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Meu jogo inesquecível: Rússia x Espanha, a incrível oitavas de final da Copa de 2018

Melhor coisa da Rússia é o russo, e não foram poucas as vezes em que me senti quase entre brasileiros no meio daquele povo
Rússia x Espanha: Zobnin é marcado por Piqué, Sergio Ramos e Isco Foto: KIRILL KUDRYAVTSEV / AFP
Rússia x Espanha: Zobnin é marcado por Piqué, Sergio Ramos e Isco Foto: KIRILL KUDRYAVTSEV / AFP

Meu jogo inesquecível não poderia estar em outro lugar senão na Copa do Mundo de 2018. Minha primeira como jornalista, aos 23 anos na época. E antecedida, no meu caso, por quase um semestre vivendo na Rússia, o país-sede do Mundial, e que eu conhecia razoavelmente nos livros de história, pouco na cultura e nada no idioma.

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Quando começou o torneio, depois de quatro meses e dezenas de reportagens no país, me sentia já tendo vencido as eliminatórias, avançado com alguns tropeços pela fase de grupos e vivido quase todo o drama do mata-mata. Nada mais me surpreende, pensava. Até que chegou o dia de Rússia x Espanha, com empate, decisão por pênaltis e delírio nacional.

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A melhor coisa da Rússia é o russo, e não foram poucas as vezes em que me senti quase entre brasileiros no meio daquele povo que não dispensa um gracejo, uma boa conversa e um prato (ou copo) cheio, de preferência tudo ao mesmo tempo. A principal barreira entre nós, por incrível que pareça, não era o idioma, mas sim meu otimismo.

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Na posição de hóspede encantado, era natural minha torcida pelo time da casa. A qualquer um que me desse dois dedos de prosa em algum idioma intermediário entre português e russo, eu dizia com todas as letras e palavras que soubesse na respectiva língua: “A final da Copa será entre Brasil e Rússia!”. Quase sempre a reação era um misto de incredulidade e perturbação, como se achassem que eu estava tentando contar uma piada que não tinha a menor graça. A resposta que mais ouvi foi: “O Brasil, talvez. A Rússia, impossível”. Não lembro de ninguém que tenha concordado comigo.

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Para ser sincero, eu também resistia a acreditar em mim mesmo. Além de nunca ter passado da fase de grupos de uma Copa, a seleção russa conseguiu a proeza de perder quase todos os seus jogos pré-Mundial. Assisti a dois deles no estádio: uma derrota por 3 a 0 para o Brasil, em março, e um empate por 1 a 1 com a Turquia, em Moscou, nove dias antes da estreia na Copa. A torcida russa, jamais calorosa. O técnico Stanislav Cherchesov, sempre tido como aberração quando fazia seus prognósticos positivos. Numa entrevista, ao comentar que chegaria a dois anos no comando da seleção russa em agosto, isto é, um mês depois da Copa do Mundo, um repórter se irritou: “Isso se você ainda for o treinador até lá”.

Desolado, Inieste lamenta a eliminaçao espanhola Foto: Carl Recine / Reuters
Desolado, Inieste lamenta a eliminaçao espanhola Foto: Carl Recine / Reuters

Tudo isso expliquei para que entendam por que, quando a Espanha abriu 1 a 0 no início do primeiro tempo nas oitavas de final - um tosco gol contra de Ignashevich, mais preocupado em agarrar Sergio Ramos do que em olhar a bola -, aquele parecia ser um fim de festa apropriado para uma campanha que já excedia as expectativas. Eu tinha visto, no mesmíssmo estádio Lujniki, os russos golearem a Arábia Saudita por 5 a 0 na estreia. Depois veio uma boa vitória sobre o Egito e uma derrota comum para o Uruguai. Ser eliminado perdendo de pouco para os espanhóis, ainda mais no mata-mata, era um desfecho esperado e até digno.

Assim como um torcedor sabe que seu time não precisa jogar bem para que ele saia feliz - a vitória basta -, ao jornalista, mais que uma partida boa, interessa uma história boa.

Soube depois, por relatos confiáveis, que aquele Rússia x Espanha foi um jogo feio. Nada que tenha apagado minha impressão de que o gol de empate, por exemplo, foi um dos mais belos que já vi em Copas. Nasceu de um pênalti infantil de Piqué, convertido pelo centroavante grandalhão Dzyuba. Motivo de chacota antes da Copa e craque improvável durante o torneio. Uma perfeita representação do que era aquela seleção russa.

A cada ataque frustrado da Espanha, a cada minuto em que o empate por 1 a 1 se prolongava, o que poderia ser uma partida insossa ganhava contornos, para mim e para tantos outros, de uma revolução a caminho. O estádio vibrou quando acabou o tempo normal e vibrou mais ainda ao fim da prorrogação. Vieram os pênaltis. Na terra de Lev Yashin, o goleiro Akinfeev pegou duas cobranças, as de Koke e Iago Aspas.

Igor Akinfeev defende com o pé a cobrança do espanhol Iago Aspas Foto: Grigory Dukor / Reuters
Igor Akinfeev defende com o pé a cobrança do espanhol Iago Aspas Foto: Grigory Dukor / Reuters

O inimaginável, esse fenômeno que tanto buscamos no esporte, havia acontecido para a Rússia em proporções inéditas com a classificação para as quartas de final (fase em que seriam eliminados pela Croácia, vice-campeã). Meu editor e companheiro de GLOBO Thales Machado, sentado ao meu lado na tribuna de imprensa do estádio, teve o notebook banhado pela cerveja atirada por um torcedor eufórico - ambos passam bem, Thales e o notebook, e espero que o torcedor também. Meu colega Fábio Aleixo, o mais russo do reportariado brasileiro, com meses de vivência na Rússia enquanto trabalhava para o jornal “Folha de S. Paulo”, recebeu a camisa do jogo como um presente inusitado das mãos de Mario Fernandes, lateral-direito brasileiro naturalizado e um dos craques da seleção russa.

Horas depois do jogo, ao ver que eu estava muito atrasado para um voo que partiria em 1 hora, um taxista tomou quase como ato patriótico a missão de me deixar no aeroporto a tempo - conseguiu, não sem me dar alguns cabelos brancos a cada barbeiragem no trânsito caótico de um país em êxtase. Não me incomodei. Depois daquele jogo, certo era tudo aquilo que não estava em seu devido lugar.