O Dia em que a Croácia Jogou Xadrez na Copa do Mundo de Futebol

Renato Quintiliano
18 min readDec 12, 2022
Fim do jogo entre Brasil e Croácia, que eliminou a seleção basileira da Copa do Mundo. Na imagem, o jogador Antony, do Brasil, está sentado no gramado, de perfil, lamentando a derrota. O camisa 10 da Croácia, Modric, está meio abaixado o consolando, com uma mão na nuca de Antony, as cabeças coladas e com a outra mão segurando na mão do jogador brasileiro.

Os estudiosos do xadrez devem se lembrar do match pelo Campeonato Mundial de 2016, entre Magnus Carlsen, GM norueguês, atual campeão mundial e número 1 do mundo, e Sergey Karjakin, GM russo.

Em princípio, essa disputa parecia pouco interessante do ponto de vista competitivo: Carlsen era claramente favorito.

Porém, o que aconteceu surpreendeu todas as previsões.

As partidas desse match foram muito estudadas, tentando explicar as decisões, acertos e erros dos dois jogadores. Essa é a forma mais típica e científica de se aprender com uma partida de xadrez.

Porém, acho que há um outro aspecto importante sobre essa disputa, pouco ou nada abordado pelos comentaristas, artigos e livros dedicados a ela: a luta psicológica no xadrez. É sobre essa luta que quero falar, e apresentar minha teoria sobre o que aconteceu no match Carlsen x Karjakin.

A maioria dos jogadores e especialistas previam uma vitória relativamente tranquila para Carlsen, pois Karjakin tinha um estilo demasiado sólido e defensivo para oferecer qualquer perigo real ao campeão mundial. Lembro-me de ler uma entrevista de um jogador da elite em que ele dizia, mais ou menos, que “o maior problema para Karjakin é que Carlsen é um jogador melhor que ele em todas as áreas, e não há nada que ele faça melhor que Carlsen no tabuleiro”. Também me lembro de ter concordado com essa frase, que parecia até uma afirmação bem óbvia.

O que eu (e muita gente) não esperava era que o problema de Karjakin poderia ser na verdade sua solução. Afinal, como diz uma frase que gosto bastante: O que não tem solução, solucionado está.

Para mim, um dos maiores méritos de Karjakin foi aceitar que Carlsen era um jogador melhor que ele. Quando nos preparamos para uma batalha (ou uma partida, que pode ser de xadrez ou até de futebol) devemos reunir o máximo de informações possível sobre nosso oponente, depois estimar sua força e a diferença de nível entre nós. Mas o que fazer quando concluímos que ele faz tudo melhor? Como superar alguém assim? De fato, parece impossível, e imagino que Karjakin chegou a uma conclusão parecida.

Dessa forma, o GM russo adotou uma estratégia de defesa e luta prolongada. Em geral, Karjakin parecia satisfeito em empatar as partidas, tanto de brancas como de pretas, e arrastar o match pelo máximo de tempo possível, jogando aberturas sólidas. Obviamente, essa é uma estratégia arriscada contra um jogador como Carlsen, conhecido por sua vontade de vencer cada partida. Como consequência, Carlsen tomou a iniciativa cedo no match, colocando Karjakin na defensiva. Na terceira e quarta partidas o campeão mundial teve chances claras de vitória, mas a defesa obstinada do desafiante e um pouco de sorte fizeram que ambas terminassem empatadas. Creio que essas duas partidas levaram Carlsen a perder um pouco a noção do perigo. O campeão mundial provavelmente concluiu que seu adversário só havia escapado por sorte e que não havia como perder o controle do match. A quinta partida foi empate, mas Carlsen, com as brancas, jogou de forma otimista e chegou a correr alguns riscos. Na sexta e sétima partidas pouca coisa aconteceu, mais dois empates.

E então veio a fatídica oitava partida.

É provável que Carlsen estava descontente com o desenrolar do match até ali. Afinal, ele era o favorito claro e ainda não havia aberto vantagem no placar. Além disso, o campeão mundial teve ao menos duas chances claras de tomar a dianteira e desperdiçou, mas imagino que, como todo bom enxadrista, Carlsen certamente atribuía isso a imprecisões de sua parte e algum azar, e não tanto à resistência do oponente. A proposta de Karjakin seguia inalterada: ele continuava jogando de forma sólida, e mesmo quando teve algumas chances de vitória, na quinta partida, optou pela segurança do empate.

Por tudo isso, acho que Carlsen chegou na oitava partida sob uma impressão de que poderia “fazer tudo” em busca da vitória, e que ainda que se arriscasse, o pior resultado possível seria um empate. Então ele fez de tudo para tentar desequilibrar o jogo e colocar problemas para o oponente. Essa postura excessivamente ambiciosa fez o campeão mundial jogar de forma talvez muito otimista e um pouco descuidada. Era a chance que Karjakin havia esperado pacientemente. Em uma reviravolta, Carlsen passou do limite e cometeu um erro grave, que foi explorado com precisão e eficiência pelo adversário. Naquele dia, Karjakin chocou o mundo do xadrez ao vencer o campeão mundial e tomar a liderança do match após 8 partidas, a apenas 4 jogos do fim.

Imagem do Match Carlsen x Karjakin, disputado em 2016 valendo o título de Campeão Mundial de Xadrez. Na imagem, Magnus Carlsen, à esquerda, estende a mão para abandonar a oitava partida do match. Os jogadores estão de perfil, sentados em frente ao tabuleiro com a posição final da oitava partida.

Esse momento histórico foi analisado por vários Grandes Mestres, mas na minha opinião todos deixaram passar o ponto mais importante, que é a luta psicológica por trás do resultado. É fácil explicar de forma técnica porque um jogador erra uma decisão (ele pode ter calculado mal, errado uma avaliação, confundido um final, etc), mas as razões que provocam esse erro são mais sutis, obscuras e até abstratas, pois muitas vezes nem o próprio jogador consegue entender o que o levou a tomar a direção errada.

Aqui entra minha teoria.

Para mim, a vitória de Karjakin foi o ápice da estratégia que ele havia adotado. Ao compreender rapidamente que Carlsen era um jogador mais forte e que não seria possível superá-lo por meios puramente técnicos, buscou minar seu oponente através do jogo psicológico. Naquela época, Carlsen era conhecido por não lidar muito bem com derrotas ou quando as coisas não saíam como o planejado. Quem acompanha xadrez vai se lembrar de vários vídeos dele reagindo mal a derrotas ou faltando a entrevistas após uma derrota. A maioria das pessoas negligenciava isso e relevava, como apenas um traço de um jogador de personalidade forte e ambicioso. Seja como for, Karjakin viu nisso sua melhor chance.

Ciente de que não poderia simplesmente vencer seu adversário por meios “normais” (isto é, pegando uma vantagem na partida, pressionando e convertendo o ponto), Karjakin adotou uma estratégia de sabotagem “de dentro pra fora”, de forma a induzir Carlsen a “fazer a parte difícil para ele” (passar dos limites, cometer um erro e perder a partida), quando o GM russo estaria pronto para aproveitar a chance. Esse é praticamente o roteiro da oitava partida.

Resumindo assim parece fácil, mas é o contrário. Afinal, estamos falando de Carlsen, um jogador que se mantém como número 1 do mundo há mais de 10 anos, dominando o topo e considerado por muitos o maior enxadrista da história. Aplicar um plano ousado como esse contra um adversário desse calibre é não só uma tarefa difícil, mas extremamente arriscada. Karjakin sabia que apenas jogar de forma sólida não seria suficiente, pois Carlsen é conhecido por buscar e encontrar chances de vitória nas posições mais equilibradas e aparentemente sem vida. Por isso, Karjakin se preparou para ser pressionado, pois sabia que em algum momento do match se veria na situação de ter que defender posições difíceis. Imagino que ele deve ter trabalhado seu jogo defensivo de forma incansável nos meses anteriores, tanto do ponto de vista técnico como psicológico, pois a defesa no xadrez é uma tarefa extremamente cansativa. O lado que defende sempre precisa estar atento, gasta mais tempo em cada lance e tem que se manter esperançoso de que a partida pode ser salva. Quem joga xadrez sabe como é difícil defender, especialmente contra um oponente mais forte.

Mas Karjakin provou seu ponto, e sua estratégia inesperadamente deu frutos. Por mais que seja o melhor do mundo, Carlsen ainda é humano, e como tal está sujeito à tensão de um match de Campeonato Mundial e a sentimentos como frustração, surpresa, nervosismo, stress e fadiga. Nesse ponto eles já haviam jogado sete partidas com duração entre 5–7 horas, e a partida em questão já devia estar na quinta ou sexta hora. Mesmo os melhores jogadores sentem o cansaço físico e mental nesse momento, e quando falamos sobre o nível mais alto de qualquer esporte, as coisas são decididas nos detalhes, em um segundo a mais ou um segundo a menos, um centímetro mais alto ou mais baixo, uma bola na trave… e esse foi o momento. Carlsen, após sucessivas tentativas de romper uma defesa obstinada, perdendo oportunidades claras de vitória em partidas anteriores e provavelmente frustrado pela dificuldade inesperada do match, além de todos os sentimentos que vêm à tona durante uma partida de xadrez, deve ter se esquecido (digo isso em um nível profundo, inconsciente) que era possível perder para Karjakin, e seguiu jogando dessa forma. De repente, o campeão mundial foi bruscamente desperto desse transe da forma mais chocante possível: sim, era possível perder para Karjakin, e ele havia perdido.

Entre a oitava e a nona partidas houve um dia livre, mas isso não ajudou muito. Na nona partida, Carlsen tentou jogar de forma ambiciosa de pretas, mas as coisas não saíram como planejado. Karjakin mostrou excelente preparação, pegou vantagem e passou perto de vencer mais uma partida. Isso teria praticamente decidido o match, mas Carlsen pôde respirar aliviado ao escapar com um empate.

A décima partida foi encarada como uma decisão. Se Carlsen não vencesse, era improvável que tivesse chances na próxima, de pretas, e tudo ficaria para a última, com uma pressão altíssima pro lado dele. Além disso, ele se via em uma situação difícil e acuada, algo que não havia nem passado perto de acontecer nos matches anteriores.

Como sabemos, Carlsen venceu essa partida. O partida, como sempre, pode ser facilmente explicada: Carlsen escolheu uma variante menos jogada na abertura e levou o jogo para um terreno estratégico. Karjakin deixou passar uma chance interessante e outra muito boa, e após isso Carlsen gradualmente pegou o controle. A partir daí, o campeão mundial deu uma exibição de suas habilidades lendárias de finais e venceu um dos testes mais críticos de sua carreira.

Porém, gostaria de propor outra análise dessa partida, do ponto de vista psicológico.

Como já disse, acredito que Karjakin fez uma abordagem realista sobre a diferença de nível entre ele e Carlsen. Ele traçou um plano de defesa e acreditou que seria possível aguentar a pressão e induzir Carlsen a tomar riscos excessivos. Foi exatamente o que aconteceu na oitava partida.

Porém, vendo a décima partida, tenho a impressão que Karjakin não se preparou mentalmente para o que fazer após isso, em um contexto onde o plano deu certo. Uma coisa é traçar um plano e torcer para funcionar contra o melhor jogador do mundo, mesmo sabendo que que pode dar muito errado (ele poderia ter perdido as partidas 3 e 4, por exemplo). Outra completamente diferente é se dar conta de que o plano funcionou e ajustar-se a essa nova situação. Isso me lembra a história do cachorro correndo atrás da roda do carro. Derrubar um gigante do xadrez como Carlsen seria como alcançar a roda, que sempre se move para mais longe. Então um dia a roda parou e Karjakin a alcançou, mas foi tomado por uma nova angústia: o que fazer agora?

Ainda fazendo a distinção entre análise técnica e psicológica, dá para explicar as chances perdidas por Karjakin nessa partida de mais de um jeito. As decisões nos momentos críticos exigiam jogo mais dinâmico, de recursos táticos, e ele vinha jogando de forma estática, confiando numa defesa passiva. Mas acho que o que realmente atrapalhou Karjakin nessa partida foi a falta de preparo mental para a situação de estar vencendo o match. Afinal, o oposto era mais provável de acontecer. As pessoas que não jogam xadrez dificilmente conseguem imaginar, mas durante as várias horas de uma partida somos inundados por diversos sentimentos: alegria, medo, frustração, surpresa, ansiedade, tristeza... some-se a isso a importância de um campeonato mundial, onde há a chance de escrever seu nome na história do esporte. Por mais que Karjakin tenha demonstrado uma preparação psicológica incrível para lidar com as situações difíceis do match até então, nesse momento decisivo lhe faltou a força mental necessária para manter o controle.

Como dizem, o resto é história. Carlsen venceu essa partida e recuperou sua confiança para vencer o match nas partidas de desempate. Anos mais tarde, ele diria que aquele foi um momento muito difícil, onde se viu em um lugar muito sombrio e perdeu a confiança. Porém, como um verdadeiro campeão, teve fibra e coragem para se levantar e voltar para a luta a tempo de salvar seu título.

Pessoalmente, acredito que isso fez Carlsen dar mais importância à parte mental do xadrez e trabalhar suas fraquezas psicológicas. Sua postura em torneios e entrevistas mudou, e no match de 2018 contra Caruana ele já me parecia muito melhor nesse ponto. Apesar de ter sido um match duro e contra um adversário mais forte que Karjakin, ele estava mais focado e calmo, e em nada lembrava aquele Carlsen frustrado, impaciente e abalado do match de 2016.

Essa “introdução” pode ser meio longa demais e enxadrística demais, principalmente para quem não é jogador nem entusiasta do xadrez. Afinal, por incrível que pareça, o foco principal do texto não é esse.

Tudo começou na sexta-feira passada, quando assistia ao jogo da seleção brasileira, e observando o esquema de jogo da Croácia, tuitei:

Um print de um tweet meu do dia 9/12, escrito durante o jogo Brasil x Croácia. O tweet diz: Croácia tá jogando igual o Karjakin no match de 2016

A princípio era apenas um tweet bobo, comparando o jogo sólido e seguro da Croácia e o de Karjakin. Após a eliminação do Brasil, por alguma razão continuei pensando nisso. Então cheguei à conclusão de que talvez não fosse apenas uma piada, e que essa comparação podia ser explorada mais seriamente.

Em uma entrevista na terça-feira, três dias antes do jogo, o técnico da Croácia rasgou elogios à seleção brasileira, admitiu que o Brasil era o favorito e tinha a melhor equipe, e até afirmou que era o melhor time da Copa. Completou dizendo que seu time não tinha medo e não se renderiam antes do jogo começar, e jogariam o melhor futebol possível.

Para muitas pessoas essa entrevista soa praticamente como uma aceitação da derrota e falta de confiança, mas para mim é algo completamente diferente. O que vi foi uma análise realista sobre a diferença de nível e as chances de cada equipe na partida. Em vez de assumir uma postura arrogante e tentar transmitir uma falsa confiança à imprensa, o técnico croata fez uma análise objetiva e sincera. Essa declaração não deveria ser vista como um sinal de fraqueza, mas sim de uma boa preparação e estudo da seleção brasileira. A mensagem que pode ser lida nas entrelinhas é “nós estudamos o jogo do Brasil, sabemos de seu grande potencial, mas não temos medo. Sabemos que o Brasil tem um time superior, mas sabemos onde estamos pisando e nos sentimos à altura desse desafio.”

Então veio o jogo. Não sou especialista em futebol, mas me sinto seguro para dizer que a Croácia dominou o meio de campo durante o primeiro tempo. Os croatas conseguiam manter a posse de bola por muito tempo, com trocas de passe e movimentações rápidas, sempre passando pelo camisa 10, Modric, que é o cérebro do time. Isso criava uma barreira para a seleção brasileira, que não tinha tempo de trabalhar as jogadas pelo meio de campo em virtude da forte marcação e presença do adversário.

O fato curioso, porém, é que a maioria das jogadas da Croácia não terminava em finalizações ou tentativas de chute a gol. Por mais que colocassem o Brasil na roda enquanto trocavam passes no meio de campo, raramente assumiam uma postura mais ofensiva. Foi mais ou menos nesse momento que comecei a pensar em semelhanças com o jogo de Karjakin em 2016. Apesar de ter um bom controle do jogo e maior posse de bola, a Croácia matinha seu esquema, e só arriscava jogadas mais agressivas quando podia fazer isso de forma segura, de modo que se o Brasil recuperasse a bola seriam capazes de se recompor em poucos segundos e montar sua barreira quase intransponível no meio campo.

Muita gente vê isso apenas como uma retranca ou até mesmo um jogo sem sentido, pois um time que não chuta ao gol não sai do 0x0. No limite, mantendo esse ritmo o resultado seria uma disputa de pênaltis, mas como a Croácia poderia ter certeza que venceria, sabendo da imprevisibilidade que isso traz? Essa análise faz sentido, mas acho que é um pouco objetiva e prática demais, por isso ignora algumas nuances.

Em qualquer esporte, quando dois indivíduos ou times competem, é comum que um lado seja considerado favorito. Desse lado espera-se mais energia, e que em algum momento tome o controle do jogo e seja capaz de se impor. Assim, um jogo equilibrado por muito tempo, arrastado, tende a aumentar a pressão psicológica pra cima do suposto favorito. Não é incomum que nesse cenário os jogadores desse lado se tornem mais ansiosos e impacientes à medida que o tempo passa. Como sabemos, o técnico da Croácia reconheceu o favoritismo do Brasil antes do jogo. Ou seja, ao mesmo tempo em que tirou a pressão de seus jogadores, colocou a responsabilidade no lado do adversário. Além disso, reconhecer nossa força e a do adversário nos permite ajustar nossas expectativas e entrar na disputa com a mentalidade correta. Dessa forma, o time da Croácia entrou em campo com o objetivo de jogar seu melhor futebol e fazer um bom jogo contra uma das melhores seleções do mundo. Certamente o Brasil também entrou em campo pensando em fazer um bom jogo, mas no nosso caso só a classificação interessava, pois sabemos que temos o melhor time. Porém, tendo em conta essa diferença de expectativas, conforme o jogo se arrastava em um 0x0, apenas um dos lados tinha a sensação de estar cumprindo seu objetivo.

Para ser justo, na minha (leiga) opinião senti que o Brasil voltou melhor para o segundo tempo e começou a criar chances mais perigosas. Em vários momentos a Croácia foi salva pelas defesas de Livakovic, mas manteve seu plano de jogo inalterado, com Modric sempre coordenando a posse de bola no meio-campo. Apesar dos esforços da seleção brasileira, o jogo terminou sem gols e foi para a prorrogação.

No fim do primeiro tempo da prorrogação, finalmente veio o momento que esperávamos. Uma rápida troca de passes furou a defesa croata, Neymar tirou do goleiro e abriu o placar. “Esse gol veio na hora certa”, pensei, pois logo em seguida acabou o primeiro tempo, e time poderia conversar e se organizar de forma a manter oresultado.

Infelizmente, já sabemos o final da história. Faltando 4 minutos pro fim do jogo, a Croácia empatou. No lance anterior, havia sete jogadores do Brasil no ataque, e quando o contra-ataque croata arrancou ninguém tentou parar a jogada por meio de falta, que levaria a uma expulsão, mas era o recurso correto em uma situação extrema. O que poderia explicar uma falha dessas?

Eu diria que aconteceu com nossos jogadores o “efeito Karjakin” na décima partida do match. Após perseguir seu objetivo por tanto tempo e finalmente vislumbrar a classificação no horizonte, os jogadores brasileiros perderam sua concentração e equilíbrio mental, passando a agir de forma impensada e emocional. Ontem vi um vídeo no qual Tite e Neymar orientavam os jogadores durante o intervalo da prorrogação. Ambos diziam a mesma coisa: agora é segurar o jogo, não precisamos arriscar. Ainda assim, por alguma razão havia sete jogadores do Brasil do outro lado quando a Croácia arrancou no contra-ataque. O que isso nos mostra? Que naquele momento decisivo nossos jogadores perderam a sintonia e, pressionados pela ansiedade e tensão do momento, foram incapazes de trabalhar de forma organizada e concentrada como um grupo.

Sabendo como acaba, também dá pra dizer que eles não foram capazes de se recuperar psicologicamente para os pênaltis. A euforia do gol, a ansiedade pela proximidade da vitória e a reversão de expectativa, a frustração pelo empate, tudo isso aconteceu em um intervalo de menos de vinte minutos. Some-se o fato de estar disputando o campeonato mais importante do esporte mais popular do planeta, com o mundo assistindo. Carregar nos pés a possibilidade de trazer momentos de alegria e felicidade para um país inteiro, de se tornar herói ou vilão, mudar a vida de sua família e amigos. Por mais que o foco seja a bola, tudo isso vem à tona nesses momentos. É difícil imaginar o quão grande deve ser a carga emocional de bater um pênalti em uma Copa do Mundo.

Aqui entra outro ponto relevante. A Croácia eliminou o Japão nos pênaltis na fase anterior, e em 2018 passou da Rússia da mesma forma. É um time habituado a isso. É provável que treinem muito, mas gostaria de chamar atenção para o fato de que há uma grande carga emocional em uma cobrança de pênaltis. Ali cada batedor (e os goleiros) trava uma luta interna com seus anseios, suas aspirações, sonhos, o medo do fracasso e o desejo da vitória. Por mais que bater um pênalti seja treinável como qualquer outro fundamento, a tensão nervosa do momento exige, além disso, um alto nível de concentração e controle emocional. Os jogadores da Croácia, acostumados a esse tipo de decisão, certamente estavam mais tranquilos para as cobranças. Não digo que isso garanta a vitória, mas sem dúvida é importante. Além disso, foi a Croácia que levou o jogo para os pênaltis, então seus jogadores estavam esperançosos por ter uma nova chance. Do lado do Brasil, entretanto, por mais que os jogadores tentassem se convencer do contrário, imagino que sentiam uma frustração por perder o controle de um jogo que parecia decidido.

Vamos aos pênaltis. Eu não acompanho muito futebol, mas fiquei surpreso ao ver Rodrygo bater primeiro. Depois soube que ele tem um bom aproveitamento no Real Madrid. Ainda assim, sabendo toda pressão que envolve um jogo eliminatório de Copa do Mundo, não era mais sensato começar com Neymar ou Casimiro, mais experientes e calejados? Na decisão entre Argentina e Holanda Messi começou batendo. É a melhor forma de tranquilizar seus companheiros e passar segurança. No xadrez, faço a comparação com quando jogamos torneios por equipes e você tem um jogador muito mais forte do que o resto do time na mesa 1. A presença desse jogador diferenciado traz tranquilidade para o resto da equipe. Os outros sabem que podem jogar suas partidas tranquilamente, pois na mesa 1 tem sempre alguém que vai matar a responsabilidade no peito e resolver o match.

Rodrygo perdeu. O problema de errar o primeiro pênalti não é só o erro em si (que já é grave), mas porque a pressão em cima dos próximos batedores aumenta enormemente. Afinal, a partir dali qualquer erro é fatal.

Na minha (sempre leiga, vale lembrar) opinião, Marquinhos ter batido o quarto pênalti também foi um erro, por duas razões. A primeira é a mais óbvia, que muitas pessoas também observaram: essa responsabilidade era de Neymar. Vale ressaltar, para quem ainda não sabe (e eu mesmo só descobri depois), que a nova regra não exige mais definir antecipadamente a ordem dos pênaltis. O técnico escolhe os cinco batedores e os jogadores podem mudar a ordem ao longo das cobranças. No momento mais crítico, no qual o Brasil não podia errar, Neymar deveria ter puxado essa responsabilidade para si. Pode ser que na cobrança seguinte a Croácia fizesse o gol da classificação e no fim não faria diferença? Sim, mas isso não importa. Cabe ao melhor jogador do time tomar a frente nesses momentos.

A segunda razão é que Marquinhos teve uma participação direta no gol da Croácia. Ao tentar obstruir o chute, a bola desviou nele e saiu do alcance de Alisson. Pode ser que sem esse desvio a bola também tivesse entrado? Pode, mas não foi o que aconteceu. Minha intenção não é culpar o jogador, mas chamar a atenção pro fato de que, cerca de 15 ou 20 minutos após isso, foi dada a Marquinhos a missão de bater o pênalti que poderia decidir o futuro da seleção. Será que esse intervalo foi suficiente para lidar com o que aconteceu e se recuperar mentalmente? Duvido muito. Naquele momento, Marquinhos provavelmente estava sob uma pressão enorme, encarando uma chance de “se redimir” do seu “erro” anterior (sabemos que a culpa não foi dele, mas lá dentro da nossa mente, no inconsciente, a conversa se dá em outros termos). Basta ver que no gol da Croácia e ao errar o pênalti o zagueiro reagiu praticamente da mesma forma, caindo de joelhos, sentindo o peso de sua falha. Espero que ele saiba lidar com esse episódio e transformá-lo em algo construtivo para sua carreira.

Para mim, isso mostra que na cobrança de pênaltis o Brasil estava abalado e desnorteado, e não foi capaz de processar a reversão de expectativa gerada pelo empate. O fato de Neymar não bater o quarto pênalti é um exemplo disso. Não que eu ache que ele tinha medo de errar e preferiu deixar outro bater. É apenas um sinal de que os jogadores estavam atordoados o suficiente para não entenderem a gravidade da situação e como isso exigia uma mudança de planos, em vez de assistir uma eliminação melancólica de forma estática.

A seleção croata, por outro lado, se manteve firme. Confirmaram suas quatro cobranças, e como bem observou o Serge nesse tweet (Serge é um sociólogo que entende mais de futebol que muito comentarista esportivo, acabo aprendendo das duas coisas com ele), após Rodrygo perder o pênalti, Modric se adiantou para bater a segunda cobrança. Como melhor jogador do time ele poderia escolher ser o último e fazer o gol da classificação, mas decidiu usar sua experiência para garantir a vantagem no momento e tranquilizar seus companheiros. Essa capacidade de se adaptar a uma nova situação é um sinal de um jogador focado e atento às nuances do jogo.

Se analisarmos a eliminação da seleção brasileira pelo lado psicológico, veremos como é importante ter força mental em momentos decisivos e a necessidade de trabalhar o lado psicológico dos atletas, principalmente em um nível tão alto. No xadrez esse assunto tem sido abordado de forma mais aberta nos últimos anos. No futebol imagino que seja mais difícil, por se tratar de um grupo grande de pessoas, cada um com suas subjetividades, mas é extremamente necessário. Vale lembrar que a seleção não levou nenhum psicólogo na comissão técnica e substituiu isso por um “trabalho motivacional” de Tite com os jogadores. Uma atitude simplesmente amadora, e me surpreende terem dado tão pouca atenção pra esse fato. É impossível que em pleno 2022, com milhares de estudos sobre saúde mental, a preparação psicológica de uma das melhores seleções do planeta seja resumida ao técnico dizendo “vão lá, vocês conseguem, eu acredito em vocês” e outras frases feitas.

Por que dessa vez, infelizmente, nós entramos em campo como Carlsen e saímos como Karjakin.

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Renato Quintiliano

Grande Mestre Internacional de Xadrez. Escrevendo sobre xadrez e a vida, a vida e o xadrez e vice-versa.