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Achados desafiam conhecimento sobre povoamento das Américas

Ferramentas nas cavernas da Serra da Capivara indicam que chegada do homem ocorreu há 22 mil anos, 9 mil anos antes do que se pensava

Pinturas rupestres no Parque Nacional da Serra da Capivara dão pistas sobre a chegada do homem nas Américas
Foto: Marizilda Cruppe
Pinturas rupestres no Parque Nacional da Serra da Capivara dão pistas sobre a chegada do homem nas Américas Foto: Marizilda Cruppe

PIAUÍ - A antiga arte nas pedras, um dos maiores atrativos do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, retrata situações como batalhas entre tribos, caçadas e festas. Mas a região, com suas cavernas cheias de pinturas rupestres datadas de mais de 9 mil anos, tem muito mais a revelar do que o modo de vida dos homens pré-históricos no Nordeste. Descobertas recentes ali questionam boa parte do que sabemos sobre o início do povoamento das Américas.

Ferramentas de pedra encontradas em escavações no local são o novo elemento de uma série de evidências que estão sacudindo o conhecimento da História. Os objetos são datados de 22 mil anos, ou seja, 9 mil anos antes do que aponta o modelo de Clóvis, baseado na teoria de que os primeiros homens chegaram ao continente vindos da Ásia.

- Se eles estiverem certos, e há uma grande possibilidade de que estejam, vai mudar tudo o que sabemos sobre o povoamento das Américas - disse Walter Neves, antropólogo especializado em evolução da Universidade de São Paulo (USP), ao “New York Times”.

Neves foi o responsável pela análise de crânios encontrados no Brasil que datam de 11 mil anos. Segundo ele, os antigos americanos se assemelhavam mais com indígenas australianos do que com os asiáticos, o que já poderia ser usado como evidência para questionar o modelo de Clóvis.

Sua pesquisa não é a única a por o conhecimento sobre o povoamento da América à prova. De Norte a Sul do continente, cientistas apontam que a chegada do homem por aqui é bem mais complexa do que se pensava.

Descobertas e suas marcas na história

A datação por radiocarbono de pontas de lança encontradas na década de 1920 perto de Clóvis, no Novo México, sugeriu a chegada de grandes caçadores pelo Estreito de Bering, há cerca de 13 mil anos, dando a base para a teoria existente até o momento.

Mais recentemente, inúmeros achados têm desafiado essa narrativa. Em 2011, arqueólogos encontraram no Texas pontos de projéteis que mostravam que os caçadores haviam chegada à região conhecida como Buttermilk Creek há 15.500 anos. Também nos Estados Unidos, a análise do DNA de humanos encontrados em uma caverna de Oregon mostrou que eles haviam vivido no local 14 mil anos atrás.

No Uruguai, paleontólogos publicaram resultados de estudos em novembro de 2013, sugerindo que os seres humanos caçavam preguiças gigantes há cerca de 30 mil anos. Tom D. Dillehay, antropólogo da Universidade de Vanderbilt, nos EUA, sustenta em pesquisa que homens viviam num local que hoje é conhecido como o sítio arqueológico de Monte Verde, no Sul do Chile, há 14.800 anos.

- O paradigma de Clóvis finalmente está sendo enterrado - afirmou Eric Boeda, arqueólogo francês que conduz as escavações na Serra da Capivara.

As descobertas, no entanto, são questionadas pelo defensores da antiga teoria. Gary Haynes, arqueólogo da Universidade de Nevada, em Reno, argumenta que as pedras encontradas podem ter sido formadas naturalmente, por avalanches, por exemplo. Já Stuart Fiedel, arqueólogo do Louis Berger Group, uma empresa de consultoria ambiental, sustenta que os macacos poderiam ter feito as ferramentas, ao invés de seres humanos.

- Macacos, incluindo grandes formas extintas, habitam a América do Sul há 35 milhões de anos - disse Fiedel, acrescentando que o modelo de Clóvis foi recentemente reforçado por nova análise de DNA que liga ancestralmente povos indígenas na América Central e do Sul com um menino de Clóvis, cujos restos, encontrados em 1968 em Montana, datam de 12.700 anos.

O tema é polêmico. Dillehay respondeu que “dizer que macacos produziram as ferramentas é estúpido”. Mas o questionamento sobre descobertas é normal na arqueologia. A brasileira Niède Guidon, um dos nomes mais respeitados da arqueologia do Brasil e uma das pioneiras nas escavações da Serra da Capivara, afirma há mais de duas décadas ter encontrado evidências na forma de carvão vegetal, a partir de fogos de lareira, de que os seres humanos teriam vivido aqui há cerca de 48 mil anos.

Uma das responsáveis pela preservação dos sítios arqueológicos perto da cidade de São Raimundo Nonato, em um parque que hoje recebe milhares de visitantes por ano, Niède ainda encontra resistência para suas descobertas. Ela acredita que os seres humanos tenham chegado às Américas ainda mais cedo, cerca de 100 mil anos atrás, e podem não ter vindo por terra da Ásia, mas de barco da África.

Ao mesmo tempo, descobertas em outros lugares do Brasil estão aumentando o mistério de como as Américas foram povoadas. No ano passado, geneticistas moleculares mostraram que os povos indígenas Botocudos, que vivem na região Sudeste, compartilham sequências de DNA encontradas entre habitantes das ilhas da Polinésia.

Outra teoria, de Michael R. Waters, um geoarquelogista da Universidade A&M, no Texas, sugere que os humanos chegaram ao continente em uma migração única, há 15 mil anos, e que essa poderia ser a origem do povo de Clóvis. Mas até mesmo Waters tem dúvidas sobre o povoamento das Américas diante dos resultados obtidos na Serra da Canastra.

- Se assim for, então quem morava lá nunca passou seu material genético para as populações que vivem nas Américas - ressaltou Waters, explicando que a história genética dos povos indígenas os une ao menino de Clóvis encontrado em Montana. - Nós temos que pensar muito sobre essas primeiras regiões e como eles se encaixam no quadro do povoamento das Américas.