Esportes Copa 2018

Espanha x Marrocos: um duelo em que as lições vêm da ex-colônia

Eliminada, seleção africana espera passar boa imagem política contra espanhóis
Torcedores marroquinos estão em grande número na Copa do Mundo na Rússia Foto: Marcelo Theobald/20-6-2018 / Agência O Globo
Torcedores marroquinos estão em grande número na Copa do Mundo na Rússia Foto: Marcelo Theobald/20-6-2018 / Agência O Globo

KALININGRADO - Não será um inédito duelo entre colonizado e colonizador na história das Copas, tampouco a primeira vez em que Espanha e Marrocos, adversários desta segunda-feira, às 15h (de Brasília), em Kaliningrado, se encontram em lados opostos do campo. Mas a primeira partida deste tipo dentro do Mundial de 2018 tem contornos peculiares: as disputas históricas entre os países, hoje mais serenadas, têm passado longe da bola. Eliminada em dose dupla na Rússia, a seleção africana tem procurado mostrar que encara o futebol sob o prisma da harmonia entre os povos. Cumprir tabela contra a Espanha é uma oportunidade de ouro para aplicar o discurso na prática.

LEIA TAMBÉM: Imprensa espanhola destaca importância da partida contra Marrocos

Bolão: Tudo o que você precisa saber sobre os jogos desta segunda

Próxima rival do Brasil, Sérvia usa e abusa do típico centroavante

Márvio dos Anjos: Os derrotados da Copa e a palavra mal usada

- É difícil saber que teremos de fazer as malas e ir embora depois da partida. Temos que achar algo pelo qual valha a pena lutar neste último jogo - discursou o técnico de Marrocos, o francês Hervé Renard.

LEIA MAIS : Brasileiro preso na Rússia: fugitivo foi detido no estádio no jogo da seleção

Felipe Baloy, o zagueiro que fez história para o Panamá na Copa

Seleção russa evita ver TV e ler jornais para não se influenciar

É cena? Especialistas interpretam linguagem corporal de Neymar na Copa

Marrocos chegou à Rússia tendo muito pelo que lutar, mas sofreu derrotas duras logo na primeira semana. No ambiente da cartolagem, perdeu a disputa de país-sede da Copa de 2026 para a tríplice EUA-México-Canadá. Dois dias depois, sucumbiu diante do Irã - este, sim, um país com quem tem sérios problemas diplomáticos atualmente -, sofrendo um gol contra no último minuto. Ainda haveria a derrota para Portugal, não totalmente inesperada, mas dolorida por conta de polêmicas de arbitragem. Sem pontos conquistados até a segunda rodada, ficou sem chance matemática de seguir na Copa.

O êxtase inabalável da torcida africana na Rússia, no entanto, daria a um desavisado a impressão de que o Marrocos vive sucesso estrondoso. Em Kaliningrado, as camisas marroquinas começaram a aparecer já na última semana. Na noite de sábado, uma das principais casas noturnas da cidade tinha tantos uniformes da seleção que o mestre de cerimônias interrompeu a música para gritar um “bem-vindo, Marrocos” no microfone.

Os próprios torcedores e a federação de futebol do país falam em 40 mil marroquinos na Rússia acompanhando a Copa. Destes, cerca de 10 mil partiram do Marrocos. O restante são marroquinos emigrados para outros cantos do mundo, grupo que também é maioria na seleção: dos 23 convocados, 17 têm ascendência marroquina mas não nasceram no país. Dez vieram ao mundo na França ou na Espanha, países que fizeram o Marrocos de protetorado no século XIX. Embora não fosse formalmente uma “colônia”, Marrocos na prática tinha suas relações externas e até questões de governo regulados pelas duas potências europeias. Ceuta e Melilla, cidades do lado marroquino do mar, são até hoje governadas pela Espanha, apesar do desejo de reanexação por parte do Marrocos.

ANÁLISES: Soberana, Inglaterra impõe qualidade técnica e goleia estreante Panamá

Como lidar com o dilema que a Bélgica impõe?

Cartada inédita de Tite é parte do copo meio cheio do Brasil

Na época de colonização, o fluxo populacional era grande em direção ao Marrocos: metade da população de Casablanca, uma de suas principais cidades, chegou a ser formada por europeus. Ao longo do século XX, a balança cada vez mais se inverteu: aproveitando a proximidade com a Espanha, separada por apenas 15 km de mar via estreito de Gibraltar, milhares de marroquinos deixaram suas origens e se lançaram em busca da Europa.

- Para nós, nossa seleção ter voltado à Copa do Mundo é uma oportunidade de nós estarmos juntos de novo. Nós precisamos disso - explicou o torcedor Madji Benani, de 55 anos, morador de Fez, uma das maiores cidades do Marrocos.

Os meias Younes Belhanda, de Marrocos, e Andres Iniesta, da Espanha, são atrações da partida Foto: Fotos de Francisco Leog and Gabriel Bouys / AFP
Os meias Younes Belhanda, de Marrocos, e Andres Iniesta, da Espanha, são atrações da partida Foto: Fotos de Francisco Leog and Gabriel Bouys / AFP

Mohammed El Haddadi foi um dos que tentou a sorte, a bordo de um barquinho de pescador, na travessia marítima entre Marrocos e Espanha, nos anos 80. Estabeleceu-se como chef de cozinha em Madri e deu vida a Munir El Haddadi, hoje com 22 anos, atacante que despontou nesta década como revelação do Barcelona. Munir, como é conhecido, fez um pedido formal à Fifa para que pudesse jogar por Marrocos nesta Copa do Mundo - desejo compartilhado pela federação de futebol marroquina, que via no atacante, atualmente emprestado ao Alavés, um trunfo para a seleção. O pedido foi negado porque Munir jogou pela Espanha em 2014: passou 13 minutos em campo contra a Macedônia, nas eliminatórias da Eurocopa, chamado de última hora para a vaga do lesionado Diego Costa.

Sergipano, Costa chegou a jogar pela seleção brasileira antes de trocar para a Espanha. Foi liberado porque se tratou de um amistoso, não um jogo oficial de competição. Nesta segunda-feira, Diego Costa estará em campo pela Espanha, e Munir verá pela televisão em Marrakesh, cidade marroquina onde passa as férias. Vicente Del Bosque, técnico da seleção espanhola há quatro anos, disse recentemente que se sentiu “culpado” por Munir não poder representar seu país na Copa.

VEJA AINDA: Transiberiana: Língua de rena é iguaria em Tyumen, na Sibéria

Os marroquinos não transparecem, no entanto, qualquer irritação com a Espanha. Yousseff Slimani, morador de Tânger - cidade ao norte do Marrocos, numa zona que foi já possessão espanhola -, carregava uma bandeira do time da cidade, atual campeão nacional, antes da partida contra Portugal em Moscou. As músicas de torcida do clube, segundo Slimani, têm forte inspiração nas de equipes espanholas. Apesar do sucesso recente do clube local, Slimani assegurou que metade da cidade torce para o Barcelona. E a outra metade?

- O restante é do Real Madrid. E tem uns 20% do Atlético de Madrid - ponderou.

El Kajoui, goleiro titular da seleção, foi outro a mostrar que os laços - ao menos esportivos - vão bem, obrigado. O camisa 12 marroquino nasceu em Melilla, um dos enclaves espanhóis, e fez carreira na Espanha. Atualmente defende o Numancia, da segunda divisão. Na entrevista coletiva deste domingo, respondeu a todas as perguntas em espanhol e confessou sua admiração por De Gea, goleiro titular da Espanha. No fim, questionado se torceria por alguém na sequência da Copa, depois de voltar para casa, falou como quem dá uma resposta óbvia.

- Não tenho nenhuma favorita. Mas desejarei o melhor para a Espanha depois da partida de segunda-feira. Por que não?