A sina de Han Kwang-Song
Milhões de crianças no mundo compartilham do mesmo sonho: Ser jogador de futebol. Nesse sonho elas veem a glória.
Disputar grandes torneios europeus pelos maiores times do mundo. Levantar taças e ficar na história. Toda a fama, entrevistas e aparições em programas de TV.
Eu sei que é assim porque já fui uma dessas milhões de crianças sonhadoras.
A realidade porém, é bem dura.
A concorrência em um grande clube é implacável e muitos ficam pelo caminho durante as categorias de base. Daqueles que chegam ao profissional, poucos conseguem se manter titulares e um número ainda menor consegue se transferir para os tais gigantes clubes europeus.
Agora imagine ser uma jovem promessa de um país sem tradição no futebol jogando em um time de pouca expressão na Europa. Você começa a fazer gols e se destacar e logo todos querem saber mais sobre o novo prospecto que está atraindo olhares.
O problema é: você não pode falar com a imprensa e os clubes maiores sempre acabam desistindo da sua contratação. Tudo por causa de onde você veio.
Esse é o drama que vive o norte-coreano Han Kwang-Song.
Origem
O atacante de 20 anos é fruto das categorias de base do Cagliari mas atualmente está emprestado ao Perugia, clube da segunda divisão italiana.
Neste momento você deve estar se perguntando:
Como um norte-coreano foi revelado por um time da Itália ???
Tudo começou em 2013, quando um grupo de norte-coreanos fez um tour pela Europa e encontrou na Fundación Marcet de Barcelona uma perfeita academia de futebol para que alguns de seus jovens jogadores desenvolvessem suas habilidades. No mesmo ano, foram selecionados alguns talentos que ficaram um ano treinando nas dependências da academia.
Um deles era Han Kwang-Song, com apenas 15 anos na época.
Caminhada
A Coreia do Norte investe pesado no futebol com o objetivo de usar o esporte como instrumento de propaganda do seu regime.
O futebol feminino norte-coreano já é o 10º no ranking da FIFA, por exemplo.
Logo após o final do período de treinamentos, os garotos fizeram parte da seleção da norte-coreana que derrotou a Coreia do Sul na final da Copa da Ásia sub-16 e se sagrou campeã.
Han foi o destaque com 4 gols e despertou interesses de clubes europeus como Ajax e Fiorentina.
Ainda em 2014, o senador italiano Antonio Razzi — um simpatizante do governo norte-coreano fez uma visita a Pyongyang e na sua comitiva estava um sócio de uma academia de futebol da cidade de Perugia.
Han, que já era moderadamente conhecido, os impressionou e Razzi então viabilizou sua vinda para a Itália sobrepondo a lei da FIFA que proíbe a transferência de jogadores para outros países desacompanhados de familiares.
No ano seguinte, já treinando na academia italiana, foi peça fundamental da campanha da seleção da Coreia do Norte que chegou as oitavas de final no Mundial sub-17 e atraiu ainda mais olhares.
Em março de 2016, o Cagliari acertou a compra do jogador que estrearia na Série A do Campeonato Italiano algumas semanas depois e se tornaria o primeiro jogador norte-coreano a marcar em uma das cinco maiores ligas. Para completar seu primeiro gol foi no famoso goleiro inglês Joe Hart, do Torino.
O infortúnio
Assim que a aquisição do jogador foi finalizada pelo Cagliari lá em 2016 porém, suspeitas começaram a ser levantadas sobre a legalidade do acordo.
A questão são as leis da Coreia do Norte obrigarem seus cidadãos que trabalham fora das fronteiras do país a repassar uma grande parte do salário ao governo norte-coreano.
Isso violaria sanções internacionais do Parlamento Italiano contra a Coreia do Norte. Atualmente, a União Europeia mantém um embargo econômico para evitar que o líder norte-coreano Kim Jong-un invista em arsenal nuclear.
Outros norte-coreanos já passaram por clubes europeus mas nenhum em um nível tão alto quanto Han.
Isto explica o porquê desta vez o caso não ter passado desapercebido. O valor supostamente enviado de volta seria considerável pois se trata de um clube de primeira linha. Valor este que se escalonaria conforme ele progredisse na carreira.
Na temporada seguinte, Han foi emprestado ao Perugia para ganhar experiência e teve uma boa média de gols na Série B. Chegou a 7 em 17 partidas.
Novamente grandes clubes voltaram sua atenção ao jovem atacante. Dessa vez foram Juventus, Liverpool e Tottenham que acabaram não concretizando sua transferência.
Cagliari e Perugia garantem que pagam o salário ao jogador e desconhecem o destino que ele recebe depois.
Han quase não fala com a imprensa e sofre restrições à suas aparições públicas. Em setembro de 2017, ele aceitou o convite para participar de um programa de TV local depois de anotar um hat-trick no jogo anterior. O presidente do Perugia então recebeu uma ligação do governo norte-coreano e a entrevista foi cancelada.
Futuro
Toda esta confusão afasta os grandes clubes do jovem Han.
É curioso observar a opção do governo de resguardar tanto seu maior talento. O medo de uma possível manifestação pública dele sobre a Coreia do Norte parece sobrepujar toda a propaganda para o regime que a exposição de Han geraria.
Para os clubes, é preferível investir em outro talento que não possa causar problemas no futuro. Somam-se a isso, as restrições impostas pela Coreia do Norte que limitam bastante a comercialização da imagem do atleta, caso ele realmente viesse a se transferir.
Em 2018, Han acabou retornando ao Perugia em um segundo empréstimo. Suas mais recentes atuações não acompanharam a crescente de 2017.
Muito pode ser creditado ao dilema que certamente se passa na cabeça dele.
De um lado o sonho de criança de ser um famoso jogador de futebol.
No outro a sua pátria amada, que faz ameaças e limita o desenvolvimento de sua jornada como futebolista.
Embora para nós de fora a escolha de renunciar sua nacionalidade pareça ser bem óbvia, deve-se lembrar que ele nasceu e cresceu na Coreia do Norte e portanto foi doutrinado pelo sistema que lá existe. Além disso, sua família ainda mora no país.
No fundo, Han é apenas mais um jovem que é fã de Cristiano Ronaldo e de calças jeans (proibidas na Coreia do Norte) conforme revelou em uma de suas poucas entrevistas.
Espera-se apenas que ele possa ter tranquilidade dentro das quatro linhas para demonstrar todo seu potencial. Bola pra isso ele tem.
Para entender um pouco do que se passa na cabeça de Han, recomendo o documentário ‘The Propaganda Game’ que ilustra brilhantemente como funciona a doutrinação na Coreia do Norte. O filme foi todo produzido por um diretor espanhol que teve permissão e acesso a lugares inéditos na capital Pyongyang.
