eletromagnéticas. Em termos matemáticos, essa teoria é análoga à cromodinâmica quântica; mas, enquanto esta última é a teoria da troca de cores, a teoria das interações fracas trata da troca de sabores dos quarks e léptons. Assim como o glúon na cromodinâmica quântica, também há mensageiros nas trocas das interações eletrofracas. Nas interações eletromagnéticas, o mensageiro entre os léptons é o fóton; os bósons W e Z, por sua vez, são os mensageiros das interações fracas. A existência desses bósons, aliás, foi a predição mais espetacular da teoria das interações eletrofracas. A grande massa dessas partículas (a W pesa cerca de 87 vezes mais que o próton, e a Z, 98 vezes) foi responsável pela demora em sua descoberta, que só aconteceu em 1983.

Milhares de físicos, engenheiros e técnicos foram mobilizados para construir a máquina que permitiu esse feito cientifico. Nessa máquina – capaz de produzir, coletar, armazenar e usar antimatéria (ver ‘O Leitor Pergunta’, Ciência Hoje n. 5) e provocar a colisão de feixes de prótons e antiprótons viajando a velocidades próximas à luz –, são colocados detectores, capazes de identificar, entre os milhões de eventos produzidos na colisão de partículas, aqueles poucos que provêm da criação de bósons W ou Z reais.

Esses detectores – onde ocorreram os eventos que fizeram suspeitar de novidades no campo da física – são capazes de registrar a presença e medir a energia de qualquer partícula carregada produzida pela colisão, e, também, a existência de algumas partículas neutras, como o fóton e o nêutron. A presença do bóson W é assinalada quando após a colisão é registrado um elétron de energia muito alta e nada mais. Pela teoria, o bóson W, muito pesado, logo se transforma em um elétron e um neutrino, A ausência do registro de uma partícula voando em direção contrária à do elétron indicaria um desequilíbrio de energia ou à presença de uma partícula invisível ao detector. Como a primeira hipótese é imediatamente descartada pelos físicos, para quem a lei da conservação de energia é sagrada, conclui-se que o evento deu origem a um neutrino – partícula capaz de atravessar toda a Terra sem sofrer colisão. Experiências semelhantes deram origem ao bóson Z.

Ainda no ano passado, os cientistas que haviam produzido a partícula Z notaram que algumas delas decaíram (transformaram-se) em um elétron, um pósitron (a antimatéria do elétron) – previstos pela teoria – e mais um fóton energético, presença que deixou os físicos perplexos. Este é um fenômeno que ainda não foi entendido.

Os novos eventos produzidos no CERN consistem no registro de partículas em estranha discordância com as regras da cromodinâmica quântica e da teoria das interações eletrofracas. Analisando-os, os cientistas chegaram à conclusão de que eles são produzidos, provavelmente, pela criação de objetos mais pesados que às partículas W ou Z, e, em alguns casos, com massas cerca de 160 vezes superior à do próton.

Um dos passatempos favoritos dos físicos teóricos, a criação de novas teorias que buscam a unificação das forças da natureza, impediu que esses eventos, apesar de inesperados, colhessem os cientistas totalmente de surpresa. Já existem vários modelos teóricos que tentam interpretá-los.

Desde 1974, os físicos tentam construir teorias que unifiquem a cromodinâmica quântica e a teoria das interações eletrofracas. Essas teorias recebem o nome genérico de teorias grã-unificadas. Argumentos estéticos e a exigência de consistência matemática, porém, impõem às teorias grã-unificadas um conceito chamado supersimetria.

A imposição da ideia de supersimetria a uma teoria implica que partículas como os férmions (quarks e léptons) e os bósons – de propriedades muito diferentes nas teorias usuais –sejam consideradas simplesmente como aspectos diversos de uma mesma família de partículas.

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A supersimetria dita que a cada bóson corresponde um férmion, e vice-versa. Quando aplicada à cromodinâmica quântica e à teoria das interações eletrofracas, prevê a existência de partículas como o gluíno ou fotinos, parceiros supersimétricos dos glúons ou do fóton.

Uma das hipóteses mais fortes para explicar os novos eventos produzidos no CERN é a de que eles são resultados da produção dessas partículas supersimétricas. Mas é ainda prematuro apostar-se numa teoria específica para explicar esses fenômenos. E os físicos estão aguardando a produção de novos eventos da mesma natureza, e uma análise mais detalhada para que se possa entender sua origem.

OS NEUTRINOS PESADOS

(Texto publicado na seção ‘Um mundo de ciência’, da revista Ciência Hoje, n. 73, 1991)

Há evidências experimentais da existência de um neutrino pesado! Mais do que isso: este neutrino é mais pesado que qualquer coisa antecipada pelos físicos! Se essas evidências resistirem à análise crítica, trarão profundas consequências para a astrofísica, a cosmologia e as teorias sobre a natureza da matéria. Por ironia, esse resultado surpreendente está emergindo de pesquisas feitas por poucos cientistas, em pequenos laboratórios, numa época em que a investigação das propriedades fundamentais da matéria é realizada em gigantescos aceleradores de partículas, por grupos com centenas de pesquisadores.

Os neutrinos são as partículas mais elusivas que conhecemos. Sua interação com a matéria é tão fraca que a Terra é praticamente transparente para um feixe deles. Foram os arautos da explosão da supernova SN 1989, chegando à Terra antes dos sinais luminosos, pois atravessaram as camadas externas da estrela antes da luz. Ingredientes do modelo padrão para as forças da natureza, os neutrinos têm três ‘sabores’ distintos, associados ao elétron, ao múon e ao tau. Tais ‘sabores’ têm propriedades idênticas, porém massas diferentes: o elétron é muito leve, o múon é cerca de 210 vezes mais pesado e o tau cerca de 3.500 vezes.

Em artigo publicado no Physical Review Letters, em 1985, John Simpson, da Universidade de Guelph (Canadá), apresentou pela primeira vez evidências da presença de um neutrino com massa de 17 mil elétrons-volt no decaimento beta do núcleo de trítio. O elétron-volt (eV) é uma unidade de energia usada frequentemente para expressar massa, através da relação E = mc2. O elétron, por exemplo, tem massa de 511 mil eV (511 KeV).

O trítio (núcleo de hidrogênio com dois nêutrons associados) foi implantado num detector de estado sólido do tipo Si (Li). Por ser radioativo, esse núcleo sofre um decaimento beta para 3He (núcleo de hélio com dois prótons e um nêutron), com um nêutron convertendo-se em um próton e com a emissão de um elétron e um neutrino invisível. No processo, o espectro

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de energia desse elétron é contínuo e sensível à massa do neutrino. Simpson mediu o espectro no experimento e obteve uma anomalia em relação ao espectro esperado para um neutrino de massa muito pequena. A interpretação dada a essa anomalia admitia que em 3% dos decaimentos o neutrino emitido tinha uma massa de 17,1 KeV, comportando-se como uma mistura, no sentido quântico, de componentes de diferentes ‘sabores’ e massas. Essa ideia já havia sido proposta em 1938 por Bruno Pontecorvo, do Instituto Dubna (União Soviética).

Em função desse resultado, vários grupos decidiram investigar essa anomalia no espectro do elétron no decaimento de vários núcleos diferentes, pois a forma do espectro difere de núcleo para núcleo, mas o efeito de um neutrino com 17 KeV é sempre igual. No entanto, pesquisas com enxofre-35, ferro-55, níquel-63 e iodo-125 mostraram resultados nulos ou inconclusivos.

Em 1989, em colaboração com seu aluno Andrew Hime, Simpson voltou à carga, publicando no Physical Review dois resultados que confirmavam sua observação prévia sobre o neutrino com massa de 17 KeV, agora usando técnicas diferentes.* A proporção de neutrinos pesados, porém, baixou para cerca de 1% de todos os neutrinos (o que Simpson já havia feito na reanálise do experimento de 1985). Nesses trabalhos, Simpson e Hime analisaram o decaimento do enxofre-35 e o decaimento beta do trítio implantado num detector de germânio hiperpuro (HPGe). Apontaram também as possíveis causas de falhas nos experimentos que obtinham resultados nulos. Curiosamente, um dos artigos termina com a seguinte observação: “ao contrário do que aponta nossa intuição, um resultado nulo não é mais confiável que um resultado positivo”.

A persistência de Simpson convenceu novos grupos a investigarem suas evidências, dessa vez com resultados positivos.** Andrew Hime, agora em Oxford e em colaboração com N. Jelley, melhorou o experimento com enxofre-35, encontrando 0,84% de neutrinos com massa de 17,0 KeV. Eric Norman e colaboradores, do Lawrence Berkeley Laboratory (Califórnia, Estados Unidos), encontraram neutrinos de massa 17,2 KeV em 1,4% dos decaimentos de carbono-14 e um neutrino de 21 KeV no espectro de ferro-55, em pesquisa com menor estatística. No Instituto Ruder Boskovic (Zagreb, Iugoslávia), Igor Zlimen e colaboradores anunciaram a presença de 1,6% de neutrinos de 17,2 KeV no decaimento beta de ferro-55 e de germânio-71. Desde 1989 foi estabelecido experimentalmente, por laboratórios na Europa e nos Estados Unidos, que existem apenas três ‘sabores’ de neutrino, excluindo-se a hipótese de ‘sabores’ com propriedades exóticas (que não devem ser denominados neutrinos). O neutrino de 17 KeV teria então o ‘sabor’ do múon ou do tau, em mistura com o ‘sabor’ do elétron. Como experimentos feitos em aceleradores virtualmente excluem a possibilidade de mistura dos ‘sabores’ eletrônico e muônico (os experimentos não detectam a mistura em proporção inferior a 0,3%), a hipótese mais viável é a de que o neutrino de ‘sabor’ associado ao tau tem massa de 17 KeV e sofre mistura com o neutrino de ‘sabor’ eletrônico.

A confirmação da descoberta certamente trará novos elementos para problemas como o misterioso desaparecimento dos neutrinos produzidos pelo Sol (os neutrinos solares medidos representam cerca de um terço do número previsto pela teoria) e a existência de ‘massa escura’ no universo (o comportamento gravitacional das galáxias indica uma quantidade de matéria muito maior do que a visível). E colocará Simpson, sem dúvida, na lista de considerações do Comitê Nobel de Física.

* Physical Review, vol. 39, p. 1.825, 1989

** Science, vol. 251, p. 1.426, 1991

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ENERGIAS EXTREMAS NO UNIVERSO

(Artigo para a revista Ciência Hoje, n. 151, 1999)

Este ano, foi lançada a pedra fundamental para a construção do Observatório Pierre Auger, formado por duas redes gigantescas de detectores terrestres que buscarão respostas para um dos mistérios mais intrigantes da física deste final de século: a origem dos zévatrons, partículas cósmicas ultraenergéticas que penetram a atmosfera dos planetas, incluindo a Terra.

Se fosse possível juntar apenas um miligrama desses corpúsculos liliputianos, a energia total seria equivalente à de um gigantesco asteroide, do tamanho do pico Everest, viajando à velocidade de 200 mil km/h.

A rede de 1.600 detectores, que irá espionar o céu do hemisfério Sul, será instalada nas planícies dos Pampas Amarelos, na Argentina. Além das características geográficas dessa região, pesou para a decisão de trazer o Observatório Pierre Auger para a América do Sul o fato de Brasil e Argentina contarem com uma sólida comunidade de físicos com longa tradição nessa área de pesquisa.

Se houvesse um sensor de partículas no topo de nossa cabeça, teríamos boas razões para ficar alarmados. A cada segundo, dezenas desses corpúsculos de origem cósmica atravessam nosso corpo. Porém, antes de que o leitor entre em pânico e pense em construir algum protetor ou mesmo nos processar por alarmá-lo indevidamente, devemos assegurar que isso não se trata de mais uma consequência nefasta do desenvolvimento da sociedade humana. A natureza é assim, e esse bombardeio cósmico ocorre desde o início dos tempos, desde a formação do Sol e da Terra.

O interesse em entender a origem e a natureza dos raios cósmicos com energias mais extremas motivou um grupo de cientistas a formar um consórcio internacional e construir um laboratório para observá-los. No mês de março deste ano, foi lançada a pedra fundamental do Observatório Pierre Auger, na província de Mendoza, na Argentina. É a primeira etapa da construção de um complexo que olhará o céu do hemisfério Sul. Também está prevista a construção de outro complexo de detectores no estado de Utah, nos Estados Unidos, para cobrir o hemisfério Norte.

Os raios cósmicos foram descobertos no início deste século (ver ‘Voos arriscados em balões’).

A grande maioria deles é formada por prótons, mas há também núcleos atômicos pesados, como os de ferro. A origem de grande parte desses viajantes espaciais está em uma ‘chuva’ de partículas emitidas pelo Sol, o chamado vento solar, que atinge os planetas. No entanto, uma pequena fração origina-se em cataclismos que ocorreram em nossa galáxia, como as explosões de estrelas, fenômeno denominado supernova.

O estudo dos raios cósmicos teve um papel central para se entender as propriedades da matéria na primeira metade deste século. Por exemplo, as descobertas do pósitron (antipartícula do elétron) e do múon (partícula com massa cerca de 200 vezes maior que a do elétron) foram realizadas pelo estudo das propriedades desses raios.

A sequência de descobertas sobre a estrutura da matéria teve um dos maiores sucessos com a descoberta dos mésons pi (ou píons), na qual o físico brasileiro Cesar Lattes teve um papel decisivo (ver ‘Raios cósmicos e a física no Brasil’). Outra descoberta, também no final dos anos 40, a das partículas estranhas, batizadas assim por permanecerem estáveis por um ‘longo tempo’ (10-18 s), coincidiu com o início da era dos aceleradores, quando o estudo das partículas deslocou-se, quase inteiramente, para os laboratórios, onde as condições para a produção de novas partículas são inteiramente controladas.

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Um miligrama, um Everest

A energia dos raios cósmicos pode variar muito. Quanto maior a energia, mais raros são. Seu fluxo, isto é, a quantidade deles que cai em uma área decresce por um fator de mil para cada aumento de 10 no fator energia. Por exemplo, um sensor de 1m2 ao nível do mar mede, a cada segundo, mais de 100 raios cósmicos. Já o fluxo dos raios com a energia mais alta já observada é de um deles por quilômetro quadrado a cada século!

Logicamente, os cientistas têm pressa em encontrar respostas para suas indagações e, claro, não se conformariam em esperar séculos para colher alguns poucos raios de extrema energia. Uma solução para o problema está em montar uma grande área de sensores para capturá-los. O Observatório Pierre Auger, agora em construção, cobrirá uma área de 3.000 km2, quase três vezes a do município do Rio de Janeiro, em cada hemisfério.

Em média, a energia dos raios cósmicos que chegam à superfície da Terra é da ordem de 1 Gigaelétron-volt (ou 1 GeV) – o prefixo ‘Giga’ indica 1 bilhão; portanto, poderíamos dizer que a população da Terra é de 4 giga habitantes. Essa energia equivale àquela contida na massa de um próton pela fórmula E = mc2, estabelecida pelo físico alemão Albert Einstein (18791955) em sua teoria da relatividade restrita de 1905, onde ‘E’ representa a energia, 'm’ a massa da partícula e ‘c’ a velocidade da luz elevada ao quadrado. Segundo essa fórmula, uma diminuta quantidade de massa pode gerar uma enorme quantidade de energia.

O recorde de energia de um raio cósmico medido na Terra é de 320 bilhões de GeV, isto é, o número 320 seguido de 18 zeros (ver ‘O primeiro zévatron’). Para representar essa quantidade de energia, usaremos o tão pouco usado prefixo Zeta (Z), que significa o número 1 seguido de 21 zeros. Esse recorde fica, então, em 0,32 ZeV.

Portanto, o nome de zévatron para esses raios cósmicos ultraenergéticos é apropriado, pois dá a impressão de algo monstruoso, difícil de imaginar. Se pudéssemos juntar apenas um miligrama de partículas com essa energia, a energia total seria equivalente à de um gigantesco asteroide, do tamanho do pico Everest, viajando à velocidade de 200 mil km/h.

Névoa e memória

Os zévatrons são as partículas com maior energia já observada no universo, e sua existência coloca os cientistas frente a vários paradoxos. Um deles é encontrar uma explicação para o mecanismo físico que poderia acelerar uma partícula a tal energia. Não se conhece nenhum processo convencional que possa imprimir aos raios cósmicos tamanha energia, o que pode ser uma evidência de que a física precisará de novas leis para explicar esses fenômenos.

Partículas atravessando o espaço com essas energias fantásticas sentem a radiação de fundo, um tipo de névoa’ deixada pelo Big Bang, a explosão que deu início ao Universo. A radiação de fundo permeia todo o espaço e, portanto, acaba dissipando a energia dos zévatrons, num processo semelhante ao de uma bala de fuzil que tem sua energia dissipada devido ao atrito com o ar. Em relação aos raios cósmicos, esse efeito leva o nome de efeito GZK, iniciais de seus descobridores, Kenneth Greisen, Georgi Zatsepin e Vadim Kuzmin.

O efeito GZK tem como consequência a previsão de que as fontes dessas partículas devem estar, em um sentido cosmológico, próximas à Terra, isto é, a menos de 150 milhões de anos-luz da Via Láctea (ano-luz é a distância que a luz, com velocidade de 300 mil km/s, percorre em um ano). Caso contrário, a radiação de fundo dissiparia parte da energia dos zévatrons, desacelerando-os. E, como observamos, não é isso que acontece.

Se por um lado a radiação de fundo tem a capacidade de dissipar a energia dos zévatrons, por outro os campos magnéticos existentes no espaço intergaláctico não são intensos o suficiente para desviar suas trajetórias de forma significativa. Assim, eles guardam a ‘memória’ do seu ponto de origem. Se formos capazes de identificar sua direção de chegada, podemos olhar

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naquela direção e tentar localizar que objetos astronômicos poderiam ser seu berço.

Em contraste, os raios cósmicos de menor energia, os que vêm do Sol, por exemplo, perdem toda a memória de sua origem, percorrendo caminhos tortuosos pelos emaranhados de campos magnéticos da galáxia e do Sistema Solar.

‘Panqueca’ na atmosfera

Ao entrar na atmosfera terrestre, um zévatron colide com uma das moléculas do ar a dezenas de quilômetros de altura acima do solo, quebrando-se em inúmeros fragmentos. Esses estilhaços, por sua vez, carregam também muita energia e colidem de novo com outros átomos, em um processo no qual o número de partículas cresce rapidamente, abrindo-se em uma ‘panqueca’ de partículas que viajam à velocidade da luz.

Na verdade, a panqueca parece mais com a capa de um guarda-chuva invertido, figura denominada, no jargão dos especialistas, chuveiro aéreo extenso’. No ponto onde o número de partículas atinge um máximo, a quantidade delas pode chegar a centenas de bilhões. Depois desse máximo, que é muito característico e está associado à energia e à natureza original do zévatron, o chuveiro começa a se dissipar, mas continua expandindo suas dimensões.

Ao chegar à Terra, o chuveiro pode cobrir uma área com diâmetro de alguns quilômetros, sendo que nessa fase é formado por elétrons, pósitrons, múons, raios gama, além de poucos prótons e nêutrons. A densidade de partículas está concentrada no centro do chuveiro e cai de forma gradativa em direção à periferia.

O paradoxo exibido pela existência de zévatrons é irresistível para os físicos, e a ideia de construir um observatório que possibilitasse esse estudo de forma estatisticamente significativa foi crescendo a partir de uma conferência sobre o assunto, realizada em Paris, em 1992 (ver ‘Comunidade de físicos pesou na decisão’).

Tanques de água

O Observatório Pierre Auger utilizará duas técnicas complementares para medir tanto a energia quanto a direção e a composição dos zévatrons: os tanques de Cherenkov e os olhos de mosca. A primeira delas está baseada na construção de aproximadamente 1.600 tanques de água, espalhados, como já dissemos, em uma área de 3.000 km2. Esses tanques são denominados, no jargão técnico, tanques de Cherenkov, já que dentro de cada um deles haverá células fotomultiplicadoras de luz que são ativadas pela radiação de Cherenkov (ver ‘Mais rápido que a luz’). Visto de cima, o conjunto dos tanques formará uma gigantesca grade triangular, com separação de 1,5 km entre os tanques.

O formato de cada tanque é cilíndrico, com área de 10 m2 e uma parede lateral da altura de 1,5 m. Serão hermeticamente fechados e cheios de água filtrada por um processo sofisticado. Suas paredes interiores serão revestidas por plástico branco que ajudará a difundir a luz proveniente do efeito Cherenkov, sendo que essa intensidade luminosa, registrada pelas células fotomultiplicadoras, é proporcional à energia das partículas que a geraram.

Quando chega ao chão, um chuveiro cósmico irá ativar vários tanques. A intensidade de energia do chuveiro e a medida do instante de chegada das partículas que atingem cada tanque permitem determinar a posição do núcleo, bem como definir a direção de onde veio o chuveiro.

A precisão dessa medida depende de um relógio de precisão muito apurada. No caso do Observatório Pierre Auger, cada tanque terá um receptor GPS (Global Positioning System), sistema de posicionamento baseado em satélites, que fará a vez de um relógio muito preciso. O sistema GPS tem precisão na casa dos bilionésimos de segundo, escala de tempo necessária para a execução de uma instrução em um microcomputador de última geração.

Os tanques têm que se comunicar, pois a evidência de que foram atingidos por um zé-

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vatron é dada pela presença quase simultânea de partículas em vários tanques. Eles têm que comparar seus sinais e decidir se os enviam à estação central. Essa troca de mensagens é feita através de um sistema de comunicações semelhante ao dos telefones celulares.

O sistema eletrônico de um tanque é alimentado por um conjunto de baterias e painéis solares. Como os tanques estarão espalhados em uma região semidesértica, a alimentação por energia elétrica convencional torna-se praticamente inviável. Para se ter uma ideia, só o custo de fios e cabos teria valor quase igual ao custo total do observatório, ou seja, US$ 50 milhões para cada hemisfério.

Resistir às intempéries

O grande desafio tecnológico desse projeto está na confiabilidade exigida de seus componentes. O observatório deverá ter uma vida útil de pelo menos 20 anos, e nesse período as intervenções técnicas nos tanques devem ser reduzidas ao mínimo. Eles estarão espalhados por uma grande área na qual haverá poucos caminhos que a atravessam. Portanto, o acesso será difícil.

A água deverá se manter pura nessas duas décadas de funcionamento, sem que colônias de bactérias cresçam e proliferem nela. Além disso, os tanques sofrerão a ação de ventos, do granizo, do sal do deserto, das grandes variações de temperatura, das chuvas e do ataque de pequenos animais. Assim, é fundamental que sejam projetados para resistir a tudo isso.

Os problemas logísticos para construir, transportar, montar, encher de água e operá-los são desafios para os engenheiros, pois envolvem componentes vindos de vários países e de diferentes fornecedores, bem como a coordenação de trabalhadores de muitas nacionalidades.

Mais rápido que a luz

A radiação de Cherenkov é gerada toda vez que uma partícula carregada eletricamente atravessa um meio transparente com velocidade maior que a velocidade da luz nesse meio. Um múon, por exemplo, ao penetrar no tanque de água com uma velocidade muito próxima à da luz (300 mil km/s) está viajando mais rapidamente que a própria luz na água, cuja velocidade nesse meio fica em torno de 225 mil km/s.

O resultado desse fenômeno, descoberto pelo físico russo Pavel Alekseyevic Cherenkov (1904-1990), é a emissão de uma radiação na forma de uma luz azulada.

O que acontece nessas circunstâncias pode ser entendido em analogia com o movimento de um barco na água. A onda de proa, gerada pelo movimento do barco, é provocada pelo acúmulo de pequenas ondas, já que elas se movem mais lentamente do que o barco.

O mesmo processo gera a frente de onda que segue um avião que viaja a uma velocidade maior que a do som. Nesse caso, porém, o resultado é o chamado estrondo sônico.

Os cientistas brasileiros ocupam várias posições-chave na coordenação e na construção do projeto, tendo como parceiros importantes colegas argentinos. Várias indústrias brasileiras têm colaborado com o projeto, atendendo a especificações de componentes e se preparando para construir componentes com tecnologia avançada.

Participam de forma efetiva do projeto grandes instituições científicas brasileiras, com larga tradição em física, bem como pequenos grupos emergentes. No Brasil, as lideranças do projeto vêm de uma tradição de experimentos em física de altas energias realizados em grandes laboratórios, como o Acelerador do Laboratório Fermi (mais conhecido como Fermilab), perto de Chicago (Estados Unidos), e o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), em Genebra (Suíça), não nos esquecendo da herança deixada pelo físico César Lattes em raios cósmicos.

Vale também ressaltar a colaboração de cientistas de outras áreas em aspectos mais específicos. Especialistas em instrumentação têm contribuído no desenho e na construção dos

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tanques; químicos cuidam da preparação de materiais especiais para o revestimento interno dos tanques; biólogos assessoram na monitorização de colônias de bactérias; engenheiros de materiais ajudam em questões relativas à corrosão do aço e à resistência de plásticos a intempéries, sendo que muitos desses profissionais estão associados a indústrias que são potenciais fornecedores de equipamentos para o projeto. Além disso, cientistas espaciais estão nos ajudando a projetar e a construir os equipamentos de monitorização atmosférica, bem como engenheiros de produção colaboram em questões logísticas vitais.

Olhos de mosca

Em sua cascata aérea, os chuveiros extensos arrancam elétrons dos átomos da atmosfera – no jargão técnico, diz-se que esses átomos são ionizados –, fenômeno que ocorre principalmente com os átomos de nitrogênio. O resultado dessa ionização é a emissão de luz ultravioleta, que, na área central do chuveiro, é suficientemente intensa para ser observada a grandes distâncias. A intensidade dessa luz é equivalente à de uma lâmpada com poucos watts de potência atravessando a atmosfera à velocidade da luz, aumentando e depois diminuindo seu brilho.

Esse efeito da fluorescência dos átomos de nitrogênio não pode ser visto a olho nu, mas apenas por telescópios especiais.

Esse é o princípio dos detectores de fluorescência, a segunda técnica para medir os raios cósmicos, um sistema complementar aos tanques. A área coberta pelos tanques é cercada por três telescópios, e o sistema é completado por outro telescópio no centro da rede de tanques.

Cada telescópio funciona como um olho de mosca, como se fosse um conjunto de milhares de pequenos olhos que focalizam, cada um, um pequeno cone no céu. Cada olho é subdividido em pedaços que cobrem uma região do céu de 30 graus de longitude por 30 graus de latitude a partir do horizonte.

Faz parte também dos telescópios um grande espelho esférico, com 3,5 m de curvatura e uma área de aproximadamente 12 m2, que focaliza a luz em 440 células fotomultiplicadoras independentes, cada uma registrando a luz de um cone de 1,5 grau quadrado. Fotomultiplicadoras são sensores de luz extremamente sensíveis e rápidos, capazes de acompanhar, por exemplo, o movimento do núcleo de um chuveiro cósmico.

Devido a essa sensibilidade, esses sensores só podem ser usados em noites límpidas, sem a luz da Lua. Enquanto os tanques coletam dados 24 horas por dia, o detector de fluorescência coleta dados em apenas 10% do tempo. Porém, a informação coletada por esses telescópios acompanha todo o desenvolvimento do chuveiro ao longo de sua trajetória descendente, em contraste com os tanques que tiram um tipo de ‘fotografia instantânea’ do chuveiro no momento que atinge o chão. Os dados dos tanques e dos telescópios são complementares e essenciais para apurar as características do chuveiro.

A intensidade de luz emitida na fluorescência depende da energia do raio cósmico, e uma medida precisa dela exige uma monitorização detalhada da atmosfera na região do experimento. A cobertura de nuvens e a distribuição de aerossóis, partículas suspensas na atmosfera, afetam a transparência do ar e atenuam a intensidade do chuveiro. Um sistema de monitorização atmosférico baseado em lidares, instrumentos semelhantes a radares, mas que usam feixes de luz laser, será instalado em toda a região. Eles medem não só a cobertura de nuvens, mas também a distribuição dos aerossóis nos primeiros quilômetros da atmosfera acima do solo.

Ciência e indústria Esse projeto é um paradigma de um modelo de interação entre a ciência básica e a indústria. Nós, físicos, estamos interessados em observar esses espantosos fenômenos cósmicos, os zévatrons. Queremos saber de onde vêm, o que nos dizem sobre o universo. Estamos interessados

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nos núcleos ativos de galáxias que poderiam ser suas fontes, nos buracos negros, nos campos magnéticos intergalácticos, na possibilidade de que existam novas formas de matéria que poderiam dar origem a essas partículas ultraenergéticas, bem como na possibilidade de termos violações nas leis da natureza que conhecemos e testamos com tanta precisão.

Se perguntados – “Qual a utilidade disto?” –, a resposta franca e, talvez, um tanto arrogante é: “Nenhuma!” A utilidade do conhecimento é difícil de ser aferida, mas não há notícia de país que tenha ficado mais pobre por conhecer demais!

Apesar do nosso trabalho não estar ligado de maneira direta com processos de desenvolvimento industrial do nosso país, as necessidades do projeto nos forçaram a colaborar de forma construtiva com a indústria. Por outro lado, a indústria não tem como objetivo contribuir para o conhecimento sobre esses espantosos fenômenos cósmicos. No entanto, nossas demandas e especificações extraordinárias forçaram-nos a colaborar de forma objetiva com a ciência.

O fator mais importante nessa união de interesses é que o progresso científico, isto é, as exigências estabelecidas pelos objetivos científicos induzem demandas para a indústria, que, ao atendê-las, geram desenvolvimento.

BOXE_VOOS ARRISCADOS EM BALÕES

Victor Francis Hess (1883-1964) foi o primeiro físico a comprovar a origem espacial dos raios cósmicos ao expor sensores delicados em arriscados voos de balões em 1910. Esse austríaco, naturalizado norte-americano, foi recompensado por sua descoberta, recebendo o prêmio Nobel de Física de 1936. Em 1938, o físico Pierre Auger (1899-1993) observou que muitos dos raios cósmicos têm uma estrutura extensa e que, por vezes, os raios cósmicos chegavam simultaneamente a sensores separados por dezenas de metros. Interpretou corretamente suas observações, atribuindo a origem desses chuveiros extensos – termo que cunhou – à colisão de raios cósmicos com energias muito altas contra átomos no alto da atmosfera.

Nos choques, os átomos atmosféricos eram fragmentados, e o resultado desses estilhaços, por sua vez, fragmentava novos átomos. O nome do Observatório Pierre Auger é uma homenagem a um dos cientistas franceses mais influentes deste século.

BOXE_RAIOS CÓSMICOS E A FÍSICA NO BRASIL

No Brasil, o início da pesquisa em física de forma mais organizada tem no estudo dos raios cósmicos um dos seus focos, com a vinda do físico ítalo-russo Gleb Wataghin (1899-1986) e do físico italiano Giuseppe Occhialini (1907-1993) para o Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) na década de 1930, influenciando toda uma geração de cientistas. Vale destacar também os estudos pioneiros dos raios cósmicos penetrantes pelos físicos Marcelo Damy de Souza Santos e Paulus Aulus Pompeia (1911-1993).

Lattes, logo depois da descoberta dos mésons pi na Universidade de Bristol, na Inglaterra, em 1947, viajou para Berkeley, Califórnia (EUA), e foi o primeiro cientista a verificar a presença dessas partículas nos fragmentos das colisões de prótons contra núcleos atômicos naquele acelerador.

Lattes manteve seu interesse no estudo dos raios cósmicos ao longo das últimas quatro décadas, liderando grupos de brasileiros da USP, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro, na Universidade Estadual de Campinas (SP) e na Universidade Federal Fluminense, em Niterói (RJ).

Esses experimentos são feitos no Monte Chacaltaya, a 5.200 m de altura, perto de La

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Paz, na Bolívia. Neles, são observadas peculiaridades do choque entre raios cósmicos e partículas da atmosfera terrestre, como o crescimento das dimensões dos prótons com o aumento da energia, fenômeno mais tarde confirmado por experimentos realizados em aceleradores. Observavam-se também raios cósmicos com características inesperadas, os chamados eventos Centauros, que ainda aguardam confirmação experimental em condições controladas.

BOXE_O PRIMEIRO ZÉVATRON

O primeiro zévatron foi observado em 1960 pelo físico norte-americano John Linsley, em um experimento realizado no estado do Novo México, nos Estados Unidos. Na época, a descoberta não recebeu muita atenção, pois deveria ser validada por outras observações e confirmada por outros experimentos. A energia medida por Linsley foi de 0,1 ZeV, espantosa para a época. A comprovação veio lentamente, através de experimentos realizados na Inglaterra, na então União Soviética, nos Estados Unidos e no Japão. Hoje, há um catálogo de cerca de uma dezena de zévatrons, número ainda insuficiente para um estudo mais detalhado de suas origens e suas características.

BOXE_COMUNIDADE DE FÍSICOS PESOU NA DECISÃO

A formação de um consórcio de instituições por 19 países (Estados Unidos, Argentina, Brasil, Bolívia, México, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Polônia, Rússia, República Tcheca, Grécia, Itália, Vietnã, Japão, China, Armênia, Eslovênia e Austrália), reunindo cerca de 250 pesquisadores, para construir o Observatório Pierre Auger materializou-se em 1995, na sede da Unesco, em Paris. O consórcio foi liderado pelo físico norte-americano James Cronin, da Universidade de Chicago (ver ‘O enigma das micropartículas com macroenergia’, em Ciência Hoje n. 124), e pelo escocês Alan Watson, físico da Universidade de Leeds, na Inglaterra. Cronin recebeu o prêmio Nobel de Física de 1980 pela descoberta da violação da simetria CP (ver ‘A assimetria do universo’, em Ciência Hoje n. 148).

Na reunião da Unesco, a Argentina, por suas características geográficas, foi escolhida como sede para os detectores do hemisfério Sul, batendo a Austrália e a África do Sul. Pesou na decisão a existência de uma sólida comunidade de físicos na Argentina e no Brasil que vinha participando dos estudos preliminares e que tinha a intenção de trazer para o continente um laboratório capaz de alargar as fronteiras do conhecimento.

Instituto de Física, Universidade Estadual de Campinas

Departamento de Física, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Laboratório de Cosmologia e Física Experimental de Altas Energias Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas

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Carlos Ourivio Escobar Ronald Cintra Shellard

ENERGIAS EXTREMAS NO UNIVERSO

(Artigo publicado na Revista do CBPF, 2002)

A existência de raios cósmicos de altas energias é um dos problemas mais intrigantes na astrofísica e na física das partículas atuais. Há décadas que a solução dos paradoxos apresentados por essas partículas com energias macroscópicas desafia a criatividade e engenhosidade dos físicos.

Raios cósmicos altamente energéticos não deveriam existir. Mas o fato é que existem. Além disso, suas fontes deveriam ser facilmente identificáveis, pois, com tamanha energia que carregam, essas partículas praticamente viajam em linha reta de sua origem até nós, insensíveis à ação de qualquer campo magnético ao longo do percurso, mesmo que essas distâncias tenham sido cosmológicas.

Porém, nunca se determinou nenhuma relação entre galáxias próximas e raios cósmicos com energias acima de 1020 elétrons-volt (unidade de energia usada em física de partículas). Para se ter uma ideia, essa quantidade de energia é a mesma carregada por uma bola de tênis sacada pelo nosso campeão Guga. Vale lembrar, porém, que os raios cósmicos – nome que permaneceu por razões históricas – são partículas subatômicas, cujas dimensões são desprezíveis em comparação com qualquer objeto macroscópico (ver também nesta edição ‘Laboratório de raios cósmicos’).

Também não se conhece nenhum mecanismo físico que possa explicar como acelerar partículas a essas energias. Os mais potentes aceleradores construídos até hoje geram partículas cem milhões de vezes menos energéticas.

Um a cada século

A energia dos raios cósmicos pode variar muito. Quanto maior a energia, mais raros são. Seu fluxo, isto é, a quantidade deles que cai em uma área decresce por um fator mil para cada aumento de dez no fator energia. Por exemplo, um sensor de 1 m2 ao nível do mar mede, a cada segundo, mais de 100 raios cósmicos – grande parte dos raios cósmicos que atingem a Terra tem sua origem na galáxia em que vivemos, fruto de eventos cataclísmicos como a explosão de supernovas (ver nesta edição ‘Brilho intenso no céu’).

Já o fluxo dos raios cósmicos com a energia mais alta já observada é de um deles por quilômetro quadrado a cada século! Logicamente, os cientistas têm pressa em encontrar respostas para suas indagações e, claro, não se conformariam em esperar séculos para colher alguns poucos raios de extrema energia. Uma solução para o problema está em montar uma grande área de sensores para capturá-los – tema que iremos tratar mais adiante neste artigo.

Panquecas de partículas

O recorde de energia de um raio cósmico medido na Terra é de 320 bilhões de bilhões de elétrons-volt, isto é, o número 320 seguido de 18 zeros. Para representar essa quantidade de energia, usa-se o tão incomum prefixo zeta (Z), que significa o número 1 seguido de 21 zeros. O recorde fica, então, em 0,32 ZeV, ou 50 joules, a energia de uma bola no saque de Guga, concentrada numa partícula microscópica.

Ao entrar na atmosfera terrestre, o raio cósmico colide com o núcleo de uma das moléculas do ar a dezenas de quilômetros de altura acima do solo, quebrando-o em inúmeros fragmentos. Esses estilhaços, por sua vez, carregam também muita energia e colidem com outros átomos, em um processo no qual o número de partículas cresce rapidamente, abrindo-se em uma ‘panqueca’ de partículas que viajam praticamente à velocidade da luz. Na verdade, a

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panqueca parece mais com a capa de um guarda-chuva invertido, figura denominada, no jargão dos especialistas, ‘chuveiro aéreo extenso’. No ponto onde o número de partículas atinge um máximo – a densidade de partículas está concentrada no centro do chuveiro e cai de forma gradativa em direção à periferia –, a quantidade delas pode chegar a centenas de bilhões. Depois desse máximo, que é muito característico e está associado à energia e à natureza original do raio cósmico, o chuveiro começa a se dissipar, mas continua expandindo suas dimensões.

Lâmpada na atmosfera

Em sua cascata aérea, os chuveiros extensos arrancam elétrons dos átomos da atmosfera – no jargão técnico, diz-se que esses átomos são ionizados –, fenômeno que ocorre principalmente com os átomos de nitrogênio. O resultado dessa ionização é a emissão de luz ultravioleta, que, na área central do chuveiro, é suficientemente intensa para ser observada a grandes distâncias.

A intensidade dessa luz, porém, é equivalente à de uma lâmpada com poucos watts de potência atravessando a atmosfera à velocidade da luz, aumentando e depois diminuindo seu brilho. Esse efeito da fluorescência dos átomos de nitrogênio não pode ser visto a olho nu, mas apenas por telescópios especiais.

Ao chegar à Terra, o chuveiro pode cobrir uma área com diâmetro de alguns quilômetros, sendo que, nessa fase, é formado por elétrons e sua antipartícula (pósitrons), raios gama (ondas eletromagnéticas muito energéticas), múons (‘parentes’ do elétron), além de poucos prótons e nêutrons.

Consórcio internacional

O desafio oferecido para a compreensão da origem e a natureza de raios cósmicos com energias extremas motivou um grupo de cientistas a formar um consórcio internacional e a construir um laboratório para observá-los. Em outubro deste ano, completa-se a primeira etapa da construção do Observatório Pierre Auger, na província de Mendoza (Argentina). Dentro de dois anos, começará a construção de outro complexo de detectores no estado de Utah (Estados Unidos) para cobrir o céu do hemisfério Norte.

O Observatório Auger – o nome é uma homenagem ao físico francês Pierre Victor Auger, um dos pioneiros no estudo de raios cósmicos – utilizará duas técnicas complementares para apurar tanto a energia quanto a origem e a composição dos raios cósmicos. A primeira delas está baseada na construção de tanques de água espalhados por uma área equivalente a quase três vezes à do município do Rio de Janeiro (ver ‘Tanques operam com telefonia celular’).

A segunda são telescópios especiais, cuja função é captar a fluorescência causada pela passagem dos raios cósmicos pela atmosfera. A área coberta pelos tanques terá três deles, e um quarto telescópio ocupa o centro da rede de tanques.

Cada telescópio funciona como um olho de mosca, formando um conjunto de milhares de pequenos olhos que focalizam, cada um, um pequeno cone no céu. Esses diminutos olhos são fotomultiplicadores, sensores de luz extremamente precisos, rápidos e capazes de acompanhar, por exemplo, o movimento do núcleo de um chuveiro cósmico através da atmosfera.

Olhos em noites límpidas Ao todo, haverá 13,2 mil olhos supervisionando os 3 mil km2 do Observatório Auger. Devido a essa sensibilidade, os telescópios só poderão ser usados em noites límpidas, sem a luz da Lua. Enquanto os tanques coletam dados 24 horas por dia, o detector de fluorescência atua em apenas 10% do tempo.

Porém, a informação coletada por esses telescópios acompanha todo o desenvolvimento do chuveiro ao longo de sua trajetória descendente, em contraste com os tanques que tiram um tipo de ‘fotografia instantânea’ do chuveiro no momento que atinge o chão.

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Assim que entrar em operação, o Observatório Auger se transformará na mais poderosa janela de observação de raios cósmicos (ver ‘Projeto reúne cerca de 20 países’). Será um passo importante para desvendar um dos mais instigantes mistérios da física, dos modernos mecanismos capazes de imprimir tamanha energia a partículas e como elas se propagam no espaço.

BOXE_PROJETO REÚNE CERCA DE 20 PAÍSES

O CBPF colabora com a Universidade Estadual de Campinas no projeto do Observatório Auger. Dele participam também instituições de mais 18 países. Nossa equipe é responsável pela supervisão e instalação dos tanques na fase inicial do observatório, bem como pela supervisão da organização do software para o processamento e análise dos dados do experimento, além de ter contribuído com a preparação do software de aquisição e análise dos dados.

O CBPF tem servido de apoio aos cientistas de outras instituições, como Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal da Bahia, PUC do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Espírito Santo e Universidade Federal de Juiz de Fora, que também participam do projeto.

BOXE_TANQUES OPERAM COM TELEFONIA CELULAR

Visto de cima, o conjunto de tanques do Observatório Auger formará uma gigantesca grade triangular, com separação de 1,5 km entre os tanques. Cada tanque é um cilindro com área de 10 m2 e uma parede lateral da altura de 1,5 m. São hermeticamente fechados e cheios de água filtrada por um processo sofisticado para evitar o crescimento de microrganismos.

Suas paredes interiores serão revestidas por plástico branco que ajuda a difundir a luz, gerada pela passagem de partículas carregadas, o chamado ‘efeito Cherenkov’ – o efeito ocorre quando uma partícula viaja com velocidade superior à da luz no meio em questão. A intensidade luminosa, registrada pelas células fotomultiplicadoras no interior dos tanques, é proporcional à energia das partículas que a geraram.

Quando chega ao chão, um chuveiro cósmico ativa vários tanques. A intensidade de energia do chuveiro e a medida precisa do instante de chegada das partículas que atingem cada tanque permitem determinar a posição do núcleo, bem como definir a direção de onde veio o chuveiro.

Cada tanque tem um receptor GPS (Global Positioning System), sistema de posicionamento baseado em satélites, que faz a vez de um relógio muito preciso. O sistema GPS tem precisão na casa em questão. A intensidade luminosa, registrada pelas células fotomultiplicadoras no interior dos tanques, é proporcional à energia das partículas que a geraram.

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Ronald Cintra Shellard Grupo de Raios Cósmicos de Altas Energias CBPF

PRECISÃO E SENSIBILIDADE

Depois de 11,5 anos, o detector Delphi encerrou sua carreira com uma ficha de bons serviços prestados à física: fotografou dezenas de milhões de colisões da matéria contra a antimatéria, dados que levaram à descoberta de novas partículas e à confirmação de importantes previsões teóricas.

Em dezembro de 2000, choques entre elétrons e suas antipartículas iluminaram pela última vez o detector Delphi, localizado no acelerador LEP (sigla, em inglês, Grande Colisor de Elétrons e Pósitrons), um túnel de 27 km de comprimento, escavado a 100 metros de profundidade, abaixo de uma planície próxima ao lago Léman, na fronteira da Suíça e França, onde funciona o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN).

Encerravam-se 11,5 anos de uma extensa coleção de dados sobre as partículas criadas nesses choques de matéria contra antimatéria. Em cada um dos quatro pontos onde foram coletados os dados, há um complexo conjunto de sensores que fotografam os resultados da colisão. São os detectores Aleph, Delphi, L3 e Opal, operados, cada um, por cerca de 400 físicos (ver também nesta edição ‘Quatro andares de ciência e tecnologia’). Pesquisadores do CBPF e de outras instituições brasileiras participaram do experimento (ver ‘Brasil participou da construção, coleta e pesquisa’).

Nos primeiros anos dos experimentos, a energia do LEP foi suficiente para produzir o parente pesado do fóton, a partícula Z zero, indicada comumente pela sigla Zº. Essa partícula foi inventada ainda em 1957 pelo físico brasileiro José Leite Lopes, que foi movido essencialmente por considerações estéticas sobre a simetria da natureza.

A Z, juntamente com mais duas partículas (W+ e W-), são responsáveis pela transmissão da chamada força fraca, que está relacionada com o chamado decaimento radioativo beta (emissão de elétrons pelo núcleo atômico) – sem entrar em detalhes, vale ressaltar que as outras três forças conhecidas são a gravitacional, a eletromagnética e a força forte.

Fatores exóticos

Por sete anos, o Delphi fotografou dezenas de milhões de Zºs, permitindo um estudo estatístico de todas as facetas dessa partícula, bem como um teste das previsões feitas com base no chamado Modelo Padrão, um poderoso ferramental teórico usado hoje pela física para estudar as partículas subatômicas.

O grau de sensibilidade atingido pela combinação dos quatro detectores do LEP foi tão grande que, na medida da massa do Zº, foi necessário levar em conta fatores exóticos do ponto de vista da física das partículas. As marés da Terra (e não do mar!) influenciam o comprimento do anel de colisão, que, por sua vez, deve ser levado em consideração na estimativa dessa massa. Essas marés são deformações na crosta terrestre causadas pela atração gravitacional da Lua.

Outros fatores, como a passagem de trens em uma linha férrea a um quilômetro do anel, provocam pequenas perturbações no campo dos ímãs do anel e também que ser levados em conta. E até mesmo o regime de chuvas em Genebra, onde está localizado o LEP, afeta essas medidas.

Quark superpesado

Logo no início da operação do LEP, Delphi e os outros detectores (ou experimentos, como preferem os físicos) confirmaram, com grande precisão, que devem ser três os tipos de neutri-

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(Artigo publicado na Revista do CBPF, 2002)

nos existentes na natureza, conforme indicava a previsão do Modelo Padrão – os três tipos de neutrinos (partículas sem carga) são o neutrino do elétron, o neutrino do múon e o neutrino do tau. Outro resultado espetacular dessa fase inicial do experimento foi a medida da transformação (ou decaimento) do Zº em quarks pesados do tipo bottom (‘parentes’ mais pesados dos quarks up e down, sendo que estes dois últimos formam os prótons e nêutrons).

A precisão dessas medidas permitiu ainda extrair uma previsão para a massa de um presumido quark, o top. Esses cálculos foram confirmados pelos experimentos que levaram à descoberta dessa partícula superpesada realizados no acelerador Tévatron, do Fermilab, próximo a Chicago (Estados Unidos). O refinamento das medidas feitas a partir dos dados coletados pelo Delphi mostrou que a massa do quark que foi calculada teoricamente era praticamente a mesma da partícula real.

Na verdade, esses resultados refletem o poder de previsão dos cálculos teóricos feitos hoje na física, bem como o nível de consistência do próprio Modelo Padrão.

220 prótons de energia

O detector Delphi é um cilindro de 3,5 mil toneladas, com dez metros de diâmetro e com dimensão semelhante em sua extensão. Tem em seu centro o lócus, onde ocorrem as colisões de matéria e antimatéria, no interior do tubo que isola os feixes de partículas (ver ‘Camadas se sobrepõem como em uma boneca russa’).

A partir de 1996, o LEP passou por uma reforma – foram instalados equipamentos denominados cavidades de radiofrequência supercondutoras –, o que permitiu que sua energia fosse gradualmente aumentada, até atingir, três anos depois, a casa de 209 bilhões de elétrons-volt (ou 209 GeV), energia que corresponde à massa de cerca de 220 prótons!

Quando a energia das colisões é semelhante à energia representada pela massa do Z0, ocorre uma produção copiosa dessas partículas, devido a um fenômeno da física denominado ressonância. Fora da faixa de energia que leva à ressonância, o número de colisões por unidade de tempo cai substancialmente. No entanto, nesses patamares de energia é possível criar pares dos outros bósons vetoriais, os W+ e W-, e também pares de Z0, permitindo testes mais precisos das previsões do Modelo Padrão.

Senso de frustração

Ao longo de sua história, um dos principais objetivos do experimento Delphi foi testar a existência de partículas como o bóson de Higgs e as partículas supersimétricas, mas, até o final da coleta de dados, não foram encontradas evidências da presença dessas partículas.

No último período de tomada de dados no Delphi, foram coletados dois exemplares de eventos que poderiam ser interpretados como evidência para o bóson de Higgs, esta uma partícula que seria responsável por dar origem à massa de todas as outras partículas. No entanto, só dois eventos não são suficientes para estabelecer uma descoberta. Outros detectores encontraram também evidências de mesma natureza.

O encerramento das operações do LEP é motivado pela construção, dentro do mesmo túnel, de um novo acelerador de prótons, o LHC (sigla, em inglês, para Grande Colisor de Hádrons), que será capaz de atingir energias muito maiores. O LHC deverá entrar em operação ao final de 2005.

A possibilidade da descoberta do Higgs ao final do funcionamento do LEP deixou na comunidade de físicos ligados aos quatro detectores certo senso de frustração. Só o tempo e as medidas que serão feitas no LHC permitirão verificar se os tênues sinais que surgiram nos últimos dias do LEP eram realmente registros dos bósons de Higgs ou eram apenas flutuações nos dados, como já ocorreu outras vezes.

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O LEP e o Delphi deixam um belo legado de medidas que, com muita precisão, serviram para testar a validade do Modelo Padrão. Os dados produziram ainda cerca de mais de duas centenas de trabalhos publicados em revistas especializadas.

BOXE_CAMADAS SE SOBREPÕEM COMO EM UMA BONECA RUSSA

O Delphi, na verdade, é formado por vários detectores com funções distintas, que se sobrepõem como as diversas cascas de uma boneca russa. Na camada mais interior, há um detector baseado na tecnologia de microfitas embebidas em um substrato de silício que são capazes de medir a posição de passagem de partículas carregadas com a precisão de alguns milésimos de milímetros (mícrons).

A função desse detector é identificar a existência de vértices secundários, fruto do decaimento de partículas de vida breve que percorrem alguns milímetros a partir do ponto de colisão, até se desfazerem em outras. Seguem-se duas camadas de detectores com a função de identificar e medir as trajetórias das partículas carregadas produzidas na colisão.

A próxima casca é um detector de radiação Cherenkov, emitida quando uma partícula viaja com velocidade superior à da luz naquele meio. Esse equipamento é útil na identificação da natureza das partículas, separando prótons de méson k (káons) e mésons pi (píons) – as duas últimas partículas com massa intermediária entre os elétrons e os prótons.

Todos esses subdetectores internos procuram minimizar, em seu desenho e sua confecção, a quantidade de matéria, permitindo que a maioria das partículas os atravessem sem muitas perdas.

O próximo detector é desenhado para identificar e medir a presença de fótons (partículas de luz) e elétrons, destruindo-os nesse processo. Esse calorímetro eletromagnético é fabricado com grande quantidade de chumbo, material que essas partículas não conseguem atravessar (diz-se que é um material opaco). O detector é envolto então por um cilindro que é um imã supercondutor (um solenoide) que gera um campo magnético muito homogêneo em seu interior. Dois componentes completam a estrutura de cascas. O primeiro, denominado calorímetro hadrônico, são na verdade placas de aço instrumentadas, mas com função primordial de criar um caminho de retorno para o campo magnético no interior do detector. O outro são os detectores de mésons mi (ou múons), partículas capazes de sobreviver a todos esses percalços, sendo esta a razão pela qual esse conjunto de detectores compõe as camadas mais externas do Delphi.

BOXE_BRASIL PARTICIPOU DA CONSTRUÇÃO, COLETA E PESQUISA

Desde 1988, o CBPF vem liderando um grupo formado por físicos também da PUC Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro na construção e operação do experimento Delphi.

Esse grupo participou tanto da busca por novas partículas (bósons de Higgs, por exemplo) quanto da investigação sobre as propriedades das já detectadas. Também participou extensivamente do programa técnico da construção do detector, realizando tarefas como desenvolvimento e manutenção de programas de computadores para a análise de dados, bem como para a simulação e reconstrução das colisões.

Os integrantes do Grupo Delphi constam como coautores de todos os cerca de 200 artigos publicados a partir dos dados coletados pelo Delphi. Essas publicações tiveram um alto índice de citações por trabalho. A colaboração em torno do experimento Delphi envolve cerca

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de 50 instituições espalhadas pelo mundo inteiro, sendo resultado do trabalho de centenas de físicos, engenheiros e técnicos.

Mesmo com o encerramento das colisões do Delphi, os trabalhos de análise de dados coletados continuam e são uma excelente oportunidade para que estudantes façam suas teses, dada a profusão de dados para serem analisados.

AUGER: 20 ANOS MAIOR OBSERVATÓRIO DE RAIOS CÓSMICOS DO MUNDO INICIA NOVA ETAPA HISTÓRICA

(Artigo para a revista Ciência Hoje, n. 361, 2019)

Vinte anos se passaram desde o lançamento da pedra fundamental do Observatório Pierre Auger, em 1999. Agora, o maior experimento do mundo acabou de celebrar duas décadas de existência dedicadas ao estudo dos ainda misteriosos raios cósmicos, núcleos atômicos que, vindos do espaço a todo instante, bombardeiam a atmosfera terrestre, causando, com essas colisões, uma cascata de partículas ultravelozes que chegam ao solo. A partir de agora, o observatório está começando uma nova história, com detectores que possibilitarão medidas mais completas e maior conhecimento sobre a composição química desses viajantes cósmicos.

OObservatório Pierre Auger é o maior complexo de detectores já construído para o estudo dos raios cósmicos ‒ núcleos atômicos que bombardeiam a todo instante a Terra, vindos de todas as direções do universo.

Com 3 mil km2, o observatório cobre uma área equivalente ao dobro daquela da cidade de São Paulo. Seu objetivo principal é possibilitar o estudo dos raios cósmicos de mais altas energias já observados até hoje, para obter informação sobre suas origens, seus processos de aceleração e propagação, suas interações, sua composição e seu espectro energético.

Esses raios cósmicos de altíssima energia ‒ com dimensão trilhões de vezes menor que a de um grão de areia ‒ têm energias acima de 1018 elétrons-volt, o que equivale àquela carregada por uma bola de tênis sacada por um tenista profissional.

O Observatório Auger é operado por uma colaboração internacional de mais de 400 cientistas de 17 países, envolvendo físicos, engenheiros, técnicos e estudantes de pós-graduação.

Dezenas de pesquisadores brasileiros têm participado ativamente de todas as etapas desde sua concepção ‒ na década de 1990 ‒, contribuindo para a construção e o desenvolvimento de detectores e sua posterior operação, bem como para os vários aspectos das análises dos dados.

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Várias partes dos detectores foram fabricadas por indústrias brasileiras que desenvolveram equipamentos e técnicas especializadas, tendo em vista o propósito a que se destinavam os detectores.

O Auger ‒ como, por vezes, é chamado ‒ está localizado nos pampas argentinos, nas proximidades da cidade de Malargüe, a cerca de 370 km ao sul da cidade de Mendoza e a 1,4 mil m acima do nível do mar.

O desenho do observatório foi completado em 2002, e um conjunto de 32 protótipos dos detectores operou até 2005, quando a construção da versão final do observatório teve início. Mas, já desde 1º de janeiro de 2004, os detectores registravam dados continuamente.

Tanques e telescópios

Ao chegar à Terra e adentrar a atmosfera, um raio cósmico altamente energético se choca com um núcleo de uma das moléculas que compõem o ar, gerando fragmentos que são novas partículas, as quais, por sua vez, também podem sofrer novas colisões (interações), criando mais partículas. Como resultado, chegam simultaneamente ao solo bilhões de partículas de menor energia ‒ formando um ‘chuveiro atmosférico’ ‒, as quais podem ser registradas nos detectores.

Para a detecção desses chuveiros, o Observatório Auger explora duas técnicas complementares: detectores de luz Cherenkov e telescópios de fluorescência. Cada um desses 1.660 detectores ‒ espalhados pelos 3 mil km2 e distantes entre si 1,5 km ‒ consiste de um tanque em plástico (polietileno) cheio de água puríssima e contendo três fotomultiplicadoras (detectores de luz), painel solar, baterias para alimentar a eletrônica, uma antena para a transmissão de dados até a central de aquisição e um GPS, para registrar o tempo da chegada das partículas do chuveiro ao detector.

Os fótons (partículas de luz) na água, gerados pelo efeito Cherenkov, são coletados pelas fotomultiplicadoras. O efeito Cherenkov ocorre quando partículas, viajando em um meio material, em velocidades muito próximas à velocidade da luz no vácuo, têm velocidade maior do que a de propagação da luz naquele meio.

Vinte e quatro telescópios de fluorescência estão instalados em quatro prédios localizados em pequenas elevações no perímetro da área e cobrem a atmosfera acima do arranjo de detectores na superfície. Os telescópios medem a luz de fluorescência emitida, em todas as direções, quando moléculas de nitrogênio são excitadas pela passagem das partículas do chuveiro. Cada telescópio coleta a luz que incide sobre um espelho esférico de 11 m2 e é por ele refletida em uma câmara com 440 fotomultiplicadoras.

Os dados coletados pelos detectores utilizando essas duas técnicas permitem estimar o número de partículas do chuveiro e, finalmente, a energia do raio cósmico que deu origem ao chuveiro e a direção da qual ele veio no céu.

Ao longo dos anos, novos detectores foram gradativamente incorporados ao observatório, como novos telescópios com campo de visão mais elevado, arranjos de antenas de rádio e de detectores subterrâneos de múons (partículas ‘irmãs’ dos elétrons, mais pesadas que eles e altamente penetrantes). Esses novos equipamentos possibilitaram obter mais detalhes sobre os chuveiros e as partículas que os iniciaram.

Tradição brasileira

O Brasil tem ampla tradição em pesquisa de raios cósmicos, iniciada ainda na década de 1930 com o físico ítalo-russo Gleb Wataghin (1899-1986), em São Paulo, e com Bernhard Gross (1905-2002), no Rio de Janeiro. Um dos pioneiros mais famosos foi o físico brasileiro César Lattes (1924-2005), um dos descobridores, em 1947, dos píons, partículas elementares que servem como ‘cola’ dos prótons e nêutrons, mantendo o núcleo atômico coeso. Os píons foram justamente descobertos em experimentos envolvendo raios cósmicos.

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Ao longo dos anos, pesquisadores brasileiros estiveram sempre envolvidos em diversas colaborações científicas internacionais dedicadas ao estudo dessas partículas mais energéticas do universo. A participação de físicos brasileiros no Observatório Pierre Auger, na Argentina, remonta à década de 1990, quando o projeto estava sendo concebido.

Desde o início, a participação de cientistas brasileiros nas pesquisas desenvolvidas no Observatório Pierre Auger tem sido apoiada pelas agências de fomento, como Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Os pesquisadores brasileiros no Observatório Pierre Auger estão ligados à Universidade de São Paulo (Instituto de Física em São Paulo, Instituto de Física em São Carlos e Escola de Engenharia em Lorena), Universidade Estadual de Campinas (SP), Universidade Federal do ABC (SP), Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Observatório do Valongo (RJ), Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (RJ), Universidade Estadual de Feira de Santana (BA) e Universidade Federal do Paraná (setor Palotina).

Versão Prime

Os dados obtidos pelo Observatório Auger concordam com a previsão de um modelo teórico (tecnicamente, denominado GZK), segundo o qual há uma supressão do fluxo de raios cósmicos com energias acima de 5 x 1019 eV ‒ este valor de energia é conhecido como limite (ou corte) GZK. Esses raios cósmicos, ao longo de sua trajetória rumo à Terra, se chocariam continuamente com fótons que preenchem todo o universo, perdendo boa parte de sua energia e gerando outras partículas nas colisões.

Porém, ao se cruzar essa informação da supressão observada do fluxo com a estimativa das massas desses raios cósmicos conforme obtida das análises dos dados, parece que a explicação pode não ser tão simples quanto sugere a teoria. As análises dos dados do Auger revelam que os raios cósmicos são mais pesados quanto maiores forem as suas energias, passando de leves, como prótons e núcleos de hélio, para mais pesados, como nitrogênio e carbono.

Essa observação abre a possibilidade para uma explicação alternativa da supressão do fluxo, indicando um possível limite para a energia que os raios cósmicos possam atingir. Pesquisas mais aprofundadas com detectores aprimorados se fazem necessárias para certificar a explicação da supressão.

As análises também mostram que os raios cósmicos não chegam em igual número de todas as direções no céu. Para aqueles com energias acima de 8 x 1018 eV, há uma direção preferencial, da qual chegam em maior número. Essa direção não aponta para o centro de nossa galáxia ‒ como seria de se esperar, pois há ali um buraco negro, fonte intensa de radiação e onde há maior densidade de objetos astrofísicos candidatos a fontes de raios cósmicos ‒, mas para 125° dele, indicando que a origem dos raios cósmicos mais energéticos é extragaláctica.

As análises das direções dos raios cósmicos detectados possibilitaram mostrar correlações com as direções tanto de galáxias-berçário (ou galáxias starburst) quanto de galáxias com núcleo ativo. Ou seja, esses dois corpos celestes podem ser possíveis fontes dos raios cósmicos de altíssimas energias.

Finalmente, foi possível extrair dos dados informações importantes sobre interações entre hádrons (partículas formadas por quarks, como prótons, píons, káons) a altíssimas energias, acima das conseguidas em aceleradores. Por exemplo, píons (partículas responsáveis pela coesão do núcleo atômico) são formados em abundância nos chuveiros atmosféricos.

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Dados do Observatório Auger possibilitaram os avanços citados acima sobre nosso conhecimento dos fenômenos altamente energéticos ligados aos processos mais violentos que ocorrem no universo.

Porém, as fontes astrofísicas dessas partículas de energias extremas ainda não foram identificadas. Para enfrentar esse desafio, o Auger está iniciando uma nova fase, conhecida coloquialmente como ‘Auger Prime’, com novos detectores (cintiladores) adicionados àqueles já existentes (tanques e telescópios).

Essa atualização possibilitará medidas mais completas das partículas e maior conhecimento sobre a composição química dos raios cósmicos e de processos que ocorrem nas fontes astrofísicas nas quais eles se originaram.

Mais uma vez, com o Auger Prime, será possível estudar interações entre partículas em energias que não são alcançáveis nos grandes aceleradores de partículas já construídos.

Instituto de Física Gleb Wataghin, Universidade Estadual de Campinas (SP)

Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ)

OS RAIOS CÓSMICOS DE ALTA ENERGIA PODEM MATAR UM ASTRONAUTA NO ESPAÇO?

(Resposta para a seção ‘O leitor pergunta’, da revista Ciência Hoje, n. 264, 2009)

Podem, mas a probabilidade de isso acontecer é muito pequena, tão pequena que não deve preocupar os planejadores de viagens espaciais. É muito mais alta, por exemplo, a probabilidade de ser atingido por um micrometeorito com energia suficiente para matar um astronauta.

Os raios cósmicos de baixa energia, que estão por toda parte, porém, são um problema muito sério para as viagens longas, como uma possível viagem para Marte.

Uma pessoa na superfície da Terra recebe uma radiação de origem cósmica constante, algo como uma dezena de raios por segundo atravessando seu corpo. Essa radiação é bastante inócua. No entanto, o fluxo da radiação no espaço é muito maior e potencialmente mais perigoso. Perto da Terra, o campo magnético atenua esse fluxo. Longe, o seu efeito é mais sério.

Raios cósmicos de origem galáctica, com energias de alguns gigaelétron-volts por núcleos, são bastante abundantes e oferecem mais perigo para seres vivos, danificando genes e células. O efeito acumulado desses danos pode inviabilizar as viagens interplanetárias, a menos que sejam desenvolvidos meios de proteger os astronautas.

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COMO FUNCIONAM E PARA QUE SERVEM OS ACELERADORES DE PARTÍCULAS?

(Resposta para a seção ‘O leitor pergunta’, da Ciência Hoje, n. 229, 2006)

Otubo da televisão é o exemplo mais simples de um acelerador de partículas. Um feixe de elétrons é gerado por emissão termiônica (emissão de elétrons por um filamento aquecido, a alta voltagem) na parte mais fina do tubo e os elétrons são acelerados e focalizados por campos elétricos até atingirem a tela. Mas esse não é o único exemplo de acelerador de partículas com aplicações práticas. Em muitos hospitais, há aceleradores para esterilizar roupas e equipamentos. Esse tipo de esterilização é usado também para aumentar a durabilidade de frutas.

O uso mais visível de aceleradores ocorre na pesquisa científica, em particular, para estudar a estrutura da matéria. Para isso, são construídos aceleradores enormes, que acumulam grande quantidade de energia em uma região diminuta de espaço. Quanto maior a energia, maior o acelerador. Essas máquinas aceleram cargas elétricas do repouso até velocidades muito próximas à da luz. O único mecanismo disponível para acelerá-las são os campos elétricos.

O elemento acelerador, que gera os campos elétricos, são caixas de radiofrequência, onde se propagam campos eletromagnéticos com frequências características de rádio. Nessas caixas, as partículas entram em fase com as ondas eletromagnéticas e ganham um pouco de energia ao sair das ondas. É como um surfista, que tem que estar em fase com a crista de uma onda. As partículas também ‘surfam’ as ondas eletromagnéticas.

Há duas possibilidades de fazer com que as partículas ganhem muita energia) alinhar uma grande quantidade dessas caixas de radiofrequência em um acelerador linear, com comprimento medido em quilômetros; b) guiar as partículas em um percurso circular (também medindo quilômetros), com campos magnéticos, e fazê-las passar muitas vezes pelas mesmas caixas de radiofrequência. O primeiro método é usado para partículas muito leves, como o elétron, enquanto o segundo é usado para prótons e suas antipartículas (próton carregado negativamente).

O LHC (Large Hadron Collider), que será inaugurado no próximo ano em Genebra, na Suíça, é um acelerador do segundo tipo, onde as partículas irão percorrer um túnel circular com 27 km de comprimento. Já a próxima geração de aceleradores de elétrons, como o ILC (International Linear Collider), planejado para ser construído daqui a 10 anos, alinha cerca de 30 km de caixas de radiofrequência. Qualquer um desses aceleradores tem um consumo de energia equivalente ao de uma cidade de porte médio.

Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e Departamento de Física, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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Ronald Cintra Shellard

UM ‘EINSTEIN’ GIGANTESCO NOS PAMPAS

(Artigo para a revista Ciência Hoje, n. 214, 2005, reproduzido no livro Física Hoje, 2007)

Eles são fragmentos de matéria bilhões de vezes menores que um grão de poeira, mas podem carregar energias macroscópicas, equivalentes àquela de um tijolo arremessado à mão, com toda força, contra um muro, por exemplo. Penetram a atmosfera terrestre, vindos de todas as direções do espaço, e, ao se chocarem com átomos que formam o ar, desencadeiam uma ’chuveirada’ que pode conter bilhões de partículas. Parte desses estilhaços subatômicos chega ao solo e penetra o corpo humano à razão de dezenas a cada segundo.

Esses viajantes espaciais são os raios cósmicos, as partículas mais energéticas das quais a ciência tem conhecimento. De onde eles vêm? Que mecanismos de aceleração imprimem tamanha energia a eles? Essas são apenas duas das muitas questões ‐ ainda sem resposta ‐ que tornam a pesquisa em raios cósmicos uma das mais instigantes da atualidade.

Neste artigo, o leitor ainda terá a chance de saber como as ideias lançadas há exatos 100 anos por Einstein ajudam a desvendar a origem e as propriedades dessas misteriosas partículas ultraenergéticas.

Aviagem ao Observatório Pierre Auger é longa. Do Rio de Janeiro, toma-se um avião para Buenos Aires – ou a Santiago do Chile - e outro até Mendoza, na Argentina. A sede do observatório fica em Malargüe, cidade no planalto pré-andino, a cerca de 400 km ao sul de Mendoza. Para chegar lá, carro ou ônibus – e carretas pesadas, quando se trata de carregar equipamentos. É uma viagem bonita, em estradas sem muito movimento, acompanhando a cordilheira dos Andes, com vistas espetaculares — em particular, a do vulcão Tupangato.

Malargüe é uma corruptela do nome Malal-Hué, termo que significa ‘curral de pedra’ na língua mapuche, falada pelos povos indígenas que habitam a região. Ao todo, pelo menos 15 horas de viagem. Os 80 km finais da estrada vão costeando a região onde estão sendo instalados os detectores do observatório – 3 mil km2 de área instrumentada, equivalente a três vezes a do município do Rio de Janeiro. Nos últimos seis anos, tivemos duas reuniões por ano para discutir a evolução do projeto, analisar os dados produzidos e definir as estratégias para levantar recursos para completar o observatório. Reuniões com cientistas vindos de toda parte, enfrentando a longa viagem.

Já se vão quase nove anos [2005] desde que começamos esse projeto. A colaboração Pierre Auger — em homenagem ao físico francês (1899-1993) – foi formada em uma reunião realizada na sede da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), em Paris, em novembro de 1995. Nós, pesquisadores brasileiros, juntamo-nos a colegas argentinos nessa reunião para defender a proposta de construir a sede sul do futuro observatório na Argentina. Concorríamos com os sul-africanos, que traziam uma carta de apelo do então presidente Nelson Mandela para que fosse escolhida, como sede do observatório, uma região no oeste da África do Sul, perto da fronteira com a Namíbia. Os argentinos traziam também uma carta de – seu então presidente – nome, hoje, que preferem esquecer.

A outra proposta foi feita pelos australianos, oferecendo uma área que era uma reserva militar, usada como campo de treinamento para bombardeiros. Evidentemente, a hipótese de que teríamos, de tempos em tempos, bombas explodindo perto de nossos detectores eliminou imediatamente esse candidato. Era também o lugar mais longínquo para a maioria dos delegados reunidos em Paris.

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O argumento decisivo para a escolha da Argentina como sede do observatório sul foi a existência de uma comunidade de físicos bastante grande na Argentina e no Brasil. A decisão sobre a sede do observatório norte, nos Estados Unidos, foi tomada em outra reunião, seis meses depois.

Mais energéticos do universo Desvendar um dos grandes mistérios da física atual é a motivação da equipe de cerca de 250 físicos, de dezenas de nacionalidades, que está construindo o observatório. O mistério é a natureza dos raios cósmicos, com as energias mais altas que qualquer outro objeto encontrado no universo.

Raios cósmicos são bastante ubíquos – ou seja, vêm de todas as direções do espaço –, atravessando nossos corpos o tempo todo, sem nos darmos conta disso. São parte da radiação natural do meio ambiente. Milhares deles atravessam qualquer metro quadrado da superfície da Terra a cada segundo. Mesmo dentro de edifícios, eles estão presentes. Quando algum experimento científico necessita ser realizado em um ambiente com pouquíssimos raios cósmicos, tem-se que buscar cavernas ou túneis muito profundos, de maneira que o material acima os absorva.

Os raios cósmicos que irradiam a Terra têm energias muito variadas. Porém, quanto maior a energia, mais raros são. Para cada fator 10 no aumento de energia, o fluxo de raios cósmicos – ou seja, o número deles por metro quadrado por segundo – cai por um fator de quase mil. Os de energia mais alta já registrados por sensores na Terra têm um fluxo de cerca de um raio por ano em uma área de mil km2. Portanto, para poder capturá-los, ou temos sensores espalhados por muitos quilômetros quadrados, ou dedicamos centenas de anos ao trabalho! Obviamente, optou-se pela primeira solução.

Os raios cósmicos de mais alta energia são geralmente denominados ultraenergéticos. Se apenas um micrograma desse tipo de matéria atingisse a Terra, a energia do choque seria equivalente ao de um asteroide com a massa do monte Everest – o mais alto pico do mundo – viajando a 200 mil km/h. A energia carregada por um ultraenergético chega a ser macroscópica, ou seja, equivalente àquela a que estamos acostumados no dia a dia. E isso impressiona pelo fato de o fragmento que carrega essa energia ser bilhões de vezes menor que um grão de pó.

Km que viram mm

O tema de fundo desta série de artigos que a Ciência Hoje está publicando este ano [2005] é a comemoração do centenário do annus mirabilis (ano miraculoso) de Albert Einstein (18791955). Raios cósmicos com energias extremas têm a ver com os três assuntos abordados por esse físico alemão em seus trabalhos de 1905. Os raios cósmicos são partículas relativísticas, ou seja, viajam a velocidades muito próximas à da luz (300 mil km/s, no vácuo). No caso dos raios que são o objeto de estudo do Auger, a energia é muito maior que a de repouso, definida pela equação mais conhecida da física: E = mc2, onde E é a energia, m a massa e c2 a velocidade da luz no vácuo ao quadrado.

A razão entre a energia e mc2 (E/mc2), conhecido no vocabulário técnico como fator de Lorentz, uma homenagem ao físico holandês Hendrik Antoon Lorentz (1860-1925), regula as transformações do espaço-tempo – contrações espaciais e dilatações temporais –, ou seja, mostra como dois observadores, um em movimento em relação ao outro, observariam o mesmo fenômeno e como mediriam distâncias, velocidades e intervalos de tempo. O fator de Lorentz é consequência de um postulado simples – porém ousado para a época – proposto por Einstein: a velocidade da luz é constante para todos os observadores, estejam eles parados ou em movimento.

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Um astronauta viajando com o mesmo fator de Lorentz de um raio cósmico ultraenergético veria a Terra não como uma esfera, mas como um disco com o raio da Terra – cerca de 6 mil km –, porém com uma espessura de cerca de 40 mícrons (40 milésimos de milímetro), bem menos que a espessura de um fio de cabelo! Por outro lado, se estivéssemos observando o astronauta, e ele se dirigisse para Próxima Centauri (estrela mais perto do Sol), mediríamos, a partir da Terra, em 4,24 anos o tempo que ele levaria para chegar lá. No entanto, o relógio do astronauta, que bate em um ritmo muito diferente que o nosso, cronometraria sua viagem em meio microssegundo (ou meio milésimo de segundo)!

Naves espaciais viajando a essas velocidades são irrealizáveis, pois a quantidade de energia necessária para acelerá-la seria despropositada. Porém, observamos o efeito da dilatação do tempo e da contração dos comprimentos nos raios cósmicos. Quando um raio cósmico – um próton, por exemplo – colide com um átomo da atmosfera, entre os fragmentos da colisão encontram-se múons (‘primos’ mais pesados do elétron), que têm uma vida muito breve, cerca de 2 microssegundos, transformando-se, depois disso, em outras partículas. Nesse tempo de vida, viajando praticamente à velocidade da luz, um múon percorre 660 metros. Como essas colisões ocorrem a alturas muito elevadas – 20 km, 30 km ou mais –, não esperaríamos que os múons sobrevivessem e chegassem até a superfície da Terra. Quase todos chegam.

A explicação está no ‘relógio interno’ dos múons, que está batendo em um ritmo muito mais lento que os relógios parados na Terra. Do ponto de vista do múon, as dezenas de quilômetros da atmosfera estarão contraídas e serão equivalentes a alguns mícrons apenas. Esses mesmos fenômenos são observados também nos aceleradores de partículas, cotidianamente.

Energia que se torna matéria

O segundo tema abordado por Einstein foi o efeito fotoelétrico, fenômeno em que elétrons são arrancados dos átomos de um metal pelo ‘impacto’ da luz incidente. Foi um passo revolucionário atribuir à luz um caráter corpuscular, com energia e momento (produto da massa pela velocidade) bem definidos. A demonstração explícita de que a luz tinha momento – em outras palavras, que se comportava como um corpúsculo – só veio a ser realizada em 1923 pelo físico norte-americano Arthur Compton (1892-1962).

Dois anos depois, outros experimentos confirmariam esses resultados e suplantariam as dúvidas sobre a realidade física dos fótons, termo introduzido, em 1926, pelo físico-químico norte-americano Gilbert Lewis (1975-1946), para designar as partículas de luz.

Na década de 1920, chegou-se a suspeitar que os raios cósmicos com energias muito altas poderiam ser fótons igualmente energéticos. Porém, essa hipótese foi logo descartada por experimentos. Hoje, sabe-se que o universo é bastante opaco a fótons energéticos – em contraste, o universo é transparente para os fótons de luz visível, e é isso que permite que o brilho das estrelas chegue até nós. No entanto, os chuveiros atmosféricos – ou seja, os fragmentos da colisão de raios cósmicos com núcleos da atmosfera – têm grande quantidade de raios gama, nome pelo qual os fótons de mais alta energia são conhecidos. Eles têm tanta energia que, eventualmente, a convertem em matéria, transformando-se em um par formado por um elétron e sua antipartícula, o pósitron.

Panquecas atmosféricas

A fragmentação do raio cósmico é o efeito que o torna passível de ser observado e toca no terceiro tema de Einstein. A propagação de um raio cósmico pela atmosfera pode ser entendida como o movimento browniano relativístico – no caso, a qualificação ‘relativístico’ se dá pelo fato de essa propagação ocorrer a velocidades próximas à da luz. Einstein, em 1905, também

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produziu dois trabalhos sobre o movimento browniano, um fenômeno que designa a trajetória desorganizada de partículas diminutas suspensas em um líquido e que foi descrito em 1827 pelo botânico escocês Robert Brown (1773-1858). Brown notou que grãos de pólen sobre a superfície da água apresentavam um ‘zigue-zague’ errático, mas não soube dar uma explicação para isso. Mais tarde, o movimento browniano – como ficou conhecido – seria entendido como resultado do choque das moléculas do líquido – estas em agitação térmica – contra as partículas suspensas.

No caso dos raios cósmicos, não está em jogo a colisão de moléculas contra partículas macroscópicas – como foi observado por Brown –, mas, sim, o caráter aleatório – ou seja, as flutuações – nas colisões dos fragmentos do raio cósmico contra núcleos da atmosfera.

Uma ‘panqueca’ de partículas é a imagem mais realista para imaginar o que um raio cósmico com as energias mais altas provoca depois de penetrar na atmosfera. Essa panqueca vai se difundindo lateralmente e se propaga rumo à superfície praticamente à velocidade da luz. Na primeira colisão do raio cósmico contra um núcleo atômico de um elemento químico presente na composição do ar – como nitrogênio ou oxigênio –, criam-se fragmentos de núcleos, bem como novas partículas – por exemplo, píons neutros e com carga elétrica. Todos esses fragmentos carregam muita energia e, por sua vez, vão criar novas colisões. Isso faz com que aumente substancialmente o número de partículas em torno do que seria a trajetória original do raio cósmico que originou esse evento.

Os píons carregados eletricamente são as partículas responsáveis pela coesão do núcleo atômico. Depois de serem criados, eles se desfazem em múons e neutrinos (partículas neutras com massa extremamente pequena e alto poder de penetração). Mas muitos desses píons sobrevivem e são detectados na superfície da Terra. Já os píons neutros se desfazem em fótons, que, por sua vez, se materializam em pares elétron-pósitron.

Um raio cósmico ultraenergético pode desencadear uma panqueca contendo cerca de 10 bilhões de fragmentos, com sua energia original distribuída entre todos eles. Quando cada uma das partículas do chuveiro atmosférico – o nome técnico que se dá à panqueca de partículas — tem energia abaixo de um limiar, elas acabam sendo absorvidas pela atmosfera. Em consequência disso, um chuveiro cresce de intensidade até um máximo e, depois, começa a minguar. Mas, mesmo assim, centenas de milhões de fragmentos chegam ao solo, espalhando-se por áreas bem grandes, da ordem de alguns quilômetros quadrados.

Outro dedo de Einstein

Portanto, a estratégia para poder medir as características de um raio cósmico é espalhar sensores por grandes áreas, para coletar uma amostragem de pedaços de um chuveiro e, a partir disso, reconstruir sua estrutura. Vários tipos de sensores são usados. No caso do Auger, esses sensores são tanques de água, isto é, barris de plástico com 1,5 m de altura e quase 3,5 m de diâmetro, contendo 12 toneladas de água pura – pura, no caso, para evitar o crescimento de microrganismos no interior dos tanques. Pode parecer um tanto surpreendente usar água para observar raios cósmicos.

Aqui, de novo, há o dedo de Einstein. O efeito por trás disso chama-se radiação Cherenkov, homenagem ao físico russo Pavel Cherenkov (1904-1990), que a descobriu. Esse efeito é análogo ao ‘boom’ sônico gerado por um avião viajando a uma velocidade maior que a do som na atmosfera. Uma partícula de um chuveiro atmosférico viaja a uma velocidade muito próxima à da luz no vácuo. Quando penetra na água do tanque, ela continua com a mesma velocidade. No entanto, a velocidade da luz na água é muito menor - ela é a velocidade da luz no vácuo dividida pelo índice de refração da água, que é 1,33. Portanto, a velocidade da partícula cai de algo próximo a 300 mil km/s para cerca de 225 mil km/s.

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A perturbação da passagem da partícula carregada pela água – o efeito Cherenkov não ocorre com partículas neutras – gera uma frente de onda – o chamado ‘cone sônico’ – que é convertida em luz ultravioleta. Essa radiação ilumina as paredes do tanque, que estão forradas por um tipo especial de plástico que difunde a luz ultravioleta. Flutuando na água estão três fotomultiplicadoras, sensores que têm o efeito fotoelétrico como base de seu funcionamento e que são capazes de registrar cada fóton de luz.

A intensidade da luz Cherenkov é proporcional ao comprimento das trajetórias das partículas carregadas atravessando a água. Fotomultiplicadoras são instrumentos muito rápidos, fazendo uma amostragem de luz a cada 25 nanossegundos (25 bilionésimos de segundo). Os tanques ‘falam’ entre si, conferindo, a intervalos regulares, a presença de um sinal coincidente nos tanques vizinhos. Quando três tanques vizinhos detectam a chegada de raios cósmicos em um intervalo da ordem de milissegundos – este é o sinal de que chegou uma panqueca atmosférica —, enviam todos a informação que coletaram para uma central, onde esses dados são analisados, rotulados e armazenados.

Noites sem luar

Os fragmentos do raio cósmico dão origem a outro efeito que tornam os chuveiros atmosféricos visíveis por outro instrumento. As colisões desses fragmentos com as moléculas da atmosfera geram uma luminosidade muito semelhante àquela que acontece nas lâmpadas fluorescentes. As moléculas do ar – e, em particular, as moléculas de nitrogênio – são excitadas pela passagem do raio cósmico – ou seja, uma parte ínfima da energia da partícula é capturada por essas moléculas, que a emitem de volta na forma de fótons energéticos, no caso luz ultravioleta. Essa quantidade de radiação é suficiente para ser capturada por telescópios localizados a dezenas de quilômetros de distância.

Evidentemente, essa luz só pode ser vista à noite, quando o luar não é muito intenso. De dia e em noites de lua cheia, esse fenômeno é ofuscado pela luz do Sol ou por aquela vinda diretamente da Lua (luar). A poluição visual gerada pelas grandes aglomerações humanas também ofusca a emissão de luz ultravioleta pelos raios cósmicos e, por isso, experimentos como o Auger só podem ser realizados em lugares com atmosfera seca e pouco habitados, característica do local onde está o observatório.

Há um terceiro efeito gerado por um raio cósmico, mas que ainda não é aproveitado pelos cientistas. São as emissões da radiação pelo chuveiro na região das ondas de rádio (faixa menos energética do espectro eletromagnético). Atualmente, há um grande esforço, em muitos laboratórios do mundo, para desenvolver antenas sensíveis o suficiente para fazer uma ‘radiografia’ de um raio cósmico com energias muito altas.

Radiação extraterrestre Raios cósmicos não eram reconhecidos como cósmicos no início do século passado. A existência de uma radiação difusa que perturbava experimentos eletrostáticos era conhecida havia muito tempo. O físico francês Charles Augustin Coulomb (1736-1806), ainda no final do século 18, notou que uma esfera carregada, pendurada em um fio de seda fino e longo, gradualmente perdia sua carga. A explicação mais plausível era a de que o ar não era um isolante perfeito, e a perda de carga se dava através dele. No final do século 19, passou-se a atribuir esse efeito à radioatividade – fenômeno então recém-descoberto – natural do meio ambiente.

A identificação extraterrestre dessa radiação foi realizada pelo físico austríaco Victor Hess (1883-1964) em uma série de voos de balões entre 1911 e 1913. Munido de aparelhos especiais (eletroscópios), mediu o nível de radiação até 5 km de altura, verificando que lá a radiação era muito maior que no solo. Hess observou que a radiação diminuía ligeiramente até a altura

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de cerca de 1 km, quando, então, começava a aumentar continuamente. Um ano antes, o físico e padre jesuíta holandês Theodor Wulf (1868-1946) levou um único eletroscópio ao alto da Torre Eiffel (Paris), a 300 m de altitude, e notou que a radiação era mais intensa que no solo. Mas não foi muito além em suas conclusões.

A natureza da radiação cósmica só foi desvendada no final da década de 1920. O físico norte-americano Robert Millikan (1868-1953) defendia a hipótese de que essa radiação era composta por raios gama e cunhou, em 1925, a expressão ‘raios cósmicos’ para nomeá-la. O físico holandês Jacob Clay (1882-1995) descobriu, em 1928, que a intensidade dos raios cósmicos aumentava com a latitude e sugeriu que eles poderiam ser cargas elétricas defletidas por campos magnéticos. Em 1929, eles foram observados, como trajetórias tênues, em detectores então recém-inventados, as chamadas câmaras de nuvens, pelo russo Dmitri Skobeltzyn (1892-1991). Logo em seguida, os alemães Walther Bothe (1891-1957) e Werner Kolhörster (1887-1946) mostraram que as trajetórias eram curvadas quando submetidas a campos magnéticos, demonstrando definitivamente que raios cósmicos eram partículas carregadas.

Pierre Auger e seus colaboradores posicionaram detectores em regiões altas dos Alpes. Eles mostraram, em 1938, que havia correlação entre os sinais de dois detectores, mesmo quando estes estavam a vários metros de distância. A correlação no tempo persistia mesmo quando a distância entre eles era de 75 m. Eles rotularam esses fenômenos como chuveiros atmosféricos extensos, nome que ainda é usado hoje.

No Brasil, em 1939, o físico ítalo-ucraniano Gleb Wataghin (1899-1986) e os brasileiros Marcello Damy e Paulus Pompéia (1910-1993) identificaram nos chuveiros partículas com alto poder de penetração na matéria – hoje, sabemos que essas partículas são os múons. O estudo mais sistemático dos chuveiros atmosféricos usando redes de detectores em associação se iniciou logo após o final da Segunda Guerra, com experimentos, nos Estados Unidos, do físico italiano Bruno Rossi (1905-1993) e, na então União Soviética, por Georgi Zatsepin.

Ondas de choque

O estudo dos raios cósmicos abriu o campo das partículas elementares e gerou importantes descobertas, como a dos pósitrons, em 1932, pelo norte-americano Carl Anderson (19051991); cinco anos mais tarde, a dos múons por Anderson e seu colega Seth Neddermeyer (1907-1988); a dos píons pela equipe do inglês Cecil Powell (1903-1969), em 1947, na qual teve papel muito importante o brasileiro César Lattes (1924-2005).

Com o advento dos aceleradores de partículas, no início da década de 1950, os raios cósmicos deixaram de ser o centro de atenção no estudo das partículas. No entanto, a caracterização dos raios cósmicos prosseguiu até os dias de hoje, usando uma extensa gama de sensores, de pequenos detectores localizados no alto de montanhas a voos de balão, foguetes e satélites, incluindo nesta lista aqueles espalhados por áreas extensas para estudar os raios cósmicos de energia mais alta. As naves Voyager I e II – lançadas ao espaço em 1977 e que hoje estão nos limites do sistema solar – carregam a bordo detectores de raios cósmicos.

Ainda em 1934, o astrofísico alemão Walter Baade (1893- 1960) e o suíço Fritz Zwicky (1898-1974) sugeriram que supernovas (explosões de estrelas maciças no final da vida) seriam a fonte dos raios cósmicos. O físico italiano Enrico Fermi (1901-1954), em 1949, propôs que a aceleração dos raios cósmicos seria feita pelas ondas de choque magnéticas geradas nesse tipo de explosão. Esse mecanismo ficou conhecido como aceleração de Fermi.

Grande parte dos raios cósmicos caindo na Terra é originada em supernovas na Via Láctea. Essas partículas perambulam por nossa galáxia, tendo suas trajetórias distorcidas pelos campos magnéticos até chegarem à atmosfera terrestre. Sua composição química e o fato de elas chegarem a partir de todas as direções do espaço permitem inferir características da maté-

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ria interestelar. Porém, os raios cósmicos com energias muito altas provavelmente vêm de fora da galáxia, uma vez que os campos magnéticos nela não são intensos o suficiente para distorcer suas trajetórias.

Espaço ‘enevoado’

Os raios cósmicos trazem a memória de sua origem em sua direção de chegada. Logo depois da descoberta da radiação cósmica de fundo (RCF) – radiação na faixa de micro-ondas que ‘banha’ todo o universo e é remanescente do Big Bang, a explosão que deu início ao universo há cerca de 14 bilhões de anos –, o norte-americano Kenneth Greisen e os soviéticos Georgi Zatsepin e Vadim Kuzmin calcularam a influência da RCF sobre raios cósmicos.

O chamado efeito GZK — iniciais dos sobrenomes dos três pesquisadores – mostrou que a RCF torna o espaço ‘enevoado’ para os raios cósmicos. Assim, aqueles com energias acima de 3 x 1019 elétrons-volt (eV) — unidade de energia comumente usada na física de partículas, mas insignificante se comparada com aquelas a que estamos acostumados no cotidiano – não poderiam se propagar com essa energia por mais que cerca de 50 megaparsecs (cerca de 165 milhões de anos-luz) sem dissipar sua energia em função dos ‘choques’ contra as partículas de luz (fótons) da RCF. Essa distância, pequena em padrões cosmológicos, é cerca de 50 vezes aquela que nos separa de Andrômeda (a galáxia gigante mais próxima da Via Láctea) ou equivalente àquela que a luz, viajando a 300 mil km/s, leva cerca de 160 milhões de anos para percorrer. Alguns anos antes da publicação do efeito GZK, o físico norte-americano John Linsley (1925-2002) observou, em 1962, em uma rede de sensores concebida por Bruno Rossi e construída em Volcano Ranch, no estado norte-americano do Novo México, um chuveiro atmosférico cuja energia excedia o valor de 1020 eV, ou seja, acima do limite GZK.

Natureza imbatível

Hoje, vários outros detectores, usando diferentes técnicas, já mediram chuveiros deflagrados por raios cósmicos cujas energias excedem 1020 eV. O próprio Observatório Auger está entre eles. Para se ter uma ideia, um próton com essa energia viaja a 99,999999999999999999999% da velocidade da luz. E mesmo o mais potente acelerador de partículas do planeta, o LHC (sigla, em inglês, para Grande Colisor de Hádrons), ainda em construção, na Suíça, só conseguirá gerar partículas com energias 10 milhões de vezes menores que esses patamares. Portanto, a natureza ainda continua imbatível.

No entanto, a origem e natureza dos raios cósmicos continuam a desafiar os físicos, apesar de haver hoje várias hipóteses sobre os mecanismos cósmicos que os criam ou aceleram (ver ‘Impulsão e decaimento’). O Observatório Pierre Auger foi concebido para desvendar esses mistérios. Perguntas como ‘De onde os raios cósmicos de mais alta energia vêm?’ e ‘Que mecanismos lhes imprimem tamanha energia?’ são apenas dois exemplos de questões em aberto que fazem dessa área de pesquisa uma das mais instigantes da ciência deste início de século.

BOXE_IMPULSÃO E DECAIMENTO

Acredita-se que os raios de mais alta energia – ou seja, acima de 1020 elétrons volts (eV) — sejam gerados por um desses dois mecanismos: a) forças eletromagnéticas intensas; b) decaimento de partículas exóticas. No primeiro caso, núcleos atômicos são impulsionados por campos eletromagnéticos, e podem levar milhões de anos para atingir essas energias. No segundo, ocorre o oposto: partículas hipotéticas e extremamente pesadas, supostamente relíquias da explosão que deu início ao universo (Big Bang), se desfariam – ou decairiam, no vocabulário técnico – em constituintes da matéria com energia próximas aos 1020 eV.

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A seguir, exemplificamos alguns desses supostos mecanismos:

Magnestars – Estrelas de nêutrons (partículas nucleares sem carga elétrica) dotadas de alta rotação (cerca de mil delas por segundo) gerariam campos magnéticos milhões de vezes mais intensos que o terrestre e, assim, acelerariam os raios cósmicos.

Choque de galáxias – Evidências experimentais indicam que galáxias podem se chocar. Mecanismos subjacentes a essas colisões poderiam gerar raios cósmicos ultraenergéticos.

Buracos negros – Esses corpos celestes, conhecidos por sugar matéria e luz, também são capazes de lançar jatos altamente energéticos de matéria. Acredita-se que aqueles dotados de rotação e com massa bilhões de vezes superior à do Sol poderiam ser os responsáveis pelo mecanismo de aceleração dos raios cósmicos de mais alta energia conhecida.

Explosões de raios gama – São os fenômenos mais energéticos do universo. Geram, em segundos, massas equivalentes à do Sol. Assim, supõe-se que tenham energia para acelerar prótons e outros núcleos até o patamar de 1020 eV.

Partículas exóticas – São, por enquanto, partículas hipotéticas. Ao decaírem, como defendem alguns teóricos, poderiam originar raios cósmicos na faixa das mais altas energias detectadas até hoje. Nessa lista, há vários candidatos, como os críptons, os vórtons e os wimpzillas.

Defeitos topológicos – Seriam diminutos volumes do espaço-tempo — um misto inseparável de altura, largura, comprimento e tempo – que não teriam ‘explodido’ juntamente com o Big Bang. Por isso, são classificados como ‘defeitos’ da topologia do espaço-tempo. Nesse fenômeno poderia estar a origem de partículas com energias de até 1020 eV.

EPPUR SI MUOVE

(Resenha publicada na revista Ciência Hoje , n. 220, 2005)

“ Eppur si muove”, murmurado por Galileu Galilei ao abjurar as teses de Copérnico, é uma frase que cativou cientistas e estudiosos durante séculos. Provavelmente apócrifa, mas que expressa bem o espírito e a obra de um dos gigantes da ciência. O ponto central do processo movido pela Inquisição contra Galileu era o confronto entre fato e hipótese. A Igreja proclamava que as teses de Copérnico, que tiravam da Terra o papel central no Universo, eram meras hipóteses. Este conflito entre a autoridade religiosa e as evidências científicas é ainda atual. Seu foco foi deslocado e hoje contrapõe a Teoria da Evolução e o criacionismo, em sua forma mais bruta, ou a proposta do ‘Desenho Inteligente’. A biografia de Galileu é apresentada de forma sucinta e objetiva, tocando nos principais eventos de sua vida, neste novo livro de Stephen Hawking, Os gênios da ciência: sobre os ombros de gigantes. Aprendemos nesta biografia que o editor do Diálogos sobre duas novas ciências, obra de Galileu que é a pedra angular da

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Ronald Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

física moderna, foi Luis Elsevier, de Leiden, que está na origem da casa editorial que publica esta tradução.

Hawking é hoje, sem dúvida, o pop-star da divulgação científica. Nesta obra ele traz um saboroso prato para os amantes e simples curiosos da ciência, selecionando trechos das obras de cinco gigantes da física: Copérnico, Galileu, Kepler, Newton e Einstein. Cada um destes trechos é precedido de uma biografia, que apesar de breve é bastante rica, e comentários sobre a obra de cada um deles. Copérnico, que viveu de 1474 a 1543, deu início à desconstrução do homem como elemento central da natureza. Este processo relegou hoje, não só o homem, mas toda a matéria da qual somos feitos, a uma diminuta fração de toda a matéria do Universo. Hawking escolheu para ilustrar Copérnico trechos do Sobre as revoluções das esferas celestes. É bastante interessante acompanhar o argumento de Copérnico, com os olhos de hoje. Questões que parecem banais hoje têm papel relevante no texto, como a questão de quanto de terra e quanto de água formam a Terra. Na discussão sobre Galileu encontramos a referência ao fato de que, stricto sensu, Galileu só foi excluído do Index da Igreja Católica em 1992, pelo papa João Paulo II. Em 1982, este papa visitou o CERN, o que provocou uma reação negativa por parte de muitos cientistas daquele laboratório, pois Galileu ainda constava do Index.

A biografia de Kepler é apresentada também com detalhes e o texto escolhido por Hawking como emblema daquele gigante é o Livro Cinco de Harmonias do Mundo, com extensa discussão sobre as formas poliédricas. Já a biografia de Newton é mais contida. Traz referências rápidas ao seu espírito irascível e às suas picuinhas contra seu arqui-inimigo Robert Hooke, outro gigante cuja importância para a ciência acabou sendo ofuscada pelo brilho de Newton. O último gigante da lista é Einstein, e sua biografia fica ofuscada pela enorme quantidade de material publicado sobre ele neste ano. Os textos escolhidos já terão como público apenas estudantes de física, pois todos trazem fórmulas, para cujo entendimento já se faz necessário ter certo treino.

Esta edição dos Gênios da ciência é fartamente ilustrada, se bem que nem sempre as ilustrações têm relação direta com o texto. É um livro que dá prazer manusear e ler de forma aleatória, um trecho de Galileu, um pedaço de Newton. A tradução, excelente, feita pelo pesquisador Marco Moriconi, mostra o cuidado da editora com esta publicação.

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A MATEMÁTICA NAS FORÇAS DA NATUREZA

(Texto publicado em ‘Nobel de Física’ da revista Ciência Hoje, n. 156, 1999)

Aelucidação da estrutura quântica das chamadas interações eletrofracas deu aos holandeses Gerardus ‘t Hooft e Martinus J. G. Veltman o Nobel de Física deste ano. Os dois tiveram um papel-chave na demonstração da consistência matemática das teorias sobre as interações dos constituintes básicos da natureza.

Toda a matéria que nos é familiar, formada por átomos com núcleos e elétrons, tem como blocos de construção básicos partículas conhecidas pelos nomes de quarks e léptons. O elétron é um dos integrantes da família de léptons, completada por múons e taus e por três neutrinos diferentes. A família dos quarks, componentes dos núcleos dos átomos, também tem seis integrantes. O último deles, o quark top, foi descoberto há cerca de quatro anos.

Essas partículas são unidas pelas interações fundamentais (forças da natureza), que se manifestam pela troca de agentes especiais, denominados ‘bósons vetoriais de calibre’. O mais prosaico desses agentes é o fóton (o quantum da luz). A estrutura matemática dessas interações começou a ser construída há mais de 130 anos pelo físico escocês James C. Maxwell (1831-1879), que, em trabalho pioneiro, unificou a eletricidade e o magnetismo e identificou a natureza eletromagnética da luz.

Após a formulação da física quântica, no início deste século, a inclusão do eletromagnetismo nessa nova descrição da natureza tornou-se um desafio, que levou décadas para ser superado. A eletrodinâmica quântica tomou sua forma definitiva no final dos anos 40, com as contribuições dos físicos Julian Schwinger (norte-americano, 1918-1994) e Sintiro Tomonaga (japonês, 19061979), e com os métodos de cálculo inventados pelo também físico Richard Feynman (norte-americano, 1918-1988). Eles ganharam o Nobel de Física de 1965 por esse trabalho.

São quatro as forças da natureza. Além do eletromagnetismo, existem as forças ‘fortes’ (que mantêm unidos os núcleos atômicos), as forças ‘fracas’ (responsáveis pela radioatividade da matéria) e as forças ‘gravitacionais’ (presentes em todo o universo). Em 1967, os físicos Steven Weinberg (norte-americano, nascido em 1933) e Abdus Salam (paquistanês, 1926-1996) deram uma forma final à teoria que unifica o eletromagnetismo e as interações fracas, tendo como alicerce ideias do também norte-americano Sheldon Glashow (nascido em 1932). Os três receberam o Nobel em 1979.

Um dos trabalhos pioneiros na construção de uma teoria unificada foi feito 10 anos antes pelo físico brasileiro José Leite Lopes (nascido em 1918), com a introdução da ideia de um fóton pesado associado às interações fracas. A teoria de Weinberg-Salam-Glashow, porém, teve repercussão limitada em função de suas inconsistências matemáticas.

Arenormalização (termo que designa o processo de remoção de divergências matemáticas) do eletromagnetismo não podia ser estendida, de forma direta, à nova teoria unificada. Veltman e ‘t Hooft mostraram como superar esse problema. A origem das divergências está na natureza quântica das partículas. Ao se propagar no espaço, elas sofrem flutuações quânticas. Um fóton, por exemplo, converte-se em um par elétron-antielétron (elétron-pósitron), que volta, uma infinidade de vezes, a ser fóton. Esse processo é virtual quando o fóton está no vácuo, mas, na presença de núcleos, há certa probabilidade de o par elétron-pósitron se materializar. Quando se calcula a influência dessas flutuações nas propriedades das partículas, no espaço normal de quatro dimensões (as três do espaço e uma do tempo), os resultados são inconsistentes, com termos ambíguos induzidos por fatores infinitos.

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O programa de renormalização realizado para a eletrodinâmica quântica resolve esse conflito ‘regularizando’ os termos infinitos. Um dos métodos de regularização é a imposição de um limite artificial às energias das flutuações nos cálculos das correções radiativas dos processos físicos. As massas e cargas elétricas das partículas também são alteradas, exigindo-se que tenham os valores medidos experimentalmente. Com isso, em quaisquer processos físicos, os termos que seriam infinitos são cancelados nos resultados dos cálculos.

Esse processo pode ser aplicado a uma classe muito restrita de teorias, das quais a eletrodinâmica é um exemplo particular. Essas teorias têm uma propriedade especial, a ‘simetria de calibre’ (gauge, em inglês), que tem como uma característica importante a conservação da carga elétrica. A teoria que descreve a incorporação das interações fracas à eletrodinâmica preserva essa simetria, mas de uma forma mais complexa, o que impede a utilização dos métodos de regularização descritos acima, pois induziriam a quebra dessa propriedade especial.

Os cientistas holandeses mostraram que as chamadas teorias de calibre não-abelianas (que permitem unificar interações fracas e eletromagnéticas) são renormalizáveis. Para isso, inventaram um método especial de regularização. Eles fizeram todos os cálculos das correções radiativas considerando que o espaço-tempo não estaria restrito a quatro dimensões, mas a um valor um pouco diferente. Não há nada de especial em usar um espaço de 3,9999 dimensões em um cálculo: é apenas um truque, empregado o tempo todo pelos matemáticos. Os termos divergentes ficam regularizados e, em geral, aparecem como fatores A/(n - 4), onde A é um número finito qualquer. Enquanto a dimensão n for diferente de 4, esse termo está bem definido. Se os cálculos são feitos desse modo, a simetria de calibre é preservada. Os pioneiros no uso desse método foram dois físicos argentinos, Carlos G. Bollini (1926-) e Juan José Giambiagi (1924-1996), que o aplicaram à eletrodinâmica quântica.

Na época do trabalho, Veltman orientava a preparação da tese de doutorado de ‘t Hooft (que tinha 23 anos). Nos anos 60, Veltman foi pioneiro no desenvolvimento de programas de computadores de cálculo simbólico para execução dos complicados cálculos algébricos usados em teoria de campos. Seu programa Schoonship foi uma ferramenta-chave na demonstração da renormalizabilidade da teoria de Weinberg-Salam-Glashow. Isso abriu a possibilidade de cálculos muito precisos e possibilitou o teste de suas consequências experimentais. As interações fortes também são descritas por uma teoria com simetria de calibre, a chamada ‘cromodinâmica quântica’ (QCD, do inglês quantum chromodynamics). A QCD e a teoria das interações eletrofracas formam o modelo-padrão das interações fundamentais da natureza.

Uma das consequências das interações eletrofracas foi a previsão da existência de partículas especiais muito pesadas, os bósons W’, W e Zº. A descoberta dessas partículas, no início dos anos 80, no Laboratório Europeu de Partículas Elementares (CERN), deu ao italiano Carlo Rubbia (nascido em 1934) e ao holandês Simon van der Meer (nascido em 1925) o Nobel de 1984. Em 1989, o CERN inaugurou o acelerador de partículas LEP, com o objetivo de testar as consequências do modelo-padrão. Até hoje, após 10 anos de operação desse acelerador, não foram encontrados sinais de inconsistência desse modelo, o quark top não foi produzido no LEP, que não gerava energia suficiente. No entanto, graças à combinação de cálculos precisos, baseados nos métodos de ‘t Hooft e Veltman, foi possível inferir de maneira indireta, a partir dos dados obtidos nesses experimentos, que a massa do top seria cerca de 190 vezes maior que a do próton. Em 1995, finalmente, dois experimentos realizados no anel de colisão próton-antipróton do Laboratório Fermi (Fermilab), nos Estados Unidos, produziram o quark top e mediram suas características, identificando-o onde havia sido previsto.

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BOXE_GERARDUS ‘T HOOFT

Nasceu em 1946, em Den heder. Estudou física e matemática na Universidade de Utrecht (Holanda), onde se doutorou em 1972. Atuou no Laboratório Europeu de Partículas Elementares (CERN), em Genebra (Suíça), e no Centro do Acelerador Linear de Stanford (SLAC), em Stanford (Estados Unidos), e lecionou em universidades nos Estados Unidos e na Bélgica, além da própria Universidade de Utrecht. Integra a Academia Holandesa de Ciências, a Academia Nacional de Ciências (Estados Unidos) e a Academia de Ciências de Paris (França). Recebeu, entre outros, os prêmios Winkler (Holanda), Wolf (Israel) e o de Física de Altas Energias, da Sociedade Europeia de Física.

Martinus J. G. Veltman

Nasceu em 1931. Estudou física na Universidade de Utrecht, onde se doutorou em 1963, trabalhando em seguida no CERN. Na Europa, lecionou no CERN e nas universidades de Utrecht, de Paris (França) e de Leiden (Holanda). Nos Estados Unidos, atuou no SLAC e, desde 1981, leciona na Universidade de Michigan. Integra a Academia de Ciências da Holanda e a Sociedade Americana de Física. Participou dos conselhos dos principais centros de física de altas energias do mundo: CERN, SLAC, Instituto Max Planck (Alemanha), Fermilab e Laboratório de Brookhaven (ambos nos Estados Unidos). Ganhou, entre outros, o prêmio Alexander von Humbolt (na Alemanha) e o de Física de Altas Energias (da Sociedade Europeia de Física).

Ronald Cintra Shellard

Laboratório de Cosmologia e Física Experimental de Altas Energias Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e Departamento de Física Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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ESPELHO QUEBRADO: A PARIDADE VIOLADA

(Texto publicado na seção ‘Memória’ da revista Ciência Hoje, n. 233, 2006)

Em 1956, dois jovens físicos teóricos chineses mostraram que a natureza fazia uma distinção entre esquerda e direita. Ou seja, era ‘malcomportada’.

Essa proposta – ousada à época – foi comprovada ainda nos últimos dias daquele ano, por uma equipe liderada por uma física, também chinesa, madame Wu.

O impacto desses resultados foi tão marcante para a comunidade mundial de físicos que Tsung-Dao Lee e Chen Ning Yang levaram o Nobel praticamente um ano depois de terem publicado o artigo, em uma das decisões mais rápidas da Real Academia Sueca de Ciências.

A violação da paridade nas interações fracas – um nome pomposo para o que pode ser pictoricamente resumido na possibilidade de se distinguir entre um objeto e sua imagem no espelho – é a história sobre como uma concepção da natureza baseada no ‘senso comum’ pode ser enganosa.

Quando olhamos no espelho, podemos distinguir nosso lado esquerdo do direito mexendo a mão com a qual escrevemos. Se a pessoa é destra, então a imagem dela é canhota. Mas imagine um mundo em que exatamente metade dos seres humanos fosse destra, e a outra metade, canhota. Não haveria meio para designar qual é a mão esquerda e qual a direita. Teríamos que designar ‘João Cândido’ como sendo destro, e assim o resto da humanidade saberia se são destros ou canhotos por comparação com nossa personagem fictícia. Mas, em nosso mundo real, há mais destros que canhotos, e, portanto, foi escolhida a convenção: o lado da mão que a maioria da população escreve é o direito. Portanto, no mundo real há uma assimetria entre direita (predominante) e esquerda.

Por puro preconceito, até meados do século passado, os físicos achavam que a natureza não era igualmente preconceituosa em relação à direita e à esquerda. Em outras palavras, a paridade, que pode ser entendida como a semelhança indistinguível entre um fenômeno físico e sua imagem especular, era sempre conservada nos processos físicos. Ou seja, como se a natureza optasse pela simetria, criando sempre a mesma quantidade de ‘destros’ e ‘canhotos’. A partir de 1 de outubro de 1956, a concepção de uma natureza sem preferências – como a da mãe que ama igualmente seus dois filhos – caiu. E mergulhou a comunidade mundial de físicos em profunda surpresa. Naquele dia, a prestigiosa revista The Physical Review estampou o artigo de dois jovens físicos teóricos chineses, Tsung-Dao Lee e Chen Ning Yang, ambos na Universidade de Chicago (Estados Unidos).

Porém, essa história – como toda descoberta em ciência – tem antecedentes. O conceito de paridade foi introduzido ainda em meados da década de 1920 pelo físico alemão Otto Laporte (1902-1971), mas com um aspecto ainda algébrico. Essa quantidade – ou seja, a paridade, para a qual eram atribuídos valores positivos ou negativos (+1 e -1) – deveria ser conservada, por exemplo, no processo em que um átomo absorvia energia e a devolvia para o meio através da emissão de uma partícula de luz. Três anos depois, o físico de origem húngara Eugene Wigner (1902-1995) associou essa conservação à simetria esquerda-direita ou, dito de outro modo, ao fenômeno físico e sua imagem especular.

Por quase 20 anos, os físicos acreditaram que a paridade era conservada pela natureza. Porém, no final da década de 1940, na mesma época da descoberta do píon nos raios cósmicos – pelo grupo em Bristol (Inglaterra) do qual fazia parte o físico brasileiro César Lattes (19242005) –, dois físicos britânicos na Universidade de Manchester, Clifford Butler (1922-1999) e

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George Rochester (1908-2001), usando detectores especiais (câmaras de nuvens) expostos aos raios cósmicos, descobriram as partículas V, mais pesadas que o píon (este com massa entre a do elétron e a do próton). Era o primeiro exemplar das chamadas partículas estranhas. Outros exemplares foram identificados e, em particular, um par de partículas que aparentavam ter a mesma massa, bem como permanecer estáveis pelo mesmo período de tempo, antes de decaírem (ou se transformarem) em outros componentes da matéria.

Massa e tempo médio de vida iguais eram um forte indicativo de que se tratava de uma mesma partícula. No entanto, o estranho em relação a essas duas novas partículas, batizadas teta (θ) e tau (τ), era que o decaimento delas se mostrava diferente: a primeira gerava dois píons; a segunda, três. Porém, voltando um pouco à ideia inicial de Laporte, já se sabia que a paridade dos píons era negativa (-1). Portanto, o teta deveria ter paridade positiva, ou seja, (-1) x (-1), enquanto o tau deveria ter paridade negativa: (-1) x (-1) x (-1). Ainda em 1953, o físico australiano Richard Dalitz (1925-2006) desconfiou de que algo de incomum estava ocorrendo com esse par de partículas, o que levou o problema a ser denominado ‘quebra-cabeça teta-tau’.

Em um encontro internacional de física, em 1956, na Universidade de Rochester (Estados Unidos), Lee e Yang resolveram apresentar uma solução para esse problema. Para eles, algumas partículas se apresentavam com dois tipos de paridade (ideia que se mostrou equivocada). Porém, nessa reunião científica, o físico norte-americano Richard Feynman (1918-1988) sugeriu, com base na opinião de um colega, a ‘heresia’ de que a paridade poderia não se conservar em certas interações.

O que Feynman quis dizer com ‘certas interações’? Há quatro tipos de força (ou interações, como preferem os físicos) no universo: a gravitacional, que nos mantém presos ao solo; a eletromagnética, responsável pelo atrito, por exemplo; a força forte nuclear, que mantém os núcleos atômicos coesos; e a força fraca nuclear, que está por trás de certos processos radioativos e do decaimento das partículas. É esta última que nos interessa aqui, e foi a ela que Feynman se referiu.

Lee e Yang, depois da sugestão de Feynman, resolveram investigar se os experimentos com a força fraca davam alguma indicação de que a paridade era conservada. Para surpresa deles, concluíram que não, diferentemente do que acontecia nos fenômenos que envolviam a força forte, para a qual os dados experimentais mostravam, com precisão, que a paridade era mantida.

Depois de alguns meses, Lee e Yang – ou TD e Frank, como são chamados – apresentaram seus resultados: o quebra-cabeça teta-tau podia ser explicado se a paridade não fosse conservada. Para os físicos, isso implicava abrir mão de um princípio quase sagrado, algo como alegar que o princípio da conservação de energia (popularmente conhecido como ‘nada se cria; tudo se transforma’) passasse a não valer mais.

Entra em cena a física, também chinesa, Chien-Shiung Wu (1912-1997), então na Universidade Colúmbia. Com base em uma sugestão dos próprios Lee e Yang, madame Wu’, como era conhecida, quase imediatamente deu início à montagem de seu experimento. Para isso, teve de procurar colegas do Escritório Nacional de Padrões, pois a experiência exigia resfriar núcleos atômicos do elemento químico cobalto a temperaturas próximas ao zero absoluto (algo em torno de 0,01 kelvin) e submetê-los a campos magnéticos intensos. As dificuldades experimentais foram tremendas nos meses seguintes. Mas, nos últimos dias de 1956, a equipe de Wu provou que a paridade era violada nos processos físicos que envolviam a força nuclear fraca.

Para entender, ainda que de modo simplificado, a experiência de Wu é preciso imaginar um núcleo de cobalto como um diminuto ímã, que fica alinhado com as linhas de força do campo magnético externo. Além disso, de cada um dos polos desse ímã são emitidos elétrons,

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resultado de um processo radioativo – na época, já conhecido – que envolve a força fraca (mais especificamente, alguns nêutrons do núcleo de cobalto se transformam em prótons e emitem, nesse processo, elétrons e uma partícula neutra, o neutrino, que, para nossos propósitos aqui, pode ser ignorada). Digamos, agora, com base em pura convenção, que, se o núcleo de cobalto girar da esquerda para a direita, o polo norte estará acima e o sul, abaixo. Mas a imagem especular desse núcleo teria uma rotação contrária (da direita para a esquerda), o que, com base em nossa convenção, causaria a inversão dos polos (sul acima, norte abaixo).

A conservação da paridade nesse processo implica ter a mesma quantidade de elétrons emitida pelos dois polos – nesse caso, seria impossível distinguir o núcleo real da imagem especular dele. Mas, se um dos polos emitisse mais elétrons (caso em que a paridade seria violada), chegaríamos a uma situação paradoxal: do núcleo real, partiriam mais elétrons do polo norte, por exemplo; da imagem especular, esse fluxo mais intenso, teria origem no polo sul. Em resumo: seria possível distinguir entre objeto e imagem, pois haveria uma assimetria entre o fenômeno e a imagem especular dele. Dito tecnicamente, o experimento de Wu mostrou que a paridade não era conservada nos processos físicos que envolvem a interação fraca. Indiretamente, isso resolveu o problema teta-tau, que são hoje diferentes estados de partículas conhecidas como káons,

A comprovação experimental das ideias de Lee e Yang quebrou o espelho e afetou a imagem da natureza, vista, de certo modo, a partir de então, como ‘malcomportada’. Logo em seguida, outro experimento corroborou os resultados da equipe de Wu e praticamente dissipou o ceticismo de parte da comunidade de físicos. Ficou somente a profunda surpresa e uma pergunta até hoje não respondida: por que a natureza não conserva a paridade nos processos que envolvem a força fraca? Por que ela distingue entre esquerda e direita, ou entre o fenômeno e a imagem especular dele?

A resposta, talvez, valha um novo Nobel, prêmio que Lee e Yang – e não Wu e sua equipe – receberam em 1957, praticamente um ano depois da publicação do artigo – uma das premiações mais rápidas da Real Academia Sueca de Ciências.

Cintra Shellard Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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Ronald

UMA PERGUNTA CAPCIOSA

(Artigo publicado no suplemento ‘Brasil-Argentina’ da revista Ciência Hoje, n. 275, 2008)

Uma pergunta capciosa – “Onde posso tomar uma cerveja?” – foi decisiva para trazer para a América do Sul um dos maiores projetos científicos da atualidade. Para isso, pesquisadores brasileiros e argentinos juntaram forças e competências. O resultado foi a instalação, na Argentina, do Observatório Pierre Auger, que investiga a origem das partículas mais energéticas conhecidas pela ciência, os chamados raios cósmicos. Agora, cientistas dos dois países unem-se novamente para a execução do Amiga, um novo detector que será parte do Auger.

Aconstrução do Observatório Pierre Auger Sul foi completada em junho deste ano na Argentina. Foram 13 anos desde o início do projeto. Temos mais de 1,6 mil estações de registro de raios cósmicos espalhadas por cerca de 3 mil km2, em uma região plana, 400 km ao sul da cidade de Mendoza, aos pés dos Andes. Essa rede de estações tem ainda quatro ‘olhos’ especiais, telescópios que registram o brilho ultravioleta dos raios cósmicos quando atravessam a atmosfera.

Raios cósmicos são núcleos atômicos que vêm do espaço e, a todo instante, penetram a atmosfera da Terra. Mesmo ao nível do mar e dentro de edifícios, nosso corpo é atingido, a cada segundo, por centenas dessas partículas, que estão entre as mais energéticas conhecidas. O choque delas contra os núcleos dos elementos químicos do ar cria um ‘chuveiro’ de milhões, bilhões de partículas que chegam ao solo. Quanto mais energético o raio cósmico, mais raro ele é. No caso dos chamados ultraenergéticos, cada km2 da superfície da Terra só recebe uma ‘chuveirada’ a cada século! Daí a necessidade de um observatório para o estudo dessas partículas ter dimensões gigantescas.

Antes mesmo de ser finalizado, o Auger fez uma descoberta que ganhou as manchetes da mídia mundo afora. Pela primeira vez – desde que, há quase 100 anos, o físico austríaco Victor Hess (1883-1964) provou que os raios cósmicos vinham do espaço –, foi possível estabelecer uma correlação entre os raios cósmicos de altíssima energia e fontes astrofísicas. Mostramos que a direção de origem desses raios está associada a galáxias de um tipo especial, que têm gigantescos buracos negros em seu centro, onde há uma intensa atividade, gerando muita energia. Nossa galáxia também tem um buraco negro em seu centro, com uma massa milhões de vezes superior à do Sol; no entanto, ‘nosso’ buraco negro está, aparentemente, sossegado. A construção do Auger, uma história que começou em 1995, foi um feito fantástico. Eu havia ido ao Fermilab, o imenso acelerador de partículas perto de Chicago (Estados Unidos), tratar de uma conferência sobre computação em altas energias que estava sendo organizada no Rio de Janeiro pelo pesquisador Alberto Santoro (então, no CBPF). Eu o ajudava nessa empreitada. Passávamos por um corredor quando vi um anúncio de um grupo de trabalho sobre raios cósmicos de energias altas. Fomos dar uma olhada. Nele, havia dois argentinos, ambos com o prenome Alberto, Etchegoyen e Filevich, argumentando que o lugar ideal para construir um observatório para estudar esses raios cósmicos seria na Argentina. Isso nos deixou em alerta, pois, caso a proposta se materializasse, seria interessante um grupo brasileiro participar.

Homenagem a Pierre Auger Era julho. E em setembro os argentinos convidaram um grupo de físicos brasileiros, experimentais de altas energias, para ir a Bariloche discutir o projeto. Na época, o projeto já havia

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sido batizado Auger, homenagem ao físico francês Pierre Auger (1899-1993), um dos pioneiros da área de raios cósmicos e o descobridor dos ‘chuveiros’ de raios cósmicos, que os físicos denominam chuveiros atmosféricos extensos. A ideia de homenagear Auger foi do norte-americano James Cronin, o grande inspirador do projeto e Nobel de Física de 1980, que tinha uma esposa francesa e grande admiração pelos franceses. A reunião de Bariloche entusiasmou os brasileiros. Eu, na época, estava integralmente envolvido com o experimento Delphi, um dos detectores então em funcionamento no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN). Achava que meu papel seria mais o de estimular cientistas mais jovens a tomar a dianteira no Auger. No inicio de dezembro de 1995, foi programada uma reunião na sede da Unesco, em Paris, onde estariam representantes de todos os grupos de pesquisa interessados no projeto. Ninguém do CBPF se dispôs a ir a Paris, e tive que fazer o ‘sacrifício’ (pode soar pedante, mas não era minha intenção ir a Paris na época).

Aviagem (com passagem paga pelos argentinos) mudou minha vida. Na reunião, estava outro físico brasileiro, Carlos Escobar, hoje na Universidade Estadual de Campinas (SP). O objetivo da reunião era formalizar a colaboração Auger, dar forma a ela e escolher o sítio onde iríamos iniciar o projeto. Havia um compromisso com as agências de fomento norte-americanas de que a construção do Auger seria iniciada pelo hemisfério Sul, pois o projeto já previa um observatório no Sul e outro no Norte. A razão é que não havia nenhuma observação experimental sobre raios cósmicos de energia altíssima no hemisfério Sul. Na década de 1970, uma rede de detectores foi instalada na Austrália, mas teve resultados decepcionantes, pois os equipamentos estavam dispostos de modo muito esparso. Ao final, foram coletados poucos dados.

Uma equipe do Auger já havia visitado vários sítios com potencial para hospedar o projeto e tinham recomendado três alternativas: na Austrália, na África do Sul e na Argentina. Os representantes de cada um desses países estavam lá para defender seus locais para o projeto. O sítio da Austrália não tinha muitas chances, pois, além da distância aos outros países, tinha um problema adicional: era um local de treinamento da Força Aérea (a perspectiva de uma bomba, por acidente, destruindo um detector não era muito atraente).

O grande trunfo da Argentina era a existência de uma comunidade cientifica local forte, que, aliada à brasileira e ao parque industrial do Brasil, tornava-se uma alternativa muito atraente. Os sul-africanos tinham como trunfo uma carta do Nelson Mandela, então presidente daquele país, dirigida à colaboração, chamando a atenção de que o Auger poderia ser importante para o renascimento da física na África do Sul. Os argentinos também traziam uma carta de seu presidente (cujo nome hoje preferem esquecer e cuja imagem não tinha o apelo emocional da de Mandela). Nós, brasileiros, que estávamos completamente alinhados com os argentinos, começamos a ficar preocupados.

Onde se pode tomar uma cerveja?

O golpe final nas pretensões sul-africanas foi dado por uma gaiatice minha. Quando o representante sul-africano acabou sua apresentação, estava claro que o sítio deles reunia condições excelentes, tão boas quanto aquelas apresentadas pela Argentina. Mas tinha um (grande) problema. Levantei a mão e perguntei: “Onde é que se pode tomar uma cerveja no local?” O sul-africano ficou meio desconcertado. Quando se recompôs, respondeu algo assim: “Hããã... Há um boliche a cerca de 60 km dali!” Virei-me para o Etchegoyen e disse: “Ganhamos!” (detalhe: em Malargüe, bebe-se uma cerveja ou, melhor ainda, um Malbec excelente, do outro lado da rua, em frente à sede do Auger!).

Na verdade, ganhamos porque argentinos e brasileiros formam uma comunidade sig-

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nificativa e experiente de físicos, e há uma indústria sofisticada nos dois países. Mas o apelo emocional de Mandela fez muita gente obliterar sua avaliação racional.

Logo depois da reunião de Paris, tivemos outra para discutir onde seria construído o Auger. Isso ocorreu em um hotel, o Valle Grande, muito acolhedor e com uma comida excelente, à beira de um rio apropriado para canoagem, perto da cidade de San Rafael, na Argentina. Nessa ocasião, fui exposto ao céu noturno da região de forma um tanto embaraçosa. Era noite, e, no meio do caminho do aeroporto de Mendoza ao hotel, o ônibus quebrou. Descemos todos. Virei para um amigo norte-americano e comentei sobre o azar de termos uma noite um tanto ‘enevoada’. Ele olhou-me perplexo: “Como enevoada? Isto é a Via Láctea!”, disse. Pura estupidez minha, pois, quando escolhemos a região ao sul de Mendoza, a motivação foi dada pelas características da região, muito plana e com uma atmosfera com pouco aerossol e praticamente sem poluição luminosa. O céu lá é muito limpo (em poucas regiões do Brasil tem-se uma visão tão cristalina e comparável das estrelas).

Na reunião de Valle Grande, decidimos que o Auger Norte seria nos Estados Unidos. Não foi uma decisão fácil. Havia, além da norte-americana, uma proposta para construí-lo no México, na fronteira com o Texas, e outra de instalá-lo na Espanha (que se mostrou inviável, em função da poluição visual e da densidade populacional do local escolhido). Na primeira rodada de discussões, houve empate entre os Estados Unidos e o México; na seguinte, o desempate favoreceu a proposta norte-americana.

Originalmente, o observatório seria construído no estado de Utah, mas depois foi proposto (e aprovado) o do Colorado, onde há mais área disponível para o projeto. Essa decisão acabou sendo mais importante do que nos demos conta inicialmente. Uma das principais conclusões que extraímos da operação do Auger na Argentina foi a de que, apesar de a área ocupada por ele ser enorme (3 mil km 2), o observatório ainda é muito pequeno. A razão é que o fluxo de raios cósmicos que era previsto quando o projeto foi formulado, com base em medidas preliminares feitas por outros experimentos, revelou-se muito menor.

Por mais paradoxal que possa parecer, nossa frustração com o fluxo de raios cósmicos implica uma descoberta científica importante. Logo após a descoberta da radiação cósmica de fundo do universo (um tipo de ‘eco’ tênue do Big Bang, a explosão que deu origem ao universo), pelos físicos norte-americanos Arno Penzias e Robert Wilson, em 1964, outro norte-americano, Kenneth Greisen (1918-2007), e de modo independente os soviéticos Georgiy Zatsepin e Vadim Kuz’min, previram que essa radiação fóssil funcionaria como um ‘freio’ para os raios cósmicos.

Assim, somente os raios cósmicos originados em regiões dentro de um raio de cerca de 100 megaparsecs — uma distância equivalente a cerca de 100 vezes aquela que separa a Via Láctea de Andrômeda, a galáxia mais próxima à nossa – chegariam até nós com energia integral (aqueles criados fora desse raio teriam sua energia dissipada ao longo do caminho). Essa previsão, feita há mais de 40 anos, estabelece com precisão quando esse efeito, chamado de corte de GZK, em homenagem aos seus idealizadores, passa a atuar. É exatamente onde vemos uma diminuição acentuada no fluxo de raios cósmicos que chegam à Terra.

Precisamos de uma área ainda maior que a que temos na Argentina, para medir as características dos raios cósmicos além do corte de GZK. Para isso, preparamos a construção de um observatório sete vezes maior que o do Sul, ou seja, com cerca de 20 mil km2, um terço da área do estado do Rio de Janeiro. Não será fácil. Mesmo cortando os custos de cada detector, usando tecnologia mais barata que a empregada no Auger Sul, o projeto irá custar, pelo menos, R$ 120 milhões, 2,5 vezes mais que o observatório em Mendoza.

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O programa Amiga

O projeto do Auger Norte não é o único em nossa pauta. Já está bem avançado um programa para estender a sensibilidade do observatório para energias um pouco mais baixas. A motivação está na estrutura rica dos raios cósmicos na região de sensibilidade do Auger. É uma região onde há transições entre regimes galácticos e extragalácticos, nos quais a natureza dos raios é também rica. Há dados produzidos por detectores que operaram anteriormente nessa faixa, o que é bastante útil para estabelecermos comparações. Um desses programas, o Amiga (sigla, em inglês, para algo como Rede Gigante do Auger para Múons), foi concebido graças ao apoio dado pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) à colaboração Argentina-Brasil.

Reunimos, por uma semana, no CBPF, um grupo de estudantes e pesquisadores brasileiros e argentinos para projetar o sistema Amiga, usando, para isso, simulações intensivas. Foi um exercício interessante, sem hierarquia nas discussões, e a contribuição dos estudantes foi essencial para o sucesso do projeto. Depois, fizemos reuniões em Buenos Aires e passamos à etapa de convencer nossos colaboradores a incorporar esse projeto como parte do Observatório Auger. No momento, testamos e damos início à construção desse detector.

Há razões científicas bem fortes para expandir o observatório em Mendoza, para termos exposição equivalente entre o Sul e o Norte. Sabemos que há fontes para os raios cósmicos de mais alta energia no hemisfério Sul. A área que ocupamos hoje não tem muito espaço para expansão, talvez possamos aumentá-la em 50%, mas isso é insuficiente para nossos propósitos. Já identificamos um local ideal situado ao norte de São Rafael e ao sul de Mendoza (no Google Earth, as coordenadas são 33º58’S e 67º30’W; a propósito, a sede atual do observatório está em 35º25’48”S e 69º 35’W). É uma região com mais de 20 mil km2, com uma variação de altura menor que 100 m.

Em contraste com o estereótipo com que o argentino é apresentado no Brasil, a população de Malargüe, onde está o Auger, sempre foi muito gentil, simpática e hospitaleira. Há muitos anos, levei meu filho (então com 17 anos de idade) para uma reunião da colaboração, que durou uma semana. No primeiro dia, pegou seu violão e foi sentar-se na praça principal da cidade. Em pouco tempo, já era amigo de vários jovens locais. Naquela semana, foi homenageado pela juventude do local.

Todos os colaboradores do Auger consideram Malargüe sua segunda casa.

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EXTRAORDINÁRIO HIGGS!

Oanúncio recente da descoberta do bóson de Higgs, no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), é, certamente, um dos eventos mais extraordinários da história da civilização. E mais: enche-nos de esperança de que os problemas que enfrentamos hoje são passíveis de solução. Mas, vale desde este início, enfatizar: se o CERN tivesse anunciado que ‘O bóson de Higgs não existe!’, isso teria sido também extraordinário.

De modo simples, essa partícula pode ser entendida como a responsável por conferir a propriedade massa à maioria de suas companheiras subatômicas. Ela completa um sistema ontológico sobre a estrutura da matéria que nos permite descrever parte substantiva da natureza e cuja origem está nas primeiras décadas do século passado, quando se desenvolveu uma teoria sobre o mundo atômico e subatômico, a chamada mecânica quântica.

O motor da concepção intelectual do que hoje chamamos Modelo Padrão para as Interações Fundamentais da Matéria – ou, simplesmente, Modelo Padrão, que pode ser entendido como a síntese do conhecimento que a humanidade reuniu nos últimos 2 mil anos para responder à pergunta ‘Do que as coisas são feitas?’ – foi inspirado por noções de beleza e elegância (na visão peculiar dos físicos) e de consistência matemática.

O Modelo Padrão é resultado do trabalho de centenas de cientistas espalhados pelo mundo todo. Até chegar ao que é hoje, um sem-número de caminhos errados foram trilhados. E isso caracteriza o avanço da ciência: para cada boa ideia que frutifica, muitas ficam pelo caminho, descartadas. O quadro da matéria que temos atualmente foi construído como um mosaico, peça a peça, testando cada uma delas para ver se se encaixava no conjunto, validando experimentalmente as previsões teóricas.

Muitos prêmios Nobel estão no caminho do Higgs. O modelo teórico estava essencialmente pronto em 1967, mas sua validação experimental levou 45 anos. Para isso, foram construídos aceleradores e vários detectores de partículas, bem como desenvolvida gama de tecnologias para explorar a matéria em sua intimidade.

O leitor pode estar se perguntando: “E eu com isto? Onde está o extraordinário? Já fomos à Lua, muito mais complicado!”

Sim, os norte-americanos foram à Lua, e isso levou seis anos, entre a decisão de ir e chegar lá. Feito de um único país – e, talvez, em breve, a China faça o mesmo. Mas, para chegar ao Higgs, foi necessário o esforço conjunto de dezenas de países. Nenhum país, sozinho, seria capaz de realizar esse feito. O acelerador LHC (sigla, em inglês, para Grande Colisor de Hádrons) começou lá atrás, em 1954, quando os países europeus decidiram unir esforços para construir um laboratório, o CERN, em Genebra – por sinal, ensaio para o que, mais tarde, viria a ser a Comunidade Europeia. Os norte-americanos, em paralelo, construíram o Fermilab, em Chicago. Nesses dois laboratórios, conviviam cientistas do mundo todo – em particular, de países que, na época, eram denominados ‘bloco soviético’.

Na década de 1980, o CERN construiu o acelerador LEP, um anel gigantesco (27 km de extensão) onde ocorriam colisões de elétrons e suas antipartículas, os pósitrons. Hoje, esse mesmo túnel abriga o LHC. No meio do caminho, o CERN inventou a world wide web, a www, ferramenta para facilitar a comunicação entre cientistas. A revolução que as páginas da internet causaram já justificaria, por si só, todo o investimento feito, até então, no laboratório.

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(Texto publicado na seção ‘Opinião’ da revista Ciência Hoje, n. 296, 2012)

Domínio público

E aqui cabe uma reflexão. As ferramentas criadas no CERN são de domínio público, pois isso é uma forma de dar retorno ao investimento público. E, graças à essa política, a www teve disseminação tão rápida para fora do ambiente dos físicos. E deu no que deu.

As tecnologias desenvolvidas para a idealização e construção dos detectores do CERN levaram a, pelo menos, duas consequências práticas: i) número significativo de instrumentos de diagnóstico médico hoje são detectores de radiação disfarçados, e aceleradores de partículas são atualmente usados em terapias de tratamento de cânceres; ii) a eletrônica miniaturizada, embutida em telefones celulares, notebooks e outros equipamentos pessoais, foi induzida pela necessidade que os físicos e engenheiros do CERN tiveram (e têm) de compactar componentes eletrônicos em espaços exíguos.

Entre a decisão de construir o LHC e o início de suas operações, passou-se quase um quarto de século. Quando foi concebido, muitas das tecnologias necessárias não estavam ainda disponíveis; no entanto, foi possível fazer um mapa do que seria preciso desenvolver para chegar ao que se pretendia. Ao fazer esse mapa, os físicos e engenheiros usam um misto de tecnologias já disponíveis (mas que precisam de modificações para serem usadas no projeto) e aquelas que devem ser desenvolvidas (com boa chance de dar certo). Essa combinação acaba sendo muito bem-sucedida: no caso, o LHC terminou dentro do orçamento e do cronograma previstos.

Gerenciamento

‘mágico’

O que foi dito acima revela outro lado de um projeto dessa natureza; seu gerenciamento – ao qual, em geral, a mídia não dá muita atenção. A construção do LHC e de seus quatro detectores (Atlas, CMS, LHCb e Alice) envolveu não só o CERN, mas também uma miríade de fornecedores industriais, bem como centenas de universidades, além de milhares de cientistas pertencentes a culturas distintas. Universidades e cientistas não têm, em geral, boa reputação em executar tarefas com cronogramas, o que é mais característico de ambientes empresariais. No entanto, a ‘mágica’ que leva um projeto dessa envergadura e complexidade a bom termo é certamente alvo de estudos sociológicos – e, nesse quesito, pelo menos, as empresas têm uma ou duas coisas a aprender com os cientistas. E vale ressaltar que temas como salários, prêmios por produtividade, comissões – que estão sempre nas agendas de gestores de bancos e empresas – são quase tabu no meio científico.

Outras áreas da ciência tiveram sucesso na abordagem cooperativa de problemas complexos, em que só a reunião de qualificações distintas permite resolvê-los. É o caso de grandes observatórios astronômicos e dos mapeamentos genéticos, para ficar em dois exemplos. Isso revela outro fato importante: alguns dos grandes desafios de nossa época – mudanças climáticas, limitação do impacto humano no meio ambiente ou, mais essencialmente, assegurar a sustentabilidade e bem-estar das gerações futuras – são passíveis de solução.

O Brasil caminha para se tornar país-membro associado do CERN. É um passo importante em nossa trajetória, pois passaremos de coadjuvantes a protagonistas da agenda científica mundial. Não basta termos excelentes equipes de físicos trabalhando na descoberta do bóson de Higgs. É necessário envolver, nesse processo, engenheiros, técnicos, professores do ensino médio e empresas. Fazemos todos parte dessa aventura extraordinária do espírito humano!

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O CERN E A FÍSICA DE PARTÍCULAS*

(Capítulo do livro Nós, professores brasileiros de física do ensino médio, estivemos no CERN, 2015)

Meia-noite

Era quase meia-noite quando vimos nosso primeiro Z0 no monitor, depois de três dias de expectativa. Faltavam segundos para o colisor ser desligado, encerrando a primeira rodada (run, no jargão dos físicos) de tomada de dados, no novíssimo colisor de elétrons (e-) e pósitrons (e+) do CERN, o LEP, sigla derivada de Large Electron-Positron Collider. Maria Elena Pol, física nascida em Rosário, na Argentina, mas parte do grupo brasileiro no Delphi, pilotava o monitor. Do grupo que estava em vigília, faziam parte ainda o Alessandro (Sandro) de Angelis, italiano, o Per Olof Hulth, sueco, e o Nick van Eijndhoven, holandês.

A aparição do primeiro Z0 nos causou alivio e uma sensação de êxtase, análoga ao que eu imagino ser o momento de revelação para pessoas religiosas. Estávamos vendo o que nenhum outro ser humano havia visto antes. É bem verdade que corriam boatos sobre nossos concorrentes, os outros três detectores instalados no LEP, alegando que cada um deles já teria registrado a presença de Z0s, ao longo dos três dias que tinha durado esta primeira operação do LEP. Por isso, a sensação de alivio – afinal, não ficaríamos de fora da festa.

Mais tarde, viemos a entender o porquê de termos registrado um Z0 apenas nos últimos segundos da operação inicial do colisor. O feixe de elétrons (e-) e de suas antipartículas, o pósitron (e+), estava desalinhado quando passava pelo detector — por isso, não havia interações. No entanto, quando se iniciou o processo de desligar os feixes, eles se realinharam, gerando uma colisão e nos salvando da frustração.

Delphi (acrônimo derivado de Detector with Léptons, Photon and Hadron Identification) era um dos quatro detectores então instalados no LEP – cada detector era operado por colaborações que envolviam, cada uma delas, algumas centenas de físicos e engenheiros. Naquela noite de agosto de 1989, éramos cerca de uma dezena de brasileiros trabalhando no CERN.

Eu estava no CERN havia mais de um ano, tendo recebido uma bolsa de pesquisador visitante, por um período de dois anos. Minha formação era a de físico teórico, tendo feito minha tese de doutorado na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, sobre quebra dinâmica de simetria, tema que tem a ver com a geração de massas para as partículas e, indiretamente, com o recém-descoberto bóson de Higgs – ou, hoje, mais apropriadamente, bóson de Higgs-Brout-Englert.

Quando cheguei ao CERN, fui trabalhar com o Per Olof, e um dos temas que tratamos foi o de examinar quais eram as características que deveríamos buscar nos eventos resultantes da colisão e+ e- que poderiam assinalar a existência desse bóson. Já à época, a busca do bóson de Higgs era um dos principais temas do programa cientifico dos experimentos instalados no LEP. Havia, então, a noção de que, se essa partícula existisse, ela deveria ter uma massa maior do que cerca de 8 GeV – uma suposição baseada em argumentos cosmológicos.

Fomos investigar a literatura para ver se havia alguma evidência experimental para comprovar essa noção e descobrimos, para nossa surpresa, que não havia razão objetiva que limitasse o Higgs a ter uma massa acima de qualquer valor. Assim, preparamos o protocolo para a busca de uma partícula do tipo Higgs com massa muito pequena. Em poucos meses, já havia sido possível estabelecer limites para a massa do Higgs, com valores da ordem de 20 GeV. Nos 11 anos de operação do LEP, esses limites inferiores foram sendo aumentados.

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Hoje sabemos que o Higgs, que tem massa de 125 GeV, estava além do limite de produção do LEP. A saga da sua busca só terminou quando, em 12 de julho de 2012, os experimentos Atlas1 e CMS2 anunciaram, no CERN, evidências para a existência de uma partícula com as caraterísticas do bóson de Higgs.

Não é exagero dizer que a descoberta do Higgs marcará nossa civilização como um dos seus pontos altos. Não pela descoberta em si, mas por todo o processo que culminou nesse evento. Para começar, o CERN, fundado na década de 1950, foi um ensaio para o que viria a ser a Comunidade Europeia. Não é pouca coisa. Ir à Lua foi um feito de um único país – talvez, de um segundo, se a China tiver sucesso. Descobrir o Higgs só foi possível por conta do numero de países envolvidos nessa aventura do espirito humano. Um único país não conseguiria essa façanha.

Um novo quark

O ano de 1974 – quando eu ainda fazia meu doutorado na UCLA – foi um período particularmente excitante na física. Nele, deu-se o que muitos denominam ‘Revolução de novembro’, quando foi descoberto o quark charm. Difícil expressar o significado e a excitação associada a essa descoberta.

Fui testemunha de um episodio muito significativo do espirito da época. Com outros colegas, estava fazendo um curso sobre física das partículas, dado por Jun John Sakurai, famoso por seus livros-texto sobre mecânica quântica.

A data, lembro com precisão: 12 de novembro de 1974, terça-feira, final da tarde. Tinha como colega de sala o Pham Quang Hung, estudante vietnamita que fazia sua tese com o Sakurai. Somos até hoje bons amigos – ele está na Universidade de Virgínia, nos EUA. PQ, como o chamamos, vinha de uma família abastada no então Vietnã do Sul, e alguns de seus familiares ocupavam altos postos na administração do país. O Departamento de Física da UCLA tinha um sistema de rádio para se comunicar com o grupo que fazia experimentos no CERN e disponibilizara o rádio para que PQ se comunicasse com sua família. Com isso, acompanhamos de perto o fim do regime naquele país e a derrota norte-americana em primeira mão – sabíamos o que se passava lá muito antes das noticias na televisão.

PQ está hoje envolvido num programa de reestabelecimento da física no Vietnã, organizando escolas de verão em Hue. O trabalho de tese dele era desmontar o Modelo Padrão, mostrando que vários fenômenos da física de partículas poderiam ser explicados sem a necessidade do bóson vetorial Z0. O curioso é que a motivação do Sakurai, ao propor esse problema, era criar bases mais sólidas para o que chamamos hoje de Modelo Padrão.

Naquele 12 de novembro, vários dos professores do departamento assistiam ao curso e, naquele dia, o tópico era e+ e-, assunto em evidência à época, por causa da entrada em operação do colisor SPEAR, em Stanford, na Califórnia, em 1972. Em dezembro de 1973, os primeiros resultados do SPEAR foram anunciados por Burt Richter, numa conferência em Irvine, Califórnia. Os resultados foram apresentados na forma da razão entre a seção de choque da colisão entre e+ e-, onde há a produção de hádrons, e a seção de choque entre esta partícula e antipartícula, que resulta na produção de um par de múons, positivo e negativo.

Múons já eram conhecidos pelos físicos desde 1936, quando foram observados em raios cósmicos por Carl Anderson e Seth Neddermeyer.

O que faz os múons especiais é que atravessam grandes quantidades de matéria sem serem absorvidos ou sem mudar muito sua direção. A razão é que são muito parecidos com elétrons – porém, cerca de 200 vezes mais pesados (ou massivos, no jargão dos físicos), sofrendo apenas interações (forças) eletromagnéticas e fracas, em contraste com píons, que sofrem também a chamada interação forte, muito mais intensa.

Pouco antes, em 1968, uma equipe de cientistas do SLAC (sigla para Stanford Linear Ac-

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celerator Center, o mesmo laboratório que o Spear), usando um acelerador linear de elétrons, descobriu as primeiras evidências de que prótons e nêutrons tem estrutura interna composta por quarks – ou pártons, como eram denominados por Richard Feynman.

Com a existência de quarks, os teóricos chamavam atenção ao fato de que a razão [R] entre as seções de choque [s] deveria ter um valor constante, igual à soma do quadrado das cargas dos quarks – a menos, para energias maiores que o limiar da massa dos quarks. No entanto, os primeiros resultados apresentados por Richter, em Irvine, indicavam um fator R crescendo com energia. Essa era a situação, naquela tarde de 12 de novembro de 1974. No final da aula, Sakurai casualmente observou: “Ontem à noite, ligou-me um amigo do SLAC e disse que observaram no fim de semana uma ressonância, com centro de massa de 3,1 GeV”. Depois disso, desenhou a figura [gráfico] da ressonância.

Imediatamente, seguiu-se grande excitação entre os professores que assistiam à aula. Para nós, alunos, não era óbvio o significado da ressonância, mas claro que era algo especial. Lembro-me de Ernest Abers, autor de um texto clássico sobre teorias de gauge, perguntar se aquela ressonância não era a mesma vista pelo Samuel Ting, em Brookhaven. Era. Sakurai terminou a aula explicando o significado da descoberta do quark charm. Começava a ‘Revolução de novembro de 1974’, com a descoberta – que, no momento em que este depoimento está sendo escrito, completa 40 anos – que se tornou um momento transformador na física das partículas.

A data da aula do Sakurai é significativa, pois, se verificarmos a data de submissão dos papers da descoberta da ‘partícula pesada J’, como Ting a batizou, veremos que ela é 12 de novembro de 1974, enquanto a do grupo de Burt Richer – que sugeriu o nome de ψ (3105) – é de 13 de novembro.

A J/psi, como ficou conhecida, era prova indireta – porém, cabal – da existência do quark charm. Ting e Richter dividiram o prêmio Nobel de Física de 1976 por essa descoberta.

É interessante entender a origem da diferença de um dia na data da submissão dos trabalhos, bem como as diferenças entre os experimentos. O experimento de Ting explorava a colisão de um feixe de prótons contra um alvo de núcleos de berílio, examinando pares e+ e- produzidos e extraindo desses dados a massa efetiva do par. É um experimento difícil, com boa chance de contaminação dos resultados por partículas espúrias, exigindo grande cuidado na analise dos dados. Desde agosto de 1974, ouviam-se rumores de que o experimento de Ting estava observando uma ressonância que não podia ser interpretada usando a física canônica de então.

Em contraste, o experimento do Richter media o resultado das colisões e+ e- literalmente on-line. Depois de apresentarem resultados inconclusivos nas conferências do verão (do hemisfério Norte) de 1974 – resultados que, de certa forma, eram incompatíveis com a noção do modelo de quarks –, Richter e colegas decidiram fazer uma varredura, variando lentamente a energia do centro de massa do feixe e+ e-.

Enquanto a energia estava abaixo de 3,0 GeV, os monitores de controle dos eventos produzidos registravam poucos eventos por minuto. No entanto, ao cruzar esse limiar de energia, os monitores figurativamente explodiam com eventos. Cruzaram essa linha na noite de domingo, 10 de novembro, quando um estudante de doutorado estava no plantão do experimento. No dia seguinte (segunda-feira, 11), tinham o paper pronto e colocado no correio na Califórnia e enviado para a redação da Physical Review Letters (PRL), no outro lado dos Estados Unidos, em Brookhaven.

Coincidentemente, Ting tinha uma reunião no SLAC, onde era membro do Comitê Cientifico do Laboratório, e tomou conhecimento da descoberta. Imediatamente, ligou para

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seus colaboradores em Brookhaven e determinou que o paper, que já estava pronto, sobre sua versão da descoberta, fosse imediatamente submetido ao Physical Review Letters, com escritório em Brookhaven – portanto, sem a necessidade de postar no correio!

O curioso é que o tema estava tão maduro que cientistas trabalhando no Laboratório Frascati, na Itália, em poucos dias foram capazes de reproduzir os resultados de Richter, e o trabalho deles foi publicado no mesmo número da PRL. Foi um período riquíssimo de palestras, debates acalorados, mas a consequência final dessa descoberta foi a consolidação do modelo de quarks como estrutura da matéria e do Modelo Padrão para interpretar as interações fundamentais da matéria. Pouco depois da descoberta do quark charm, o mesmo grupo do Spear/SLAC encontrou indícios de um novo membro da família à qual pertencem tanto os elétrons quanto os múons. Esse novo membro foi batizado de tau (τ). O líder desse trabalho, Martin Perl, recebeu parte do prêmio Nobel de Física de 1995 pela descoberta.

Aexistência do quark charm – apesar de sua descoberta ter causado grande surpresa – havia sido prevista por vários argumentos teóricos e, de certa maneira, completava o quadro das famílias de quarks e léptons – este último, nome da família que abrange o elétron, o múon e o tau, bem como seus respectivos neutrinos. Em contraste, a descoberta de um novo integrante dessa família – cerca de 3,5 mil vezes mais pesado que o elétron – foi realmente inesperada, mas, consequentemente, qualquer um poderia prever uma nova família de quarks. Os dois membros da nova família, ainda hipotética, foram rapidamente batizados de top, um quark com propriedades semelhantes ao charm ou o up, e de bottom, semelhante aos quark strange e o down. Os quarks up e down fazem parte de prótons e nêutrons.

A existência de uma terceira família de quarks (top e bottom) havia sido especulada já em 1973, por dois físicos japoneses, Makoto Kobayashi e Toshihide Maskawa, como parte de um mecanismo para explicar a violação da simetria de CP (conjugação de carga-paridade) no decaimento dos bósons do tipo káons neutros. No entanto, esse trabalho não recebeu muita atenção até a descoberta do léptons tau (t).

Kobayashi e Maskawa ganharam o premio Nobel de Física de 2008 por prever essa terceira família de quarks. A descoberta do bottom ocorreu ainda em 1977, quando o grupo do físico norte-americano Leon Lederman observou uma ressonância – análoga à observada por Ting alguns anos antes – de um novo quark em colisões próton-núcleo, no Fermilab.

Para completar o quadro das famílias dos quarks foi necessário esperar outros 18 anos, até 1995, quando os cientistas que trabalhavam em dois experimentos, o CDF e o D0, no Tévatron, no Fermilab. Identificar o quark top foi uma tarefa muito difícil e delicada, pois o sinal tinha um ruído de fundo muito grande – vale lembrar aqui que a descoberta do bóson de Higgs guarda semelhanças com a descoberta do top.

Boatos na cafeteria do CERN Volto ao CERN. Dessa vez, não em 1989, mas, sim, para o verão europeu de 1982, quando eu terminava uma estada de três meses na divisão teórica. O CNPq tinha assinado com o CERN, anos antes, um acordo pelo qual repassava recursos àquele laboratório e este convidava físicos teóricos brasileiros para períodos curtos de trabalho no CERN.

Fui um desses convidados. Havia começado a funcionar pouco tempo antes o Super Proton Synchroton (SPS), então o mais poderoso acelerador de partículas do mundo, que estava operando no modo de colisão prótons-antiprótons. Preparar feixes de antiprótons, juntá-los num feixe e colidi-los com prótons foi um feito de engenharia fantástico, comandado por Simon van der Meer, engenheiro holandês, especializado na física de aceleradores.

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O centro nevrálgico do CERN é a cafeteria, o bandejão onde todos se encontram para almoçar – às vezes, jantar – e, principalmente, se reunir às 10h da manha e às 4h da tarde para tomar café e discutir física.

É uma maneira elegante de dizer o que realmente se faz: fofocar sobre assuntos da física, ouvir os boatos, os rumores, saber o que está acontecendo, antes que estas coisas assumam seu papel real, na forma de papers submetidos aos periódicos científicos.

Essa é uma característica da física. Uma descoberta, uma ideia nova, só são levadas a sério quando materializadas num trabalho publicado num periódico cientifico. E a razão é simples: qualquer proposta, anúncio de descoberta, nova ideia, para ter validade deve ser escrutinizada pelos pares de forma independente e organizada – é isso que dá credibilidade à ciência. A cafeteria do CERN é um lugar democrático, onde você vai encontrar físicos de que só ouviu falar como figuras míticas ou que eventualmente tenham estado em Estocolmo para receber um prêmio. E lá na cafeteria uma ou mais dessas figuras podem estar sentadas ao seu lado. Fazer uma selfie, pedir um autografo? Nem pensar!

Na cafeteria, são todos iguais.

Nesse verão de 1982, os boatos na cafeteria do CERN tinham como tema os rumores sobre a descoberta dos bósons W± e Z0, pelos experimentos instalados no SPS. A previsão para a existência dessas partículas está associada à concepção de um modelo que unifica as interações fracas e eletromagnéticas num mesmo esquema formal. O saudoso físico brasileiro Jose Leite Lopes, um dos fundadores do CBPF, foi a primeira pessoa a sugerir a existência de uma partícula com as características do que chamamos hoje a Z0 – isso se deu em 1958.

A Z0 é uma espécie de irmã pesada do fóton, assim como as W± são suas irmãs com carga elétrica. Uma diferença fundamental entre o fóton e essas três irmãs é que o primeiro não tem massa, enquanto as outras três têm. Outra diferença fóton é o agente da interação (força) eletromagnética, enquanto a tríade é a responsável por intermediar a chamada forca fraca.

A explicação de como é possível gerar massa para essas partículas, de modo que mantenham algumas das características que fazem do fóton uma partícula tão especial, foi o que levou a Academia Sueca a dar o Nobel de Física de 2013 a Peter Higgs e François Englert. Em tempo: Higgs e Englert não foram os únicos a formularem essas ideias, o que mostra que elas já estavam maduras, suspensas no ar!

A formulação definitiva da unificação do eletromagnetismo com as interações fracas, numa única estrutura, que tem como característica a simetria das equações por uma transformação que atende pelo nome técnico de simetria de gauge, foi completada poucos anos depois pelo trabalho do físico norte-americano Steven Weinberg e do paquistanês Abdus Salam, ampliando uma formulação inicial de Sheldon Glashow – sim, é homenagem a ele o Sheldon da série The Big Bang Theory). Os três receberam o prêmio Nobel de 1979 por essa proposição.

Havia pouca dúvida de que os novos experimentos no SPS, em operação naquele verão de 1982, o UA1 e o UA2 (as iniciais referem-se a Underground Area), mais cedo ou mais tarde iriam mostrar de forma conclusiva a existência desses bósons, que, juntamente com o fóton, são denominados bósons vetoriais.

Uma das evidências indiretas para o Z0 tinha sido a descoberta das correntes neutras pelo experimento Gargamelle, no CERN, que estudou o espalhamento de neutrinos pela matéria. Os rumores que flutuavam na cafeteria naquele verão só vieram a se confirmar no início do ano seguinte com a publicação dos trabalhos que evidenciavam a descoberta dos W± e Z0. Já em 1984, o físico italiano Carlo Rubbia e o engenheiro holandês Simon van der Meer ganharam o premio Nobel de Física pela descoberta.

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Liberdade assimptótica

Quando fui trabalhar no CERN, fazendo a transição de teoria para física experimental em março de 1988, o anel de colisão LEP já estava quase completo. O Modelo Padrão já estava consolidado. Não mencionei neste texto outro avanço importante que aconteceu, ainda à época em que eu fazia o meu doutoramento, que foi a descoberta da liberdade assimptótica de teorias de calibre (ou gauge) não abelianas e a consequente inferência de que os quarks, além da característica denominada sabor (nome técnico dado às diferenças entre, vamos dizer, quark up e down), tinham também outra propriedade, com nome técnico de cor, termo cuja origem está na constatação de que essa propriedade vinha em três tipos e, por analogia, foi associada as três cores fundamentais – em inglês red, green e blue – e o nome pegou.

Além das interações eletromagnéticas e fracas, outra interação permeia as relações entre as partículas: a interação forte, da qual já falamos brevemente neste texto. A demonstração da liberdade assimptótica das teorias de calibre não abelianas foi feita pelos físicos David Gross e Frank Wilczek, e por David Politzer, trabalhando na costa leste dos EUA. Os trabalhos fizeram parte das teses de doutoramento de Wilczek e Politzer. Os três receberam o prêmio Nobel de Física de 2004 pela descoberta da liberdade assimptótica.

A estrutura que explica as interações fortes tem como nome cromodinâmica quântica (QCD, sigla derivada do termo em inglês). A QCD previa novas partículas, os glúons, que fazem a ligação entre os quarks e que são responsáveis por trocar a cor nestes últimos. Em contraste com os fótons, bem como com os W± e Z0, os glúons só existem no interior das partículas – não podem ser produzidos isoladamente. No entanto, no final da década de 1970, foram publicadas evidências experimentais para a existência dos glúons por experimentos instalados no anel de colisão Doris, no DESY, Alemanha. Esta impossibilidade de os glúons não existirem de forma livre, isolada, não é tão estranha assim, pois, pela mesma razão, intrínseca da QCD, quarks também não existem em forma livre na natureza, mas aparecem sempre como um conjunto de três ou dois – neste ultimo caso, como pares quark-antiquark.

Naquele mesmo período, o físico holandês Gerardus ‘t Hooft e seu orientador de doutorado, Martinus Veltman, mostraram que teorias da classe das interações eletrofracas e da cromodinâmica quântica eram renormalizáveis, ou seja, eram matematicamente consistentes. Por esse trabalho, receberam o prêmio Nobel de Física de 1999.

Assim, quando cheguei ao CERN em 1988, o Modelo Padrão para as Partículas e Interações Fundamentais da Matéria (ou, simplesmente, Modelo Padrão) já estava consolidado, sendo formado pela combinação de duas teorias independentes: a) as das interações eletrofracas, com os bósons vetoriais fóton, as W± e a Z0 servindo de ponte de ligação entre partículas; b) a cromodinâmica quântica, na qual o papel de ponte de ligação é desempenhado pelos glúons. No Modelo Padrão, além dos bósons que acabamos de citar, há ainda duas classes de partículas: a) os léptons [elétron, múon, tau e respectivos neutrinos], que interagem apenas pela ponte eletrofraca, e b) os quarks [up, down, charm, strange, top e bottom], sujeitos às interações eletrofracas e as fortes (QCD).

Hoje, a esse esquema, adiciona-se o bóson de Higgs, necessário para induzir tanto a massa dos bósons vetoriais quanto a das outras partículas. Em 1988, faltava descobrir-se o quark top, mas havia poucas dúvidas sobre sua existência. Sabia-se que era apenas uma questão de tempo.

Curiosamente, antes da descoberta desse quark, no Fermilab, os experimentos do LEP foram capazes de estimar a massa desse quark com mais precisão do que a massa medida. Essa estimativa tem a ver com fenômenos quânticos observados em processos medidos nos experimentos do LEP e é outra evidencia da solidez do Modelo Padrão.

Ate hoje (final de 2014), não foi observada experimentalmente nenhuma violação do Modelo Padrão, uma das construções humanas mais perfeitas.

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Astropartículas

Trabalhei no experimento Delphi de 1988 até praticamente o fechamento do LEP para sua substituição pelo novo acelerador, o LHC (sigla para Large Hadron Collider). Em 1995, tomei conhecimento, de forma quase acidental, do projeto de se construir um gigantesco detector de raios cósmicos e, mais acidentalmente ainda, acabei sendo capturado pelo projeto, que hoje é o Observatório Pierre Auger, construído e funcionando na província de Mendoza, na Argentina, para estudar raios cósmicos, área cujo desenvolvimento está na raiz da física do século passado.

A chamada área das astropartículas tem sua origem na criação do Auger, somada ao advento de observatórios de raios gama de altas energias, bem como de neutrinos cósmicos, e o desenvolvimento de novos detectores que têm como objetivo elucidar a natureza da matéria escura (cerca de 70% da constituição do universo) – tema que não abordei aqui, mas que é hoje um dos grandes desafios científicos da física.

A partir do ano 2000, quando já estava engajado na construção do Auger, fui poucas vezes ao CERN, apesar de o Auger fazer parte dos experimentos ‘reconhecidos’ por aquele laboratório – uma maneira de se dizer que o observatório é um experimento de partículas. Porém, muitos colegas que trabalharam comigo no Delphi vieram também a fazer parte do Auger.

Em julho de 2013, recebi em casa [no Rio de Janeiro] o Alessandro de Angelis, o Per Olof Hulth e o Nick van Eijndhoven, durante a realização, no Rio de Janeiro, da Conferência Internacional sobre Raios Cósmicos. Tínhamos todos tomado o caminho das astropartículas. Per Olof e Nick trabalham hoje no IceCube, experimento no polo Sul que mede neutrinos cósmicos de grande energia; Sandro está no Magic, observatório de raios gama nas ilhas Canárias e com quem estou envolvido no projeto e construção do futuro CTA (sigla para Cherenkov Telescope Array), gigantesco observatório de raios gama de altíssimas energias que será construído na América do Sul.

Naquela noite, brindamos com uma caipirinha os 24 anos de outra noite inesquecível, quando observamos nosso primeiro Z0

* Publicado em Nós, Professores Brasileiros de Fisica do Ensino Médio, Estivemos no CERN. Nilson Marcos Dias Garcia (org.). São Paulo: Editora Livraria da Física/SBF, 2015.

AGRADECIMENTOS_ Bianca Encarnação (Instituto Ciência Hoje), Kurt Riesselmann (Fermilab), Marcos Zibordi (Unicsul/ECA-USP/ANF), Nilson Marcos Dias Garcia (UFTPR), Ana Luísa Videira (designer).

ANTONIO AUGUSTO PASSOS VIDEIRA AGRADECE OS SEGUINTES

APOIOS_ CNPq pela bolsa de produtividade (processo n° 306612/2018-6), UERJ pela Bolsa Prociência e CBPF pelo apoio logístico.

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“Shellard tinha um compromisso com a ciência brasileira, mas foi além: internacionalizou a competência e a cooperação da ciência brasileira.

A última grande contribuição, que nasceu de suas iniciativas, foi a adesão do Brasil ao CERN”.

“O que eu mais admirava no Ronald era seu otimismo incorrigível. Por mais que as coisas estivessem se encaminhando na direção errada, ele sempre achava que daria certo... e, geralmente, ele acertava“.

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O CERN e a física de partículas

21min
pages 209-216

Espelho quebrado: a paridade violada

8min
pages 200-202

Extraordinário Higgs

5min
pages 207-208

Uma pergunta capciosa

11min
pages 203-206

A matemática nas forças da natureza

7min
pages 197-199

Eppur si muove

4min
pages 195-196

Um ‘Einstein’ gigantesco nos pampas

21min
pages 188-194

Como funcionam e para que servem os aceleradores de partículas?

2min
page 187

Os raios cósmicos de alta energia podem matar um astronauta no espaço?

1min
page 186

Auger 20 anos: maior observatório de raios cósmicos do mundo inicia nova etapa histórica

7min
pages 183-185

Precisão e sensibilidade

8min
pages 180-182

Os neutrinos pesados

5min
pages 168-169

Energias extremas no universo

19min
pages 170-176

Energias extremas no universo

7min
pages 177-179

Encontrada a partícula Z: confirma-se a teoria das interações eletrofracas

4min
pages 164-165

Novas partículas no horizonte da física

6min
pages 166-167

Quarks, léptons, glúons, γ, W, Z... A matéria invisível

19min
pages 157-163

A ciência necessária

4min
pages 153-154

Diretor do CBPF é reconduzido ao cargo

7min
pages 146-148

Para o MCTIC: declarações sobre o INPE

2min
pages 136-137

A descoberta da partícula W

5min
pages 155-156

Raios de alta energia: nova fronteira

4min
pages 151-152

Mobilizing Brazilian scientists for DUNE

4min
pages 149-150

James W. Cronin: o enigma das micropartículas com macroenergia

16min
pages 140-145

Para o Senado e a Câmara: derrubada de vetos

2min
pages 138-139

Para o MCTIC: cortes orçamentários

4min
pages 129-130

Para o MCTIC: cortes orçamentários

4min
pages 124-125

Para a SBF: programa de altas energias no Brasil

8min
pages 121-123

Para o embaixador do Brasil no Vietnã: convite

2min
page 133

Para o Comandante Militar do Leste: convite

1min
page 128

Para o MCTIC: adesão ao CERN

3min
pages 126-127

Para o Senado e a Câmara: cortes orçamentários

3min
pages 134-135

Candidatura para dirigir o CBPF

8min
pages 117-120

Projeto Mural Grafite da Ciência do CBPF

1min
page 115

Física de Astropartículas – Proyectos Argentina-Brasil

4min
pages 110-111

ABC publica obituário de Roberto Salmeron

4min
pages 112-113

Preparativos para a International Cosmic Ray Conference

2min
page 114

Os 100 anos do físico Costa Ribeiro

2min
page 109

James Cronin (1923-2016): legado atemporal

5min
pages 107-108

Exposição de motivos: os institutos de pesquisas do Brasil

3min
pages 105-106

Desafios em C&T: IPs e o desenvolvimento humano e sustentável

2min
page 104

O CBPF, 70 anos: conhecimento como alavanca do progresso

2min
page 103

Discurso no lançamento do selo em homenagem a César Lattes

5min
pages 101-102

Sobre ciência, no Brasil, nem o óbvio é óbvio

2min
page 88

Planejamento estratégico dos institutos de pesquisa do MCTIC

11min
pages 89-94

Oito discursos para serem lidos no Senado

15min
pages 95-100

Os 70 anos do CBPF e os institutos de pesquisa do MCTIC

9min
pages 84-87

Esclarecimento

1min
page 83

Minhas impressões

17min
pages 65-82

Filhos e ‘filhos’

2min
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Graduação

3min
page 57

Trabalho hercúleo

2min
page 62

De vice a diretor

2min
page 63

Distância e profundidade ausentes

2min
page 54

Possível início

6min
pages 55-56

ATO FINAL_Comentários gerais

14min
pages 43-53

ATO Nº 3_Fim de um, começo do outro

21min
pages 30-37

ENSAIOS_Preparativos para o que viria adiante

7min
pages 18-20

PRELÚDIO_Contextualização

2min
page 12

ATO Nº 4 _Brasil: altas energias (1980-2022

13min
pages 38-42

ATO Nº 2_Nosso herói da Era Nuclear

9min
pages 26-29

ATO Nº 1_A pesquisa sistemática

14min
pages 21-25

ROTEIRO_Quando começar nossa história?

6min
pages 15-17

CENÁRIO_O que já foi escrito sobre o tema?

3min
pages 13-14
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