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Cultura

Augusto de Campos completa 90 anos e leva poesia concreta para o Instagram

Sempre atento às mídias de seu tempo, poeta exercita sua verve nas redes sociais, onde compartilha obras inéditas como os 'contrapoemas'; ao lado do filho, Cid Campos, mantém no streaming o projeto musical ‘Transblues’
O poeta Augusto de Campos, um dos criadores do movimento concretista, que completa 90 anos neste domingo (14) Foto: Fernando Laszlo
O poeta Augusto de Campos, um dos criadores do movimento concretista, que completa 90 anos neste domingo (14) Foto: Fernando Laszlo

Em 1955, Augusto de Campos publicou na revista “Noigandres”, que ele fundou com o irmão Haroldo (1929-2003) e o amigo Décio Pignatari (1927-2012), uma série de poemas coloridos intitulada “Poetamenos”. Naquelas páginas, aparecia pela primeira vez a poesia concreta, que ambicionava libertar o poema das páginas dos livros e enchê-lo de cor, som e movimento. Imprimir cores não era nada fácil naquele tempo. Depois de recortar muito papel carbono colorido, Augusto imprimiu os poemas numa tipografia. No prefácio a “Poetamenos”, ele lamentou a inexistência de tecnologias que viessem em auxílio do poeta concreto: “Luminosos ou filmletras, quem os tivera!” Em 2015, em entrevista ao GLOBO , disse que o “computador doméstico”, que ele passou a usar no início dos anos 1990, “abriu todas as possibilidades que vislumbrava no prefácio”.

Contrapoema "Fora Cloronaro", de Augusto de Campos, publicado no Instagram Foto: Reprodução / Divulgação
Contrapoema "Fora Cloronaro", de Augusto de Campos, publicado no Instagram Foto: Reprodução / Divulgação

Augusto completa 90 anos neste domingo (14) e, desde março de 2018, está no Instagram. Descobriu na rede social a tecnologia luminosa capaz de ajudá-lo em seu projeto “verbivocovisual” (conceito que os concretistas tomaram de James Joyce para definir a integração entre aspectos verbais, sonoros e visuais do poema). Não é à toa que o perfil de Augusto no Insta seja @poetamenos. Até a tarde de sexta-feira (12), @poetamenos acumulava 500 publicações e 22,7 mil seguidores.

Quem apresentou Augusto (que preferiu não falar com a reportagem) ao Instagram foi Alvaro Dutra, marido de Raquel Campos, neta do poeta. No começo, o Instagram do poeta compartilhava alguns de seus poemas mais conhecidos, como “Greve”, trechos de suas elogiadas traduções e capas de seus livros. Até que começaram a aparecer poemas inéditos, marcados pela ousadia verbivocovisual e por críticas ácidas à política brasileira. Nasciam os “contrapoemas”.

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— Os contrapoemas são ready-mades, respostas à política atual — explica a neta Raquel, pós-doutoranda na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisadora da poesia concreta. — Augusto segue à risca o programa concreto e está sempre se atualizando. Algumas das inovações propostas na década de 1950 só se tornaram possíveis graças ao computador. Os concretistas mostraram que a poesia não está presa ao papel, mas é também imagem, som e movimento. Por isso migrou tão bem para as redes.

O Instagram quebrou o famoso “silêncio decenal” de Augusto, que às vezes passa mais de uma década sem publicar poemas inéditos. No contrapoema “Teto”, verde-amarelo e em forma de guarda-chuva, ele critica os salários inconstitucionais de membros do Judiciário. Em outro, brinca com o verbo “omitir” e a palavra “mito”, apelido do presidente Jair Bolsonaro, principal alvo das criações do poeta.

Os “contrapoemas” são mais uma das invenções de Augusto, poeta sempre atento às mídias de seu tempo. Nos anos 1960, ele criou os popcretos, poemas-colagens que se apropriavam da linguagem publicitária e dialogavam com a pop art de Andy Warhol. Nas décadas seguintes, apostou em clip-poemas. Junto com Haroldo e Décio, inventou a “tradução-arte” e a “transcriação”, tentativas de tradução que procuravam ser fiéis não à letra, mas ao espírito do poema, que levaram a desfaçatez de enfiar Roberto Carlos nos versos do russo Vladímir Maiakóvski: “Que tudo mais / vá pro inferno / este / é o meu slogan / e o do sol.”

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O primeiro a dispensar atenção crítica ao Instagram de Augusto foi o poeta Leonardo Gandolfi, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ainda em 2018, ele aproximou os contrapoemas dos memes.

— Augusto mobiliza politicamente as formas poéticas a partir de época e contextos distintos — diz Gandolfi. — Um dos traços distintivos da poesia dele é a conversa com o meio em que é feita. Ele refaz a linguagem das mídias com um alfabeto próprio.

Outras mídias

A crítica política não começou com os contrapoemas. No Instagram, além de comentar o noticiário político atual, Augusto recuperou poemas como “Brazilian ‘football’”, publicado na imprensa britânica após o golpe de 1964. O jogo com as palavras “goal” (gol) e “gaol” (cadeia) denunciava que o país do futebol tinha se transformado no país das prisões arbitrárias e da tortura.

E a criatividade de Augusto está também em outros cantos da internet, como o YouTube e até o Spotify. Ele e o filho, Cid Campos, aproveitaram o confinamento para criar o projeto musical “Transblues”. Já lançaram dois singles: “Amor em vão” e “Visitante dos céus”, transcriações de Augusto para “Love in vain” e “Up from the skies”, respectivamente, de Robert Johnson e Jimi Hendrix. Cid canta e toca guitarra e violão. Augusto toca gaita. A capa dos singles foi desenhada pelo concretista, no mesmo computador em que compõe seus contrapoemas e com o qual sonhava nos anos 1950, quando a poesia ainda dependia de papel carbono colorido.

Contra poema de Augusto de Campos, publicado no Instagram, brinca com apelido do presidente Jair Bolsonaro Foto: Reprodução / Divulgação
Contra poema de Augusto de Campos, publicado no Instagram, brinca com apelido do presidente Jair Bolsonaro Foto: Reprodução / Divulgação

Novos livros, reedições e homenagens

Augusto de Campos ingressou nas redes sociais mas não abandonou os livros. Este ano, lança títulos por três editoras diferentes, todas independentes.

Pela Galileu, sai mais um volume de suas “extraduções”: a plaquete “Aura barroca”, dedicada a poetas espanhóis. Para homenagear os 90 anos do concretista, a Galileu também publica edição especial da revista “Bunker”, com depoimentos de Tom Zé, Gerald Thomas, Arnaldo Antunes e outros.

Outra “extradução” acabou de sair pela Demônio Negro: “ExtraPound”, recriações do poeta americano Ezra Pound. Já a Laranja Original vai reeditar “Invenção — De Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti”.

O Instituto Antes Artes também prepara uma homenagem ao poeta: a edição especial do catálogo multimídia “Poéticas na quarentena”. Organizado pelo poeta André Vallias, tem colaborações de  Adriana Calcanhotto, Gilberto Gil, José Miguel Wisnik e outros. O catálogo estará disponível a partir deste domingo (14) no site erratica.com.br/ac90.