Academia.eduAcademia.edu
Iconografia musical na América Latina: discursos e narrativas entre olhares e escutas Iconografía musical en América Latina: discursos y narrativas entre miradas y escuchas UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitor: João Carlos Salles Pires da Silva Vice-reitor: Paulo Cesar Miguez de Oliveira Assessor do Reitor: Paulo Costa Lima Diretor: José Maurício Vale Brandão PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA Coordenadora: Flávia Candusso ACERVO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA MUSICAL (ADoHM / SIBI-UFBA) Coordenação musicológica: Pablo Sotuyo Blanco APOIO EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Diretora: Flávia Goulart Mota Garcia Rosa Conselho editorial Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Ninõ El-Hani Cleise Furtado Mendes Evelina de Carvalho Sá Hoisel Maria do Carmo Soares de Freitas Maria Vidal de Negreiros Camargo Pablo Sotuyo Blanco (Organizador) Iconografia musical na América Latina: discursos e narrativas entre olhares e escutas Iconografía musical en América Latina: discursos y narrativas entre miradas y escuchas Salvador EDUFBA 2019 2019, autores. Direitos para esta edição cedidos à Edufba. Feito o depósito legal. Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Projeto gráfico: Edson Nascimento Sales Editoração e arte final: Josias Almeida Jr. Revisão: Mariana Rios de Amaral Oliveira e Cristóvão Mascarenhas Normalização: Sandra Batista SIBI/UFBA - Biblioteca Reitor Macêdo Costa I17 Iconografia musical na América Latina [recurso eletrônico] : discursos e narrativas entre olhares e escutas = Iconografia musical em América Latina: discursos y narrativas entre miradas y escuchas / Pablo Sotuyo Blanco, organizador. Salvador: EDUFBA, 2019. 508 p. Textos em português, espanhol e inglês. Modo de acesso: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/31038 ISBN 978-85-232-1966-6 1. Música – América Latina - História. 2. Iconografia – Música. I. Sotuyo Blanco, Pablo. (org.) II. Título: Iconografia musical em América Latina: discursos y narrativas entre miradas y escuchas. CDU – 78.04 Elaborada por Geovana Soares Lira CRB-5: BA-001975/O Editora filiada à Editora da UFBA Rua Barão de Jeremoabo s/n – Campus de Ondina 40170-115 – Salvador – Bahia Tel.: +55 71 3283-6164 Fax: +55 71 3283-6160 www.edufba.ufba.br edufba@ufba.br Sumário 9 Apresentação 11 “Las cuatro partes del mundo” Canto y baile en Palmas del Socorro (Santander, noreste de Colombia) CA. 1810-1820 Egberto Bermúdez 73 Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile Juan Pablo González 95 Música, humor e iconografía musical Los programas de mano del grupo argentino Les Luthiers (1967-2018) Juliana Guerrero 125 Aproximación a contextos marginales del rock en el estado de México a través de su iconografía musical en el paisaje urbano Alfredo Nieves Molina 139 El personaje del Pilatos en el ritual dancísticomusical del Palo Volador Eco de la representación iconográfica de la población afromestiza en México Erika Salas Cassy 153 Os acervos fotográficos dos arquivos nacionais dos países de língua portuguesa Usos e usuários Marcelo Nogueira de Siqueira 169 O dueto angélico da catedral e a passagem da Belle Époque em Aracaju (SE) Thais Fernanda Vicente Rabelo Maciel 189 O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura do teto da sacristia da antiga Sé Primacial do Brasil Belinda Maria de Almeida Neves 227 A trajetória do tenor Giovanni Badaracco através da crítica e da iconografia musical entre 1899 e 1901 Luciane Viana Barros Páscoa 257 O músico vestido de preto Representações e interpretações possíveis na obra de Anton Domenico Gabbiani (1652-1726) sobre os músicos do grand príncipe Ferdinando da Toscana Márcio Páscoa 293 Using our own voices, telling our own herstories Reflections about sound creation based on voice and technology Isabel Nogueira 311 Iconografia musical oculta Estudo de caso em marcas d’água Pablo Sotuyo Blanco 353 Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille SaintSaens e Jean-Henry Ravina reunidos em um leque de autógrafos Mary Angela Biason 377 A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista Representações de uma sociedade em transição Diósnio Machado Neto 407 O Sicim Uma aplicação tecnológica para uma melhor classificação organológica Pedro Ivo Araújo 431 O violão em fontes iconográficas Uma narrativa sobre as suas representações no espaço brasileiro Beatriz Magalhães-Castro 491 Sobre os autores / Sobre los autores Apresentação Dando continuidade aos esforços iniciados pelo Projeto Nacional de Indexação, Catalogação, Pesquisa e Divulgação do Patrimônio Iconográfico Musical no Brasil (RIdIM-Brasil) em 2015, quando da organização e lançamento dos Estudos luso-brasileiros em iconografia musical, o presente volume – que intitulamos Iconografia musical na América Latina: discursos e narrativas entre olhares e escutas/Iconografía musical en América Latina: discursos y narrativas entre miradas y escuchas – procura continuar fortalecendo a visão do RIdIM-Brasil em termos de promoção da pesquisa em iconografia musical, desta vez no continente latino-americano. Nesse sentido, este livro – com caráter fundamentalmente bilíngue, majoritariamente em castelhano e português – reúne 16 trabalhos oriundos dos cinco países mais representativos no que diz respeito à produção técnica e científica em torno da iconografia musical, os quais, de norte a sul, constituem quase 70% do território da América Latina: México, Colômbia, Brasil, Chile e Argentina. De forma semelhantemente à feita na publicação anterior, o RIdIM-Brasil convidou autores de países que, por compartilhar da mesma área geográfica com fortes raízes culturais comuns, expõem diversos aspectos da produção iconográfica musical que permitirão ao leitor ter uma visão da complexidade e riqueza da nossa cultura visual e musical, cuja abrangência e alcance não se limitam ao território implicitamente compreendido pela origem dos autores ou das fontes visuais estudadas. Seus textos discutem interessantes aspectos relativos à cultura visual e musical documentada na região, sem por isso ficarem a ela circunscritos e limitados. Tanto do ponto de 9 vista temático quanto epistemológico, hermenêutico, metodológico e, inclusive, técnico e documental, as narrativas e escutas ultrapassam as fronteiras imanentes, estabelecendo por vezes conexões de alcance nacionais, continentais e até intercontinentais – como no caso da iconografia no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). A rica diversidade temática abrange práticas culturais musicais tanto urbanas quanto rurais, do passado e do presente, representadas ou documentadas em fontes visuais de inestimável valor científico e patrimonial. Itens iconográficos das mais diversas naturezas – pinturas, gravuras, impressos, fotografias, audiovisuais, moedas, esculturas, leques e marcas d’água –, cobrindo um extenso lapso de tempo que, nesta ocasião, abarca mais de 2 mil anos – notadamente entre o século I a.C. e o presente –, são fontes de informação importantíssimas, merecedoras de valiosas considerações, incluindo tanto o seu conteúdo informacional, seu valor documental de práticas musicais e sua significação cultural quanto de outros aspectos decorrentes e correlatos, como, por exemplo, as suas taxonomias, tipologias, técnicas, suportes e processos. Além de um agrupamento tácito por países, pareceu-nos desnecessário tentar organizar a sequência de ensaios por possíveis temas ou subtemas. O seu conjunto apresenta um amplo, notável e rico panorama da produção científica e técnica desses dignos representantes da pesquisa em iconografia musical na América Latina e seu desenvolvimento, incluindo as jovens autoras galardonadas com os Prêmios RIdIM-Brasil das edições 2015 e 2017, junto ao merecedor do Prêmio Mercedes Reis Pequeno 2017, assim evidenciando não apenas o alcance nacional do projeto RIdIM-Brasil, como também o seu crescente prestígio e reconhecimento regionais, continentais e internacionais. Destarte, caro leitor, acreditamos sinceramente estar lhe oferecendo um livro que, esperamos, estimule o seu interesse não apenas pelo patrimônio iconográfico musical aqui discutido, via narrativas que expõem a sua riqueza, diversidade, valor e significação patrimonial e cultural, mas também pela preservação, conservação, estudo e divulgação do restante da nossa riqueza cultural, musical e iconográfica, que também merece ser devidamente escutada e narrada. Por tudo isso, caro leitor, lhe desejamos uma ótima escuta dessas narrativas visuais! Pablo Sotuyo Blanco Presidente do RIdIM-Brasil 10 Iconografia musical na América Latina “Las cuatro partes del mundo” Canto y baile en Palmas del Socorro (Santander, noreste de Colombia) CA. 1810-1820 Egberto Bermúdez 1 Introducción A lo largo del año 2014 una modesta edificación de la pequeña localidad de Palmas del Socorro – Departamento de Santander, alrededor de 300 km al noreste de Bogotá – cedió ante las inclemencias del tiempo y quedó en estado de ruina casi total. Cuatro años después colapsó la única pared que restaba en pie. Varias de las paredes internas de los tres recintos de dicha casa (Imágenes 1 a 3) contenían importantes muestras de pintura mural de comienzos del siglo XIX que solo se documentaron fotográficamente en forma parcial en septiembre de 2012.1 En 1 Agradezco a los profesores de la Maestría en Conservación del Patrimonio Cultural Inmueble de la Facultad de Artes de la Universidad Nacional de Colombia, Juanita Barbosa, María del Pilar López, German Téllez, y María Claudia Romero (1957-2015), por su valiosa información y por poner a mi disposición las fotografías por ellos obtenidas durante su visita a Palmas del Socorro el 17 de septiembre de 2012. Las fotografías e información 11 noviembre de 2014, se habían recobrado entre los escombros muy pocas muestras de las superficies pintadas (Imagen 4), las que afortunadamente proporcionaron importante información adicional para este estudio.2 Partiendo de las fotografías realizadas en 2012, este trabajo tiene como objeto describir y analizar las pinturas murales hoy desaparecidas; identifica y describe el programa iconográfico al que pertenecían y estudia su difusión desde Europa a América y en particular a la actual Colombia. Por último, con base en esta información y a la luz de documentos históricos relacionados con la región, propone una identificación de la función histórica de dicha casa en la cultura local. Imagen 1 – Palmas del Socorro, Santander, casa aun en pie, septiembre de 2012 Fuente: fotografía de Germán Téllez, Maestría en Conservación del Patrimonio Material Inmueble (MCPMI), Universidad Nacional de Colombia. adicionales son producto de mis viajes a Palmas del Socorro en noviembre de 2014 y octubre de 2018. Agradezco a Fernando Vargas, Juan Luis Restrepo y Ernesto Bautista por su colaboración en estos viajes. 2 Dichas muestras se encuentran en poder del propietario de la casa Hernando Alirio Cadena Gómez funcionario del Ministerio de Educación Nacional a quien también agradezco su valiosa colaboración. 12 Iconografia musical na América Latina Imagen 2 – Estado de la casa en noviembre de 2014 Fuente: fotografía de Egberto Bermúdez. “Las cuatro partes del mundo” 13 Imagen 3 – Estado del predio, noviembre de 2018 Fuente: fotografía de Egberto Bermúdez. Imagen 4 – Fragmento de las pinturas recuperado en los escombros, noviembre de 2018 Fuente: colección Alirio Hernando Cadena, fotografía E. Bermúdez. 14 Iconografia musical na América Latina El actual municipio de Palmas del Socorro está situado aproximadamente a 10 km al suroeste de El Socorro, parroquia fundada en 1681-1683 por los pobladores de ese valle y que obtuvo el titulo de “villa” en 1771. En marzo de 1781, El Socorro fue el epicentro de la protesta contra el pago del impuesto de la llamada Armada o Armadilla de Barlovento que muy pronto se convertiría en una insurrección generalizada llamada del “Común” o de los “Comuneros”.3 El establecimiento de Palmas del Socorro es más tardío pues solo en 1799 los vecinos de El Socorro plantean la fundación de una nueva parroquia en aquel lugar. La iglesia, dedicada a la Inmaculada Concepción, San Joaquín y Santa Ana se comenzó a construir alrededor de 1809 y en su fachada tiene una placa de piedra con la inscripción “Año de 1820” que muy probablemente se refiera a la fecha de finalización (Imagen 5).4 Imagen 5 – Palmas del Socorro, detalle fachada de la iglesia de la Inmaculada Concepción Fuente: fotografía de German Téllez, septiembre 17 de 2012. La fundación de Las Palmas está relacionada con otro hecho de mayor importancia para la región, la designación de El Socorro como cabeza del Corregimiento del mismo nombre por orden virreinal en julio de 1795. Así, se situaba – en cuanto a notoriedad y poder – en una posición intermedia entre Tunja y Pamplona, las dos antiguas ciudades que desde el siglo XVI habían ejercido la primacía en el 3 Sobre la insurrección de 1781, ver Phelan (2011). 4 El Socorro, Archivo Parroquial, Libro 43, microfilmado, Bogotá, Templo de la Iglesia de Jesucristo de los Santos de los Últimos Días, disponible en: https://www.familysearch.org/; Inventario... (2013, p. [12-13]). “Las cuatro partes del mundo” 15 territorio del oriente de la actual Colombia, desde Santafé hasta los limites con Venezuela y el Caribe.5 (EZPELETA, 1989, t. II, p. 198) Así como los tumultos anteriores a la revuelta de 1781 habían comenzado en esa misma región a causa del aumento en el pago de los impuestos de tabaco y aguardiente, también en 1809 algunos líderes de la villa que residían en Bogotá promovieron una nueva revuelta contra el gobierno virreinal incluyendo a otros que vivían exilados desde 1781 en el territorio de Casanare, al oriente de Tunja. A pesar de que fueron vencidos en enero de 1810, lograron que sus ideas propiciaran que el cabildo de El Socorro declarara diez días antes que él de Santafé – el 10 de julio de 1810 – su propia junta de gobierno desconociendo el gobierno virreinal, promulgara su propia constitución en agosto siguiente y enviara una misión ante la Junta de Gobierno de Caracas en noviembre de ese mismo año. La resistencia de la villa a la “pacificación” del Ejercito Expedicionario de Pablo Morillo (1775-1837) también adquirió niveles notables entre 18161819 especialmente con la condena y ejecución de la líder local Antonia Santos Plata (1782-1819) perteneciente al clan familiar más adinerado de la región. (PHELAN, 2011, p. 59; RODRÍGUEZ GÓMEZ, 2011) Desde mediados del siglo XVIII, esta región fue una importante productora de tejidos de algodón. En 1809, en una de las instrucciones del Cabildo a los emisarios enviados a la Junta de Gobierno en España se reconoce que la industria local consistía en “tejidos bastos de algodón de que viste casi toda la gente pobre de la mayor parte del virreinato”. Esta situación se mantenía aún en 1823 cuando el explorador y diplomático Gaspard Theodore Mollien (1796-1872) visitó la villa y anotó que los artesanos locales, las hilanderas en especial, ganaban muy poco y tenían que competir con tejidos industriales importados de Inglaterra (Manchester), indicando además que los comerciantes se enriquecían con el intercambio de los tejidos locales por oro, cacao, tabaco, sal y otras mercancías de las provincias vecinas. (MOLLIEN, 1825, t.I, p. 129-131; RAYMOND, 2011) Por otra parte, las redes de arrier, tradicionales en la región, la integraban a los circuitos comerciales internos e internacionales.6 (LAMO ARENAS, 1960) Este escenario, con el telón de fondo de la cuarta guerra anglo-española del siglo XVIII (1779-1783), terminó afectando en forma muy significativa la industria local. 5 El nuevo corregimiento fue desmembrado del Corregimiento de Tunja. 6 Para el desarrollo de este sistema en la segunda parte del siglo XIX, ver Carreño Tarazona (2010). 16 Iconografia musical na América Latina Manuel Ancízar (1812-1882), en su descripción de los territorios recorridos en 1850 por la Comisión Corográfica de la cual era secretario, reporta las funestas consecuencias sociales que había traído el decaimiento de la industria local de tejidos ante la presencia de lienzos importados y su gran impacto en las actividades de la población femenina de las clases bajas del cantón de El Socorro. Según él, estas mujeres se habían visto forzadas al desempleo, las uniones ilícitas, la emigración y lo que en general llama “desordenes” y “relajación de costumbres”.7 (ANCÍZAR, 1853, p. 133-135) Para mitigar esta situación, Ancízar (1853, p. 134-135) propone seguir el ejemplo de los cantones vecinos, especialmente Barichara, Zapatoca y la Provincia de Soto donde se habían fundado establecimientos para las jóvenes, orientados a fomentar nuevas industrias como el tejido de sombreros en palma de nacuma – Carludovica palmata. En efecto, una de las acuarelas que el pintor venezolano Carmelo Fernández (1809-1887) realizó para la misma Comisión Corográfica muestra dichos sombreros en Bucaramanga – la vecina Provincia de Soto – a la vez que ilustra los tipos raciales de la región que evidenciaban la mezcla de indígenas, españoles y africanos (Imagen 6).8 (CODAZZI, 2004, p. 266) La configuración racial de esta zona tenía ya un perfil definido para 1779. De una población total de 35.117 individuos, el 47% estaba constituido por los libres y esclavos “de todos los colores”, es decir la población mezclada racialmente. Los que se reconocían como blancos constituían la mitad de la población (50,4%) y los indígenas solo el 0,5% del total. Los pocos eclesiásticos residentes en la villa (20 en total) constituían el resto de la población. En 1825, la población total del cantón era menor que la de medio siglo atrás, 32.594 7 Ancízar (1853, p. 133), como era costumbre en aquel momento, no menciona con nombres propios las uniones extramatrimoniales o la prostitución, sino que se refiere a ellas a través de alusiones como la “relajación de costumbres” que atribuye en parte a la presencia continua de soldados profesionales o el proceso de deterioro social que seguía al desempleo cuando – escribe Ancízar – debido a la falta de educación hacen que estas mujeres “sin estímulo y consejo para el bien, se entreguen a los desordenes, por cuya escala descienden rápidamente hasta parar en una muerte prematura”. (ANCÍZAR, 1853, p. 134) Ancízar (1853, p. 134) indica además que “por decenas” fueron sometidas a persecución policial y al destierro en zonas insalubres. Sobre la Comisión Corográfica, ver Sánchez (1999). 8 Esta edición incluye un breve texto introductorio, el texto de Ancízar arriba citado, las reproducciones de las acuarelas que se encuentran en la Biblioteca Nacional de Colombia, y la información y los mapas – reproducidos como anexos de mediana definición fotográfica – que se encuentran en el Archivo General de la Nación de Colombia (AGNC). “Las cuatro partes del mundo” 17 individuos. El numero de eclesiásticos era el mismo pero los esclavos habían disminuido notablemente y representaban solo el 0,01% de la población, lo que implicaba una menor diferenciación racial y un crecimiento real de la población proveniente de la mezcla racial. Además, se trataba de la provincia más poblada del virreinato y sólo la villa de El Socorro, por ejemplo, tenía una población de 15 mil habitantes, equiparable a las de Santafé (16 mil), Cartagena (14 mil-16 mil) o Popayán (14 mil), las ciudades más antiguas e importantes del virreinato. (MCFARLANE, 1993, p. 31-70; TOVAR PINZÓN; TOVAR MORA; TOVAR MORA, 1994, p. 375-377, p. 386-392) Imagen 6 – Carmelo Fernández, Bogotá, Biblioteca Nacional de Colombia. Fondo Antiguo, Lámina No. 137. Soto. “Tejedoras y mercaderas de sombreros nacuma en Bucaramanga. Tipos blanco, mestizo y zambo” Fuente: Biblioteca Nacional de Colombia, Bogotá. 18 Iconografia musical na América Latina 2 La casa El predio donde solía estar la edificación está situado en la calle que lleva de la iglesia a la salida del pueblo, en la esquina de intersección con su última calle.9 La situación apartada de la casa se explica por su condición de venta o sitio de pasaje, alojamiento y diversión para comerciantes, arrieros, locales y pasantes, que, como veremos a continuación, el testimonio de Ancízar y testimonios actuales nos permiten confirmar. En su narración sobre la llegada de la Comisión a la villa de El Socorro, viniendo desde Tunja a través de Moniquirá y Oiba, Ancízar afirma que se detuvieron en la venta o posada de Aguabuena a dos leguas y media – alrededor de 13 km – de su destino. Además, explica que había tres caminos para llegar desde Oiba a El Socorro, uno al oeste pasando por Chima, uno al este, pasando por Confines y uno intermedio, directo al norte, que describe como el más corto, que fue el que tomaron y que pasa directamente por Palmas del Socorro.10 (ANCÍZAR, 1853, p. 126-127) Sin embargo, un dato adicional de la mencionada descripción parece indicar que la venta que visitaron fue otra, diferente a la de Las Palmas. En uno de los itinerarios entre Oiba y El Socorro, se indica que se debe pasar primero por el paraje llamado La Pezuña, del que Ancízar explica la tradición sobre su nombre. Allí el camino se divide, y a la derecha conduce a “Simona”, una venta que probablemente se identificaba con el nombre de su propietaria, para de allí continuar hasta El Socorro. De acuerdo con la descripción y el mapa, la distancia entre Oiba y La Pezuña era de 1,5 leguas, desde allí a Simona una distancia semejante y 2,4 leguas adicionales desde Simona hasta El Socorro, para un total de 5 y 1/3 de legua. (ANCÍZAR, 1853, p. 126; CODAZZI, 2004, p. 177) Esto nos llevaría a concluir que la venta de Aguabuena muy probablemente se 9 La dirección del predio era Carrera 5 No. 9-11. Desde comienzos del siglo XX, la gran mayoría de las ciudades de Colombia – que fueron fundadas con el plan ortogonal – abandonaron la nomenclatura colonial que usaba nombres para sus calles y adoptaron la nomenclatura numérica de acuerdo con el sistema implantado en Bogotá a finales del siglo XIX, llamando carreras a las que corren de sur a norte y calles a las que lo hacen de oriente a occidente. Las distancias citadas convierten a kilómetros la legua (aprox. 5 km) y en el caso de las distancias actuales son aquellas de las vías hoy existentes. 10 Ver también Mapa Corográfico de la Provincia del Socorro levantado de orden del gobierno por Agustín Codazzi. 1850 en Codazzi (2004). “Las cuatro partes del mundo” 19 conocía también como Simona y era diferente a aquella de Palmas.11 Por otra parte, entre Guapotá y Palmas había un camino directo que pasa por un puente de piedra de tres arcos sobre la Quebrada Panelas. (INVENTARIO..., 2013, p. 25) Ambas poblaciones aparecen destacadas en un mapa local de 1821 (Imagen 9). (GUZMÁN, 1987) Por otra parte, hoy una vía secundaria, presumiblemente un camino antiguo, une el sitio denominado Aguabuena con Palmas. Al referirse a Aguabuena, Ancízar no menciona la iglesia – lo que contribuye a confirmar que no era la misma venta de Palmas – e indica que la venta recibía su nombre por tener una fuente de agua cercana que la abastecía. Este autor describe la venta como un edificio “modesto y aseado” con un aposento principal y una puerta para el publico y la venta de bebidas, de las cuales menciona chicha – bebida fermentada de maíz – y aguardiente – destilado de caña de azúcar. El publico parece haber estado compuesto de agricultores, arrieros, comerciantes y algunas mujeres que Ancízar llama “atléticas hijas de Eva”. Creemos que en este caso se refiere a algunas empleadas de la venta y a otras mujeres que frecuentaban el lugar y que como ya mencionamos, según Ancízar (1853, p. 134), podían eventualmente “entregarse a [...] desordenes”. Una visión más realista nos permitiría ver en ellas a esposas abandonadas, solteras con hijos, desempleadas y otras mujeres marginalizadas por la sociedad.12 Ancízar describe detalladamente – con humor y minucia – el interior del aposento central o sala, adornado con pinturas murales. Sintetizando, reporta dos figuras femeninas, acompañadas de letreros en verso – coplas octosílabas – que copia en su ortografía original. La primera de ellas llevaba una corona, una tiara en la mano izquierda y un cetro en la derecha. La leyenda que la explicaba era la siguiente: La quarta parte del mundo Evropa zoy nombrada Tengola tiara i las llaves Yo zoi lamas ilustrada 11 El camino entre Oiba y Palmas existe hoy, pasando por Guapotá. Entrevistas a Álvaro Silva (Palmas del Socorro) y Neul Gómez (Guapotá), Guapotá, 27 de octubre de 2018. 12 Sobre las uniones ilícitas en la Nueva Granada, ver Tovar Pinzón (2012). 20 Iconografia musical na América Latina La segunda figura estaba coronada con plumas, con arco y flechas en una mano y una granada en la otra; se titulaba “AMERICA” y tenía el siguiente letrero explicativo: Quizo mi Dios piadoso Darme su caridad. Soi la América libre Viba la libertad! Entre las dos figuras, había otra, un militar vestido de rojo con una espada en la mano sobre un “cuadrúpedo amarillo, detrás del cual iba una mujer amarilla en un caballo colorado”. Ancízar finaliza indicando que la figura del militar blandía una espada y estaba rodeada de “tal profusión de versos belicosos que no me atreví a copiarlos”. Los colores predominantes de las pinturas eran el ocre y el bermellón, los mismos de las figuras pintadas en el “testero” o parte superior de la pared principal de la sala, esta vez como parte de una alegoría religiosa. Allí se encontraban dos Vírgenes con sus respectivos niños “sacando animas del purgatorio” acompañadas de San José y de dos ángeles que tocaban violín y guitarra rodeados de “una aureola de guacamayas enormes”. Su conclusión es que el “Asia y el África se quedaron en bosquejo” lo que confirma su familiaridad con el programa iconográfico conocido como “las cuatro partes del mundo”. (ANCÍZAR, 1853, p. 129-130) La cantidad de figuras en las pinturas y la riqueza de la descripción contrastan con la simplicidad de la otra venta que Ancízar (1853, p. 8) menciona, la venta Cuatro Esquinas en Torca, a la salida de Bogotá, la cual encuentra extremamente rustica y anota que sus paredes “presentaban la más copiosa colección de letreros que pudiera desearse” los que califica de ejemplos de “retórica de taberna”.13 La descripción de las pinturas en el interior de la venta de Aguabuena revela como dijimos, el programa iconográfico conocido como “Las cuatro partes del mundo” o “los cuatro continentes”. Por otra parte, la alegoría religiosa con la 13 En su narrativa, Ancízar (1853, p. 7) menciona, solo de paso, otra venta cercana llamada Venta del Contento. La venta descrita por Mollien (1825, t. I, p. 121-124) en 1823 en Cerinza (a mitad de camino entre Bogotá y El Socorro, también era pobre, tenía dos casas y cobertizos sin paredes para pernoctar y estaba situada en una zona completamente rural con cultivos para su abastecimiento. “Las cuatro partes del mundo” 21 Virgen y las almas del purgatorio se refiere a Nuestra Señora del Monte Carmelo o Virgen del Carmen, devoción muy extendida en América. 3 Las cuatro partes del mundo en el arte La concepción de este programa alegórico data de mediados del siglo XVI y está inmerso en ideas humanistas y contrarreformistas con raíces antiguas. La segunda edición (1603) de la Iconologia de Cesare Ripa (1560-1622) parece haber sido la primera formulación de estos emblemas y la fuente primaria de dicha tradición iconográfica. Allí encontramos la alegoría de las cuatro partes conocidas del mundo personificadas por mujeres con atributos basados en fuentes de la antigüedad debidamente acreditadas por Ripa. Los aspectos esenciales de la serie son la desnudez y “naturalidad” de África y América, en contraste con las ricas vestiduras y adornos de Europa cristiana y guerrera, y de Asia intelectual y virtuosa. Los atributos principales de cada figura son múltiples: Europa ostenta una corona, un templo y una canasta de frutos y Asia, un incensario y un ramo de flores y hojas aromáticas. Por su parte África está rodeada de animales peligrosos y sostiene en una mano un alacrán (escorpión) y en la otra un cuerno de la abundancia con espigas de cereales que representan su riqueza en estos productos. La última parte del mundo es América, coronada con un tocado de plumas, con arco y flecha en sus manos, aljaba en bandolera y a sus pies un reptil y una cabeza humana atravesada por una flecha, como símbolo – indica Ripa – del “barbarismo de sus habitantes”. 14 (RIPA, 1603, p. 332-339, 1613, p. 63-68) La presencia del alacrán como atributo de África tiene mayor antigüedad. Spicer documenta la presencia de este animal como parte del emblema en el último tercio del siglo XVI (ca. 1574) en los frescos de la Villa Farnese (Sala del Mappamondo) de Caprarola (a 60 km al noreste de Roma) y también en otras obras de Taddeo Zuccaro o Zuccari (1529-1566), uno de los pintores que planeó y ejecutó con sus asistentes la decoración de aquel palacio (Imagen 7).15 (METCALF, 2011; SPICER, 2016) Además, el mismo Ripa nos indica que el 14 En la primera edición no ilustrada no aparece ninguno de los emblemas de las partes del mundo, la “machina del mondo” se describe en forma muy sucinta sin nombrar los continentes. (RIPA, 1593, p. 156) 15 Sobre el programa iconográfico de Villa Farnese, ver Kish (1953). 22 Iconografia musical na América Latina alacrán de África y sus otros atributos derivan de monedas romanas de los gobiernos del cónsul Quinto Cecilio Metello Pio (130/127-64/63 a.C.) y de los emperadores Publius Adrianus Augustus (76-138) y Septimio Severo (145-211). Efectivamente en el anverso de monedas de la época de Adriano, encontramos la mujer reclinada, el alacrán, la cornucopia, el tocado de trompa de elefante y la cesta de frutos.16 Además, las estrechas relaciones de la familia Farnese con España, Francia y en especial con la Compañía de Jesús pueden explicar la rápida diseminación de las alegorías diseñadas para el poderoso cardenal Alessandro Farnese (1520-1589).17 Imagen 7 – Estudio de Taddeo Zuccaro (1529-1566), dibujo. Diseño para zócalo de puerta, Italia, siglo XVI. El alacrán se encuentra a los pies de la figura de la izquierda Fuente: Cambridge (Mass.), Fogg Museum, Harvard Art Museums, No. 1965.434. Este programa iconográfico se comienza a difundir en forma masiva a través de grabados de finales del siglo XVI y comienzos del XVII con sus mejores expresiones 16 Un par de ejemplos de estas monedas se analizan en “Hadrian continues its travels”, CoinTalk, https://www.cointalk.com/threads/hadrian-continues-his-travels.286184/ y “Hadrian-Africa”, Coin Community, en: https://www.coincommunity.com/forum/topic.asp?TOPIC_ID=161091. 17 El cardenal Alessandro Farnese, nieto del cardenal del mismo nombre que se convirtió en el papa Pablo III (1468-1549), fue quien financió la construcción de la Iglesia del Gesù en Roma, donde fue enterrado frente al altar mayor. “Las cuatro partes del mundo” 23 en los de Adriaen Collaert (ca. 1560-1618) y Julius Goltzius (¿-1595), ambos basados en diseños de Maarten de Vos (1532-1603) todos flamencos y residentes en Amberes.18 Goltzius emplea carros triunfales, pero sigue en general los mismos lineamientos iconográficos. Al igual que el mercado de los libros de rezo de Amberes, él de estampas y grabados creció bajo el estímulo de los programas contrarreformistas españoles especialmente liderados por la orden jesuita. Sin embargo, la alegoría de que hablamos también tuvo éxito en ambientes protestantes como demuestra la serie diseñada por Marcus Gheraerts I (ca. 1520-ca. 1590) y grabada por Philips Galle (1537-1612), bien documentada en Holanda e Inglaterra.19 Otros importantes artistas como Crispijn de Passe (ca. 1554-1637),20 quien hizo su aprendizaje en Amberes y trabajó en Holanda y Willem (Guillaume) de Gheyn (1610-¿?) también emplean dicha alegoría en sus trabajos. Una de las características esenciales de la transmisión masiva de dicho programa iconográfico es la presencia de múltiples variantes. Sin embargo, es preciso reconocer otras fuentes en la construcción de estos programas iconográficos alegóricos. Sigaut (2001) ha demostrado como en el caso de la sacristía de la catedral de México, este tipo de publicaciones (estampas grabadas) y los sermones relacionados con quienes comisionaron las obras, configuraron un marco conceptual en él que los pintores realizaron los ciclos iconográficos que la adornan. En la pintura, uno de los primeros ejemplos del programa es un oleo (ca. 1615) de Pieter Paul Rubens (1577-1640) hoy en el Kunsthistorichesmuseum de Viena.21 Allí encontramos personificaciones femeninas de los cuatro continentes acompañadas por personificaciones masculinas – en forma de dioses – de los ríos emblemáticos de cada región. Algunos de los atributos mencionados son visibles en la composición, el color de la piel de África, una medalla o moneda de plata en lo que parece ser la personificación del Rio de la Plata y el remo o timonel que lleva en su mano el dios del rio europeo – el Danubio. Animales sal18 Ver Paper Worlds: Printing Knowledge in Early Modern Europe. II. Thinking Visually, Projects at Harvard, en: http://projects.iq.harvard.edu/files/chsi/files/pw_pt2.pdf?m=1457032531. 19 New York, Metropolitan Museum of Art, Drawings and Prints, The Four Continents, Acc. No. 59.654.52 (Africa), 59.654.53 (Europa), 59.654.54 (Asia) y 59.654.55 (América). 20 Middletown (Conn), Wesleyan University, Davison Art Center, Collection The Four Continents, en: http://dac-collection.wesleyan.edu/Prt172?sid=50226&x=21869829&display=POR. 21 Viena, Kunsthistorischesmusuem, “Die Vier Flüssen des Paradieses” en: https://www.khm.at/ objektdb/detail/1614/. 24 Iconografia musical na América Latina vajes – un cocodrilo y una tigresa con sus crías – caracterizan a África y América. El mismo programa, con los cuatro ríos, sus dioses y sus atributos, es el de las esculturas de Gian Lorenzo Bernini (1598-1580) para la Fontana dei quattro fiume de Piazza Navona, de 1651. Alrededor de 1625 Rubens recibe de parte de la gobernadora de los Países Bajos septentrionales – actual Bélgica –, Isabel Clara Eugenia de Austria (15661633) el encargo de los tapices para el Convento de las Descalzas Reales de Madrid proyecto del que se conservan los tapices y sus modelos pintados y grabados. En uno de ellos, El Triunfo de la Eucaristía, aparece el globo terráqueo debajo de las ruedas del carro de la iglesia triunfante. Aunque aquí no hay personificación de los continentes, este modelo de Rubens y sus variantes serían esenciales en la diseminación del programa icnográfico en América. Otro ejemplo, también con la connotación imperial de dominio territorial ultramarino, está constituido por las pinturas de Charles le Brun (1619-1690) en las esquinas del techo de la Grande escalier de Versailles, demolida en 1752 y que se conservan gracias a los grabados de Etienne Baudet (1636-1711) de gran difusión internacional. En este caso, las diferentes partes del mundo están asociadas con una época del año, Europa con el mes de septiembre, Asia con los de febrero y marzo, América con el de abril y África con los de octubre y noviembre.22 Un programa similar, nunca realizado, fue planeado para los jardines de Versalles en donde – como veremos más adelante – las cuatro partes del mundo se asocian a las horas del día, las cuatro estaciones y los cuatro elementos. En 1674, se comisionaron estos y dos grupos más, alusivos a los cuatro géneros poéticos y los raptos famosos. Solo algunos de estos se conservan hoy en el Parterre d’eau.23 (MORALES FOLGUERA, 2013, p. 405) Tal vez la manifestación más espectacular del programa iconográfico sea es la apoteosis de San Ignacio en su iglesia de Roma, que presenta las cuatro partes del mundo como parte de la obra de ilusión óptica – trompe-l’oeil – de Andrea Pozzo (1642-1709) en la bóveda de la nave de la iglesia realizada entre 1685-1694, donde los atributos siguen los lineamientos ya mencionados. La 22 “Versailles et le visiteurs désenchantés”, Architrave, en: https://architrave.hypotheses.org/904 y Melbourne, National Gallery of Victoria, Collection online en: https://www.ngv.vic.gov.au/explore/ collection /work/38065/. En el Musée du Louvre (Grand Palais) se conservan también dibujos de Le Brun sobre el mismo tema. 23 Ver también Morales Folguera (2003). “Las cuatro partes del mundo” 25 alegoría también fue conocida en Portugal y Brasil y Giovanni Battista Lenardi (1656-1704) la presenta – con variaciones – en un medallón con el retrato del rey Pedro II (1648-1706) escoltado por la fama y a sus pies un globo terráqueo rodeado de las cuatro partes del mundo. (CARNEIRO, 2014, p. 346 y 352) Como se dijo, la alegoría pictórica de las “cuatro partes del mundo” (o los cuatro continentes) tuvo bastante arraigo en América durante el periodo colonial. Tal vez uno de los primeros ejemplos – modelado en los grabados de Goltzius – es el biombo mexicano de alrededor de 1680 perteneciente al Palacio de Guendulain, hoy en el Museo de Navarra (Pamplona). Aquí se trastoca el orden de los continentes, con Asia en primer lugar seguida de Europa, África y en último lugar América, todas en carros triunfales con sus atributos esenciales y con algunas variaciones como el parasol y unas sonajas para África.24 (MORALES FOLGUERA, 2013, p. 408-409) Otro biombo con el tema de Las cuatro partes del mundo (ca. 1700) es el de Juan Correa (1646-1716) que también presenta variantes con respecto al programa original. En esta obra las figuras femeninas que representan los continentes son guiadas o escoltadas por figuras masculinas y acompañadas de niños a manera de familias, con mucha seguridad inspiradas por los grabados de De Gheyn.25 Otro de sus biombos (incompleto), con las alegorías de Las siete artes liberales y Los cuatro elementos también presenta modificaciones con respecto a los programas iconográficos habituales en Europa. Un biombo neogranadino de esta misma época (ca. 1685) contiene figuras derivadas de estampas europeas y aunque no expone un programa iconográfico tan específico como los ya citados, presenta por primera vez escenas tomadas de la cotidianidad – entre ellas una de contenido musical – algo muy valioso en el contexto del arte local. (LÓPEZ PÉREZ, 2015; MARTÍNEZ DEL RIO DE REDO, 1987) De alrededor de 1700 son los lienzos de Leonardo Flores (fl. 1700) en La Paz y Cochabamba y los Juan Ramos (fl. 1700) en las iglesias de Guaqui y Jesús de Machaca en las riberas bolivianas del Lago Titicaca. (GISBERT, 1987; PASCUAL CHENEL, 2013) En general están basados en los ya citados trabajos de Rubens 24 Ver también Artres, Biombo del Palacio de Guendulain, Museo de Navarra, en: https://www. artres.es/dt_gallery/biombo-del-palacio-de-guendulain/. 25 Ciudad de México, Museo Soumaya, No. 1044C. Ver Curiel (2002, 2009) y Navarrete Prieto (2002, p. 40-41). 26 Iconografia musical na América Latina y aquel ubicado en Guaqui, representa El Triunfo de la Eucaristía con un carro entre cuyas ruedas se encuentra un globo terráqueo y las cuatro partes del mundo personificadas por figuras masculinas con sus atributos básicos, África negra y América ambas con diferentes coronas de plumas, Europa con corona real y Asia con un tocado otomano.26 El lienzo de Flores de la Iglesia de San Francisco de La Paz es semejante, aunque las cuatro partes del mundo están de pie enredadas entre las ruedas del carro y ostentan los títulos de sus continentes en escudos ovalados. Semejante es el de la Iglesia de San Francisco de Cochabamba, aunque aquí, el espacio es mayor y las figuras, con sus escudos, marchan al pie de las ruedas.27 Algo muy similar se presenta en aquel de Juan Ramos sobre el Triunfo de la Inmaculada, en el presbiterio de la iglesia de Jesús de Machaca, donde también las cuatro partes del mundo se encuentran entre las ruedas del carro triunfal.28 En el otro lienzo de la misma iglesia, El Triunfo de la Eucaristía (1703) de la misma iglesia se glorifica a la orden jesuita y sus principales figuras y entre las ruedas del carro son reconocibles solamente Europa y América, con corona real y corona de plumas respectivamente.29 Contemporáneo y semejante es el lienzo de gran tamaño de Flores en la iglesia de Achocalla, hoy mutilado, que comparte el origen de su programa eucarístico sin incluir las cuatro partes del mundo.30 Correa, Flores y Ramos son contemporáneos del pintor napolitano Luca Giordano (1634-1705) autor de una serie de cuatro cuadros que llevan el mismo nombre y que fueron enviados a Madrid en torno a 1687-1689. Hoy han desaparecido, pero los conocemos a través de copias – una serie en la Sala de Arte Santander de Madrid – en la que se crea una composición propia para cada una de las figuras, donde se mantienen solo algunos de los atributos del programa iconográfico original. Esta serie tuvo gran difusión a través de los 26 Cf. Gisbert (1987, fig. 5) y Pascual Chenel (2013, p. 65, fig. 6). 27 Cf. Pascual Chenel (2013, p. 62, figs. 1 y 2). 28 Cf. Pascual Chenel (2013, p. 65 fig. 5). 29 Cf. Gisbert (1987, fig. 4) y Creisher, Siekmann e Hinderer (2013, fig. 1). Pascual Chenel (2013, p. 64) lo denomina El Triunfo de Cristo. 30 Cf. Álvarez Plata (2015). “Las cuatro partes del mundo” 27 grabados de Juan A. Salvador Carmona (1740-1805).31 Estos se publicaron en Madrid alrededor de 1788 y están dedicados al futuro Carlos IV (1748-1819) quien accedió al trono precisamente en ese año, hecho que le mereció al autor su nombramiento como “grabador de Cámara de S. M.”.32 Una vez más se confirma la relación de la serie iconográfica con la ambición imperial y la expansión universal de la monarquía española. Otros ejemplos se deben a la notable influencia de la pintura italiana en España en la primera mitad del siglo XVIII. Uno de ellos es del pintor suizo-italiano Bartolomeo Rusca (1680-1750) en el techo de la Sala 5 de la planta baja del Palacio Real de La Granja de San Idelfonso (Segovia). La alegoría, parte de otras realizadas para Felipe V (1683-1746) entre 1734-1735 y su muerte, se presenta por parejas: Asia y Europa, África y América. Aquí también se preservan algunos de los atributos originales, como el alacrán en la mano de África. (SOLER VILLALOBOS, 2004, p. 29) También de mediados del siglo es otra variación del programa adaptado a los designios imperiales de España. Bartolomé de San Antonio (1708-1782), fraile trinitario y pintor español formado en Italia, ingresó en 1753 en la Academia de Bellas Artes de San Fernando con la donación de su alegoría sobre Fernando VI y la Iglesia Católica, en donde, en presencia del soberano, España presenta a América a la Iglesia Católica personificada como reina en su trono, con la presencia de las otras tres partes del mundo que conservan muy pocos de sus atributos originales, como el incensario de Asia además del arco y flechas de América y la corona de Europa.33 Lo que el cuadro describe se lee en el paño del clarín de la fama que flota encima de dichas figuras.34 31 Madrid, Colección del Banco Santander, en: https://www.fundacionbancosantander.com/ coleccion/es/luca-giordano-copias/las-cuatro-partes-del-mundo-europa/. 32 Madrid, Museo del Prado, Juan Salvador Carmona, Alegorías de las cuatro partes del mundo, Madrid, ca. 1796, en: https://www.museodelprado.es/coleccion/obras-de-arte?search=alegor%C3%ADas%20de %20las %20partes%20del%20mundo,%20madrid,%20 [hacia%201786]&ordenarPor=pm:relevance. 33 Madrid, Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, Museo, inv. 1066, 128 x 148 cm. Ver Gobierno de España, Ministerio de Cultura y Deporte, Colecciones en Red, ceres.com, http:// ceres.mcu.es/pages/Main?idt=122941&inventary=1066&table=FMUS&museum=MRABASF. 34 Dum quator Orbis Plagas Hesperia ducit, / ut videat lucem detegit Americam: / Vincit & errores Sedes Catholica Petri / Fernandi Sexti Robore, & Auxiliis. 28 Iconografia musical na América Latina Sin embargo, no siempre se pueden buscar razones ideológicas en la presentación de estos programas iconográficos y debemos aceptar criterios más sencillos como el orden alfabético que adopta Nicolas Bonnart (ca. 1636-1718) en sus grabados sobre el mismo tema de alrededor de 1710-1720 basados en las pinturas de su hermano Robert (1652-1729) quienes también se dedicaron al comercio de laminas o estampas, vía fundamental para la difusión de estas alegorías. Otro de sus hermanos, Henri (1642-1711) también publicó grabados en donde simplificaba al mínimo los atributos de las figuras.35 Tampoco se puede pensar que la alegoría de las cuatro partes del mundo solo se empleó en un contexto de ambición imperial exclusivamente católico, pues aparece en el frontispicio de la descripción y guía de Amsterdam en 1664. Su autor, Philips van Zesen (1619-1689) incluye una explicación de la figura en donde la ciudad coronada está flanqueada a la derecha por figuras femeninas que representan la pesca, la navegación y el comercio (Mercurio) y a la izquierda por otras similares que simbolizan la abundancia, el prestigio y la opulencia. A sus pies aparecen postradas otras cuatro figuras femeninas de las cuales tres se pueden claramente identificar como Asia, América y África, mientras que el torso de la primera figura – que representaría a Europa – es apenas visible en el extremo izquierdo. En la explicación de la alegoría – probablemente de autoría del mismo Zesen – se menciona “el amplio mundo” pero no los nombres de los continentes.36 (ZESEN, 1664) También en un ambiente germánico, esta vez católico y que sigue los lineamientos iconográficos ya descritos, Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770) diseñó y pintó entre 1750-1753 los frescos que adornan la bóveda del techo de la escalera de acceso de la residencia del Príncipe Arzobispo Karl Philip von Greiffenclau (1690-1754) en Würzburg, Bavaria. Uno de los modelos de este trabajo – en lienzo de gran tamaño – se encuentra en el Museo Metropolitano de Nueva York y muestra a Apolo rodeado de la alegoría de los cuatro continentes. Durante su estadía en España, este artista usó imágenes semejantes en los techos del Palacio Real de Madrid elaborados entre 1762-1766, donde el tema principal 35 Boston, Museum of Fine Arts, Prints, Nicholas Bonnart I (1637-1718), grabados sobre dibujos de Robert Bonnart (1652-1729), Inv. Nos. 44.1209 (L’Asie), 44.1210 (L’Amérique), 44.1211 (L’Europe) y 44.1212 (L’Afrique), en: https://www.mfa.org/collections/search?f%5B0%5D=field_ artists%253Afield_artist%3 A24840&page=1. 36 “Kurze erklärung des Titel-blats”. “Las cuatro partes del mundo” 29 es la glorificación y apoteosis de la monarquía española.37 (HONOUR, 1975, p. 113-117) Otro ejemplo tardío con la presencia del escorpión en la mano de África es la de Vicente Camarón y Torrá (1803-1864) en una de las pinturas de la bóveda de la Sala de Conferencias del Congreso de los Diputados en Madrid realizada en 1853.38 Allí se ve una joven figura femenina recostada sobre una piel de tigre que exhibe un escorpión en la mano derecha mientras que con la izquierda abraza un cuerno de la abundancia (cornucopia) con tallos y hojas de palma mientras que detrás de ella pasea un león. A pesar de que en esta versión ha desaparecido el cesto de frutos, guarda – a mediados del siglo XIX – la mayoría de los elementos de la alegoría de las monedas “adriánicas”. En el contexto religioso contamos con varios ejemplos americanos. Uno, en Popayán – suroeste de Colombia – obra de Antonio y Nicolás Cortéz (siglo XVIII) con las cuatro partes del mundo personificadas por figuras ataviadas con algunos de los atributos ya descritos inclinándose sobre un globo terráqueo que se postra con ellas a los pies de una Virgen apocalíptica con su media luna, serpiente y ráfaga.39 Aquí se observa otro cambio en los elementos del programa, ya que, por ejemplo, el tocado de cabeza de elefante lo ostenta Asia en lugar de África que a su vez porta una corona de pluma en lugar de América; esta ultima viste también una estola de armiño como Europa y Asia. Otro ejemplo peruano del segundo tercio del siglo XVIII se refiere al proyecto evangelizador jesuita, ya muy avanzado en ese momento como empresa global.40 Postrados ante San Ignacio y los otros santos de la Compañía, vemos a Atlas con el globo terráqueo a cuestas flanqueado a su izquierda por personificaciones masculinas de Asia y África, y a su derecha por América y Europa. Aquí, África y América comparten un tocado de plumas y arco y flechas, mientras que Asia 37 Ver también Nueva York, Metropolitan Museum of Art, ‘Allegory of the Planets and Continents’, en: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/110002243. 38 Madrid, Sala de Conferencias, Congreso de los Diputados, Pintura mural, cuerpo superior, ver Alamy.com, en: https://www.alamy.com Nos. P4EDCX (África), P4DPW (Europa), PNW729 (Asia) y P4EDR3 (América) y Pinturas ‘Los cuatro continentes’, Congreso de Diputados, Canal Parlamento, https://www.youtube.com/watch?v=g0rjAQIqYd0. 39 Popayán, Arquidiócesis de Popayán, Museo de Arte Religioso. Ver también Llanos Vargas (2014). 40 Lima, Iglesia de San Pedro, Anónimo, oleo sobre lienzo, siglo XVIII, en ARCHI. Archivo digital de Arte Peruano, en: http://www.archi.pe/index.php/foto/index/8206. 30 Iconografia musical na América Latina y Europa ostentan turbante y corona respectivamente. La leyenda en latín que titula el cuadro cita versos de los Salmos 18/19 (v. 5) y 112/113 (v. 3) y dice:41 Los cielos narran su gloria y del amanecer al anochecer se alaba su nombre; sus voces se oyen en todos los rincones de la tierra y sus palabras hasta sus últimos confines. La difusión del programa iconográfico de las cuatro partes del mundo en Inglaterra tiene características particulares en cuanto a su apropiación por parte de las clases medias. Los motivos icnográficos aparecen en paneles y en la ornamentación de canastas, cofres, gabinetes y marcos de espejos de manufactura artesanal con figuras bordadas con seda, alambre y cuentas de vidrio. En el contexto puritano de mediados del siglo XVII, el bordado se consideraba como una actividad formativa para las mujeres y como tal se extendió a través de la fabricación de estos objetos. Sin embargo, otros lo consideraban actividad vana al igual que la música a pesar de que era una de las actividades cultivada en la institución educativa de Hannah Playford en donde también aprendían a bailar pues era la esposa de John Playford (1623-1686) el editor de The English dancing master (1651) la colección más importante de música de baile de ese momento que tuvo más de dieciocho ediciones en menos de un siglo y cuyas melodías se mantienen aun en la tradición oral de las Islas Británicas y los Estados Unidos. (BROOKS, 2011, p. 14; HAMM, 1978, p. 69) Un ejemplo de estos muebles, que muestra la combinación de diferentes tradiciones iconográficas es un gabinete de alrededor de 1650-1675 adornado con figuras bordadas en donde aparecen los Sentidos, los Cuatro Elementos, el Padre Tiempo con su reloj de arena y guadaña, y Orfeo con su lira.42 Sin embargo, la agenda iconográfica de glorificación colonial continuaba vigente y aparece – siguiendo la orientación mercantilista de Zesen – en el frontispicio del New and complete system of Geography de Charles T. Middleton publicado en Londres en 1777. Europa, coronada y sentada en su trono con un libro abierto 41 Caeli enarrant, gloriam Dei, a solis ortu usque ad occassum laudabile nomen Domine, [Et quidem], in omnis terra exhivit sonus eorum, et in finis orbis terrae verba eorum. 42 Cambridge, Fitzwilliam Museum, Objeto T.8.1945, Inglaterra, ca. 1650-1675, en: http:// webapps.fitzmuseum.cam.ac.uk/explorer/index.php?oid=77903. “Las cuatro partes del mundo” 31 en la mano está rodeada de Asia y América reclinadas y África de pie, todas con la mayoría de los atributos que hemos mencionado, con importantes alteraciones como el reemplazo del alacrán de África por una cadena y la presencia de un manojo de hojas de tabaco que América sostiene en su mano derecha. La leyenda que explica la figura es suficientemente elocuente para necesitar comentario: Europa, por comercio, armas y astucia Obtiene el oro de África y esclaviza a sus hijos, Gobierna las exuberantes costas de Asia, Viste sus preciosas gemas y conquista sus ricas bodegas: Mientras que a través del mar trae desde América Objetos útiles y la riqueza de sus minas.43 Las cuatro pinturas de los continentes que flanquean la cúpula de vidrio de la Galleria Vittorio Emmanuele II de Milán (1865-1877), la escultura “Les quatre parties du monde soutenant la sphère céleste” de Jean-Baptiste Carpeaux (1827-1875) para la fuente de los jardines de la Avenue de l’Observatoire de Paris (1867-1874) y aquellas del escultor chileno Virginio Arias (1855-1941) en los Jardines de la Tamarita (Barcelona) y la plaza Benjamín Vicuña de Angol (sur de Chile) son algunas de las obras que continúan dicha tradición iconográfica en los siglos XIX y XX. (MORALES FOLGUERA, 2003) 4 Las cuatro partes del mundo en vivo Simultáneamente a la consolidación de la alegoría en las artes plásticas – pintura y grabado principalmente –, la alegoría de las cuatro partes del mundo también aparece en procesiones y celebraciones publicas de “entradas” y otras efemérides reales, principalmente en el ambiente hispánico. Un antecedente interesante de 1600 es la “entrada” en Salamanca de Felipe III (1578-1621) recién casado con Margarita de Austria (1584-1611) en la que el gremio de los roperos costeó una “invención” – dentro de una procesión – en la que cuatro muchachos disfrazados de mujeres personificaban a Europa, Asia, África y América. Al referirse 43 “Europe by commerce, arts and arms obtains /the gold of Afric and her sons enchains, / She rules luxuriois Asia’s fertile shores, / Wear her bright gems and gains her richest stores: / While from America thro’ seas she brings / The wealth of mines, and various useful things”. 32 Iconografia musical na América Latina a la primera figura de dicha “invención”, el autor anotaba que de esa forma “suelen pintar esta figura” (HIDALGO, 1610, p. 52), confirmando que había sido concebida con base en fuentes iconográficas. La personificación humana del programa, especialmente por parte de mujeres jóvenes va a ser muy frecuente en América de ahí en adelante. A finales del siglo XVI América se incorporaba rápidamente a mapas y manuales geográficos. En 1580, el médico Francisco Hernández (ca. 1518-1578), en su descripción de la Nueva España, llama a América la “cuarta parte del orbe” y le atribuye al emperador Carlos V (1500-1558) el haberla llevado al mismo estatus de las otras tres. (HERNÁNDEZ, 2000, p. 59) En la nueva cartografía de ese momento, “cuarta parte” es el nombre que se le da al mapa de América del cosmógrafo Diego Gutiérrez (fl. 1554) publicado en 1562.44 En Potosí, actual Bolivia, en la fiesta de Corpus de 1608 se reconocía a América como “la cuarta parte del mundo” y las cuatro partes ya aparecen completas en 1610 – beatificación de San Ignacio – en máscaras y fiestas en las celebraciones de Segovia y Salamanca. En Goa y Lisboa, sin embargo, América no aparece en las fiestas de la beatificación de San Francisco Javier (1619) mientras que si está en las de Madrid. Tampoco encontramos a América en las de Goa dos años después para la canonización de San Ignacio (1622) pero ya figura en las de Lisboa en el mismo año. (ARELLANO, 2008, p. 60-71 y 77-78) Así, vemos como consideraciones geopolíticas se superponían a aquellas doctrinales y simbólicas pues para Portugal en este momento Asia y África eran mucho mas importantes que América. Observamos además que el programa icnográfico de Ripa se elaboró simultáneamente a las celebraciones publicas que hemos mencionado. En Santafé, actual Bogotá, la beatificación de San Ignacio se celebró en 1611 con “representaciones y coloquios [...] y otros aparatos” y la beatificación de San Francisco Javier en 1620, con fiestas, música, un coloquio sobre la vida de Cristo y un certamen con “cuatro carteles” que podrían formar parte de nuestra alegoría pero que desafortunadamente no se describen en detalle. (REY FAJARDO; GUTIÉRREZ, 2015, p. 276 y 573) Para el Nuevo Reino, no hay 44 Americae sive quartae orbis partis nova et exactissima descriptio, Amberes: Hyeronimus Cock, 1562 en: https://www.wdl.org/es/item/32/view/1/1/. “Las cuatro partes del mundo” 33 documentación relacionada con la canonización de San Ignacio dos años después. (REY FAJARDO; GUTIÉRREZ, 2015, p. 75) En las ya mencionadas fiestas de la canonización de 1622, el coloquio presentado en Puebla incluye las “cuatro partes del mundo” que también aparecen en México – noviembre de 1622 –, donde portan una tarjeta que anuncia (ARELLANO, 2008, p. 58 y 82): Sujetas a su poder Y a su valor sin segundo Se vienen hoy a ofrecer Al gran Ignacio y Javier Las cuatro partes del mundo. El enfrentamiento de España con los protestantes en el terreno de lo militar involucra a Rubens y le proporciona implicaciones políticas y propagandísticas a sus grabados. Uno de ellos, corresponde a la comisión por parte de la ciudad de Amberes del diseño de un carro triunfal para celebrar la victoria española contra los holandeses en la batalla de Kallo de 1638 que puso fin temporal al bloqueo holandés de su acceso al mar. El carro fue construido y participó en la Ommegang – procesión – de ese año aunque su diseño se alejaba de las connotaciones religiosas y se concentraba en las alusiones clásicas y políticas de la importante victoria militar. (SCHAIK, 2011, p. 7-17) A pesar de esto, fue el modelo de las pinturas bolivianas arriba analizadas. El hecho tuvo también efectos musicales pues la victoria de la batalla se celebró en canciones publicadas en hojas volantes que aparecen en importantes obras pictóricas como la llamada “Lo que los viejos cantan los jóvenes tocan”45 de Jacob Jordaens (1593-1678). (SCHAIK, 2011, p. 65-66) En algunas de sus versiones se alcanza a leer el titulo de la hoja con la que cantan los ancianos del cuadro, que contenía solo el texto que se cantaba con melodías que la gente conocía de memoria. El teatro musical también fue un importante medio de diseminación de esta alegoría y de su contenido moral y religioso. El auto sacramental alegórico El valle de la zarzuela (1655) de Pedro Calderón de la Barca (1600-1681) cuenta con las cuatro partes del mundo entre sus personajes junto con la Culpa, y el Demonio que son finalmente vencidos por la Gracia y un Príncipe que representa a Cristo. La 45 “So de oude songen, so pypen de jongen” en su original neerlandés. 34 Iconografia musical na América Latina caracterización visual de las cuatro partes del mundo es su indumentaria, Europa “a lo romano”, Asia “a lo judío”, África “a lo moro” y América “a lo indio”.46 Calderón entendía la efectividad de la combinación de la música con lo visual y en la escena inicial y después de un largo dialogo con el Demonio – caracterizado como león –, escribe los versos siguientes para que la Culpa vestida de negro cante: A mi brindis mortales, Venid que la sed; Satisface esta copa, Del oír y el ver. Mas tarde aparecen en su orden Europa, Asia, América y África y después de largos diálogos con el Demonio en los que aparentemente sucumben ante él, son salvadas por la Gracia y el Príncipe y al final, una vez más se canta la ya citada copla de claro simbolismo eucarístico. Gran pompa revistió en Nápoles en 1658 el festejo del nacimiento de Felipe Prospero (1657-1661) hijo malogrado de Felipe IV. Este nacimiento despertó grandes expectativas y fue celebrado con fiestas en varias ciudades bajo el dominio español tanto en Europa como en América, desde Milán y Nápoles hasta Manila y Lima. De la descripción de las fiestas de Nápoles sabemos que incluyeron celebraciones religiosas, bailes de disfraces y de “emblemas”, fuegos artificiales, la apertura de las cárceles, ejercicios ecuestres, juegos públicos, corridas de toros, una comedia, la presentación de la opera La gara de’ sette pianieti y un gran cortejo de carros triunfales con el programa de las cuatro partes del mundo. Los cuatro carros llegaban a un escenario efímero preparado para la ocasión en donde los “genios” de cada continente, personificados por cantantes, cantaban ante el virrey y su corte alabanzas al recién nacido. Cada continente estaba tutelado por deidades, Marte para Europa, Júpiter para Asia, Libero (Liber Pater) para 46 Madrid, Biblioteca Nacional de España, Ms. 15847, P. Calderón de la Barca, El valle de la zarzuela. Auto sacramental alegórico, ff. 18v, 19v-20 y Gisbert (1987, p. 233). El titulo del auto tiene que ver con el Palacio de la Zarzuela, establecido como pabellón de caza de Felipe IV en 1627 y desde mediados del mismo siglo para las obras de teatro musical que adoptaron ese nombre por realizarse en el mismo sitio real. “Las cuatro partes del mundo” 35 África y Neptuno para América.47 Los carros llevaban instrumentos musicales emblemáticos como la viola de gamba para Europa, uno difícil de identificar – ¿idiófono raspado? – para África, una especie de chirimía para Asia y el arpa para América. Sus respectivos genios ostentaban los emblemas ya conocidos, el alacrán para África, el manojo de hierbas aromáticas para Asia, la corona y el cetro de Europa y el arco, flecha y hacha para América. La portada de la publicación también contó con este importante rasgo iconográfico y muestra un globo terráqueo que contiene el titulo rodeado de los cuatro continentes con atributos en parte diferentes a los anteriores, arriba Asia y África respectivamente con su incensario y una espiga de cereal alumbrada por el sol y abajo América y Europa con los atributos ya mencionados.48 Es de notar que en esta disposición el orden relega a Europa al ultimo lugar. Con los mismos elementos y notable por su rareza es el poema (romance) en euskera que formó parte del certamen poético realizado en Salamanca para la misma ocasión. Es más un homenaje de sujeción de todo el orbe al recién nacido y no se ajusta estrictamente a nuestro programa, pero el breve escrito menciona a Asia, África, Europa y América al igual que sus ríos – Tigris, Éufrates, Nilo y Danubio – dejando fuera solamente el rio americano. Sin embargo, otro de los concursantes en dicho certamen intenta remediar la falta al anunciar que el imperio regido por el recién nacido “nace Bengala y termina México”. (CLARE, 1974) Martin de Iturbe, el autor del poema vasco, conforma además un grupo de los cuatro principales enemigos de España en ese momento, Inglaterra, Francia, Portugal y el imperio Otomano; pero más especifico fue otro de los actos del mismo festejo en donde en cuatro “castillejos” se quemaron las figuras que personificaban a Mahoma, Cromwell, el imperio Otomano y la herejía. (CLARE, 1974, p. 404) 47 Libero era un dios de los plebeyos romanos, asimilado a Baco pero también a uno de los dioses púnicos, especialmente bajo el gobierno de Septimio Severo, nacido en Lepsis Magna (Tripolitania) hoy Libia. Su culto tenia asociación con falos y rituales de fertilidad. Ver Fowden (2005, p. 563-65). 48 Cirino ([1659], p. 210-250). Los grabados plegables de los carros, cuando existen, son diferentes en los diferentes ejemplares existentes, por ejemplo, aquel marcado como América en el que emplea Morales Folguera (2013, p. 405) no es el mismo del ejemplar de la British Library (9930.k.10) en el que se intercambian también los marcados como Asia y África. Los ejemplares de la Biblioteca de la Universidad Complutense (Madrid) y de la Bibliothéque de la Ville de Lyon no poseen los grabados plegables de Nicolas Perrey y Jusepe Martínez. 36 Iconografia musical na América Latina Al igual que en Nápoles, el programa de las cuatro partes del mundo – con variaciones – hizo parte de la misma celebración en Lima, que duró desde agosto hasta diciembre de 1659 y de la que tenemos varias relaciones no todas coincidentes entre sí. De acuerdo con una, en la fiesta organizada por el gremio de los plateros para el 30 de noviembre desfiló un carro en forma de galera escoltado por las figuras de un toro simbolizando a Europa, un elefante a Asia y un león a África. América se incluyó como Reino del Perú, entre nueve carros triunfales que representaban los dominios españoles. (RAMOS SOSA, 1992, p. 104-105) Otra de las relaciones habla de la participación de las “cuatro partes del mundo” en la fiesta de 12 de noviembre acompañaas por los cuatro elementos y las cuatro estaciones. (RODRÍGUEZ MOYA, 2016, p. 102; VALERO JUAN, 2017, p. 47) El tránsito de la alegoría entre España y América se ilustra cuando en 1664, a los cuatro años de regresar a España después de haber vivido su niñez en la Nueva España (México), Agustín de Salazar y Torres (1642-1675) presenta en Madrid su comedia Elegir al enemigo, para el tercer cumpleaños de Carlos, el hijo de Felipe IV (1605-1665). La loa contiene dieciséis personajes que incluyen las cuatro partes del mundo, las cuatro estaciones, las cuatro horas del día y los cuatro elementos. En una de sus escenas, todos cantando y bailando quedan en una disposición que relaciona cada continente con los demás aspectos así: África-cenit-verano y fuego, América-noche-invierno y agua; Asia-tarde-otoño y aire, y Europa-aurora-primavera y tierra. (SALAZAR Y TORRES, 1992, p. 78) Continuando con las loas en México, aquella de Sor Juana Inés de la Cruz (1648-1695) para su auto sacramental El divino Narciso – representado e impreso en Madrid en 1690 – incorpora parcialmente nuestro tema. Aquí, Occidente y América son los personajes centrales, el primero como “indio galan” con corona y ella como “india bizarra” vestida con mantas y “cuipiles”, que antagonizan el Celo, como capitán general y la Religión cristiana como “dama española”. Como en el caso anterior, el canto y el baile – en este caso de un tocotín (baile indígena) – son fundamentales para la caracterización de sus personajes. (CRUZ, 1994, p. 3-21) Dos polos geográficos – Vizcaya y México – también emplea Alonso Ramírez de Vargas (fl. 1662-1696) en una obra de 1691, que, aunque no es dramática sino una elegía fúnebre dialogada, contiene elementos de las loas ya referidas. (RAMÍREZ DE VARGAS, 1992, p. 175-179) Sin embargo, tal vez el ejemplo más significativo sea la loa para Duelos de ingenio y fortuna, de Francisco A. de Bances Candamo (1662-1704), comedia “Las cuatro partes del mundo” 37 de la cual se conservan algunos números musicales atribuidos a Juan de Navas (1647-c. 1709) y que fue representada en el Coliseo del Buen Retiro en 1687 para el cumpleaños de Carlos II (1661-1700). Además de Apolo, Cupido, la Poesía, la Historia y la Fama, las Nueve Musas, los Nueve héroes de la Fama, sus personajes incluyen a América y España, la primera coronada de plumas y la segunda con corona y manto imperial, seguida ésta de un “coro de africanos” y aquella por un “coro de Indios” que en su momento se mezclaron y formaron un “vistoso y confuso sarao” ante la estatua del soberano. No sorprende la ausencia de Asia, controlada en su casi totalidad por los otros poderes europeos rivales de España. (BANCES CANDAMO, 1687, ‘Loa’, ff. 2-6) Ubicándonos justamente en los territorios de uno de estos rivales, en 1707 para las exequias de Pedro II en la catedral de Bahía, la ciudad más importante del Brasil, se construyó un catafalco con dos cuerpos con pinturas, el segundo de los cuales contenía alegorías de las cuatro partes del mundo asociadas con animales subyugados, Europa y un toro, Asia y el elefante, África y el león y América y el tigre; además, los ríos Tajo, Indo, Zaire y Pará simbolizaban las lágrimas derramadas por cada una de las partes a la muerte del monarca. (CARNEIRO, 2014, p. 346) Un ejemplo temprano de la presentación simultánea del programa iconográfico citado y de la interpretación en vivo de música vocal e instrumental lo encontramos en el Nuevo Reino de Granada, actual Colombia, en las festividades celebradas en junio de 1747 en Popayán para la jura de Fernando VI (1713-1759). La materialización del programa iconográfico se hizo a través de la presencia de un carro triunfal con tres cuerpos, el primero con un conjunto musical de instrumentos de cuerda y viento, el segundo, presidido por Apolo (Febo), con cuatro “damas que representaban las cuatro partes del mundo” coronadas por la Fama y en el último, dos tronos para los monarcas. Eventualmente la Fama y las cuatro damas cantaron un dialogo en alabanza de los monarcas, cada una en representación de su continente. Lo que suponemos fueron arias, “recitados” y música instrumental constituyeron los ingredientes musicales de este episodio.49 En otra región de la actual Colombia, la misma alegoría se expresa de manera diferente y en forma parcial, en las construcciones efímeras que formaron parte de las festividades que se llevaron a cabo en Honda – principal puerto interior 49 Popayán, Archivo Central del Cauca, Colonia, Civil III, 21dt, 9648, ff. 23v-25v. 38 Iconografia musical na América Latina sobre el rio Magdalena, Colombia central – en diciembre de 1808 con motivo de la Jura de Fernando VII (1788-1833). Allí, en uno de los costados del tablado levantado por el Cabildo en la plaza de San Francisco, se interpretó una Loa con los cuatro continentes simbolizados por cuatro estatuas masculinas que flanqueaban un medallón con el retrato del nuevo rey colgado entre dos columnas; a su derecha se encontraban Asia y Europa y a su izquierda África y América. Los atributos de las cuatro estatuas no obedecen al programa iconográfico que hemos descrito y solo América, un joven semidesnudo, ostenta un arco, una flecha y un tocado de plumas, mientras que los otros tres se diferencian muy levemente en su vestido y sus armas, en ellos solo es reconocible el alfanje y el turbante de África; y el florete y el cubilete de Europa. (REY-MÁRQUEZ, 2011, p. 221-222, Fig. 4) 5 Las pinturas Las fotos de septiembre de 2012 y testimonios locales indican que la edificación de que hablamos constaba de tres espacios comunicados entre si, uno pequeño, con función de acceso o zaguán y colindante al norte con la casa vecina seguido de otro más amplio que servía de sala principal. Al extremo sur había otro aposento pequeño con techo inclinado y con dos ventanas y una puerta en la pared extrema de la casa contra la actual calle 9. Las paredes externas de la edificación eran de adobe (tapia) y las divisiones internas de bahareque, tejido de varas de madera y cañas recubierto de barro, las dos técnicas constructivas predominantes en la región antes del siglo XX. Después del colapso total de la casa, la pared que confina con la casa vecina quedó expuesta a la intemperie lo que permite ver, en su parte baja, algunas manchas de colores ocre, rojizo y negruzco producidas por el lavado de la pintura mural a causa de la lluvia (Imagen 8). “Las cuatro partes del mundo” 39 Imagen 8 – Aposento 1 o zaguán, pared norte limítrofe con casa vecina Fuente: fotografía de Egberto Bermúdez, noviembre de 2018. Las tres figuras femeninas – que llamaremos en adelante FF 1, 2 y 3 – se encontraban en el aposento central, dos en la pared oriental y la otra en la pared sur (Imagen 9), todas ubicadas en la parte alta por encima de la altura máxima de las puertas (Imágenes 10 a 15). En 2012, estas paredes habían sido recientemente blanqueadas con cal, proceso que trató de evitar cubrir las zonas pintadas aunque al no haberse hecho en forma cuidadosa, cubrió partes de las figuras como se observa en los contornos de la FF3 (Imagen 14). Anteriormente, las figuras habían sido recubiertas con cal varias veces, pero este recubrimiento no se fijaba fácilmente en el área de las pinturas haciendo que reaparecieran.50 50 Entrevista con Elsa Amador, Palmas de Socorro, 26 de noviembre de 2018. 40 Iconografia musical na América Latina Las figuras fueron elaboradas con pintura al temple, con pigmentos y fijadores naturales – albumina de huevo. Imagen 9 – Interior sala principal (aposento 2), paredes oriental y sur, de izquierda a derecha FF1, FF2 y FF3 Fuente: fotografía de M. del Pilar López, MCPMI, septiembre de 2012. “Las cuatro partes del mundo” 41 Imagen 10 – FF1 Fuente: fotografía de M. del P. López, septiembre de 2012. 42 Iconografia musical na América Latina Imagen 11 – FF1, detalle letrero Fuente: fotografía de M. del P. López, septiembre de 2012. Imagen 12 – FF1, detalle, cola alacrán Fuente: fotografía de G. Téllez, septiembre de 2012. “Las cuatro partes del mundo” 43 Imagen 13 – FF1, detalle, espigas (hojas) de cereales Fuente: fotografía de M. del P. López, septiembre de 2012. 44 Iconografia musical na América Latina Imagen 14 – FF2 Fuente: fotografía de M. del P. López, septiembre de 2012. “Las cuatro partes del mundo” 45 Imagen 15 – FF3 Fuente: fotografía de Juanita Barbosa, MCPMI, septiembre de 2012. De izquierda a derecha la primera figura FF1 era la mejor conservada en 2012 pues mantenía sus colores y todavía se reconocían sus atributos iconográficos y mantenía el letrero que los explicaba. En su cabeza, viste lo que parece ser un gorro frigio o turbante, sus labios están pintados de rojo, usa aretes del mismo color y a la altura de la cara presenta el letrero siguiente, al que le falta el primer verso: 46 Iconografia musical na América Latina [...] Pues todas me están mirando Que estoi [con] este alacrán Que un dedo me está picando. A los pies de la figura, a su lado izquierdo, son reconocibles todavía la cola y el aguijón del alacrán, así como porciones de un mazo de espigas u hojas de cereales contenidos presumiblemente en una cornucopia. Como vemos, esta pintura conserva los elementos esenciales del emblema documentado desde el periodo romano pasando por sus versiones humanistas y contrarreformistas. Sin embargo, el verso presenta una situación totalmente diferente a la de la tradición iconográfica que hemos descrito, es decir, a la idea de controlar el peligro de la mordedura del alacrán que presentan las figuras femeninas que personifican a África; pues el letrero indica todo lo contrario y afirma que la figura está siendo mordida por el alacrán o escorpión. Si en forma metafórica – en lo social y lo político – un continente hubiese podido sentirse victima del peligro que representaba la mordedura letal del alacrán, éste hubiese sido América y no África, tanto en el momento de la revolución de 1781, o en la lucha independentista comenzada en 1810, en aquella contra la pacificación de Morillo de 1816 o la de las batallas finales de la independencia hasta 1821. La ausencia del primer verso del letrero, que identificaría esta figura, nos hace imposible esbozar cualquier conclusión adicional a este respecto. Mas adelante volveremos sobre la posibilidad de una lectura política de la alegoría. La segunda figura femenina FF2 está totalmente aislada, “sentada en el aire” como describe con humor Ancízar al referirse a las que vio en la venta de Aguabuena. Esta figura usa un sombrero o tocado muy diferente al de la anterior y en sus manos sostiene un par de objetos imposibles de identificar. Los atributos y leyenda que seguramente tuvo han sido totalmente borrados por el blanqueamiento arriba mencionado. Por el tipo de tocado seria posible conjeturar que se trata de la figura correspondiente a Asia. En 2012, la tercera figura FF3 presentaba mayor deterioro y presentaba una corona – al parecer de plumas – en la cabeza y en su mano izquierda lo que parece ser la misma granada de la figura descrita por Ancízar. Su mano derecha, parte de su vestido y los atributos iconográficos habían desaparecido. A su derecha, “Las cuatro partes del mundo” 47 cerca del borde de la falda, a la altura de la rodilla tiene el siguiente letrero, también muy deteriorado y casi ilegible (Imagen 16): [La] [q]uarta parte del mundo [Eur]opa soy nombrada, ... vo ... violín ... pa tocar ... a ... ve ... [g]vita[r]ra. Esta es una leyenda semejante, al menos en sus dos primeros versos, a la que Ancízar describe como tributo de la figura femenina que personifica Europa en Aguabuena; así que podemos asumir lo mismo en el caso de la venta de Palmas. En nuestro caso, el verso adicional y su referencia al violín y posiblemente la guitarra, así como a su interpretación, tiene un equivalente en la venta de Aguabuena pues estos son los dos instrumentos musicales descritos por Ancízar. Imagen 16 – FF3, detalle letrero Fuente: fotografía de M. del P. López, septiembre de 2012. 48 Iconografia musical na América Latina La corona puede ser una corona normal y no de plumas, aunque si se tratara de esta última, podría presumirse que en este caso sus atributos están trastocados con los de América, en especial teniendo en cuenta que para Aguabuena, Ancízar también describe una granada como su atributo. Además, entre los fragmentos con pintura recuperados hay uno que muestra parte de un letrero al parecer diferente a los anteriores y que podía pertenecer a la figura FF2 o a una ausente FF4. Este trozo recuperado contiene los siguientes fragmentos de escritura, cuya interpretación en las circunstancias actuales resulta casi imposible (Imagen 4): ... do t ... ... iz z ... En el siguiente aposento – el más pequeño situado en el extremo sur –, la cabeza de una figura masculina es parcialmente visible en la pared opuesta a la pared sur ya descrita, en la cual se ve también la parte del cuerpo correspondiente a las pantorrillas que visten lo que puede considerarse un pantalón rojo. Algunos trazos de negro, ocre y bermellón delinean una figura adicional en su parte inferior, que siguiendo la descripción de Ancízar podría ser el animal en que montan las figuras masculina y femenina por él descritas. Hay además otros fragmentos de pintura de los mismos colores cuya forma es imposible identificar (Imágenes 17 a 19). “Las cuatro partes del mundo” 49 Imagen 17 – Aposento 3, pared norte, izquierda Fuente: fotografía de M. del P. López, septiembre de 2012. 50 Iconografia musical na América Latina Imagen 18 – Aposento 3, pared norte, centro Fuente: fotografía de M. del P. López. “Las cuatro partes del mundo” 51 Imagen 19 – Aposento 3, pared norte, derecha Fuente: fotografía de M. del P. López. Una notable modificación al programa arriba descrito lo encontramos en las figuras de la venta de Aguabuena, en donde Europa pasa a ocupar la “cuarta parte” que desde el siglo XVI se reservaba a América; aunque de la descripción de Ancízar tampoco podemos determinar que figura la sustituyó en la primera posición. En nuestro caso, según el letrero, Europa también ocupa esa cuarta posición, pero tampoco podemos corroborar quien ocupaba la primera, pues la primera figura que encontramos a la entrada, por sus atributos, sería aparentemente África. En el otro ejemplo arriba citado, el de Honda, no hay alteración en el orden tradicional pues Europa y Asía están situados a la derecha del rey mientras que América y África lo están a la izquierda. La sustitución de Europa por América en el primer lugar del orden de los continentes o partes del mundo y la presencia de la “granada” como símbolo del Virreinato local se podría ver como un claro ejemplo de proto-nacionalismo 52 Iconografia musical na América Latina colombiano. Sin embargo, como ya se dijo, no es posible concluir mucho con respecto a la venta de Palmas debido a la ausencia de una de las figuras, la de América y también a la desaparición de casi todos los atributos y letreros de las demás. Florescano y Curiel hacen lecturas nacionalistas y americanistas de esta alegoría en el caso de uno de los biombos de Correa arriba mencionados, así como del grabado que le sirvió de fuente, sin embargo, esta discusión, por su amplitud y carácter, desborda los limites del presente trabajo.51 (CURIEL, 2009; FLORESCANO, 2014) En el caso de las figuras de Aguabuena observamos otra modificación con respecto a los atributos de Europa en los programas iconográficos descritos: la presencia de la corona y el cetro. Estos podían fácilmente transformarse en tiara y llaves también como símbolos de suprema autoridad, en el terreno religioso al ser los dos elementos esenciales del escudo papal. Aquí, adicionalmente al relegamiento de Europa al último lugar, tendríamos paradójicamente un reforzamiento de la autoridad de Roma. 6 Alacrán y sexualidad El letrero más completo en el caso de nuestras pinturas es aquel que aparentemente se refiere a África, algo imposible de confirmar teniendo en cuenta que falta el primer verso de la copla. Suponiendo que se trata de África, el verso nos lleva a pensar en que la presencia del alacrán pueda obedecer a razones diferentes al peligro de su veneno letal. En las mitologías mesopotámica, egipcia, india y mesoamericana, el alacrán esta vinculado con deidades femeninas relacionadas con la fertilidad y simultáneamente con la protección de éstas contra sus letales picaduras. Sin embargo, estas asociaciones simbólicas no parecen haber sido exclusivamente femeninas pues tanto en el caso de Mesopotamia como en Irán y México, también hay figuras masculinas de guerreros guardianes con forma de escorpiones.52 (BUREN, 1937-1939) Por otra parte, en el contexto musulmán, desde Asia Central e India hasta el norte de África, el escorpión está asociado con dos tipos de símbolos: por un lado, 51 Para una perspectiva más amplia de este problema iconográfico, ver Honour (1975, cap. 4, p. 84-117). 52 Para el caso de las antiguas culturas griega y romana, ver Mayor (2009). “Las cuatro partes del mundo” 53 representa la muerte, el mal, y el comportamiento malicioso y abusivo, que los santos, iluminados, derviches y faquires pueden dominar y neutralizar llegando a actuar como sanadores contra su veneno y los males que produce (FREMBGEN, 2004, p. 93-106); por otro, el alacrán se relaciona con la sexualidad y representa la lujuria, el deseo sexual y el mismo acto sexual con su aguijón como metáfora del miembro viril, siendo muy frecuente en canciones populares y – en el contexto moderno – en canciones del cine musical de la industria cinematográfica india (Bollywood). (FREMBGEN, 2004, p. 123-124) En Europa, el alacrán adquirió también connotaciones esotéricas, especialmente en la astrología, como aquella que relaciona la constelación de Escorpión con los genitales femeninos y masculinos, así como con lo húmedo, frio y mohoso. (PLANCY, 1818, v. I, p. 59-60) Además, no debe dejarse de lado la conexión romana con África, la ya citada aparición del alacrán en sus monedas y la relación de los dioses púnicos con aquellos romanos de los plebeyos, como el ya mencionado Liber Pater, asociados con símbolos fálicos, la fertilidad y lo báquico. En el contexto mesoamericano, también contamos con gran numero de fuentes nahuas y mayas que vinculan el alacrán con la lascivia, el pecado y el adulterio, así como con el dolor corporal, castigo, guerra, muerte, desastres naturales y en general con situaciones negativas. En coincidencia con las culturas ya citadas, también aquí encontramos su clara asociación con el peligro y con los especialistas que controlaban su poder. (VÁSQUEZ GALICIA, 2015) En todos los casos la relación del alacrán (escorpión) con la muerte y el peligro no es simbólica y además, se refuerza por el hecho de ser animales predominantemente nocturnos, difícilmente detectables y de picaduras casi siempre letales, en especial para niños y ancianos. La observación científica del comportamiento de dichos animales sirvió sin duda para reforzar sus atributos simbólicos y para crear otros difíciles de plasmar como emblemas en pintura o escultura, como es el caso de su asociación con el baile. Muchos científicos de diferentes ámbitos coinciden en describir como “baile” los movimientos que acompañan la copulación de los alacranes se describen en forma adecuada como “baile”. (ATTENBOROUGH, 2013; CASTRO, 2013) Es razonable pensar que dicha observación es muy antigua y que debe estar desde entonces muy ligada a la asociación de este animal con la sexualidad. En la actualidad el primer registro del escorpión en un programa iconográfico de las cuatro partes del mundo en América – con el animal en la mano de 54 Iconografia musical na América Latina África – está contenido en uno de los cuatro cuadros elaborados en México en la segunda mitad del siglo XVIII – hoy en una colección privada – que mencionamos arriba y sobre los que Morales Folguera (2003, p. 63) no proporciona ninguna información adicional. La figura femenina reclinada que representa África es blanca, viste el tocado de trompa de elefante, sujeta en su mano derecha un alacrán y en la izquierda una espiga. Además, está flanqueada por otras dos figuras femeninas, una de ellas negra a su izquierda mientras a la derecha, la otra parece “recibir” o “protegerse” con sus manos del alacrán.53 En líneas generales, la composición sigue la tradición establecida desde Zuccaro y Ripa, y las obras de Rusca, R. Bonnart y Camarón. Si esta tradición se superpone con aquella que lo vincula con la sexualidad, puede haber dado resultado – en América – a una nueva corriente, expresada en el dibujo más completo de la venta de Palmas del Socorro (Imágenes 10 y 11). Otro aspecto importante es la pervivencia de las figuras femeninas en la personificación, algo que parece cambiar en el caso suramericano de la primera parte del siglo XVIII, en especial en los triunfos – de la Eucaristía y la Inmaculada – y en las alegorías jesuitas, donde se opta cada vez más por figuras masculinas. Para ubicar esta nueva tradición en nuestro contexto, retomemos los comentarios de Ancízar relativos a las costumbres de El Socorro y su región en 1850. Lo que él llama “desordenes” como comportamiento de algunas mujeres, un siglo antes describía el amancebamiento y las relaciones sexuales por fuera del matrimonio. El caso de Rosalía Fonseca de Turmequé – en la provincia de Tunja – puede ser ilustrativo, ya que se le llamaba “inquieta” pues siendo casada, vivía amancebada con su cuñado después de repudiar a su esposo, repudio que se explica finalmente cuando éste es acusado y castigado por bestialismo en 1791. Estas transgresiones de carácter sexual eran frecuentes y se presentan en la región del Socorro y su vecindario – El Cerrito, 1793, Pinchote en 1803 y Barichara en 1808. (VEGA UMBASIA, 1994, p. 75-83 y 120) El capuchino valenciano Joaquín de Finestrad (1744-1811) aliado fundamental del arzobispo Antonio Caballero y Góngora (1723-1796) en la desactivación de la revuelta de 1781 emplea estos argumentos en su condena de dicha 53 La presencia de una cabeza atravesada por una flecha en el cuadro de América (MORALES FOLGUERA, 2003, p. 66), presente desde Ripa apunta a una fuente iconográfica de mediados del siglo XVII. “Las cuatro partes del mundo” 55 insurrección en términos culturales y con argumentos bíblicos, patrísticos, clásicos e históricos. En general, Finestrad atribuye la revuelta a la falta de establecimientos de educación publica y al “estado de abominación en que se halla el reino”, su “triste decadencia” y la “corrupción de sus costumbres”. Además, propone a las autoridades varios proyectos para remediarlas de los cuales el sexto está orientado a poner fin a la vagancia, el ocio y la prostitución. Finestrad sugiere que en los territorios en los que se pretendía abrir vías de comunicación con la arteria fluvial mas importante del reino – el río Magdalena –, se funden pequeños pueblos (colonias) con familias pobres de las jurisdicciones de Vélez, Socorro y Sogamoso y luego se haga una “leva de vagos, disolutos y de mujeres prostitutas” para establecerlos en dichos pueblos y lograr su rehabilitación dirigida por un religioso. Además, como muchos otros autores – aun muchos no eclesiásticos – relaciona directamente el teatro, la música profana, el juego y la diversión con la relajación de las costumbres sociales, el amancebamiento, escándalos, pleitos, venganzas y finalmente la rebelión.54 Unos años antes Basilio Vicente de Oviedo (1699-1774) hace observaciones muy semejantes sobre la misma región de El Socorro, donde fue cura en varios pueblos entre 1748-1760. Como muchos, recalcaba la laboriosidad de sus habitantes en su industria de “lienzos, pabellones, mantas, paños, sobrecamas, listados” pero añadía que también contaba con “mucha gente baldía y mal acostumbrada”. En Simacota encuentra en su mayoría gente “tosca [...] montaraz y sin cultura”; en Oiba “agreste, soberbia, inculta, inquieta [y] pendenciera” y en Charalá “inquieta, atrevida [...] burda, tosca y palurda”. Para esta última villa añade que su industria de lienzos está “en decadencia” por ser estos “muy burdos”. Al margen de su personal animosidad con la región, sus observaciones sobre las iglesias confirman que no existía la educación musical que se era común a través de la practica religiosa en ellas. Éstas, dice Oviedo, eran inferiores “en ornato” a las de los pueblos de indios de Boyacá y Santafé y en efecto, el único órgano que registra en la región es el del pueblo de Labateca – cercano a Pamplona – tal vez por su condición de santuario de peregrinación mariana. (OVIEDO, 1930, p. 175-177, 179-180 y 190) 54 Bogotá, Biblioteca Nacional de Colombia, Ms. 198, Joaquín de Finestrad, El vasallo instruido en el estado del Nuevo Reino de Granada y en sus respectivas obligaciones (1789), cap. IV, p. 92-96; cap. VI y cap. VII, p. 152-56 y cap. XII, p. 348-50. 56 Iconografia musical na América Latina 7 La música, el canto y el baile Regresando a las pinturas de las ventas de Aguabuena y de Palmas y teniendo en cuenta sus alusiones musicales, consideraremos algunas referencias al canto, baile y música durante este periodo en la misma región. Ante la ausencia de fuentes sobre la distribución espacial y decoración de ventas y posadas, estas referencias pueden servir para ilustrar algunas características de las actividades de diversión que pudieron haber ocurrido en ellas, así como en otros lugares públicos y otros contextos musicales, tanto públicos como domésticos. En el caso de El Socorro, tal vez las actividades musicales publicas más tempranas de que tenemos noticia sean las de la celebración del nombramiento del arzobispo Caballero y Góngora como Virrey y Capitán General de la Nueva Granada en febrero de 1784. (ORTIZ, 1962) La elite de esta villa celebró su nombramiento a pesar de haber sido él quien desarticuló el movimiento comunero y de que sobre el recaían sospechas de hechos irregulares relacionados con la muerte súbita de su antecesor Juan de Torrezar Pimienta (¿-1782) y de publicar durante meses el perdón real para los Comuneros del Socorro que éste último había traído desde España. (LUCENA SALMORAL, 2018a, 2018b) De acuerdo con los documentos conocidos la celebración, que incluyó la presentación de tres comedias, una zarzuela, numerosos bailes públicos – contradanzas – con esmeradas coreografías y la interpretación de una “obertura” de música instrumental por parte de “caballeros aficionados” son hechos totalmente inéditos en el contexto del virreinato, un nivel de actividad musical equivalente o tal vez mas desarrollada que en sus ciudades principales como Santafé, Cartagena y Popayán. El documento no menciona los bailes y festividades ocurridos en los barrios bajos de la villa durante la semana que duraron las fiestas – del 7 al 15 de febrero – que a juzgar por algunos documentos un posteriores debieron ser muy numerosos y nutridos. La actuación del arzobispo en 1781 ya había sido objeto de festejo en la misma villa. En noviembre de ese año los vecinos del barrio de Chiquinquirá – la plazuela de los plebeyos donde surgió la insurrección – lo visitaron portando una “imagen de María Santísima y cantaron los versos siguientes”: siguen aquí quince redondillas en alabanza y agradecimiento a la Virgen y al arzobispo. Por la corrección gramatical y el tono obediente de su lenguaje, Phelan cree que fueron compuestos por alguno de los capuchinos de Finestrad. (BUREN, 1981; PHELAN, 2011, p. 217-218) Desafortunadamente “Las cuatro partes del mundo” 57 desconocemos la música con que se cantaron, pero se trata de un interesante ejercicio de diplomacia musical. Otra festividad real, la jura del rey Carlos IV (1748-1819) quien asumió el trono en 1788, nos proporciona datos adicionales que esta vez involucran a los negros y mulatos, esclavos y libres habitantes de la villa y sus alrededores. Según el prior del convento de los Capuchinos esta celebración se hizo el día de la patrona de la villa el 27 de junio de 1790 con una treintena de hombres que ensayaron e hicieron sus “evoluciones militares y descargas” lo que se repitió seis meses después. Además, el 30 de enero de 1791, se congregaron en frente del convento más de ochenta personas “esclavos de los mas visibles de aquí”, también “libres” además de “algunos blancos con sus hijos” y los “muchachos de la escuela”. El prior describe esta reunión como un “juego a la manera de los tangos o Cabildos de negros de La Habana, Cartagena y Panamá”. Además, indica que los muchachos fueron reprendidos y volvieron a la escuela y que la queja de este hecho ante el cabildo local solo provocó risa, lo que nos hace suponer que para ellos era algo conocido, tolerado e inofensivo. La comunicación indica que llevaban “tamborcitos, sables de madera, banderas de pañuelos y de papel” y que nombraron dignatarios y eligieron un rey “que iba decentemente vestido y aun con su quitasol”.55 Esta es la segunda mención conocida de la palabra tango en un contexto festivo y musical en América, la primera proviene de Nueva Orleans en 1786. (BERMÚDEZ, 2014) En Panamá, para la misma celebración en 1790, la relación menciona el aderezo de la plaza principal que contenía algunos elementos del programa iconográfico de que tratamos. Por un lado, estaban presentes las cuatro virtudes del nuevo soberano personificadas en estatuas de la Prudencia, Justicia, Fortaleza y Templanza, relacionadas además con los cuatro puntos cardinales. Además, el tablado costeado por los comerciantes de la ciudad estaba ornamentado con pinturas de los símbolos de sus actividades de importación y exportación ultramarina, es decir, Europa, América, “el dios Mercurio y dos globos enlazados con dos navíos” explicados en letreros y décimas “muy expresivas en su afecto” que desafortunadamente el relator no transcribe. (FAJARDO DE RUEDA, 1999, 55 Bogotá, AGNC, Colonia, Miscelánea, 143, ff. 670-672v. En 1791, el domingo de Resurrección correspondió al 27 de marzo y el miércoles de Ceniza al 7 de febrero; el martes de Carnaval el día anterior. 58 Iconografia musical na América Latina p. 199 y 201) En Cartagena, la misma celebración en febrero de 1790 contó con un espectáculo semejante – carro, triunfal, danza, vestidos, música, tablado e iluminación – preparado por los comerciantes catalanes de la ciudad del cual conocemos la cuenta de gastos, pero no sus detalles teatrales o musicales.56 En ninguno de los dos casos se mencionan los bailes o “tangos” de los Cabildos de negros y mulatos de aquellas ciudades que habían motivado el comentario del capuchino de El Socorro. Referencias musicales adicionales – en el contexto del baile de diversión público – ocurre en 1804, aparecen en Simacota (Santander) donde María Isabel del Castillo, de 30 años, blanca, hilandera y acusada de instigar el asesinato de su marido, indica que tocaba la guitarra en la que interpretaba “sones de bailar”, además de “una contrandanza y el fandanguillo”.57 Poco después, en 1807, los documentos de un pleito de jurisdicción entre los alcaldes de Barichara – en la misma zona – describen un “fandango” o baile, hecho por dos mujeres solteras, para la velación de un niño (angelito) hijo de una de ellas, en donde los músicos del pueblo tocaron arpa, violín y tiple. Los documentos dejan ver que los dos alcaldes que litigaban instigaron la celebración de estos bailes y asistieron a ellos.58 Vemos aquí que, tanto la guitarra como el violín de las pinturas de Aguabuena y del letrero de Palmas contaban ya con una tradición local. La historia de la región estuvo íntimamente ligada a los tumultos populares en contra del gobierno. En Simacota, por ejemplo, había sido cura el controvertido canónigo Andrés Rosillo (1758-1835) perseguido por las autoridades españolas por fomentar la revolución y quien aparentemente por sus influencias evitó ser juzgado por vivir amancebado con una de sus sobrinas, tanto allí cono en Fómeque y Santafé donde ella lo había seguido.59 (IBÁÑEZ, 1989, v. II, p. 355-357) También nació allí el hermano lego dominico Ciriaco de Archila (1724-1792) autor del libelo-poema que sirvió de instigador a la insurrección de 1781 por lo cual fue desterrado a España (Cádiz) donde murió. (ARIZA S., 1971, p. 32; PHELAN, 2011, p. 72-74) Así pues, no es casual que casi dos siglos 56 AGNC, Colonia, Historia Civil, 20, ff. 297-317. 57 AGNC, Colonia, Juicios Criminales, 44, ff. 854-57v. 58 AGNC, Colonia, Policía, 6, ff. 337-78. 59 Ver también León Soler y Rodríguez Gómez (2012), y Vanegas Useche (2012). La fuente principal para este episodio en la vida de Rosillo es el trabajo de Rodríguez Plata (1944). “Las cuatro partes del mundo” 59 después esta población de convirtiera una vez más en epicentro de insurgencia contra el gobierno nacional.60 Ya en la época de la nueva republica, la celebración en El Socorro de la victoria en las batallas de Junín y Ayacucho en junio de 1825 contó con varios “bailes públicos” así como una “mojiganga” o “máscara” es decir un cuadro teatral con disfraces en barrio de Chiquinquirá y en Santa Bárbara, la presentación del “Monólogo de Guzmán el Bueno”. La “máscara” teatral ridiculizaba a los odiados capuchinos quienes subyugaban un grupo de indígenas, pero huían ante la presencia de un retrato de Bolívar. En el convento de Capuchinos, ahora Colegio de la provincia, además del monólogo se dio un baile y al día siguiente una “patética comparación” de lo que el colegio significaba antes y después de la independencia, a lo que siguió otro baile.61 Para 1825, el “Monólogo de Guzmán el Bueno” era bien conocido en España en dos versiones, la de Tomas de Iriarte (1750-1791) y la parodia de Félix M. de Samaniego (1745-1801). El texto de Iriarte (de 1791) prescribe la presencia de una orquesta y de música incidental compuesta por él mismo que describe las escenas de la obra y que incluye movimientos como “adagio triste”, “adagio grave”, “andante sonoro y majestuoso con instrumentos” y un “largo afectuoso y lamentable”. La trompeta, el clarín y el “redoble de atabales” acompañan también los momentos cruciales de la obra; una “marcha” y un “adagio lento” enmarcan el momento del lanzamiento del puñal a sus enemigos que con el muera su hijo cautivo, escena que termina con un “largo muy triste con sordinas y flautas”.62 (IRIARTE, 1805) 60 En enero de 1965, Simacota sería objeto de la primera acción espectacular del Ejército de Liberación Nacional (ELN) y de su columna denominada “José Antonio Galán” homenaje al líder de la insurrección de 1781 que era el mismo nombre del batallón del Ejercito Nacional que los enfrentó. “100 bandoleros asaltan a Simacota, Santander”, El Tiempo, 8 de enero de 1965, p. 1 y 22 y “El asalto a Simacota”, 9 de enero de 1965, p. 1, 6, 8 y 24. Un año mas tarde, el 15 de febrero de 1966, el sociólogo y sacerdote Camilo Torres Restrepo (1929-1966), que se había unido a ese movimiento armado muere en un enfrentamiento con el Ejercito Nacional, ver “Nueve muertos en combate en Santander”, El Tiempo, 16 de febrero de 1966, p. 1 y 24 y “Muerto Camilo Torres en el combate de Santander”, 17 de febrero de 1966, p. 1 y 9. En 1989, Simacota – en el corregimiento de La Rochela – fue el escenario de la masacre de más de una decena de funcionarios judiciales que investigaban los crímenes de los grupos paramilitares en la región. Ver Henderson (2015, p. 74 y 138). 61 AGNC, República, Historia Civil, 6 (2), ff. 866-72. La batalla de Junín ocurrió el 6 de agosto de 1824 y la de Ayacucho el 9 de diciembre del mismo año, ambas en la zona andina central de Perú. 62 Ver también Segura González (1994). 60 Iconografia musical na América Latina Al año siguiente en El Socorro se celebraron en diciembre las “fiestas nacionales” en donde posiblemente tuvieron lugar actos semejantes y también se hicieron “certámenes y actos literarios” en el colegio de la provincia que, como dijimos, se había establecido en el ya mencionado convento de capuchinos al comienzo de aquel año.63 Los símbolos de la cultura clásica mantuvieron su lugar en las fiestas publicas de esta y otras regiones vecinas. Como observa Ancízar algunas poblaciones de la región contaban con un “cura ilustrado” – como en el caso de Guayatá (sureste de Boyacá) parroquia fundada en 1821 – donde él oyó en la iglesia “bien ejecutada música de coro, vocal e instrumental, desempeñada por jóvenes del pueblo”. (ANCÍZAR, 1853, p. 373) En 1825, para la inauguración de la escuela de enseñanza mutua – método de Lancaster – en dicha población, los símbolos clásicos mantuvieron su vigencia en el acto que además sirvió para conmemorar la victoria en Junín y Ayacucho. Como había ocurrido en El Socorro, un retrato de Bolívar presidió la celebración en un carro triunfal, sostenido por tres jóvenes que como “ninfas” personificaban la Victoria, la Justicia y la Sabiduría. El carro recorrió las calles adornadas con arcos triunfales escoltado por músicos y por los notables del lugar montados a caballo en medio de fuegos artificiales y del repique general de campanas. (PITA PICO, 2018, p. 131-132) Sabemos poco sobre el canto, la música y el baile en las tabernas y ventas, pero contamos con abundante iconografía pues fue uno de los tópicos de la pintura centroeuropea desde el siglo XVI, especialmente en los Países Bajos en el siglo siguiente y en ellos coexisten las imágenes del disfrute de estas actividades y de los encuentros sexuales casuales inherentes a ellas con la censura moral o connotación de pecado que traen consigo. (ALPERS, 1972-1973, p. 165 y 176; SCHAMA, 1987, p. 130-220) Este tipo de pinturas es muy raro en el contexto hispánico, lo que no implica que las actividades retratadas en las obras europeas, no se practicaran en las tabernas y ventas españolas y latinoamericanas. En el medio hispánico, las ventas y mesones desde el siglo XVI se asociaban con la mala vida, los “pícaros”, prostitutas y tahúres, una relación ampliamente ilustrada en la literatura de la época. 63 “Fiestas nacionales”, Gaceta de Colombia, 280, 25 de febrero de 1827, s.p.; “Educación publica”, 283, 18 de marzo de 1827, s.p. y ‘Parte Oficial. Colegio del Socorro’, 725, 5 de febrero de 1826, s.p. “Las cuatro partes del mundo” 61 (DELEITO Y PIÑUELA, 1986, p. 140 y 145-146) Además, el baile y la presencia de músicos y actores en ventas y posadas era también un importante atractivo para sus clientes. (DELEITO Y PIÑUELA, 1966, p. 67, 75 y 226) Hemos mencionado como desde mediados del siglo XVII y a pesar de sus implicaciones políticas e imperiales, en Inglaterra la alegoría se llevó a la simple decoración de objetos cotidianos fabricados y consumidos por las clases medias. Un ejemplo interesante es la loza inglesa con motivos mitológicos (sirenas) que se encontró en la excavación arqueológica de una taberna de London Town – Maryland, Estados Unidos – de alrededor de 1725. (LUCKENBACH, 2002) Ya desde la antigüedad sabemos que la sirena simbolizaba el pecado, que también estaba simbólicamente vinculado al baile y que en forma coherente se podía considerar adecuada para la decoración de lugares públicos de diversión. (GISBERT, 1987, p. 224) Hoy no contamos con muchos ejemplos de decoración de posadas, tabernas y salas públicas de baile; aunque un óleo de John Lewis Krimmel (1786-1821) y sus reproducciones muestran letreros y cuadros en la pared de una taberna de Filadelfia de alrededor de 1819-1820.64 En París, otro ejemplo muestra pinturas de figuras humanas masculinas y femeninas en las paredes del cabaret o “Taverne a la mode” au Tambour Royal (ca. 1748-1790) de Jean Ramponneau (1724-1802) que retrata fielmente la presencia de cantos, comida, bebida, vendedores ambulantes, las empleadas del lugar y el publico asistente, masculino y femenino.65 La decoración de las ventas de Aguabuena y Palmas parece pertenecer entonces a una tradición muy bien establecida. Además, la asociación de tabernas y posadas con la música y el baile también tiene ejemplos en nuestro medio. En esos mismos años contamos con pocas descripciones de ventas en el territorio de la actual Colombia como la de Alcide d’Orbigny (1802-1857) quien narra en 1826 como en la Venta Grande – entre 64 Washington, D.C., Library of Congress, Prints and Photographs Division en: http://loc.gov/ pictures/resource/ppmsca.22808/ y John Lewis Krimmel, Barroom dancing en Wikiart. Visual Art Encyclopaedia, https://www.wikiart.org/en/john-lewis-krimmel/barroom-dancing-1820. 65 Paris, Musée Carnevalet, inv. D3571, Etienne Bericourt, Le Cabaret Ramponneau, c. 1784-1794, y Scene de cabaret, chez Ramponaux, inv. D4714 en: http://parismuseescollections.paris.fr/fr/musee-carnavalet/oeuvres/le-cabaret-ramponneau#infos-principales y http://parismuseescollections. paris.fr/fr/node/93381. Contamos además con información sobre la reglamentación y los productos que se vendían en las ventas (auberges) y cabaret de las colonias francesas en América (Nueva Orleans, Cape Breton, Quebec) ver Proulx (2018). 62 Iconografia musical na América Latina Honda y Guaduas – y en otras semejantes, era frecuente encontrar alguien que “atormentara” una “guitarra con resonador de calabazo” confirmando además la disponibilidad de chicha, guarapo, arepas y carne seca (Imagen 20). Este autor añade que la venta era muy pobre y había que dormir en hamaca propia. (ORBIGNY, 1836, p. 84, pl. IX, 2) Imagen 20 – “Venta entre Honda et Sargento”, Alcide d’Orbigny (1836, pl. IX, 2) Fuente: fotografía de Egberto Bermúdez. La presencia de instrumentos musicales – guitarra y violín – en la de Aguabuena y la alusión a esos mismos instrumentos en el letrero de la Las Palmas le da un especial significado a las pinturas de esta casa, convirtiéndolas posiblemente en el único ejemplo que conocemos – desafortunadamente solo a través de fotografías – de cómo era un espacio del siglo XVIII en la Nueva Granada (hoy “Las cuatro partes del mundo” 63 Colombia), dedicado a la sociabilidad, el descanso, el entretenimiento público, la diversión, la bebida, el canto y el baile. La desaparición de la venta de Palmas del Socorro – para llamarla con el nombre que presumiblemente tuvo – no es el primero ni será el último caso que ilustra las dificultades, tanto técnicas como políticas, en la preservación de este tipo de patrimonio en nuestro medio. Otro ejemplo muy ilustrativo es la historia de las pinturas murales (ca. 1580) de la Casa del Deán de Puebla, México.66 Después de heredarla de su familia, el historiador del arte Francisco Pérez de Salazar (1888-1941) reveló sus impresionantes frescos en forma discreta en una de sus publicaciones de mediados de los años treinta y poco después, los volvió a recubrir con cal para evitar la expropiación del predio. A su muerte, sus herederos vendieron la casa a un empresario cinematográfico que la demolió casi en su totalidad para construir un gran teatro que hoy es un complejo de varias salas de cine. Estudiantes e intelectuales se opusieron físicamente a la demolición en 1953 logrando mantener solo la fachada y las dos salas que hoy se conservan. En 2011, después de litigios, negociaciones y de una última restauración, se abrió al público en calidad de museo bajo la administración del Instituto Nacional de Antropología e Historia (Inah).67 (MORRILL, 2014, p. 1-2) Sin embargo, ya en 2013 un artículo periodístico denunciaba el mal estado de la edificación. (LLAVEN ANZURES, 2013). Referencias ALPERS, Svetlana. Bruegel festive peasants. Simiolus: Netherlands Quarterly for the History of Art, [s. l.], v. 6, n. 3/4, p. 163-17, 1972-1973. ÁLVAREZ PLATA, María Isabel. El desalmado manejo del patrimonio cultural: el caso del templo de Achocalla’ Página Siete, La Paz, 20 dic. 2015. Disponible en: https://www.paginasiete.bo/cultura/2015/12/20/desalmado-manejopatrimonio-cultural-caso-templo-achocalla-80828.html. Acceso en: 10 sept. 2018. 66 Las pinturas de la venta ya aparecen en la lista de bienes de interés cultural en 2013, donde se les llama ‘dibujos ancestrales’, ver Inventario (2013, p. 27-28). 67 Ver también Castro (2013). 64 Iconografia musical na América Latina ANCÍZAR, Manuel. La Peregrinación de Alpha. Bogotá: Imprenta de Echeverría Hermanos, 1853. ARELLANO, Ignacio. América en las fiestas jesuitas: celebraciones de san Ignacio y san Francisco Javier. Nueva Revista de Filología Hispánica, Ciudad de México, v. 56, n. 1, p. 53-86, 2008. ARIZA S., Alberto E. Fray Ciriaco de Archila, primer prócer de la libertad absoluta de Colombia y Fray José Simón de Archila, preceptor y libertador del León de Apure. Bogotá: Academia Colombiana de Historia, 1971. ATTENBOROUGH, David. Micro Monsters. 2013. Disponible en: https://ihavenotv. com/courtship-micro-monsters-with-david-attenborough. Acceso en: 10 sept. 2018. BANCES CANDAMO, F. A. de. La comedia de Duelos de Ingenio y Fortuna. Madrid: Imprenta de Bernardo Villadiego, 1687. BERMÚDEZ, Egberto. Cien años de tango en Colombia, 1913-2013. In: AHARONIÁN, Coriún (ed.). El tango ayer y hoy. Montevideo: Centro de Documentación Musical “Lauro Ayestarán”, 2014. p. 243-326. BROOKS, Mary B. The early English works. In: BROOKS, Mary M.; FELLER, Elizabeth; HOLDSWORTH, Jacqueline. Micheal & Elizabeth Feller: the needlework collection 1. Hascombe: Needleprint, 2011. p. 1-124. BUREN, E. Douglas van. Canto en homenaje al arzobispo Caballero y Góngora, compuesto e interpretado por los vecinos de El Socorro’ Doc. No. 86. In: FRIEDE, Juan (ed.). Rebelión comunera de 1781: documentos. Bogotá: Instituto Colombiano de Cultura, 1981. t. I, p. 229-230. BUREN, E. Douglas van. The Scorpion in Mesopotamian Art and Religion. Archiv für Orientforschung, [s. l.] v. 12, p. 1-28, 1937-1939. CARNEIRO, Sarissa. Espectáculo Fúnebre y Expresión Figurada: el Breve Compendio e Narraçam do Fúnebre Espectáculo (1709) de Sebastião da Rocha Pita. Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, Lima, año 40, n. 79, p. 325-358, 2014. CARREÑO TARAZONA, Clara Inés. Las vías hacia el Magdalena: los caminos de lebrija y sogamoso en el siglo XIX. Apuntes, Bogotá, v. 23, n. 2, p. 104-117, jul./ sept. 2010. “Las cuatro partes del mundo” 65 CASTRO, Efraín. Algunas consideraciones acerca del deán de Tlaxcala Tomás de la Plaza Goes (1519-15870): fortuna y vicisitudes de su casa. In: KÜGELGEN, Helga von (ed.). Profecía y triunfo: la casa del Deán Tomás de la Plaza: facetas plurivalentes. Frankfurt: Vervuert Verlagsges, 2013. p. 11-46. CASTRO, Joseph. Animal Mating: How Scorpions Do It. Live Science, New York, June 6, 2016. Disponible en: https://www.livescience.com/54981-animal-sexscorpions.html. Acceso en: 17 sept. 2018. CIRINO, Andrea. Feste celebrate a Napoli per la nascita del Serenisimo Prencipe di Spagna Nostro Signore... [Napoli: Carlo Faggioli, 1659]. CLARE, Lucién. Una poesía vasca compuesta con ocasión del nacimiento del príncipe Felipe Prospero (1657) y publicado en la Universidad de Salamanca en 1658. Fontes Linguae Vasconum, [s. l.], v. 18, p. 397-450, 1974. CODAZZI, Agustín. (dir.). Obras completas de la Comisión Corográfica: geografía física y política de la Confederación Granadina. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2004. v. 5: Estado de Santander. CREISHER, Alice; SIEKMANN, Andreas; HINDERER, Max Jorge. Interview with the Curators of the Exhibition Principio Potosí/Das Potosí-Prinzip /The Potosí Principle on the Mobility of Colonial Baroque Paintings between Europe and the America. Darkmatter: in the ruins of imperial culture, [London], 18 Nov. 2013. Disponible en: http://www.darkmatter101.org/site/2013/11/18/interview-withthe-curators-of-the-exhibition-principio-potosi-das-potosi-prinzip-the-potosiprinciple-on-the-mobility-of-colonial-baroque-paintings-between-europe-and-theamericas/. Acceso en: 23 mayo 2018. CRUZ, Sor Juana Inés de la. Obras Completas, III. Autos y Loas. México: FCE, 1994. CURIEL, Gustavo. Biombos novohispanos: escenografías de poder y transculturación en el ámbito doméstico. In: VIENTO Detenido: Mitologías e Historias en el Arte del Biombo: Biombos de los Siglos XVII al XIX en la Museo Soumaya. México: Asociación Carso A.C, 2002. p. 9-32. CURIEL, Gustavo. Biombo: entrevista de Cortés y Moctezuma y las cuatro partes del mundo. Imágenes, México, 2009. Disponible en: http://www.esteticas.unam. mx/revista_imagenes/imago/ima_curiel06.html. Acceso en: 17 jun. 2018 DELEITO Y PIÑUELA, José. La mala vida en la España de Felipe IV (1948). Madrid: Alianza Editorial, 1986. 66 Iconografia musical na América Latina DELEITO Y PIÑUELA, José. También se divierte el pueblo (1944). Madrid: EspasaCalpe, 1966. EZPELETA, José de. Relación del Gobierno del ... en este Nuevo Reino de Granada..., 1796. In: COLMENARES, Germán (ed.). Relaciones e Informes de los gobernadores de la Nueva Granada. Bogotá: Biblioteca Banco Popular, 1989. t. II, p. 153-311. FAJARDO DE RUEDA, Marta. La jura de rey Carlos IV en la Nueva Granada. Anales del Instituto de Investigaciones Estéticas, México, v. 22, n. 74/75, p. 195-209, 1999. FLORESCANO, Enrique. Alegorías de la patria en el virreinato. La Jornada, 17 de jun. 2014. Disponible em: http://www.jornada.com.mx/2004/06/17/imaalego.html. Acceso en: 17 jun. 2018. FOWDEN, Gerth. Public religion. In: CAMBRIDGE UNIVERSITY PRESS. The Cambridge Ancient History: volume 12: The Crisis of Empire, AD 193-337. Cambridge: CUP, 2005. p. 553-572. FREMBGEN, Jürgen Wasim. Scorpions in Muslim Folklore. Asian Folklore Studies, Nagoya, v. 63, n. 1, p. 95-123, 2004. GISBERT, Teresa. Calderón de la Barca y la pintura virreinal andina. In: ICONOLOGÍA y sociedad: Arte colonial hispanoamericano: XLIV Congreso Internacional de Americanistas. México: UNAM, 1987. p. 221-242. GUZMÁN, Ángela I. Poblamiento y urbanismo colonial en Santander: (estudio de diez pueblos de la región central). Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 1987. HAMM, Charles. Music in the new world. New York: W. W. Norton and Co., 1978. HENDERSON, James D. Colombia’s Narcotics Nightmare: How the drug trade destroyed peace. Jefferson, NC: McFarland and Co. Inc., 2015. HERNÁNDEZ, Francisco. Antigüedades de la Nueva España. Madrid: Dastin, 2000. HIDALGO, Gaspar Lucas. Dialogo de apacible entretenimiento: que contiene unas carnestolendas de Castilla. Bruselas: Roger Velpius, 1610. HONOUR, Hugh. The new golden land: European images of America from the discoveries to the present time. London: Pantheon Books, 1975. IBÁÑEZ, Pedro M. Crónicas de Bogotá. Bogotá: Academia de Historia de Bogotá/ Tercer Mundo, 1989. “Las cuatro partes del mundo” 67 INVENTARIO de bienes de interés cultural del municipio de Palmas del Socorro. Palmas del Socorro: Administración Municipal, 2013. IRIARTE, Tomás de. ‘Guzmán el Bueno, soliloquio u escena trágica unipersonal, con música en sus intervalos’ (1791). Madrid: Imp. Real, 1805. p. 319-340. (Colección de obras en verso y prosa, VII). KISH, G. The “mural atlas” of Caprarola. Imago Mundi, [s. l.], v. 10, n. 1, p. 51-56, 1953. LAMO ARENAS, Ramiro. Notas sobre arriería. Revista Colombiana de Folclor, Bogotá, n. 2, p. 56-66, 1960. LEÓN SOLER, Natalia; RODRÍGUEZ GÓMEZ, Juan Camilo. La fatídica muerte de “La Rectora. Revista Credencial, Bogotá, agosto 2012. Disponible en: http://www. revistacredencial.com/credencial/historia/temas/la-fatidica-muerte-de-la-rectora. Acceso en: 2 jul. 2018. LLANOS VARGAS, Héctor. El poder de las imágenes sagradas en el proceso de extirpación de idolatrías, siglos XVI-XVIII. In: LLANOS VARGAS, Héctor. Estudios históricos y arqueológicos. [S. l.], 12 mayo 2014. Disponible en: http:// ensayoshistoricosyarqueologicos.blogspot.com/ 2014/05/el-poder-de-lasimagenes-sagradas-en-el.html. Acceso en: 2 jul. 2018. LLAVEN ANZURES, Yadira. En el abandono, la Casa del Deán en Puebla; es una de las viviendas más antiguas. La Jornada de Oriente, Puebla, 13 sept. 2013. Disponible en: http://www.lajornadadeoriente.com.mx/puebla/en-el-abandonola-casa-del-dean-en-puebla-es-una-de-las-viviendas-mas-antiguas/. Acceso en: 2 jul. 2018. LÓPEZ PÉREZ, María del Pilar. Biombo con la iglesia de Nuestra Señora de Las Aguas, Santafé de Bogotá: pintura inédita de la segunda mitad del siglo XVII. In: LÓPEZ GUZMÁN, Rafael; GUASCH MARÍ, Yolanda; ROMERO SÁNCHEZ, Guadalupen (ed.). América: cultura visual y relaciones artísticas. Granada: Ediciones Universidad de Granada, 2015. p. 425-438. LUCENA SALMORAL, Manuel. Antonio Caballero y Góngora. REAL ACADEMIA DE LA HISTORIA. Diccionario Biográfico electrónico. Madrid: Real Academia de la Historia, 2018b. Disponible en: http://dbe.rah.es/biografias/14044/antoniocaballero-y-gongora. Acceso en: 12 jul. 2018. LUCENA SALMORAL, Manuel. Juan de Torrezar y Diaz Pimienta. In: REAL ACADEMIA DE LA HISTORIA. Diccionario Biográfico electrónico. Madrid: 68 Iconografia musical na América Latina Real Academia de la Historia, 2018a. Disponible en: http://dbe.rah.es/ biografias/16033/juan-de-torrezar-y-diaz-pimienta. Acceso en: 12 jul. 2019. LUCKENBACH, Al. Ceramics from the Edward Rumney/Stephen West Tavern, London Town, Maryland, Circa 1725. Ceramics in America, Wisconsin, 2002. Disponible en: http://www.chipstone.org/article.php/45/Ceramics-inAmerica-2002/Ceramics-from-the-Edward-Rumney/-Stephen-West--Tavern,London-Town,-Maryland,-Circa-1725. Acceso en: 23 agosto 2018. MARTÍNEZ DEL RIO DE REDO, María Josefa.‘Iconología humanista en un biombo del siglo XVII. In: ICONOLOGÍA y sociedad: arte colonial hispanoamericano: XLIV Congreso Internacional de Americanistas. México: UNAM, 1987. p. 125-138. MAYOR, Adrienne. Greek fire, poison arrows and scorpion bombs: biological and chemical warfare in the ancient world. New York: Duckworth, 2009. MCFARLANE, Anthony. Colombia before independence: economy, society, and politics under Bourbon rule. Cambridge: CUP, 1993. METCALF, William E. Hadrianic Novelties. Yale University Art Gallery Bulletin, New Haven, p. 42-47, 2011. MIDDLETON, Charles Theodore. A new and complete system of geography. London: J. Cooke, 1777. MOLLIEN, Gaspard Theodore. Voyage dans la Republique de Colombia en 1823. Paris: Arthus Bertrand, 1825. MORALES FOLGUERA, José M. La iconografía de los cuatro continentes: Creación de los modelos en Europa y su traslado a Hispanoamérica. In: PEREIRA, Ana Martínez; INFANTES, Víctor; OSUNA, Inmaculada (ed.). Palabras, símbolos, emblemas: Las Estructuras Gráficas de la Representación. Madrid: Turpin Editores: Sociedad Española de Emblemática, 2013. p. 399-410. MORALES FOLGUERA, José M. Las imágenes de los cuatro continentes del escultor chileno Virginio Arias (1855-1941). Boletín de Arte, Málaga, n. 24, p. 53-70, 2003. MORRILL, Penny C. The Casa del Dean: New World Imagery in a Sixteenth Century Mural Cycle. Cambridge: CUP, 2014. NAVARRETE PRIETO, Benito. Ideario volante: la estampa como medio de difusión y transmisión de formas en el barroco virreinal’. In: VIENTO Detenido: “Las cuatro partes del mundo” 69 Mitologías e Historias en el Arte del Biombo: Biombos de los Siglos XVII al XIX en la Colección del Museo Soumaya. México: Asociación Carso A.C, 2002. p. 33-46. ORBIGNY, Alcide d’. Voyage pitoresque dans les deux Amériques. Paris: L. Tenré, 1836. ORTIZ, Sergio Elías. Un homenaje al arzobispo - Virrey: fiestas populares en El Socorro en 1784. Boletín Cultural y Bibliográfico, Bogotá, v. 5, n. 12, p. 1566-157, 1962. OVIEDO, Basilio Vicente de. Cualidades y riquezas del Nuevo Reino de Granada (1761). Bogotá: Biblioteca de Historia Nacional, 1930. PASCUAL CHENEL, Álvaro. Fiesta sacra y poder político: la iconografía de los Austrias como defensores de la Eucaristía y la Inmaculada en Hispanoamérica. Hipogrifo, Pamplona, v. 1, n. 1 p. 57-86, 2013. PHELAN, John L. The people and the king: the comunero revolution in Colombia, 1781. Madison: The University of Wisconsin Press, 2011. PITA PICO, Roger. Patria, educación y progreso: el impulso a las escuelas y colegios públicos en la naciente Republica de Colombia: 1819-1828. Bogotá: Academia Colombiana de Historia, 2018. PLANCY, Jacques Collin de. Dictionnaire infernal. Paris: P. Mongié, 1818. PROULX, Gilles. Vie quotidienne, divertissements. Quebec, 2018. Disponible en: https://www.museedelhistoire.ca/musee-virtuel-de-la-nouvelle-france/viequotidienne/divertissements/. Acceso en: 4 dic. 2018. RAMÍREZ DE VARGAS, Alonso. Elegía al capitán don José de Retes Largache, patrono del templo de San Bernardo en México (1691). In: MALDONADO MACÍAS, Humberto (ed.). Teatro mexicano: historia y dramaturgia. México: Conaculta, 1992. p. 175-179. v. VIII: la teatralidad criolla del siglo XVII. RAMOS SOSA, Rafael. Arte festivo en Lima virreinal (siglos XVI y XVII). Sevilla: Junta de Andalucía, 1992. RAYMOND, Pierre. Santander, el algodón y los tejidos del siglo XIX. Revista Credencial, Bogotá, n. 258, ago. 2011. Disponible en: http://www. revistacredencial.com/credencial/historia/temas/santander-el-algodon-y-lostejidos-del-siglo-xix. Acceso en: 4 dic. 2018. REY FAJARDO, José del; GUTIÉRREZ, Alberto (ed.). Cartas anuas de la Provincia del Nuevo Reino de Granada: años de 1604 a 1621. Bogotá: Universidad Javeriana / Archivo Histórico Javeriano, 2015. 70 Iconografia musical na América Latina REY FAJARDO, José del; GUTIÉRREZ, Alberto. La Compañía de Jesús neogranadina en el siglo XVII. In: REY FAJARDO, José del; GUTIÉRREZ, Alberto (ed.). Cartas anuas de la Provincia del Nuevo Reino de Granada: años de 1604 a 1621. Bogotá: Universidad Javeriana/Archivo Histórico Javeriano, 2015. p. 25-128. REY-MÁRQUEZ, Juan Ricardo. La Jura de Fernando VII en 1808 en la villa de San Bartolomé de Honda. In: CIRILLO, José; ESPANTOSO RODRÍGUEZ, Teresa; VANEGAS, Carolina (ed.). Arte público y espacios políticos: interacciones y fracturas en las ciudades latinoamericanas. Belo Horizonte: C/Arte, 2011. p. 215-225. RIPA, Cesare. Iconologia overo descrittione dell’imagini universali cavate dall’antiquita et da altri luoghi. Roma: Herede di G. Gigliotti, 1593. RIPA, Cesare. Iconologia … ampliata di imagini…. Roma: Lepìdo Faci, 1603. RIPA, Cesare. Iconologia … ampliata di imagini…. Siena: Matteo Florini, 1613. RODRÍGUEZ GÓMEZ, Juan Camilo. La independencia del Socorro en la génesis de la emancipación colombiana. Revista Credencial, Bogotá, n. 242, oct. 2011. Disponible en: http://www.revistacredencial.com/credencial/historia/temas/ la-independencia-del-socorro-en-la-genesis-de-la-emancipacion-colombiana. Acceso en: 10 jun. 2018. RODRÍGUEZ MOYA, Inmaculada. La esperanza de la monarquía: fiestas en el imperio hispánico por el Felipe Prospero. In: RODRÍGUEZ MOYA, Inmaculada; MÍNGUEZ CORNELLES, Víctor (ed.). Visiones de un imperio en fiest. Valencia: Fundación Carlos de Amberes, 2016. p. 93-116. RODRÍGUEZ PLATA, Horacio. Andrés María Rosillo y Meruelo. Bogotá: Biblioteca de Historia Nacional, 1944. p. 29-35. SALAZAR Y TORRES, Agustín de. Loa para la comedia Elegir al enemigo (1664). In: MALDONADO MACÍAS, Humberto (ed.). Teatro mexicano: historia y dramaturgia. México: Conaculta, 1992, p. 75-81. v. VIII: la teatralidad criolla del siglo XVII. SÁNCHEZ, Efraín. Gobierno y geografía: Agustín Codazzi y la Comisión Corográfica de la Nueva Granada. Bogotá: El Ancora/Banco de la República, 1999. SCHAIK, Ank Adriaans van. Rubens’s Triumphal Chariot of Kallo Ancient triumph and Antwerp festive tradition. 2011. Thesis (Master) – Faculty of Humanities, University of Utrecht, Utrecht, 2011. SCHAMA, Simon. The embarrassment of riches: an interpretation of dutch culture in the golden age. New York: Vintage Books, 1987. “Las cuatro partes del mundo” 71 SEGURA GONZÁLEZ, Wenceslao. La gesta de Guzmán el Bueno en la literatura. Aljaranda: revista de estudios tarifeños, [Tarifa], v. 14, p. 28-35, 1994. SIGAUT, Nelly. La tradición de estos reinos. In: ARANDA, Ana María et al. (ed.). Barroco Iberoamericano: Territorio, Arte, Espacio y Sociedad. Sevilla: Universidad Pablo de Olavide, 2001. p. 477-498. SOLER VILLALOBOS, María Paz. El Palacio Real de La Granja: de retiro espiritual a escenario cortesano. In: EL ENTORNO de Segovia en la historia de la dinastía de Borbón. Madrid: Ministerio de Educación Cultura y Deporte, 2004. p. 17-34. SPICER, Joaneath. The Personification of Africa With An Elephant Head-Crest in Cesare Ripa’s Iconologia (1603). In: MELION, Walter S.; RAMAKERS, Bart (ed.). Personification: Embodying, Meaning and Emotion. Leiden: Brill, 2016. p. 667-715. TOVAR PINZÓN, Hermes. La batalla de los sentidos: infidelidad, adulterio y concubinato a fines de la colonia. Bogotá: Fondo Cultural Cafetero, 2004. TOVAR PINZÓN, Hermes. La batalla de los sentidos: infidelidad, adulterio y concubinato a fines de la colonia. 2ª ed. Bogotá: Uniandes, 2012. TOVAR PINZÓN, Hermes; TOVAR MORA, Camilo; TOVAR MORA, Jorge. Convocatoria al poder del numero: censos y estadísticas de la Nueva Granada 17501830. Bogotá: Archivo General de la Nación, 1994. VALERO JUAN, Eva. El imaginario real en la fiesta virreinal peruana: el caso de la relación de fiestas reales de Diego de Ojeda (1659). Prolija Memoria, segunda época, México, v. 1, n. 1, p. 31-55, 2017. VANEGAS USECHE, Isidro. Andrés Rosillo, un revolucionario inquietante. Revista Credencial, Bogotá, oct. 2012. Disponible en: http://www.revistacredencial.com/ credencial/historia/temas/andres-rosillo-un-revolucionario-inquietante. Acceso en: 10 jun. 2018. VÁSQUEZ GALICIA, Sergio A. El alacrán en Mesoamérica: transgresor sexual y símbolo de lo negativo. Itinerarios, Warszawa, v. 21, p. 101-122, 2015. VEGA UMBASIA, Leonardo A. Pecado y delito en la colonia: La bestialidad como una forma de contravención sexual (1740-1808). Bogotá: Instituto Colombiano de Cultura Hispánica, 1994. ZESEN, Filips van. Beschreibung der Stadt Amsterdam. Amsterdam: Joachim Koschen, 1664. 72 Iconografia musical na América Latina Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile Juan Pablo González 1 Introducción Terminando mis estudios de grado de musicología en la Universidad de Chile a comienzos de los años 1980, la primera ayudantía de investigación que enfrenté fue justamente la de un proyecto de iconografía musical. A su vez, este era el primer proyecto sistemático de iconografía musical realizado en Chile y uno de los primeros en América Latina. Fue liderado por Samuel Claro-Valdés entre 1979 y 1988 y hasta el presente es un referente en los estudios de iconografía musical en la región. (CLARO VALDÉS et al., 1989) Esta primera experiencia de investigación me despertó el interés por la búsqueda, registro y estudio de fuentes iconográficas musicales. Sin embargo, he continuado esa búsqueda más como el encuentro de una fuente al servicio de un proyecto, que como investigador o recopilador de fuentes visuales. Es así como a lo largo de estos años he puesto con frecuencia la iconografía musical a dialogar con la narración escrita y con la propia música estudiada. Sin embargo, al detenernos en la iconografía en sí misma, surge una multiplicidad de nuevas 73 preguntas producto de la multiplicidad de textos visuales en juego. Es esta detención en la propia iconografía musical la que espera aportar este capítulo. Conocer el rostro de los músicos del pasado había sido una tarea principal en la historia de la música occidental. Estar al corriente del y los rostros de un compositor y poder identificarlos, ha formado parte de su propia construcción canónica, reafirmada por el proceso de enseñanza musical y por la forma en que hemos representado a la música en el arte y la arquitectura, por ejemplo. Pareciera que al conocer el rostro de un compositor podemos escuchar su música mejor. Ese ha sido el uso más habitual que le había dado a la iconografía en mi investigación, compartiendo el entusiasmo de encontrar una foto, una portada de partitura, un cartel o un artículo ilustrado que nos ayudara a reconstruir mejor ese pasado fragmentado y difuso que pretendemos interrogar. De este modo se cumplía uno de los objetivos del proyecto de Claro Valdés (1979, p. 113), ofrecer “una amplia variedad de material iconográfico que sirva de ilustración para trabajos sobre música y músicos chilenos, debidamente clasificado y catalogado”. Sin embargo, con el paso del tiempo me he visto enfrentado a la necesidad de avanzar desde el uso de la imagen como ilustración o complemento de la investigación a su uso como parte más sustancial de ella, es decir, como fuente que necesitamos interrogar. El problema que enfrentaba entonces era cómo interrogar esa fuente y cómo ponerla a dialogar con las fuentes escritas y sonoras habituales en un proyecto musicológico. No cabe duda que las imágenes del pasado ofrecen una rica información de los fenómenos musicales que nos interesa estudiar. En el caso de la música del siglo XX, nos encontramos con fotografías, dibujos, caricaturas y diseño gráfico en portadas de partitura, carátulas de disco y publicidad. Sin embargo, en este período es la fotografía la que adquiere un valor preponderante como fuente visual para la investigación musical. Es así como en el marco del proyecto “Historia Social de la Música Popular en Chile en el siglo XX”, que empezamos a desarrollar en 1999 en la Universidad Católica de Chile y luego en la Universidad Alberto Hurtado con el apoyo del Fondo de Desarrollo Científico y Tecnológico (FONDECYT), hemos logrado reunir un acervo de unas 2 mil reproducciones digitales tomadas de fuentes gráficas de época – fotografías, prensa, cancioneros, partituras, carátulas de discos. De esas digitalizaciones, he seleccionado las 200 que mejor he podido interrogar como fuente visual para el estudio de la música popular del pasado. 74 Iconografia musical na América Latina Qué tipo de información nos entregan esas imágenes, cómo podemos agruparlas e interpretarlas, de qué manera podemos hacerlas dialogar con fuentes de otra naturaleza – como las sonoras y las escritas –, son las preguntas que guían este capítulo. En las siguientes páginas, me referiré a problemas del soporte y del contenido de las fotografías sobre las que he estado trabajando, considerando las imágenes de músicos y de público en distintas situaciones y en diferentes registros, y de los lugares para hacer y escuchar música. 2 Soporte y contenido Al considerar una imagen preservada en una fotografía como fuente, lo primero que debemos tener presente es que esa imagen proviene de determinados soportes o medios que cumple determinados fines. Se trata de soportes de época que poseen sus propias lógicas de rescate, conservación y archivo. Entonces, lo que hacemos en la investigación iconográfica es extraer esas imágenes de sus soportes originales y despojarlas de los fines para los que fueron producidas. Es así como realizamos nuestro propio inventario y análisis de imágenes que están descontextualizadas, fenómeno acentuado en la era digital. Como señala Pablo Sotuyo Blanco, el propio documento textual – con funciones y usos históricamente dados –, difícilmente puede ser considerado como una fuente visual documental. No obstante Sotuyo Blanco (2017, p. 52) nos advierte, “su reproducción fotográfica, destinada a ilustrar otros textos, sí podría serlo. Es allí donde se percibe una frontera extremadamente tenue que, al cruzarla, no habría más retorno, colocando en cuestión el proceso fundamental de identificación de fuentes visuales relativas a la cultura musical”. Si bien los archivos digitales ponen a disposición del investigador gran cantidad de fuentes visuales provenientes de distintos soportes, muchas veces frágiles o de difícil acceso, hay que tener presente que la mediación tecnológica a la que sometemos esas imágenes modifica también sus atributos – como tamaño, materialidad, contexto e inter-medialidad –, atributos que deberían ser imaginados en la lectura que hagamos de esa iconografía. En este capítulo considero sólo las fuentes iconográficas directas, no los registros actuales de objetos del pasado, como instrumentos, tecnología o lugares. Si bien en esos casos estamos poniendo de relieve el valor visual de un objeto del pasado, también estamos Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile 75 construyendo interesadamente una fuente iconográfica, cruzando esa tenue frontera que señala Sotuyo Blanco. En el estudio de la música popular del siglo XX, he podido identificar cinco soportes principales que son portadores de imágenes de interés iconográfico musical: 1. fotografías propiamente tales, conservadas por los músicos en sus archivos personales y también en archivos iconográficos institucionales;1 2. portadas de partitura de una hoja – editadas masivamente en Chile hasta mediados de la década de 1960 – que suelen contener imágenes de los solistas y/o agrupaciones que popularizaron la canción, junto a elementos de diseño gráfico; 3. carátulas de LPs, un formato más utilizado para la música clásica y el folclor, pero también utilizado para música popular desde comienzos de los años 1960, incluyendo habitualmente imágenes de los músicos que participan en el disco. Desde fines de la década de 1960, esas carátulas sumaron en forma creciente elementos de diseño gráfico, tomando de alguna manera el lugar que dejaban las portadas de partitura ya en retirada; 4. portadas y páginas interiores de cancioneros, que incluyen fotografías promocionales de los músicos; 5. ilustraciones de portadas y páginas interiores de revistas dedicadas a la industria musical y la juventud, como también de revistas magazinescas y de prensa en general. De este modo, en el estudio iconográfico, podemos estar analizando fotografías de época que permanecieron ocultas de la mirada del público en el archivo personal de un músico; que fueron utilizadas con fines promocionales para vender una partitura, un disco, un cancionero o una revista y al propio artista; que fueron tomadas y/o utilizadas por profesionales con fines estéticos; o que sirvieron para ilustrar alguna noticia o columna publicada por la prensa. En este último caso, que es el más frecuente, la fotografía constituye un producto y un medio para transmitir un mensaje no codificado, como diría Roland 1 Hasta la década de 1930 fueron también habituales las postales de cantantes populares y de ópera, que solían ser regaladas o comercializadas en sus presentaciones, muchas veces autografiadas. 76 Iconografia musical na América Latina Barthes. Se trata de un mensaje denotado o literal, sobre el cual el espectador puede construir connotaciones, que surgen de su lectura de la foto, pero que también pueden ser determinadas por el propio soporte emisor y transmisor. En dicho soporte trabaja un conglomerado de personas que han tomado, seleccionado, editado, diagramado, titulado y comentado la foto, como señala Barthes (1986). Dicha foto llega al público en un canal de transmisión – periódico o revista – que es portador de un racimo de mensajes que proveen un marco conceptual a la imagen, como un titular, un texto, un pie de foto, la compaginación, y la propia naturaleza del medio. (BARTHES, 1983, p. 11) En suma, estamos ante una situación inter-medial, que sería necesario tener presente al despojar a las fotografías del contexto desde donde fueron emitidas y transmitidas cuando constituimos un archivo iconográfico digital. En este capítulo, me centro en fotografías de la primera mitad del siglo XX que nos informan sobre los músicos, el público y los lugares o venues para hacer música. La relación inter-medial que establezco es mínima, reducida a la identificación de la fuente, su datación y la identificación de las personas, grupos, locaciones y cultura material presente en la fotografía. No me detengo en los textos escritos que puedan rodear la imagen. Las categorías de músicos, público y lugares han sido subdivididas internamente, como veremos a continuación, derivadas de la naturaleza de la fotografía, de su soporte e inter-medialidad y de los contenidos que nos entrega. 3 Los músicos Las fotografías de músicos constituyen el núcleo central y más cercano a la música que nos puede ofrecer una fuente iconográfica. Corresponden a la prolongación natural hacia el siglo XX de las obras de arte con representaciones de músicos, principal fuente iconográfica de los siglos anteriores y base del desarrollo de la propia iconografía musical en cuanto disciplina de investigación. Así lo demuestran sus comienzos a partir de la creación del Research Center for Music Iconography (RCMI), en 1972. En las fotografías de músicos recuperadas de soportes de época, podemos observar poses, gestos, actitudes, indumentaria y cultura material. Considerando la situación en la que se tomó la foto, enfrentamos al menos las categorías del Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile 77 reportaje y del retrato. En la fotografía de reportaje, partimos de la base que los hechos fueron tal como los presenta la imagen, pues se busca registrar el momento con ciertos grados de objetividad, en una suerte de etnografía visual. Asumimos que esa foto fue tomada en tiempo real, por lo que antes y después de ella la situación era distinta, como si le pusiéramos pausa a una película. Debido a su carácter noticioso, estas son las imágenes habituales en las páginas interiores de la prensa y parecen más cercanas al hecho musical en sí mismo. Es decir, asumimos había música sonando cuando la fotografía fue tomada. Imagen 1 – Ester Soré, Marta Yupanqui Donoso (1915-1996) Fuente: Claro Valdés y otros (1989, p. 427). En las fotos de reportaje, los músicos aparecen en sus situaciones performativas habituales: haciendo música ante el público o en la intimidad de un ensayo, de una grabación o de una clase. Es en este tipo de imágenes donde podemos observar modos de uso de instrumentos y configuraciones instrumentales, la disposición de músicos en la escena, la actitud y gestualidad de cantantes e instrumentistas, su relación con el público y con el espacio donde se encuentran y su indumentaria, junto a algunas estrategias de ensayo y de grabación y la tecnología de la que disponían. En suma, las fotografías de reportaje nos permiten inferir aspectos musicales y sonoros de la música con cierta precisión. 78 Iconografia musical na América Latina Imagen 2 – Las Huasas Andinas grabando en estudios de RCA Victor en Santiago Fuente: La Voz de RCA Victor (dic. 1946). En el retrato, en cambio, tanto el fotógrafo como el músico buscan entregarnos una (auto)representación del artista, construyendo alianzas, identidades Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile 79 y sentidos en base a su aspecto físico, actitudes y vestuario, junto a locaciones, luz y encuadres. Heredero de una larga tradición pictórica, el retrato fotográfico construye una composición con ambientes, trajes, maquillaje, posturas e iluminación. Ya sea en un estudio o en locaciones determinadas, el propio fotógrafo actúa como director de escena, definiendo la composición de aquello que va a registrar. El uso de estos procedimientos se manifiesta tanto entre los retratos colectivos como individuales de músicos Imagen 3 – Banda Giuseppe Verdi de la Sociedad Italiana L’Umanitaria de Santiago Fuente: La banda… (1910). En los retratos colectivos de músicos chilenos de mediados del siglo XX, encontramos agrupaciones con sus instrumentos en la mano y con su director posando. Se trata de retratos formales, en que la agrupación se presenta ordenada por filas de instrumentos con el director al centro o a un costado, normalmente en sus lugares habituales de trabajo. Según las fuentes iconográficas chilenas, desde los años 1940, los músicos empezaron a ser retratados también sonriendo, sin 80 Iconografia musical na América Latina sus instrumentos y en situaciones informales, anticipando lo que será el énfasis juvenil de la industria de la música popular. La posibilidad de trasladar la subjetividad del fotógrafo a la propia fotografía – considerando posición de la cámara, enfoque, contraste, obturación y composición –, permitió su desarrollo como actividad artística, experimental y de diseño durante el siglo XX. Si bien podemos encontrar fotografías publicitarias y postales de estrellas del cuplé y del tango en las primeras décadas del siglo que contienen cierto sentido de composición del retrato y un cuidado trabajo de la luz, fue a mediados de los años 1960 que se produjo una importante modificación en el modo en que se concebía la imagen del músico. Esto sucedió especialmente a partir de tendencias que estetizaban la música popular, como la MPB, el rock y la Nueva Canción, las que al mismo tiempo generaron un importante desarrollo del diseño de carátulas de LPs y de posters o afiches coleccionables. De este modo, es posible identificar en la década del 1960 en Chile a un grupo de fotógrafos profesionales que aportaron al retrato artístico de músicos, como David Rodríguez Peña, conocido como “El fotógrafo de los artistas”, que formó parte del equipo de la revista El Musiquero desde su creación en 1964. Las fotos de la revista Ritmo son de los destacados fotógrafos Sergio Larraín y Bob Borowicz, de la compositora y fotógrafa Scottie Scott y de Fernando Pavez, mientras que las de Rincón Juvenil son de Leo von Vriessen, Jaime Cáceres, Carlos Tapia y René Veloso. Consecuentemente, algunos fotógrafos profesionales desarrollaron el arte del retrato de músicos como una especialidad a partir de la década de 1970, una época de fuerte visualidad en el rock. (DONOSO, 2012; GONZÁLEZ; OHLSEN; ROLLE, 2009) En los retratos individuales, los músicos aparecen normalmente con su vestuario artístico, aunque desde los años 1960 se hacen más comunes las tenidas informales. Siempre aparecen sonriendo, aunque no siempre mirando la cámara. Son fotografías cuidadosamente compuestas y seleccionadas después de muchas tomas, pues el fotógrafo solía utilizar un rollo fotográfico completo para el retrato del artista, ya que no mezclaban los temas ni los sujetos fotografiados en un mismo rollo. En la era digital, el número de tomas por retrato no tendrá límites. Desde la década de 1920, abunda el retrato de medio torso con ángulos que se intersectan – cuando el músico está de frente, mira al costado, y cuando está de costado mira al frente –, que permite romper la situación estática de la pose, que desnaturaliza a la persona. Con la irrupción de la cultura juvenil a Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile 81 mediados de los años 1960, continúa el retrato de medio torso y de costado, aunque aumentan los primeros planos y aparece mucho más la gestualidad del cuerpo, con los músicos en actitud de baile. Imagen 4 – Izidor Handler Fuente: La Voz de RCA Victor (nov. 1954). 82 Iconografia musical na América Latina En forma creciente a partir de los años 1960, las agrupaciones y los músicos solistas posan haciendo música o pretendiendo que la hacen, generando una fuente visual simulada, pues un músico no suele posar y hacer música al mismo tiempo. Además, en forma creciente esto sucede en locaciones al aire libre, donde los músicos no suelen tocar. De este modo, no es extraño que el fotógrafo le pida al músico que “toque o que cante algo” en una sesión de fotografías, buscando espontaneidad y produciendo un tipo de retrato que se hace más común a partir del auge de la guitarra con el rock and roll y la música basada en el folclore. En este caso estamos frente a una especie de retrato-reportaje. Imagen 5 – Quilapayún Fuente: Odeon (agosto-sept. 1967). Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile 83 Finalmente, la posibilidad de fotografiar al músico mientras hace otra cosa – escucha discos, conversa, come o bebe, emprende un viaje, conduce – nos enfrenta a la posibilidad del reportaje-retrato, una fotografía con mayores grados de verosimilitud por haber congelado un instante de una situación en desarrollo. Imagen 6 – Lucho Gatica y Elvis Presley Fuente: Basis Lowner (1957, p. 14). 84 Iconografia musical na América Latina En un ordenamiento desde el centro a la periferia del hecho musical, encontramos al menos seis categorías de fotografías de músicos, las primeras dos de músicos tocando y las dos siguientes de músicos posando. Las dos últimas son una mezcla entre el retrato y el reportaje, como acabamos de ver. 1. Reportaje tocando, cantando; 2. Reportaje ensayando, grabando, enseñando, creando; 3. Retrato con sus instrumentos; 4. Retrato sin sus instrumentos; 5. Retrato-reportaje tocando o cantando; 6. Reportaje-retrato haciendo otra cosa. Estas seis categorías también presentan algunas mezclas o combinaciones entre ellas y es posible que en algunos casos no logremos saber con exactitud si la foto es un retrato posado o es producto de un reportaje. Todo esto sin olvidar que las fotografías de músicos tocando o cantando suelen incluir imágenes del público y de los lugares donde están haciendo música, lo que aumenta el número de categorías en que estas imágenes pueden ser incluidas.2 4 El público En un segundo lugar de interés musicológico, se encuentran las fotografías del público, el gran postergado en las historias generales de la música, historias que han estado más enfocada en el desarrollo de los músicos, los géneros musicales, los instrumentos y las instituciones que en el modo en que todo eso ha sido recibido y significado desde las audiencias. En efecto, es el público el que finalmente le otorga sentido a la música mediante una escucha individual y colectiva que ha ido cambiando a lo largo de la historia. Una escucha que también afecta nuestra propia representación del pasado, el que sólo podemos escuchar con los oídos del presente. La habitual representación en la pintura histórica de audiencias musicales en espacios públicos y privados continúa en la fotografía del siglo XX. Sin embargo, al salón, el teatro y la plaza del siglo XIX se suman nuevos venues para la música, como auditorios, estudios de grabación y clubes nocturnos, registrando el 2 En el caso de agrupaciones de mujeres de los años 1960, por ejemplo, aparece mucho el espacio doméstico como lugar de ensayo. Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile 85 nacimiento de un público de música popular, que será el dominante a partir de la década de 1920 en América Latina en general. Este es un público más fotogénico que el de la música clásica, pues canta, baila, gesticula y grita mientras escucha. Además, hay más oportunidades en las que se junta y lo hace en distintos lugares. Por todo esto, en el siglo XX aumentan considerablemente las fuentes visuales para el estudio del público musical. La posibilidad de someter las fotos digitalizadas a filtros y a acercamientos con zoom, permite estudiar mejor estas fuentes en base a detalles que podrían pasar desapercibidos a simple vista. Imagen 7 – Ramadas en Santiago ca. 1890 durante celebración de la Navidad Fuente: Claro Valdés y otros (1989, p. 579). Las fotografías de público son habitualmente fotos de reportaje, que en casi todos los casos también nos entregan información sobre los lugares donde se realiza la música y sobre los músicos participantes. Especialmente, permiten conocer la composición social, de género y etaria del público, junto a sus actitudes, gestualidades y vestimenta, aspectos relacionados en muchos casos con la naturaleza del lugar donde está reunido. Austeridad, concentración, alegría, entusiasmo y hasta histeria se puede apreciar en el público de música popular 86 Iconografia musical na América Latina fotografiado hasta mediados del siglo XX en Chile. Un público que puede estar realizando hasta cinco cosas distintas: asistir, escuchar, bailar, corear y aclamar. Ya encontramos imágenes de público bailando en los dibujos de manuales para aprender a bailar y en reportajes de situación de enseñanza y demostraciones en academias de baile. Sin embargo, entre 1920 y 1960 abundan las fotografías de público bailando en los reportajes a los lugares de diversión. En este período se observa mayoritariamente bailes de pareja enlazada, lo que dificulta saber con exactitud qué están bailando debido a la abundancia de bailes enlazados vigentes en la primera mitad del siglo XX como legado del vals, destacándose el tango, el son, el foxtrot, el pasodoble y el bolero. Imagen 8 – Baile en el Hotel Carrera de Santiago Fuente: El Mercurio (1949, p. 5). En contextos juveniles, se hace más evidente la fisonomía del baile cuando se trata de rock and roll o de twist, lo que también sucede en los registros de bailes folclóricos. Las imágenes de público bailando nos entregan señales de los cambios de mentalidad y sensibilidad como expresión de instancias de continuidad y permanencia en ciertos casos, o de transformaciones significativas en las formas de percibir el mundo, los valores y la propia corporalidad. Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile 87 Imagen 9 – Baile en La Moneda con el presidente Pedro Montt Fuente: El gran… (1909, p. 1). En los reportajes al público en situaciones de escucha, la fotografía contribuye a determinar su composición etaria, de género y de clase, pero también sus actitudes y comportamientos. Podemos observar distintos niveles de formalidad y distintos grados de cercanía con los músicos y el espectáculo, por ejemplo. Así mismo, la creación de fan-clubs a partir de la aparición de la estrella del rock and roll y el auge de la juventud, permitió registrar un comportamiento del público menos documentado visualmente: la histeria. Paralelamente encontraremos reportajes y retratos formales de los fanáticos en encuentros privados con sus estrellas, inauguraciones, reuniones de fans-clubs, y asistiendo a festivales y conciertos. 5 Los lugares Una tercera categoría como fuente visual de interés musicológico lo ocupan las fotos de lugares o venues. Derivado del francés venir o asistir, venue es un término muy usado en inglés para definir los espacios donde se hace música con público que asiste a escuchar y/o a bailar. Pueden ser lugares estables dedicados sólo 88 Iconografia musical na América Latina a eso, como teatros y salas de concierto, o lugares adaptados transitoriamente para la música en vivo, como bares, hoteles, plazas, estadios y la propia calle. En algunos casos, esos lugares pueden quedar íntimamente asociados al desarrollo de una banda o de un estilo de música en particular, formando parte de lo que denominamos escena.3 Imagen 10 – Foyer del Teatro Central de Santiago, 1933 Fuente: Claro Valdés y otros (1989, p. 549). Las fotos de estos lugares forman parte de reportajes que nos muestran los venues en plena actividad. Normalmente se trata de fotografías de locales llenos de gente, lo que eleva el status del lugar y del propio reportaje. A partir de la consolidación de la industria discográfica, radial y cinematográfica en los años 1920, se empiezan a desarrollar en forma paralela venues no presenciales, que permitirán el nacimiento del público-masa para la música. Es por eso que también son atingentes a la iconografía de venues las fotografías de los lugares de mediación de la música, que incluyen su producción, difusión y venta. 3 Más sobre venues en Buckley (2003). Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile 89 Figura 11 – Vitrina de tienda de productos eléctricos en Santiago, abril de 1930 Fuente: Luces... (2001, p. 153) Las venues presenciales y no presenciales de la música popular en Chile en la primera mitad del siglo XX se pueden agrupar en seis categorías: 1. lugares al aire libre: imperan las ramadas para el folclor, las glorietas, quisocos u odeones para la música de banda, y las terrazas para el tango, el vals y los bailes swing. Se suman las fiestas y festivales en plazas y parques; 2. teatros: su riqueza arquitectónica exterior e interior manifiesta la prestigiosa influencia francesa en los teatros del siglo XIX vigentes en el XX; 3. salones y clubes sociales; 4. locales nocturnos: boites, casinos, clubs, peñas, restaurantes; 5. estudios de grabación, de radio y de televisión; 6. disquerías y casas comerciales. 90 Iconografia musical na América Latina Imagen 12 – Quiosco de la Plaza de Armas de La Serena, ca. 1948 Fuente: Claro Valdés y otros (1989, p. 566). 6 Palabras finales En su acertada crítica al proyecto de Samuel Claro-Valdés, Pablo Sotuyo Blanco (2017, p. 41) afirma que el uso de la iconografía musical como fuente y como objeto de estudio “ya contaba en 1979 [...] con un volumen respetable de trabajos de investigación en Latinoamérica”. Sin embargo, han faltado en nuestra región mayores reflexiones sobre lo que efectivamente constituye un recurso iconográfico de época y cómo utilizar esa iconografía en cuanto a fuente más que como mera ilustración; cómo leer una imagen para que nos entregue información musical del pasado. En las fotografías abordadas en este capítulo, encontramos información visual sobre situaciones de sociabilidad en torno a la música; conformación y Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile 91 prácticas de agrupaciones musicales; modos de uso y jerarquías sociales de los instrumentos; y modos de uso musical de espacios públicos y privados. Es así como la fotografía de reportaje o de retrato nos ha informado de los cambios en las configuraciones de las orquestas de radio entre las décadas de 1940 y 1960; de cómo se constituyeron las orquestas de televisión; de la conformación de las orquestas de casas comerciales y de clubes; de los distintos tipos de estudiantinas –divididas por géneros y edades – y de las bandas – militar, obrera, de inmigrantes. Las imágenes pueden ser consideradas como textos poseedores de distintos grados de elocuencia, que no sólo le otorgan un rostro al pasado, sino que nos hablan de ambientes, lugares, actitudes de músicos y público, uso de instrumentos musicales, desarrollo tecnológico y tendencias de época.4 Si bien el uso de las fotografías contribuye a fortalecer la idea de proximidad con el mundo del pasado, produciendo lo que se ha llamado el “efecto realidad”, al igual que cualquier fuente las fotos deben poder ser leídas, buscando lo que está y lo que no está – lo visible y lo invisible –; interpretando intenciones; y descubriendo tanto lugares comunes como momentos excepcionales. Ese es el apasionante desafío que una imagen del pasado nos instala en el presente. Referencias (LA) BANDA Giusseppe Verdi de Santiago: de la Sociedad Italiana L’Umanitaria. Sucesos: Semanario de actualidades, Valparaíso, año 8, n. 384, [p. 37], 13 enero 1910. BARTHES, Roland. Lo obvio y lo obtuso. Barcelona: Paidós, 1986. BASIS LOWNER, Isidoro. La pátria los recuerda y aplaude. Ecran, Santiago, n.1391, p. 13-14, 17 sept. 1957. BUCKLEY, David; SHEPHERD, John; HORN, David. Venues. In: SHEPERD, John; HORN, David; LAING, Dave et al. (ed.). Continuum encyclopedia of popular music of the world. Londres: Continuum, 2003. v. 1, p. 420-425. 4 Más en Gonzalez y Rolle (2005). 92 Iconografia musical na América Latina CLARO VALDÉS, Samuel. Proyecto Iconografía Musical Chilena. Informe Preliminar. Revista Musical Chilena, Santiago de Chile, v. 33, n. 146/147, p. 112-114, 1979. CLARO VALDÉS, Samuel; GUTIERREZ GONZALEZ, Juan Pablo; PEÑA FUENZALIDA, Carmen et al. Iconografía musical Chilena. Santiago: Ediciones Universidad Católica de Chile, 1989. 2 v. DONOSO, Gonzalo. Retrato de músicos chilenos: 1986-2012. Santiago: Pehuén, 2012. GONZÁLEZ, Juan Pablo; OHLSEN, Oscar; ROLLE, Claudio. Historia social de la música popular en Chile: 1950-1970. Santiago: Ediciones Universidad Católica de Chile, 2009. GONZÁLEZ, Juan Pablo; ROLLE, Claudio. Historia social de la música popular en Chile: 1890-1950. Santiago: Ediciones Universidad Católica de Chile; La Habana Casa de las Américas, 2005. (EL) GRAN baile de la Moneda. Sucesos, Valparaíso, año 7, n. 331, p.1-2, 7 enero 1909. LA VOZ DE RCA VICTOR. Santiago: RCA Victor, n. 2, dic. 1946. LA VOZ DE RCA VICTOR. Santiago: RCA Victor, n. 74, nov. 1954. LUCES de modernidad: archivo fotográfico Chilectra. Santiago: Enersis, 2001. (EL) MERCURIO. Santiago: El Mercurio, 11 oct. 1949. ODEÓN: suplemento cancionero. Santiago: Odeón, agosto/sept. 1967. SOTUYO BLANCO, Pablo. Iconografía musical Chilena: ¿Iconografía musical o fuentes visuales referentes a la cultura musical? Un estudio de caso. Cuadernos de Iconografía Musical, México, v. 4, n. 1, jul. 2017. Disponible en: http://www. cuadernosdeiconografia.posgrado.unam.mx/index.php /CIM/article/view/59. Acceso en: 18 enero 2018. Fuentes visuales para el estudio de la música popular del siglo XX en Chile 93 Música, humor e iconografía musical Los programas de mano del grupo argentino Les Luthiers (1967-2018) Juliana Guerrero 1 Introducción Durante más de 50 años, el grupo argentino Les Luthiers ha ofrecido a su audiencia espectáculos en los que convergen la música y el humor, dando lugar a lo que ellos denominaron, desde el día de su fundación, el género “música-humor”. Cada una de sus presentaciones consiste en la ejecución de obras de músicas “académica” y “popular”. En estos complejos eventos humorístico-musicales, es posible identificar diversos elementos que los conforman y coadyuvan a generar situaciones risibles para el público que presencia los espectáculos. Entre ellos se advierte, fundamentalmente, la ejecución de “instrumentos informales” – que se presentan junto con instrumentos convencionales, una trama de personajes entre los que se destaca el apócrifo compositor Johann Sebastian Mastropiero, la mezcla y fusión de géneros musicales, y diversas temáticas que componen presentaciones transgresoras de cada espectáculo. 95 El profesionalismo de Les Luthiers lo ha llevado a cuidar todos los detalles, es decir, el grupo se preocupa por cada elemento que compone sus presentaciones. A propósito de ello, en este trabajo se propone un análisis de los programas de mano de más de los treinta espectáculos que el grupo ha ofrecido desde 1967. Como se verá más adelante, los programas han ido transformándose, conforme fueron cambiando los espectáculos, para convertirse en un elemento cómico más, que forma parte del evento humorístico-musical. 2 Les Luthiers En 1967, se fundó el grupo argentino Les Luthiers, luego de unos años previos como integrantes de un coro universitario de Buenos Aires y de una primera agrupación, I Musicisti. El “Conjunto de instrumentos informales Les Luthiers” – su nombre original – comenzó a ofrecer espectáculos en los que se generan eventos humorístico-musicales, tanto en el transcurso de la ejecución de obras propias, que remiten a géneros musicales pertenecientes a los ámbitos de las llamadas “música académica” y “música popular”, como en sus intersticios. Su fundador fue Gerardo Masana, ideólogo de ese nuevo género musical, creador de los primeros “instrumentos informales”, que falleció tempranamente cuando el grupo tenía solo seis años de historia. Hasta la fecha, Les Luthiers estrenó 35 espectáculos. Sus nombres son Les Luthiers cuentan la ópera (1967), Todos somos mala gente (1968), Blancanieves y los siete pecados capitales (1969), Querida Condesa (1969), Les Luthiers Opus Pi (1971), Recital 72 (1972), Recital sinfónico 72 (1972), Recital 73 (1973), Recital 74 (1974), Recital 75 (1975), Viejos fracasos – Lo peor de su repertorio 1970-1973 (1976), Mastropiero que nunca (1977), Les Luthiers hacen muchas gracias de nada (1979), Los clásicos de Les Luthiers (1980), Luthierías (1981), Por humor al arte (1983), Humor dulce hogar (1985), Recital sinfónico (1976), Viegésimo aniversario (1987), El reír de los cantares (1989), Les Luthiers, grandes hitos – Antología (1992), Les Luthiers unen canto con humor (1994), Bromato de Armonio (1996), Todo por que rías (1999), Do-Re-Mi-Já! – Recital Sinfónico (2000), El grosso concerto – Recital sinfónico (2001), Las obras de ayer – antología (2002), Con Les Luthiers y sinfónica – Recital sinfónico (2004), Aquí Les Luthiers – Recital folklórico Cosquín (2005), Los premios Mastropiero (2005), Lutherapia 96 Iconografia musical na América Latina (2008), ¡Chist! – antología (2011), Viejos Hazmerreíres – Antología (2014), ArgerichBarenboim-Les Luthiers (2014) y Gran Reserva – Antología (2017). Como se advierte en esta lista detallada, los nombres de los espectáculos fueron incorporando menciones al humor y se hace evidente su intención risible. Entre los juegos lingüísticos empleados, se incluyen sus años de trayectoria (Viejos fracasos, Viegésimo aniversario y Las obras de ayer); se menciona el humor explícitamente (Por humor al arte, Humor dulce hogar, El reír de los cantares, Les Luthiers unen canto con humor, Todo por que rías, Do-Re-Mi-Ja! y ¡Chist!), o consisten simplemente en un enredo con el nombre del grupo (Les Luthiers hacen mucha gracias de nada, Luthierías, Los clásicos de Les Luthiers, Les Luthiers, grandes hitos y Lutherapia). El nombre de los espectáculos fue mutando, además, por cambios que se produjeron en las estructuras internas de los mismos. En un principio, Les Luthiers se presentaba simulando un simple concierto de música académica y ello sufrió algunas transformaciones a lo largo de los años. En una biografía autorizada del grupo, Daniel Samper Pizano (2007, p. 126) explica: Les Luthiers hacen muchas gracias de nada (1979) da un paso hacia los escenarios más teatrales, producto de largas discusiones. Aparecen elementos de utilería, telones, pasacalles, bandas magnéticas. Salta al escenario Antenor, aquel robot que les proporcionó tantas alegrías como dolores de cabeza. Era la primera vez que se rompía el esquema de recital y se buscaban efectos de tipo dramático. También en este espectáculo figuran algunos elementos de coreografía. Esther Ferrando, una bailarina a la que conocieron los luthiers en el Instituto Di Tella, dio algunos retoques coreográficos a dos o tres números del programa. En los espectáculos de los primeros años, primó el formato de concierto con un presentador, a cargo de Marcos Mundstock, que introducía cada una de las obras. Con el paso del tiempo, la innovación humorística incorporó otros elementos que provocan la risa del público. Simultáneamente a la ejecución de instrumentos convencionales, la presencia de instrumentos construidos con elementos cotidianos se convirtió, desde un comienzo, en una marca registrada del grupo. Estos fueron denominados “instrumentos informales”. Si bien la descripción de la colección de estos instrumentos excede este trabajo, algunas características de los mismos merecen una acotación. Los instrumentos informales provocan el efecto humorístico por sus nombres, sus características morfológicas, sus tímbricas, el tipo de ejecución Música, humor e iconografía musical 97 que requieren y la relación que tienen con las obras en las que se los ejecuta. (GUERRERO, 2013) Unos pocos ejemplos de ello son la Gaita de cámara – un aerófono construido con una cámara de tractor –, el Gom Horn da Testa – un aerófono con mecanismo de trompeta cuya ejecución se realiza tomando con una mano el cuerpo del instrumento y con el casco colocado en la cabeza del ejecutante –, el Glamocot – u n aerófono basado en el funcionamiento del cromorno y cuyo nombre leído de derecha a izquierda indica que suena mal en la escala de Sol – y la Mandocleta – un cordófono construido con una mandolina modificada y montada en la parte trasera de una bicicleta. Otro ejemplo es el robot arriba mencionado por Samper Pizano que hace referencia a otro de estos “instrumentos informales” de Les Luthiers. Antenor, como fue bautizado, estaba construido como un robot que poseía varios motores comandados a distancia. Solo fue utilizado en una obra y luego fue desarmado, dada su precaria condición. Era capaz de hacer sonar unas cornetas y percutir tambores de marco, que tenía conectados a su estructura. Además, poseía una cabeza en la que se encendían luces, que simulaban movimientos de boca y de cejas. Debía ser dirigido por tres personas: una, manejaba su desplazamiento por el escenario; otra, operaba las luces, y la tercera, accionaba las cornetas y los tambores. Era extremadamente pesado – aproximadamente 80 kilos – y su mecanismo era demasiado delicado y sofisticado. Para el año de su estreno (1979) su aparición en el escenario era impactante. La presencia de Antenor fue tan impresionante como la introducción en la obra “Loas al cuarto de baño” de la Desafinaducha, el Nomeolbídet, el Lirodoro, y el Calephone, un cuarteto conformado por dos cordófonos, un aerófono y un idiófono que remedan – con una afinación temperada – los artefactos sanitarios. 98 Iconografia musical na América Latina Imagen 1 – Antenor Fuente: archivo Les Luthiers.1 La estructura de los espectáculos siguió sufriendo modificaciones y en 2005, el propio grupo reconoció un nuevo cambio de formato en sus presentaciones: 1 Agradezco la atención de Jorge Maronna y la dedicación de Carlos Núñez Cortés, prestadas para examinar el Archivo Les Luthiers. Música, humor e iconografía musical 99 Con Los premios Mastropiero Les Luthiers introduce algunos cambios. Deja de lado el tradicional formato de canciones independientes entre sí, adoptando un tema común que engloba todo el espectáculo; pasa a usar telones de colores y usa la iluminación estratégicamente para reforzar espacios escenográficos.2 Además de estas grandes modificaciones, existieron pequeñas variantes que funcionaron como distintos tipos de hilos conductores. El compositor apócrifo Johann Sebastian Mastropiero, que surgió cuando formaban parte de I Musicisti, sirvió para generar coherencia interna en el espectáculo. Se trata de un compositor ficticio al que Les Luthiers le adjudica la autoría de sesenta obras de su repertorio y al que se lo vincula con más de seiscientos personajes en las presentaciones de cada una de las obras. Junto con la coherencia que le ha dado la presencia de Mastropiero, también se utilizó como hilo conductor humorístico algún fragmento musical3 u otro personaje4 mencionado varias veces en el espectáculo. Otra manera con la que se lo ha guiado ha sido la inclusión de obras seccionadas a lo largo de este, que funcionaban como esqueleto.5 La manera de estructurar un espectáculo a partir de un tema común – la entrega de premios, en Los premios Mastropiero; la relación entre un paciente y su psicoanalista, en Lutherapia – o con una obra seccionada – la emisión de un programa de radio, en Todo por que rías y Viejos hazmerreíres y la modificación de un himno nacional, en Bromato de armonio –, ha sido acompañada en estos cuatro casos con la repetición de dos personajes, Ramírez y Murena, siempre interpretados por Daniel Rabinovich y Marcos Mundstock, respectivamente. Además, esta dupla aparece en otras obras.6 Es posible que un público frecuente 2 Expo Les Luthiers, 11 sept. 2007. 3 En la obra “Fronteras de la ciencia” del espectáculo Les Luthiers unen canto con humor (1994), Rabinovich ejecuta un fragmento de una obra anterior. 4 En la obra “Fronteras de la ciencia” del espectáculo Les Luthiers unen canto con humor (1994), Rabinovich pregunta “¿Con quién estará Esther?”, haciendo alusión al personaje de un sketch anterior. Asimismo, en “Radio Tertulia” del espectáculo Todo por que rías (1999), Mundstock y Rabinovich, hacen referencia al Sheriff y Rick, dos personajes que ellos mismos interpretaron en la obra anterior. 5 La primera fue “La comisión” en Bromato de Armonio (1996) y la segunda “Radio Tertulia”, en Todo por que rías (1999) y Viejos hazmerreíres (2014). 6 “El negro quiere bailar” (Les Luthiers unen canto con humor, 1994) y “Juana Isabel” (Los premios Mastropiero, 2005). 100 Iconografia musical na América Latina advierta esta repetición, aunque no hay ninguna mención en sus diálogos que los vinculen entre sí. En cuanto a la disposición escénica, los espectáculos de Les Luthiers han sido montados siempre en espacios típicos de un teatro a la italiana, en cuyos escenarios solo se emplean sillas, micrófonos con sus pies y ocasionalmente atriles, según lo requiera cada obra. Estos elementos son colocados y retirados del escenario por los asistentes. Como se dijo, con el cambio de estructura de los espectáculos, el grupo ha ido incorporando otros elementos de utilería, tales como capas, escudos, espadas y gorros, aunque estos son muy poco frecuentes. En la biografía de Les Luthiers escrita por Samper Pizano (2007, p. 125), se señala que la iluminación se transformó en un elemento importante de la puesta en escena a partir de Mastropiero que nunca (1977): Me llamaron porque estaban convencidos de la necesidad de agregar el lenguaje de la iluminación, explicó Tito Diz, el asesor de iluminación del Teatro San Martín y de algunas óperas del [Teatro] Colón de Buenos Aires. ‘En una primera instancia yo decía qué se hacía y luego íbamos modificándolo en los ensayos. Pero luego, a partir de una comprensión más profunda de lo que puede lograrse con la luz, Les Luthiers empezaron a crear elementos que se apoyaban en la iluminación: hubo entonces complicidad’. En los primeros registros de la década de 1970, se advierte el uso del telón, pero en la década siguiente ya no se lo emplea, y la iluminación se transforma en el recurso visual que sirve como marcador de la entrada y salida de los músicos en el escenario y se la utiliza para separar las distintas obras dentro de un espectáculo. Desde sus comienzos, el grupo decidió utilizar como vestuario esmoquin y ello le permite reproducir una circunstancia parecida a la de un concierto de música académica, al mismo tiempo que le da neutralidad para crear cualquier personaje. En síntesis, es posible establecer tres etapas en la vasta producción de Les Luthiers, siguiendo las estructuras y características de sus espectáculos. La primera, desde su fundación hasta 1978 que, como se anticipó, está compuesta por espectáculos cuyas estructuras eran semejantes a un concierto de música académica, en el que cada obra era presentada por Mundstock, quien oficiaba de presentador y en cuyo parlamento daba algunas referencias de las obras. La segunda etapa, desde 1979 hasta 2004, se caracteriza porque el grupo – ya Música, humor e iconografía musical 101 profesionalizado por completo – ofrecía espectáculos más teatrales, con el uso de algunos elementos de utilería, preocupado por la importancia de la iluminación y otros elementos escénicos. Finalmente, la tercera etapa, que abarca desde 2005 hasta la actualidad, se diferencia de la anterior puesto que ha modificado la estructura interna del espectáculo, ofreciendo un tema común que vincula todas las obras que lo conforman. Así, el espectáculo posee cohesión entre sus obras. 3 Un acto performativo En “Las presentaciones de Les Luthiers como performances” (2014), he presentado una lectura distinta de otras conceptualizaciones, corrientes en los estudios musicológicos, según las cuales la relación entre música y humor es una relación de inclusión.7 En esa oportunidad sostuve la siguiente tesis: el género “música-humor” que ha propuesto Les Luthiers como caracterización de aquello que ellos hacen es en realidad un evento. Es decir, una amalgama de la música y el humor, entendida esta como un acto performativo, en la que se apela a una constelación de recursos: los instrumentos informales, los componentes lingüísticos, las presentaciones y los géneros musicales. Es importante recordar que, en el campo de la filosofía del lenguaje, John Austin (1998, p. 45) denominó “expresión realizativa” (performative utterance) a un tipo de expresión lingüística, que aunque son enunciados desde el punto de vista gramatical, no describen nada, no son sinsentidos y no son verdaderos ni falsos. La característica fundamental de este tipo de expresión es la acción que lleva a cabo un sujeto al pronunciarla y que es distinta de la acción misma de su enunciación. Un ejemplo muy famoso de expresiones realizativas es “Los declaro marido y mujer”. Un juez que, en el contexto correspondiente, enuncia esa expresión realiza la acción de unir en matrimonio a dos personas, según la atribución que le confiere la ley. En este caso, “expresar la oración (por supuesto que en las circunstancias apropiadas) no es describir ni hacer aquello que se diría que hago al expresarme así, o enunciar lo que estoy haciendo: es hacerlo”. Por consiguiente, una “expresión realizativa” o “un realizativo” (a performative) – en su propuesta abreviada – “indica que emitir la expresión es realizar una acción y 7 Cf. Brent-Smith (1927), Grew (1934a, 1934b, 1934c, 1934d, 1934e), Dalmonte (1995), Casablancas (2000) y Huron (2004). 102 Iconografia musical na América Latina que ésta no se concibe normalmente como el mero decir algo”. (AUSTIN, 1998, p. 47) Es decir, se genera un nuevo acto distinto del acto enunciativo. Extrapolando esta conceptualización, en el caso de Les Luthiers, en sus presentaciones, el grupo realiza una acción que no se concibe como el mero acto de hacer música, sino como un acto humorístico-musical. Cuando al grupo sube a un escenario, ejecuta una obra y establece con el público una situación comunicativa – que incluye además los instrumentos, la actuación y el lenguaje –, se produce un nuevo evento: el del humor-música. Es a través de la competencia de los sujetos involucrados – los músicos y la audiencia –, en el contexto donde tiene lugar la relación comunicativa, que emerge el humor-música. A continuación, y como parte del análisis de los programas de mano, intentaré mostrar cómo estos apelan a la expectativa y la competencia de los participantes, que son elementos fundamentales para que se produzca la instancia performativa en la que emerge el evento humorístico-musical. 4 Los programas de mano Los programas de mano aparecen comúnmente en las presentaciones teatrales y en los conciertos de música académica desde hace más de un siglo. En el caso del teatro, según detalla Patrice Pavis (2003, p. 357): Los programas propiamente dichos, ofrecidos o vendidos al público antes del espectáculo, datan de fines del siglo XIX. [...] Fundamentalmente, el programa está destinado a informar al público del nombre de los actores, del director; en ocasiones, facilita un resumen de la acción; sus inserciones publicitarias proporcionan al teatro un ingreso suplementario, aunque tan solo sea para cubrir el coste del programa... En cuanto al mundo musical, los programas de mano son característicos de los conciertos de música académica y suelen ofrecerse con la entrada al mismo. En esos casos consiste en una impresión que contiene, generalmente, los datos del concierto, los intérpretes, las obras y sus compositores, información sobre los técnicos que participan y, en algunos casos, algún fragmento de la crítica que ha recibido, una breve biografía de los músicos principales y el argumento – en el caso que se trate de la representación de una ópera – o la letra, en el caso de Música, humor e iconografía musical 103 obras musicales que la posean. Además, un programa de mano puede poseer un espacio dedicado a publicidad. Si bien D. Kern Holoman (2008) ofrece un detallado análisis de cómo debe confeccionarse un programa de mano e indica distintas características de estilo, la variedad de programas ha sido sumamente amplia a lo largo de su existencia. Concebido como fuente documental, un programa de mano ofrece información importante para su estudio posterior. En el caso de Les Luthiers, los programas de mano no faltaron en ninguno de sus treinta y cinco espectáculos, y tampoco en su grupo antecesor, I Musicisti. Ahora bien, teniendo en cuenta la división de sus espectáculos en las etapas arriba mencionada, es posible comprender mejor cómo estos también sufrieron cambios. 5 Primera etapa (1967-1978) Este período abarca doce espectáculos. Les Luthiers cuentan la ópera y Blancanieves y los siete pecados capitales fueron desarrollados en el Instituto Di Tella. La incursión del grupo en esta institución merece una mención especial. Tal como señala Andrea Giunta (2001), la renovación del movimiento artístico en América Latina, y en especial en la Argentina, tuvo durante la década de 1960 una intensidad sin precedentes. En este sentido, el Instituto Di Tella fue el ícono institucional de esa época en la escena de Buenos Aires.8 El testimonio de Daniel Rabinovich – integrante de Les Luthiers – coincide en este punto: [El ambiente del Di Tella] era diferente y muy interesante, estaba lleno de acción. En la planta baja había una galería que tenía una vida propia brutal, y un día estaba Julio Le Parc colgando una cosa y al otro día venía Romero Brest y daba una charla; y en el primer piso pasaban cosas todos los días: estaba Mario Trejo [...] [o] Marucha Bo con Alfredo Rodríguez Arias. Había un movimiento cultural fuertísimo. Para mí fue (para todos nosotros fue) una cosa muy importante.9 8 Para ampliar este tema, ver Giunta (2001) y King (1985). 9 Daniel Rabinovich. Entrevista realizada en el programa televisivo ¿Qué fue de tu vida?, Buenos Aires, canal 7, 9 de septiembre de 2011. 104 Iconografia musical na América Latina El resto de los espectáculos fue realizado en teatros de Buenos Aires, como el Teatro IFT, Astral y Lasalle; café-concerts, algunas presentaciones en teatros de la costa atlántica argentina y la ciudad balnearia de Punta del Este (Uruguay) y algunas giras en el exterior en las ciudades españolas Madrid y Barcelona. La cantidad de audiencia fue notoriamente en aumento, con un público de alrededor de 14 mil espectadores en el primer año y más de 120 mil el último año de esta primera etapa. (MARTÍNEZ HONRUBIA, 2017) Este período se caracteriza por un pasaje del amateurismo y sus inicios en el coro universitario a una carrera profesional, en la que el grupo decidió abandonar otras actividades profesionales, que la mayoría de los integrantes había comenzado. Una crónica de la época da cuenta de cómo se generaba el humor, fundamentalmente con la incorporación de chistes: Cuatro de cada diez chistes que hacen los integrantes del conjunto de instrumentos informales Les Luthiers están dedicados a los iniciados y habitués de los ambientes musicales. Otros tres tratan de captar la atención de los psicoanalizados. Dos centran su eficacia en el sexo. El último es una variable, capaz de incluir cualquier aspecto pasible de sátira menos el político. La ecuación se mantiene inconmovible desde hace varios años. (ULANOVSKY, 1970) Como se dijo, los instrumentos informales son una marca registrada, incorporada en el nombre original del grupo y que contribuyen a la construcción de la alianza humorística con su audiencia. Durante esta etapa, el grupo ya había estrenado casi la mitad de la colección que tiene actualmente.10 Visualmente atractivos, por el tamaño, el porte y la manera en que en varias ocasiones son presentados en el escenario, las imágenes de los instrumentos informales aparecieron muy tempranamente en los programas de mano. 10 Los instrumentos informales estrenados desde el grupo antecesor I Musicisti hasta 1978 se detallan a continuación. Entre paréntesis se indica el año de estreno: Bass pipe a vara (1966), Glisófono pneumático (1966), Gom horn natural (1966), Manguelódica pneumática (1966), Yerbomatófono d’amore (1966), Contrachitarrone da gamba (1966), Dactílófono (1967), Cello legüero (1967), Latín o violín de lata (1967), OMNI (1969), Alt-pipe a vara (1971), Bocineta (1971), Gom horn a pistones (1971), Violata o viola de lata (1971), Tubófono silicónico cromático (1972), Gom horn da testa (1974), Glamocot (1975), Cascarudo (1975), Cellato (1975), Calephone da casa (1977) y Shoephone (1977). Música, humor e iconografía musical 105 En dos trabajos sobre iconografía musical, Evguenia Roubina (2010, 2014) propone cuatro tipos de evidencias en las fuentes estudiadas: organológicas, musicológicas, antropológicas y teleológico-filosóficas. Siguiendo esta propuesta metodológica, en los programas de mano de Les Luthiers la presencia de los instrumentos informales desde sus inicios marca una preocupación por parte del grupo de que su público los reconociera como una de sus características particulares. Además, la peculiaridad que estos poseen, remitiendo a instrumentos conocidos en el ámbito de la música académica, tales como el Latín o Violín de lata, el Cello legüero, el Alt-pipe a vara, la Violata y el Cellato, permiten en sus fotografías apreciar algunos detalles que no siempre son percibidos en escena. Los primeros programas dan cuenta de ese amateurismo en el que había nacido el grupo y las limitaciones económicas que tenían para montar un espectáculo. Así, muchos de los programas de esta época son trípticos, hojas sueltas o pequeños librillos. Mientras que, en los primeros primaba, por ejemplo, una estética artesanal con una grafía a mano, el programa del Recital 74 se caracteriza por una tapa y contratapa del librillo hechas en cartón afelpado con una imagen del grupo realizada con la técnica de serigrafía, que remite a la estética del artista Andy Warhol, en la serie Marilyn. 106 Iconografia musical na América Latina Imagen 2 – Tapa del programa de Opus Pi Fuente: archivo Les Luthiers. Música, humor e iconografía musical 107 Imagen 3 – Tapa del programa del Recital 74 Fuente: archivo Les Luthiers. La fundación de Les Luthiers se debió a una pelea interna dentro del grupo antecesor y ello quedó reflejado en el programa de Blancanieves y los siete pecados capitales en el que figuran dos integrantes, Mario Neiman y Carlos Núñez, como pertenecientes a I Musicisti.11 Los doce programas de esta primera etapa, entonces, incursionaron tímidamente por el humor y la parodia, pero revelan, sobre todo, el bajo presupuesto del grupo, la falta de asesoría profesional de diseño gráfico y publicitario – como se verá en las etapas siguientes – y un ingenio que aún no está explotado. En estos programas, entonces, aparecen alternativamente los nombres de los integrantes, el repertorio y los técnicos. En aquella época, aún no estaba unificada la autoría de los textos y la música, de manera que, en alguno de ellos, se advierten esos 11 El nacimiento de Les Luthiers surgió de una ruptura del grupo I Musicisti y hasta que este no se disolvió, dos de sus integrantes fueron convocados a participar en Les Luthiers como invitados. (MASANA, 2005, p. 245-246) 108 Iconografia musical na América Latina créditos identificados con el nombre de los integrantes. Recién en el programa de Viejos fracasos (1976) los créditos de los textos, la música, los arreglos y la dirección aparecen unificados bajo la marca “Les Luthiers”. La actuación en café-concerts hizo que esos programas en cuestión fueran compartidos con los artistas que actuaban cada día de la semana. En el año 1973 aparece por primera vez la propaganda de un sponsor, Whisky Royal Command. Este recurso sería utilizado en las etapas siguientes con la marca de un champú como auspiciante y años más tarde, tarjetas de créditos y empresas de servicio de entradas para los espectáculos, que colocan sus logos en los programas. Imagen 4 – Detalle del programa Querida condesa Fuente: archivo Les Luthiers. Junto con el incremento de audiencia y la actuación en teatros más grandes, el grupo comenzó a grabar discos en 1971. En esta etapa grabaron cuatro discos en estudio y parte de la promoción de los mismos comenzó a aparecer en los programas de conciertos. De ahí que en el programa del Recital 75 se anunciaba en la carátula “artistas exclusivos Discos Trova”. Un año antes, en la despedida del Recital 73 – presentada en 1974 en el teatro Coliseo –, el grupo decidió innovar y ese programa incluía las huellas dactilares de cada uno de los integrantes que estaban acompañadas por una breve semblanza de ellos. Además, se listaban los instrumentos informales inventados hasta ese momento, ordenados según Música, humor e iconografía musical 109 grupo de familia – criterio utilizado comúnmente en las orquestas – y los datos de los tres discos que el grupo había grabado hasta ese momento. Imagen 5 – Detalle del programa de despedida de Recital 73 Fuente: archivo Les Luthiers. Por último, en 1976, Les Luthiers ofreció su primera antología – en el transcurso de su historia hicieron seis –, denominada Viejos fracasos y cuyo subtítulo era Lo peor de su repertorio (1970-1973). En ese programa de mano aparecía una breve referencia a sus diez años de historia y se detallaba la exitosa situación que atravesaba el grupo en ese momento. 6 Segunda etapa (1979-2004) Esta segunda etapa es la más extensa temporalmente y con la mayor cantidad de espectáculos estrenados. Se trata de una época con el grupo profesionalmente consolidado, en la que pasaron de tener 100 mil a 200 mil espectadores por año, con una media de 200 funciones anuales. (MARTÍNEZ HONRUBIA, 2017) Estas estaban distribuidas, fundamentalmente, en Rosario – lugar en el que decidieron estrenar todos sus espectáculos –, Buenos Aires, otras ciudades argentinas y varias ciudades españolas. En el caso de Rosario, siempre actuaron en el Teatro Astengo con una capacidad para 1.100 personas. En Buenos Aires, lo hicieron 110 Iconografia musical na América Latina en el Teatro Coliseo para 1.700 personas hasta el 2004, cuando optaron por una sala más grande, el Teatro Gran Rex, cuya capacidad de espectadores supera las 3 mil butacas. Las salas elegidas en España, especialmente en Madrid, superan los mil espectadores. Además, en esta etapa ofrecieron tres espectáculos junto con la Camerata Bariloche, Recital sinfónico 86, Do-Re-Mi-Ja! y El Grosso Concerto, realizados en el Teatro Colón de Buenos Aires. Con Les Luthiers y la sinfónica fue un espectáculo de una gira realizada con el mismo ensamble en España durante 2004. Desde entonces, los programas, como se detallará más adelante, han sido de lo más variado, aunque se unificaron en cuanto a la información brindada. Entre otros datos, se comprueba que Gerardo Masana aparece como fundador del grupo. El humorista gráfico y escritor rosarino Roberto Fontanarrosa, se incorpora como “asesor creativo”, Carlos Iraldi figura como el lutier de Les Luthiers y, hasta 1995, Chiche Aisenberg fue el mánager del grupo, pero a partir de ese año, Lino Patalano ha estado a cargo de toda la actividad comercial y Javier Navarro ha sido mánager. Junto con estos créditos, se detallan los integrantes de aquella etapa, seis entre 1979 y 1986 – Ernesto Acher, Carlos López Puccio, Jorge Maronna, Marcos Mundstock, Carlos Nuñez Cortés, Daniel Rabinovich – y luego cinco, con el retiro de Acher. Conforme fueron modificándose sus estructuras, también lo hicieron sus programas de mano. En esta etapa en la que los espectáculos tuvieron un formato más teatral, en el espectáculo Por humor al arte (1983) Les Luthiers recibe a su audiencia con un programa que sorprende por su innovación. Se trataba de un díptico en cartulina negra doblada en dos, que al abrirlo se formaba una figura tridimensional – como un libro de pop out – con una foto del grupo con sus instrumentos. Otra de las innovaciones estaba en la contratapa en la que la publicidad de un champú mezclaba su “leitmotiv” con el nombre del grupo. Música, humor e iconografía musical 111 Imagen 6 – Programa abierto de Por humor al arte Fuente: archivo Les Luthiers. La creatividad fue en aumento y el programa de mano del espectáculo siguiente, Humor dulce hogar (1985) consistía en un prisma cuadrangular en cuyas caras externas aparecían las fotos de cada uno de los integrantes y el listado de obras del espectáculo. Si uno desarmaba el prisma, en la cara interior podían leerse cinco compases de la partitura de la “Cantata laxatón”, una de las obras más reconocidas en aquella época y que había sido grabada en su segundo disco. 112 Iconografia musical na América Latina Imagen 7 – Frente del programa de Humor dulce hogar Fuente: archivo Les Luthiers. Música, humor e iconografía musical 113 Imagen 8 – Dorso del programa de Humor dulce hogar Fuente: archivo Les Luthiers. El espectáculo de 20º aniversario del grupo contaba con un programa que nuevamente apelaba a la participación lúdica del público. Se trataba de un programa “tradicional” con una foto de Les Luthiers en la tapa y que tenía adosado una pequeña bolsa con un rompecabezas de una veintena de piezas para que la audiencia armara la escena de esa misma foto del grupo. El programa de Grandes hitos (1992) desplegado ofrecía un retrato del grupo en crayón y alcanzaba una dimensión de 70 x 60 cm. 114 Iconografia musical na América Latina Imagen 9 – Programa desplegado de Grandes hitos Fuente: archivo Les Luthiers. A lo largo de varias presentaciones los formatos de los programas siguieron siendo objetos totalmente anómalos. En Les Luthiers unen canto con humor (1994), se trataba de un hexágono plegado en triángulos equiláteros en los que aparecía una foto con la cara de cada integrante. Por su parte, el de Bromato de armonio (1996) era un tríptico que reproducía la imagen de un frasco farmacéutico antiguo, a propósito del nombre del espectáculo. En Todo por que rías (1999), el programa consistía en un díptico en cuyos extremos estaba dibujada una mano y al cerrarlo era posible juntarlas como si fuera un “aplauso”. En su interior, cinco fotos de las caras de los integrantes aparecían mezcladas. El programa de la antología de Las obras de ayer (2002) simulaba el formato de un disco de vinilo y en su interior poseía un collage con fotos antiguas del grupo a propósito de los 35 años del grupo. Música, humor e iconografía musical 115 Imagen 10 – Programa desplegado de Todo por que rías Fuente: archivo Les Luthiers. La etapa más extensa de la historia del grupo consolidó un formato más teatral y los programas de mano de los mismos se transformaron en espacios de creatividad para incursionar en el humor, parodiar los programas de conciertos de música académica y atraer la atención de la audiencia con formatos no convencionales, pequeños juegos o bromas y algunas imágenes que daban cuenta de su trayectoria. En esta tarea, los responsables fueron Juan Bernardo Arruabarrena – diseñador desde 1977 hasta 1992 – y el estudio Shakespear Veiga desde 1992 hasta la actualidad. Así, se trató de un compromiso que daba cuenta del profesionalismo que el grupo afianzó en todos sus espectáculos. 7 Tercera etapa (2005-2018) La última etapa en la que he dividido la obra del grupo llega hasta nuestros días y se diferencia de la anterior por incluir aquellos espectáculos que, al poseer un tema común, vincula todas las obras que lo conforman. Este cambio estético se vio reflejado también en los programas de mano correspondientes. El primero de esta etapa corresponde a Los premios Mastropiero (2005). Su programa se desplegaba verticalmente – volviendo al recurso del pop out – y surgía una imagen tridimensional de la estatuilla en el centro del programa, que era una reproducción de las que se entregaban en la apócrifa entrega de premios del espectáculo. Además, el nombre del programa estaba impreso en letras que simulaban las luces de neón, copiadas de los carteles de las marquesinas. La forma del programa desplegado simulaba una escalera y en la última cara se ofrecían las opiniones de reconocidos periodistas. 116 Iconografia musical na América Latina Imagen 11 – Programa abierto de Los premios Mastropiero Fuente: archivo Les Luthiers. Un nuevo efecto lúdico se produjo en el programa del siguiente espectáculo, Lutherapia (2008). Este fue compuesto a partir de un hilo conductor en el que la actividad musicológica ocupa un lugar protagónico. La historia que hilvana cada una de sus obras expone la relación psicoanalítica de un personaje, Ramírez, con su analista, en la que intentan resolver el trauma que provoca la angustia del protagonista. Los distintos encuentros que mantienen ambos funcionan como separadores entre las obras, y en ellos Ramírez trata de explicitar sus problemas. El más importante, y con el que Les Luthiers abre el espectáculo, es la escritura de una tesis sobre la obra de Johann Sebastian Mastropiero. Su título era la “Influencia de la semiología estructuralista musicológica en las obras Música, humor e iconografía musical 117 de Mastropiero” y su autor confesaba: “Estoy estropeado por Mastropiero, estoy mastropeado. Siento por Mastropiero una relación amor-odio, una relación amorroidal…”.12 En esa oportunidad las innovaciones que se produjeron en el programa de mano fueron dos. Por un lado, consistió en remitirse al cine de dedo. Se trataba de un folioscopio, que de “ida” mostraba una secuencia de los integrantes del grupo y de “vuelta” proporcionaba información sobre el espectáculo: obras, nombre de los integrantes, sonido, dibujante y frases de algunas críticas periodísticas. Por otro lado, la primera obra de Lutherapia se llamaba “El cruzado, el arcángel y la arpía”. Para dicha obra se empleaban algunos elementos de utilería, tales como un escudo, una espada y unas alas que llevaba en sus espaldas el arcángel. Esos elementos aparecen incluidos en los dibujos con una estética del comic, que el ilustrador Marcos García incluyó en este programa. Imagen 12 – Páginas interiores del programa de Lutherapia en movimiento Fuente: archivo Les Luthiers. En Chist (2011), el grupo decidió entregar un programa “desarmable” en máscaras de cada uno de los rostros de los integrantes para que el público “chiste” con Les Luthiers. En una de las caras del programa, sus instrucciones eran claras: “Chiste con nosotros! (Instrucciones de uso). 1) Elija su Luthier. 2) Recorte la careta por el puntillado. 3) Coloque el hilo que ata el programa. 4) Está listo para chistar”. 12 “Paz en la campiña”, Lutherapia, 2009. 118 Iconografia musical na América Latina Imagen 13 – Programa desplegado de Chist Fuente: archivo Les Luthiers. Las giras en el exterior, particularmente, por España – en donde han sido muy extensas –, no siempre compartieron los mismos programas de mano que las funciones ofrecidas en Argentina. En este caso, el programa para las funciones españolas consistió en una mano gigante, con el dedo índice en extensión y el resto no, en cuyo interior podía leerse la información, y al cerrar el díptico, el público podía colocar su mano en el agujero que tenía el programa para crear la sensación de extender su propia mano. Imágenes 14 y 15 – Frente y dorso del programa abierto de las funciones de Chist en España Fuente: archivo Les Luthiers. El programa de Viejos hazmerreíres (2014) recurre nuevamente a la una imagen con la técnica del pop-out tridimensional al abrir el díptico. “Radio tertulia” es la obra seccionada a lo largo del espectáculo, que funcionaba como esqueleto de Música, humor e iconografía musical 119 éste. La recreación de un programa radial permitía introducir varios “móviles” que eran los verdaderos marcos para ejecutar las distintas obras. En el programa de mano, entonces, se empleó la foto de los integrantes con los micrófonos apócrifos, que luego empleaban durante la función. Tras la muerte de Daniel Rabinovich en 2015, Les Luthiers estrenó Gran reserva (2017), es el espectáculo más reciente y está actualmente en cartel.13 Se trata de una nueva antología y el nombre hace referencia al valor que el grupo le otorga a esas obras. De manera coherente con esta idea, el programa es un díptico de cartulina cuyo formato recrea la imagen de un corcho gigante, que funciona como metáfora del nombre del espectáculo. A propósito de los 50 años que cumplió ese año el grupo, Carlos Núñez Cortés decidió retirarse por lo que, según se lee en el programa, quienes actúan son: Carlos López Puccio, Jorge Maronna, Marcos Mundstock, Horacio Tato Turano, Martín O’Connor y Tomás Mayer-Wolf. Por primera vez desde 1976, los créditos de la letra, música, arreglos y dirección ya no figuran como Les Luthiers, sino los nombres de Carlos López Puccio, Jorge Maronna, Marcos Mundstock, Carlos Núñez Cortés y Daniel Rabinovich. 8 A modo de conclusión Como se dijo desde un comienzo, es posible comprender la extensa producción musical de Les Luthiers de más de 50 años de actividad ininterrumpida, en la que emerge el género “humor-música” que ellos han propuesto, como un evento, esto es, algo que acontece y que sólo puede ser comprendido si la mirada y la escucha son capaces de identificar las acciones, prácticas, relaciones intersubjetivas, procesos y recursos que intervienen. Esta conceptualización del humor-música da lugar a una dilucidación más abarcadora de su obra en general. Es decir, proporciona un punto de vista adecuado desde el cual explicar cómo es que lo que Les Luthiers ofrece no es solamente hacer música, sino, además, que en comunicación con su audiencia y valiéndose de los recursos mencionados, genera humor. En este sentido, de acuerdo al análisis propuesto, los programas de mano son un recurso más para 13 Cf. Les Luthiers, Calendario [2019]. Disponible en: http://www.lesluthiers.com/calendario.php. 120 Iconografia musical na América Latina que el humor emerja en estas presentaciones. Concebidas éstas como performances o, en palabras de Austin, como un acto performativo, en el que se apela a una constelación de recursos, los programas de mano comparten esta lista junto con los instrumentos informales, los componentes lingüísticos, las presentaciones y los géneros musicales. Frecuentemente distribuidos en las presentaciones teatrales y en los conciertos de música académica desde hace más de un siglo, los programas de mano han estado vinculados al mundo musical. En el caso de Les Luthiers, su audiencia los ha recibido como parte de todos sus espectáculos y han estado siempre relacionados con las temáticas propuestas. Desde un comienzo amateur al profesionalismo que el grupo adquirió desde hace décadas, la diversidad de materiales, formatos, estilos, tamaños, recursos que atraen la atención del espectador y propuestas lúdicas de estos programas de mano marcan la creatividad y el ingenio de Les Luthiers y sus colaboradores, para propiciar el humor y generar una práctica paródica en la que el sentido se produce en su recontextualización. Dicho de otro modo, Les Luthiers recurre a la des-familiarización de los estereotipos de los programas de mano, re-funcionaliza su procedimiento en el contexto del evento de sus espectáculos y, producto de su destreza, establece un nuevo orden. Por último, el estudio de los programas de mano desde un abordaje iconográfico ha permitido señalar evidencias organológicas, musicológicas y estéticas de esta práctica musical. Así, el desenmascaramiento y la desnaturalización de los cánones establecidos marcan la riqueza de su humor-música. Referencias AUSTIN, John. Cómo hacer cosas con palabras: palabras y acciones. Barcelona: Paidós, 1998. BRENT-SMITH, Alexander. Humour and music. The Musical Times, London, v. 68, n. 1007, p. 20-23, Jan. 1, 1927. CASABLANCAS DOMINGO, Benet. El humor en la música: Broma, parodia e ironía: un ensayo. Kassel: Reichenberg, 2000. Música, humor e iconografía musical 121 DALMONTE, Rossana. Towards a semiology of humour in music. International Review of the Aesthetics and Sociology of Music, Zagreb, v. 26, n. 2, p. 167-187, Dec. 1995. GIUNTA, Andrea. Vanguardia, internacionalismo y política: arte argentino en los años sesenta. Buenos Aires: Paidós, 2001. GREW, Eva Mary. Humour in Music: I-II. The Musical Times, London, v. 75, n. 1091, p. 24-26, Jan. 1934a. GREW, Eva Mary. Humour in Music: III. The Musical Times, London, v. 75, n. 1092, p. 128-129, Feb. 1934b. GREW, Eva Mary. Humour in Music: IV-V. The Musical Times, London, v. 75, n. 1093, p. 219-220, Mar. 1934c. GREW, Eva Mary. Humour in Music: VI. The Musical Times, London, v. 75, n. 1095, p. 414-415, May 1934d. GREW, Eva Mary. Humour in Music: VII (concluded). The Musical Times, London, v. 75, n. 1097, p. 608-610, Jul. 1934e. GUERRERO, Juliana. Música y humor en la obra de Les Luthiers (1967-2012). 2013. Tesis (Doctoral en Historia y Teoría de las Artes) – Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, 2013. GUERRERO, Juliana. Las presentaciones de Les Luthiers como performances. Telondefondo: revista de teoría y crítica teatral, Buenos Aires, n. 19, p. 116-136, jul. 2014. Disponible en: https://www.telondefondo.org/numeros-anteriores/ numero19/articulo/529/las-presentaciones-de-les-luthiers-como-performances. html. Acceso en: 8 febr. 2017. HOLOMAN, D. Kern. Writing about music: a style sheet. Berkeley: University of California Press, 2008. HURON, David. Music-engedered laughter: an analysis of humor devices in P.D.Q. Bach. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON MUSIC PERCEPTION & COGNITION, 8., 2004, Evanston. Proceedings [...]. Evanston, IL: Society for Music Perception & Cognition, 2004. p. 700-704. KING, John. El Di Tella y el desarrollo cultural argentino en la década del sesenta. Buenos Aires: Gaglianone, 1985. MASANA, Sebastián. Gerardo Masana y la fundación de Les Luthiers. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2005. 122 Iconografia musical na América Latina MARTÍNEZ HONRUBIA, Alfonso J. Humor y música: aproximación a las teorías del humor musical a través de Les Luthiers. 2017. Tesis (Doctoral en Historia del Arte y Musicología) – Facultad de Geografía e Historia, Universidad de Salamanca, Salamanca, 2017. PAVIS, Patrice. Diccionario del teatro: dramaturgia, estética, semiología. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2003. ROUBINA, Evguenia. La imagen de la música como raíz de lo festivo en las artes útiles de la Nueva España. Cuadernos de Iconografía Musical, Ciudad de México, v. 1, n. 1, p. 41-59, 2014. ROUBINA, Evguenia ¿Ver para creer? Una aproximación metodológica para el estudio de la iconografía musical novohispana. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PÓS-GRADUANDOS EM MÚSICA, 15., 2010, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: Unirio, 2010. p. 63-83. SAMPER PIZANO, Daniel. Les Luthiers de la L a la S. Buenos Aires: Ediciones La Flor, 2007. ULANOVSKY, Carlos. El Opus Pi en el IFT. Diario La opinión, Buenos Aires, 7 mayo 1970. Música, humor e iconografía musical 123 Aproximación a contextos marginales del rock en el estado de México a través de su iconografía musical en el paisaje urbano Alfredo Nieves Molina Las diversas músicas relacionadas al rock han encontrado en las grandes urbes de México transformaciones y apropiaciones que lo hacen colocarse entre los géneros más escuchados y consumidos, ya sea por las industrias culturales o por economías étnicas de carácter autogestivo. Este estudio propone una aproximación a las realidades sociales del rock en México a través de su iconografía musical plasmada en tres fuentes: carteles y bardas – para la difusión de tocadas1 y conciertos –, fotogramas de cine documental musical – específicamente el documental En la periferia (2016), de Alberto Zúñiga y las carátulas de álbumes. Este texto se ocupará de estudiar ejemplos de las dos primeras. El análisis de las imágenes propuestas es evidencia de una estética propia y congruente con los discursos ideológicos y 1 Las “tocadas” en el contexto de México, son espacios de carácter informal en su organización para la escucha de grupos en vivo, generalmente de formas musicales relacionadas al rock, los espacios pueden ser explanadas, calles, bares o terrenos baldíos de la ciudad. En estos espacios existe poco control de seguridad. (MARTÍNEZ, 2013, p. 147) 125 narrativos de la propia escena y al interior de los grupos etários que la conforman y, a su vez, reflejo de marginalidad e invisibilización política y social que ejercen las industrias culturales, estado e instituciones2 en detrimento de estos actores sociales y comunidades de sentido. El escenario geográfico para este estudio es la zona conurbada del Estado de México, ubicada en la región centro del país, que cubre casi en su totalidad a la Ciudad de México. Características importantes en este estado y que, a manera de introducción, nos permiten entender la complejidad del fenómeno donde se desarrolla una fuerte industria del rock. El Estado de México es la entidad federativa con el mayor número de habitantes en el país: más de 16 millones de mexiquenses. Entre los problemas más graves del estado resalta el de mayor incidencia delictiva en toda la república (INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICAS Y GEOGRAFIA, 2018b), el mayor número de feminicidios – por encima de Ciudad Juárez, Chihuahua (GARCÍA, 2017) –, y la segunda entidad con mayor índice de desempleo. (LOS ESTADOS..., 2016) Bajo 90 años de gobierno del Partido Revolucionario Institucional (PRI), el Estado de México es también una plataforma electoral para las aspiraciones presidenciales de cualquier partido al convocar a 11 millones de votantes. Con estos escenarios, esta compleja megalópolis desarrolla una industria del rock que convoca a miles de jóvenes y adultos a las tocadas y conciertos de rock cada semana. Es tal la cantidad de conciertos que se realizan en esta urbe, debido a su extensión territorial y por su amplio número de seguidores, que una banda en este circuito puede tocar hasta en cuatro eventos en distintos municipios del estado en un solo día. El siguiente mapa (Imagen 1) muestra el número total de municipios que conforma al Estado de México. Debe resaltarse el cubrimiento casi en su totalidad de la capital del país, la Ciudad de México, entidad federativa que históricamente ha centralizado la legitimación de las prácticas musicales como la de la música académica y el mayor desarrollo e impulso por parte de las industrias culturales para el consumo de diversas músicas populares. 2 María del Carmen de la Peza (2013, p. 13), al estudiar el rock mexicano y citando a Rancière, señala que los sujetos excluidos del espacio de visibilidad pública demandan el derecho a la palabra y a los espacios de visibilidad para ser reconocidos como parte de la comunidad política que les excluye. 126 Iconografia musical na América Latina Imagen 1 – Mapa del estado Estado de México y su división por municipios Fuente: Instituto Nacional de Estadísticas y Geografia (2018a). Podríamos señalar que en todos los municipios del Estado de México se desarrollan tocadas y conciertos de rock, sobresaliendo por su frecuencia los que se encuentran en la periferia de la Ciudad de México: Naucalpan de Juárez (57), Tlalnepantla de Baz (104), Cuautitlán (24), Tultitlán (109), Ecatepec de Morelos (33), Texcoco (99), Nezahualcóyotl (58), La Paz (70), Ixtapaluca (39), Chimalhuacán (31), Valle de Chalco Solidaridad (122), Chalco (25), entre otros. Cabe señalar que la realización de estos conciertos no es exclusiva del Estado de México. También se presentan en estados de la zona centro del país, tales como Tlaxcala, Puebla e Hidalgo, entre otros, así como en algunas delegaciones de la Ciudad de México, como Iztapalapa, Iztacalco, Tláhuac, Xochimilco, que colindan con el Estado de México.3 Esta gran industria, específicamente a las prácticas musicales que se desarrollan en este circuito, se le conoce como “rock urbano”. La categoría de rock urbano ha sido atribuida a grupos que fusionan rock and roll y blues, fusiones 3 Datos obtenidos en entrevista con los músicos Francisco Gatica, productor y bajista del grupo Ramsés y Carlos Alanís, vocalista del grupo Next. Entrevistas realizadas el 2 de septiembre de 2018. Aproximación a contextos marginales del rock en el estado de México... 127 que se derivaron también del rock rupestre.4 Esta categoría de rock urbano es considerada por algunos grupos o músicos de la escena como peyorativa, ellos prefieren asumir que pertenecen al “rock” o “rock and roll”. En otra perspectiva, la diversidad de géneros relacionados al rock que circulan en la periferia es amplia. Así, grupos de punk rock, heavy metal, blues, rock progresivo y ska, en su conjunto, son considerados como partícipes de la corriente de rock urbano.5 En contraste, ninguna de las prácticas del rock legitimadas en el centro de la Ciudad de México se considera parte de la categoría rock urbano, sea por los músicos o los fans de las diversas escenas. Este contraste en la concepción de una categoría general como la de rock urbano, pone en evidencia el carácter clasista y peyorativo que designa prácticas musicales definidas más por la condición socioeconómica, geográfica e incluso de fenotipo de sus participantes, que por sus características musicales. Por lo tanto, en este trabajo nos referiremos a la escena, a la industria del llamado rock urbano como rock de la periferia en el Estado de México, englobando todas las formas y corrientes asociadas al rock que transitan en este circuito. El rock periférico del Estado de México no tuvo difusión ni apoyo por los diversos medios de comunicación, ni en revistas, radio o televisión. Uno de los pocos medios que ha atendido a esta escena desde sus inicios fue el fanzine Banda Rockera, publicación independiente a partir del año 1985 que, de manera periodística, daba cuenta y registraba los sucesos de la escena periférica que se desarrollaba en el Estado de México hasta la actualidad. (CANAL ONCE, 2018) Esta ausencia de difusión y visibilización tiene antecedentes en la censura posterior al concierto de Avándaro, Estado de México, en el año de 1971, una 4 El rock rupestre surgió a inicios de los años 1980 en la Ciudad de México. Era un movimiento musical-literario-poético que se influenciaba de la trova, el folk y el rock, que reflejaba la sordidez de la cotidianeidad urbana con temas de protesta. Los primeros espacios para este movimiento fueron el Foro Tlalpan, al sur de la ciudad, donde se presentaban músicos como Rodrigo González, Rafael Catana, Cecilia Toussaint, entre otros. (GARZA, 2013, p. 10) Rodrigo González (2017) declararía sobre el movimiento rupestre: “Se trata solamente de un membrete que se cuelgan todos aquellos que no están muy guapos, ni tienen voz de tenor, ni componen como las grandes cimas de la sabiduría estética o (lo peor) no tienen un equipo electrónico sofisticado lleno de sinters y efectos muy locos que apantallen al primer despistado que se les ponga enfrente”. 5 Muchas de estas formas musicales comprenden sub-géneros, por ejemplo, se menciona la categoría heavy metal para englobar a los sub-géneros death metal, folk metal, entre otros. También se alude simplemente a metal mexicano. 128 Iconografia musical na América Latina réplica local del Woodstock estadounidense que fue organizado por Telesistema Mexicano, la alianza de estaciones televisivas que controlaría la industria del espectáculo en México. El concierto de Avándaro, titulado “Festival Rock y Ruedas”, convocó a miles de jóvenes que desbordaron y saturaron las vías de acceso y salida de dicho festival. El gobierno mexicano, al ver que se congregaban miles de jóvenes a través del rock, temió que los jóvenes volvieran a organizarse y levantar un movimiento como sucedió en el año de 1968, que terminó en la masacre de Tlatelolco. Posterior al concierto de Avándaro, el gobierno censuró todas las actuaciones y espacios donde se reproducía rock, persiguió a las agrupaciones, y las encerró en la cárcel, al grado de casi desaparecer toda actividad relacionada con el rock en México. A través de Telesistema Mexicano, que posteriormente se convertiría en Televisa, los sonidos del rock fueron borrados por completo y se introdujo en la sociedad mexicana formas de escucha mucho más relajada como la balada romántica y los festivales OTI, quedando ausente una música destinada para y por los jóvenes de México. Para la recuperación de una memoria sonora e histórica del rock en México, nos auxiliamos de la iconografía musical de los contextos del rock periférico en el Estado de México para dar cuenta de las realidades de una escena local y el impacto social que genera al interior de los miles de participantes que asisten a estas tocadas y conciertos, dando voz y presencia en espacios emergentes para la acción política de los grupos etarios que conforman esta región central de México. La ausencia de registros de estas músicas en los medios masivos de información y en los objetivos de estudio por parte de la academia, vuelve valiosa la información que ofrece la iconografía musical del rock periférico a partir de las dos fuentes propuestas en este texto – y que son visibles en el paisaje urbano del Estado de México –: los carteles y pinta de bardas promocionales de los conciertos. Cabe señalar que el estudio y análisis del rock a través de la iconografía musical es reciente. Las complejidades del siglo XX en relación a los diversos ejes que cruzan las prácticas musicales en lo social, económico e histórico, demandan un tratamiento diferente para la comprensión de los diversos discursos narrativos, ideológicos y visuales que fluyen en las culturas del rock. Es necesaria una comprensión de las imágenes utilizadas por los discursos poéticos y visuales de los músicos y las propias industrias culturales inmersas en el rock, para comprender Aproximación a contextos marginales del rock en el estado de México... 129 la resemantización de las ideas-objeto que pretenden brindar un significado distinto o modificado de la mera descripción del objeto. Un ejemplo de ello lo podemos encontrar en el logotipo de la banda de rock británica The Rolling Stones, una lengua saliendo de la cavidad bucal en tonos rojos. No hay ninguna referencia organológica o biográfica de algún músico, y este logotipo es identificado e interpretado en un plano mundial como un referente de una banda de rock. El logotipo representa el momento histórico y social que la banda británica estaba pasando, una lengua saliendo de la boca se interpreta como un acto vulgar, un acto trasgresor dentro de las normas de conducta de la época, y a su vez, una representación erótica dentro de los discursos de liberación sexual de la época, temas recurrentes en las letras del famoso grupo. En esta propuesta de carácter metodológico, en la revisión y utilización de fuentes de iconografía musical para el estudio del rock, se considera el uso de elementos que están contenidos en la propia performance de las diversas escenas locales del rock, tanto en sus discursos poético-narrativos como en las imágenes utilizadas como extensión del discurso en y a través del rock. Así, pasemos a revisar las fuentes propuestas para comprender el carácter ideológico y marginal del rock del Estado de México que cubre el paisaje urbano cotidiano. En el estado actual del rock en México, tanto la escucha de grupos mexicanos como extranjeros cobra matices y características específicas en los modos de su consumo entre los diversos grupos etarios que conforman las relaciones de identidad y significación de estas músicas. Independientemente a la adscripción de la forma musical – punk, metal, ska, gótico, urbano etc. –, existen prácticas que son validadas e impulsadas por las industrias culturales, y otras, como la escena del rock periférico – rock urbano –, tienen su desarrollo a partir de una economía étnica constituida por pequeños productores e integrantes de las bandas de rock. Los siguientes carteles de conciertos de rock (Imágenes 2 y 3), muestran el carácter emergente en la conformación gráfica y visual cotidiana en la periferia del Estado de México. Estos carteles se distribuyen y colocan en los muros y postes de los diversos municipios que conforman el estado, convirtiéndose en parte el paisaje urbano cotidiano. 130 Iconografia musical na América Latina Los carteles brindan información del costo del evento,6 así como de la diversidad de bandas y culturas del rock que participan en el mismo. Así, en los carteles mostrados hay grupos de heavy metal, punk, y rock and roll y blues. También podemos observar la ubicación del municipio que se llevará a cabo. La leyenda “Evento 100% confirmado”, presente en la Imagen 2, deriva de las constantes cancelaciones de los eventos, sea por falta de permisos (a través de las autoridades municipales correspondientes), por cancelación de las agrupaciones (pues muchos de estos conciertos no se realizan bajo la figura legal de un contrato) o por la estafa de supuestos organizadores (que no realizan las gestiones para la realización de los eventos y solo pretenden vender cierto boletaje en preventa y escapar con ese dinero). El cartel también nos brinda información del espacio donde se realizará el evento, en este caso un auditorio municipal y un estadio de beisbol en Toluca, Estado de México. Imagen 2 – Cartel de concierto de rock en Toluca, Estado de México Fuente: colección personal de Ubaldo Dávila Martínez, fan de la escena. 6 El costo de accesos a estos recitales de rock es muy bajo en comparación con los eventos realizados por los grandes consorcios de la industria musical de México. Aproximación a contextos marginales del rock en el estado de México... 131 Imagen 3 – Cartel de concierto de rock en Lerma, Estado de México Fuente: colección personal de Ubaldo Dávila Martínez, fan de la escena. Una de las intenciones primordiales de estos carteles es mostrar en una sola vista la riqueza de grupos y estilos musicales que conforman el evento. Uno de los atractivos principales para los asistentes de estos conciertos es la cantidad de grupos y diversidad musical dentro del rock que podrán presenciar. Los conciertos comprenden de 10 a 25 grupos, normalmente iniciando al mediodía y se extendiendo hasta casi la medianoche en un solo escenario, sin presentaciones 132 Iconografia musical na América Latina simultáneas entre los grupos. En este contexto, una banda puede tocar hasta en cuatro conciertos en diferentes municipios de la periferia, dando tiempo suficiente para moverse entre un municipio y otro. El documental En la periferia (2016), del cineasta Alberto Zúñiga, hace visible la industria y escena del rock y la industria en el Estado de México. Es un viaje a través de la experiencia de los músicos que viven las tocadas todos los fines de semana, año tras año, desplegando su arte y filosofía de vida, retratando la dura realidad de “la banda”.7 El cartel del documental (Imagen 4) incluye el carácter urbano, sus vías automovilísticas y señalizaciones de tránsito, la imagen de un músico (probablemente de rock definido por su vestimenta y tocando una guitarra eléctrica) dentro del mapa del Estado de México, sobre un gran fondo con la textura de las paredes de alguna casa suburbana. Incluye los nombres de las agrupaciones que regularmente conforma estos carteles y tocan frecuentemente en estos conciertos: La Banda Bostik, Transmetal, Juan Hernández y su banda de blues, Lvzbel, Liran´ Roll, Tex Tex, Rebel D’ Punk y Follaje, agrupaciones de los diversos géneros ya mencionados. 7 La banda, es la manera coloquial que hace referencia a sí misma la comunidad que conforma las diversas escenas de rock. La banda, es pronombre personal plural; son los otros que conforman la escena pero también nosotros dentro de ella. Todo el que entiende y decodifica los mensajes del rock y sus vivencias cotidianas, relacionadas a lo social, empático, a lo geográfico; a la pertenencia e identidad con el contexto urbano y musical. Aproximación a contextos marginales del rock en el estado de México... 133 Imagen 4 – Cartel del documental En la periferia, de Alberto Zúñiga, sobre el rock en el Estado de México Fuente: cartel proporcionado por el director del documental, Alberto Zúñiga. Las siguientes imágenes (Imágenes 5 a 7) son fotogramas del documental. La pinta de barda que se muestra hace alusión al documental y fue un encargo del propio director. Independientemente a este hecho, el resultado final es el que observa en los diversos espacios de muros y bardas en el Estado de México junto a los carteles mostrados con anterioridad. Si bien ahora los carteles se difunden también por las redes sociales de la web, es a través de los carteles y las bardas que se sabe de la próxima tocada o concierto. Carteles y bardas son muy visibles desde el transporte público, siendo un medio informativo muy efectivo y de bajo costo en relación a otros medios publicitados como radio, televisión o 134 Iconografia musical na América Latina internet. Formando parte de la economía de la industria del rock periférico, esta actividad está regulada y distribuida por zonas a lo largo del Estado de México: la pinta de bardas es extensiva a la propaganda de partidos políticos. Imagen 5 – Pinta de bardas promocionales de conciertos en el Estado de México Fuente: fotograma del documental En la periferia, cedido por su director, Alberto Zúñiga. Imagen 6 – Pinta de bardas promocionales de conciertos en el Estado de México Fuente: fotograma del documental En la periferia, cedido por su director, Alberto Zúñiga. Aproximación a contextos marginales del rock en el estado de México... 135 Imagen 7 – Pinta de bardas promocionales de conciertos en el Estado de México Fuente: fotograma del documental En la periferia, cedido por su director, Alberto Zúñiga. Desde este estudio y perspectiva, la tipografía utilizada por las diversas bandas, plasmada en los carteles y pinta de bardas, nos da una idea relacionada al estilo y forma musical a la que cada agrupación se adscribe. Esto es muy notorio en las bandas de heavy metal. Las tipografías más claras y legibles se relacionan a un metal con formas musicales más sencillas y de un sonido con menos estridencia. Conforme la tipografía se hace más ininteligible, la forma musical es más estridente, con un mayor espectro de distorsión que cubre la línea melódica o los acordes. Como resultado tenemos en bardas y carteles un “mapa referencial de escucha”8 a través de la tipografía de los logotipos de las bandas. En esta breve aproximación, pretendí acercar nuevas fuentes para el estudio y abordaje de las prácticas del rock, los carteles y la pinta de bardas, en el contexto del llamado “rock urbano” del Estado de México y delegaciones periféricas de la Ciudad de México, brindando valiosa información sobre el carácter autogestivo de una industria que se extiende por casi todos los municipios y que convoca a miles de jóvenes y adultos para la escucha de sus músicas predilectas y 8 Este concepto de mapa referencial de escucha, es una propuesta que utilicé para el análisis de carátulas de álbumes y logotipos de las bandas en la escena mexicana de heavy metal, en la conferencia “Iconografía del heavy metal en México. Mapas de escucha”, presentada en el Ciclo de Conferencias de la Fonoteca del Instituto Nacional de Antropología e Historia (Inah). 136 Iconografia musical na América Latina experimentar la catarsis social, colectiva e individual de las complejas y cruentas realidades que se viven en el estado, derivadas de la desigualdad social. Como vimos, las características estéticas de carteles y bardas son un reflejo del carácter autogestivo de su economía, pero también de una ideología asentada en la austeridad de los eventos, reflejo de la marginalidad social de la entidad. Referencias EN LA PERIFERIA. Dirección: Alberto Zúñiga RodríguezCiudad de México: Sinestesia Ads, Media & Films, Asamblea para la Cultura y la Democracia A.C., CONACULTA, 2016. 1 DVD (7 min). Documentário. (LOS) ESTADOS con mayor desempleo y más informalidad. Forbes, México, 12 ago. 2016. Disponible en: https://www.forbes.com.mx/los-estados-mayor-desempleomas-informalidad/. Acceso en: 2 sept. 2018. GARCÍA, Jacobo. Estado de México, capital del feminicidio. El País, Madrid, 15 May 2017. Disponible en: https://elpais.com/internacional/2017/05/15/ mexico/1494869255_010650.html. Acceso en: 1 sept. 2018. GARZA, de la Alejandro. Breve historia pre-rupestre. In: PANTOJA, Jorge (coord.). Rupestre, el libro. Ecatepec, MEX: Ediciones Imposible: CONACULTA, 2013. GONZÁLEZ, Rodrigo. El manifiesto rupestre. Ce Caudata, [México], 16 oct. 2017. Disponible en: https://cecaudata.wordpress.com/ 2017/10/16/el-manifiestorupestre/. Acceso en: 11 nov. 2018. INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICAS Y GEOGRAFIA – INEGI. Estado de México. México, 2018a. Disponible en: http://cuentame.inegi.org.mx/mapas/pdf/ entidades/div_municipal/mexicompioscolor.pdf. Acceso en: 2 sept. 2018. INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICAS Y GEOGRAFIA – INEGI. Incidencia delictiva. México, 2018b. Disponible en: http://www.beta.inegi.org.mx/temas/ incidencia/. Acceso en: 1 sept. 2018. ITINERARIO. Banda Rockera: la revista. [S. l.], 13 nov. 2015. Disponible en: https:// canalonce.mx/itinerario/?p=20049. Acceso en: 11 nov. 2018. MARTÍNEZ, Laura. Música y cultura alternativa: hacia un perfil de la cultura rock mexicano de finales del siglo XX. Puebla: Universidad Iberoamericana Puebla, 2013. Aproximación a contextos marginales del rock en el estado de México... 137 NIEVES, Alfredo. Iconografía del heavy metal en México. Mapas de escucha. Conferencia presentada en La estirpe olvidada. Antropología e historia del rock en México. Ciclo de conferencias de la Fonoteca del INAH, Escuela Nacional de Antropología e Historia, 28 marzo 2017. PEZA, María de la. El rock mexicano: un espacio en disputa. Ciudad da México: Universidad Autónoma Metropolitana, 2013. 138 Iconografia musical na América Latina El personaje del Pilatos en el ritual dancístico-musical del Palo Volador Eco de la representación iconográfica de la población afromestiza en México Erika Salas Cassy 1 Introducción El estudio de las prácticas musicales de los esclavos africanos en Nueva España me ha llevado a la revisión de diversas fuentes para la localización de evidencias que me ayuden a esclarecer qué influjo tuvo este sector de la sociedad en diversas prácticas músico-culturales en México. El análisis de las fuentes iconográficas ha sido de gran utilidad puesto que han arrojado testimonios de las diversas representaciones que se han hecho a lo largo de la historia de la población negra en México. De las primeras fuentes de iconografía musical que llamaron mi atención fueron dos biombos pertenecientes al siglo XVII que en su programa iconográfico contienen una representación de un personaje con máscara y guantes de “negro”. Me refiero a El Palo Volador del Museo de América en Madrid y El desposorio de indios y el palo volador del Los Angeles 139 County Museum of Art. Estos biombos además de mostrar una imagen de un personaje caracterizado de “negro”, la integran al ritual prehispánico del Palo Volador. Después de un estudio de la historia del ritual y dichos biombos realicé un artículo para demostrar cómo la teatralidad popular insertó al personaje de “negrito escénico” en el ritual músico-dancístico de la Danza de Voladores. (SALAS CASSY, 2016) Posteriormente, al continuar con la pesquisa del personaje, me percaté que éste volvía a hacer aparición en testimonios posteriores del siglo XX y actuaciones actuales. La intención del presente artículo es demostrar la continuidad y cambios hasta nuestros días de un personaje de la danza de voladores caracterizado con máscara que fue documentado desde el siglo XVII con los biombos mencionados de Nueva España. Para este propósito, se realizará un seguimiento histórico de este personaje con fuentes documentales y una etnografía actualizada. 2 La imagen del negro en el teatro La tradición de actores de tez clara con máscaras o que se tiznaban la cara para aparentar ser africanos estuvo muy arraigada en el Teatro del Siglo de Oro español, convirtiendo a este personaje en un elemento estereotipado, donde el “negrito” era el cómico y músico por excelencia. Baltazar Fra Molinero (1995) realizó un profundo estudio sobre las características físicas, psicológicas y sociales conformaron al personaje en España. Por otro lado, de la Nueva España, hasta el momento, se desconoce la existencia fuentes provenientes del teatro donde se especifique este tipo de caracterización de negros. Se infiere que esta práctica se pudo haber realizado de la noticia que menciona Joaquin Barruchi y Arana (2011, p. 26) en su estudio preliminar del festejo que se le ofreció en el año 1756 a los marqueses de Amarillas en la capital del virreinato en donde en una pieza teatral que se representó intervino “una niña en traje de negrita”. 3 La imagen del negro en los biombos del palo volador Los biombos analizados muestran una composición casi idéntica: un día de fiesta donde se llevan a cabo actividades representativas de la misma. Cada 140 Iconografia musical na América Latina sector de la sociedad novohispana se presenta con sus características propias de vestimenta y actividades. En ambos los espectadores disfrutan de observar juegos y danzas de un cariz prehispánico como el juego de pies,1 el mitote.2 Así mismo, son representadas actividades de la vida popular indígena como los desposorios de indios, o la cultura del pulque con la representación de su extracción, venta y consumo. En el plano central de ambos biombos es representada la danza del Palo Volador, conocida también como Danza de Voladores3 y a los pies de esta es representado un personaje con máscara y guantes de “negro” que carga en su mano derecha una guitarrita. La imagen que se le da a este personaje concuerda con la del teatro donde el negro es músico. Todos los voladores están vestidos a la usanza española con calzones, medias y mangas. En el biombo madrileño (Imagen 1) todos portan máscaras de españoles y en el de Los Ángeles (Imagen 2) sólo se observa a dos de los voladores con ellas. 1 Clavijero (1844, p. 407) describe este juego de la siguiente manera: “Echábase uno de espaldas en tierra, y alzando los pies, sostenía en ellos una gruesa viga redonda y de ocho pies de largo. Arrojábala a cierta altura y volvía a recibirla y sostenerla en los pies: a después la tomaba entre los dos y la hacía girar violentísimamente”. 2 El Diccionario de la Lengua Castellana (1734, p. 579) define el mitote como una “especie de báile ù danza, que usaban los indios, en que entraba gran cantidad de ellos, adornados vistosamente, y agarrados de las manos, formaban un gran corro, en medio del qual ponían una bandéra, y junto a ella el brebage, que les servia de bebida: y assi iban haciendo mudanzas al son de un tamboríl, y bebiendo de rato en rato, hasta que se embriagaban y privaban de sentido”. 3 El Palo Volador fue un rito que se realizaba en Mesoamérica desde los tiempos de antaño “en las fiestas estacionales de la agricultura, tanto al inicio como al final de la cosecha” (NÁJERA CORONADO, 2008, p. 57), y se concebía como un ritual de fertilidad que tenía tres etapas, todas ellas acompañadas por música y danza: el corte del árbol, el levantamiento del mástil y el vuelo. Se conoce por fuentes virreinales que después de la conquista y con la evangelización el ritual fue prohibido en varias ocasiones pero que después fue legitimado y permitido como parte de las diversiones públicas, puesto que ya había perdido su significado ritual. El personaje del Pilatos en el ritual dancístico-musical del Palo Volador 141 Imagen 1 – Anónimo, s. XVII, El palo volador, biombo, óleo sobre tela, 177 x 505 cm, Museo de América, Madrid Fuente: Museo de América, Madrid, España. Imagen 2 – Anónimo, ca. 1690, El desposorio de indios y el palo volador, biombo, óleo sobre tela, 167.64 x 295.28 cm, Los Angeles County Museum of Art, Los Ángeles Fuente: Los Angeles County Museum of Art, Los Ángeles, EUA. 142 Iconografia musical na América Latina José Tudela (1946, p. 82), al respecto de estos biombos, indica que los participantes de esta representación “ya no son oficiantes, sino saltimbanquis” y no portan “los trajes de ceremonia o de pájaro”, sino que “se visten de mascarada, con trajes de soldados españoles, con cualquier careta, no con caretas rituales”. Tudela (1946, p. 82) hace la observación que da fe de la inserción del personaje con máscara de negro “el guitarrista, con una careta de negro, y el cuestor, que recoge en una pandereta las dádivas del público”, ambos ubicados al pie del mástil. La caracterización de los voladores con máscaras puede relacionarse con la danza del volador de centro América descrita en 1690 por Francisco Antonio Fuentes y Guzmán donde los voladores utilizan trajes de monos o trajes de terciopelo y mascaras de europeos barbudos, imitando la moda de España de la primera mitad del siglo XVII, de esa manera representan seres de otra especie y épocas ajenos a la comunidad. (NÁJERA CORONADO, 2008, p. 66) 4 El personaje con máscara de negro del siglo XX La siguiente noticia que se tiene de un personaje carácterizado de negro en el ritual del Palo Volador es hasta el año de 1936. Rodney Gallop registró que en la fiesta del Cristo de Metepec, Hidalgo, en la variante otomí de la danza del volador con seis voladores, a un personaje que se diferenciaba de los demás voladores ya que llevaba ropa ordinaria y traía la cara tiznada, a este le llamaban “El Negrito” (Imagen 3). Éste permaneció en el piso y su función dentro del ritual era la de proteger al palo de las fuerzas demoniácas, para lo cual además llevaba consigo una piel de cacomixtle y un látigo, según infiere Gallop (1936a, p. 83-84), su uso servía para ahuyentar a las fuerzas negativas, con el fuerte olor de la piel del cacomixtle y el sonido fuerte del látigo al golpearlo contra algún objeto. El personaje del Pilatos en el ritual dancístico-musical del Palo Volador 143 Imagen 3 – Personaje del Negrito en la Danza de Voladores Otomí de Metepec, Hidalgo Fuente: Gallop (1936a, p. 10). En el mismo año de 1936, Gallop registra también la danza de los voladores en la fiesta de Corpus Christi en Papantla, Veracruz y señala que eran nueve voladores pero que el tecomate, bastidor donde amarran las cuerdas para el descenso, era de forma cuadrada y que el Negrito era claramente remplazado por un personaje llamado Pilatos (Imágenes 4 y 5), “llevaba una máscara de negro, ropa ordinaria y un sombrero canotier de paja maltratado, y montado a horcajadas a un caballo de palo, sus payasadas atraían a él las burlas y las piedras de todos los niños pequeños”. (GALLOP, 1939, p. 184) De acuerdo con Gallop, después de los tocotines, danzas realizadas en el piso, cuatro de los voladores incluyendo al Pilatos y un músico, subieron al palo y después de que el músico bailara y tocara un son, los otros cuatro descendieron. 144 Iconografia musical na América Latina Imágenes 4 y 5 – Personaje de Pilatos en la Danza de Voladores de Papantla, Veracruz en 1936 (vista general – izquierda; detalle – derecha) Fuente: Gallop (1936b, p. 1). Cincuenta años más tarde Perezdiego presenció la danza en Coatzintla, Veracruz pueblo perteneciente también al Totonacapan. Señaló que después del corte del árbol y al momento de dirigirse por las calles hasta la iglesia a las 9.30 a.m. durante todo el recorrido el pilatos o bufón del grupo fue haciendo travesuras a los que se arremolinan a su paso y que iba montando un palo con cabeza de armadillo con el que azuzaba tanto a niños como adultos. Mencionó que al momento del vuelo ha tomado parte el bufón o Pilatos, éste aprovecha su intervención para jugar bromas, ya que mientras desciende junto con los demás voladores, este grita y patalea, manifestaciones que la gente celebra de buena gana, no obstante que este, algunas veces los moja con agua que ha llevado escondida entre sus ropas. Y, claro está que en este acto no ha dejado su palo con cabeza de armadillo, bastón cajita a diestra y siniestra. (PEREZDIEGO, 1968, p. 71) De la misma manera que lo indicó Gallop, en esa ocasión el Pilatos portaba una careta de negro hecha de madera y vestía con ropas comunes – pantalón, camisa, saco o chamarra, sombrero o gorra. (PEREZDIEGO, 1968, p. 75 y 77) El personaje del Pilatos en el ritual dancístico-musical del Palo Volador 145 5 Pilatos, el principal entre los voladores He buscado información documental sobre la danza del volador actualmente y realizado algunas visitas a los poblados donde Gallop mencionó que encontró al personaje caracterizado con máscara de “negro”. En la Fiesta de El Señor de Metepec ya no se tiene noticia de la práctica de la danza, según información documental (RIVAS PANIAGUA, 2008, p. 213) y lo que me comunicó José Celestino, volador del pueblo de Santa Mónica, Hidalgo,4 la danza dejó de hacerse después de un accidente mortal sufrido por uno de los voladores entre los años 1978, 1983 o 1985. Stresser-Péan (2013, p. 276) señaló que los voladores que llevaban a cabo el ritual en Metepec pertenecían al Pueblo de Santa Mónica, por lo que hice también una reciente visita y en esa comunidad sólo quedan tres voladores de edad avanzada, de los cuales dos, entre ellos José Celestino y Constacio San Juan me informaron que en su costumbre del Volador no utilizaban al “Negrito” mostrado por Gallop y que para ellos tiene más bien la apariencia de un brujo.5 La búsqueda actual en la tradición otomí de la danza ritual del Palo Volador ha resultado complicada puesto que en Metepec, Santa Ana Hueytlalpan y Santa Mónica ha caído en desuso. Sólo en algunas comunidades aledañas como El Bopo, Cerro Chico y El Aguacate se sigue realizando la danza durante el Carnaval.6 Por otro lado, en la tradición del Totonacapan, el personaje de Pilatos ha llegado hasta la actualidad sólo con algunas modificaciones de la cuales resalta el cambio de color de las máscaras que portan que ahora son de color roja y rosa. En una descripción del ritual del año 2008 en San Lorenzo Tajín, Veracruz se menciona que, en la ceremonia para llevar a cabo el corte del árbol, la gente y los danzantes iban acompañados de dos Pilatos enmascarados (Imágenes 6 y 7): uno representante del bien y otro del mal. (CABALLERO, 2008) De acuerdo con Caballero (2008), dos ancianos, Genaro y Rosario, el primero con una careta roja y barbada, y el segundo con una rosa, lisa y lampiña, también utilizan un caballito de palo. Uno era complemento del otro y eran los encargados de pedir 4 Comunicación con José Celestino, volador de Santa Mónica el 21 de noviembre de 2016. 5 Entrevista con José Celestino y Constancio San Juan Valentín el 21 de noviembre de 2016. 6 Cada año estas comunidades hacen su Carnaval que incluye la danza del volador. Para el Carnaval de Tenango de Doria, en Hidalgo, asisten los voladores de El Bopo y Cerro Chico para hacer la demostración, por lo menos eso se tiene registrado en programa del Carnaval desde año 2015 y en la presentación que presencié el 26 marzo de 2017. 146 Iconografia musical na América Latina permiso al viejo del bosque, guiar la procesión a través de su maleza, encontrar el árbol para el Palo Volador y encabezar la ceremonia junto a uno de los rezanderos. En esa ocasión, los Pilatos iniciaron la ceremonia con el son del perdón para pedir al Kiwi Qolo – dueño del monte – permiso para el corte junto con la ofrenda ritual consistente en incienso, aguardiente, tabaco, velas y comida. La presencia de los pilatos servía para atraer las energías buenas y malas que se presentaran en el lugar y con ello librarse de accidentes durante el ritual como lo señaló Leocadio Hernández García. (VIDAL, 2008b) Imagen 6 – Pilatos representante del bien cortando el árbol Fuente: Vidal (2008a). El personaje del Pilatos en el ritual dancístico-musical del Palo Volador 147 Imagen 7 – Pilatos representante del mal después de corte del árbol Fuente: Vidal (2008a). En otra descripción del rito de corte del árbol del mismo año se menciona también la participación de un Pilato llamado Nazario Pérez García de 50 años de edad, que llevó a cabo, junto con el caporal, la búsqueda del árbol e invocó al pie del árbol al dios del monte para pedir permiso y perdón para cortar el Palo Volador, colocando dos máscaras – la del Caporal y Pilato – en un altar junto con tabaco, mezcal, copal y flores. (ACOSTA NIETO, [200-], p. 20) Un elemento que ha permanecido en el personaje de Pilatos fue el de sus travesuras ya que éstos hacían bromas mientras los hacheros daban a tirar el árbol, diciéndoles: “creo que si fuera mujer le pegaría más duro”, entre otras 148 Iconografia musical na América Latina cosas. (CABALLERO, 2008) El componente del buen humor es algo que se compartía en otras tradiciones del volador, según menciona Stresser-Péan ya que entre los huastecos era común que le dieran un ambiente de fiesta a la ardua tarea de transporte del palo, así mismo, durante el siglo XIX entre los nahuas de Huauchinango durante en el vuelo, los danzantes llevaban un tipo de bastoncillos con los que trataban de golpearse unos a otros causando ilaridad entre los espectadores. (STRESSER-PÉAN, 2016, p. 137) Todavía, Stesser-Péan (2016, p. 197) señaló que en la danza del volador algunos elementos y personajes pudieran ser suplementarios o poco esenciales, como es el caso de los danzantes que se deslizan por las cuerdas y personajes como el “Negrito” de los otomíes que deben permanecer al pie del palo. Acerca del Pilatos indica que evidentemente fue un capricho surgido durante el siglo XX, cosa que se discutirá en seguida. 6 Funciones del personaje con máscara en el palo volador En lo que corresponde a los biombos novohispanos, ninguna de las crónicas de la época menciona a estos personajes. Sin embargo, el “negrito” que vemos en las fuentes iconográficas puede dar testimonio de su prescencia como músico al pie del palo. A decir de Gallop, los danzantes que permancían en el suelo son encargados de cuidar el palo y a los voladores. En Metepec él estaba allí para proteger al palo de las influencias demoniacas, según lo refiere Gallop (1936a), el personaje del Negrito, puesto que tenía una conexión con las fuerzas sobrenaturales, así mismo el que se pintara la cara de hollín indica que buscaba ocular su rostro y transformarlo. En el libro El chamanismo y las técnicas acaicas del éxtasis, Mircea Eliade (2009, p. 143) menciona que el tiznarse la cara es una práctica común entre algunos chamanes, quizá con el propósito de disfrazarse frente a los espíritus, como un modo de defensa contra ellos y una técnica elemental que persigue una integración mágica en el mundo de los espíritus. El tiznarse el rostro es la técnica más sencilla de enmascararse. Así mismo el uso del látigo y la piel de cacomixtle coincide con el perfil mencionado por Eliade y fungen como elementos de protección. (ELIADE, 2009, p. 151) Por otro lado, el uso de la máscara del Pilatos constituye, evidentemente, un elemento de transformación por medio del cual el danzante toma otra identidad, la de la máscara, la cual asume el mismo papel que el hábito del chamán. También El personaje del Pilatos en el ritual dancístico-musical del Palo Volador 149 el uso de un caballito de palo, utilizado a manera de juego para transportarse quizá, como señala Eliade (2009, p. 317), a otros planos. En visitas recientes a voladores de nahuas de Huauchinango, totonacos de Papantla y otomíes de la sierra de Hidalgo he podido indagar algunas de las funciones de este personaje en el Ritual del Volador. En el totonacapan, el Pilatos se considera el principal entre los voladores, aún antes que el caporal, él que los dirige. Es el que pide permiso al Viejo del monte, es la encarnación del Kiwi Qolo, sus bromas son con sentido de llamar la atención a la gente, para darles alguna enseñanza positiva. El Pilatos nace con ese don, no es algo que se enseñe, tiene la capacidad de comunicarse con las fuerzas de la naturaleza y además también es sanador.7 Los otomíes de la sierra de Hidalgo son de la opinion que el Negrito mostrado por Gallop se trata de un brujo, costumbre de algunas comunidades cercanas a ellos. Por su parte, lo nahuas de Huauchinango consideran a estos personajes intermediarios entre los danzantes y las fuerzas de la naturaleza, puesto que en su tradición el músico al tocar es el encargado de comunicarse con el bosque, el músico es el jefe de los danzantes y los cuida al momento del vuelo para que todo salga bien, teniendo también capacidades para sanar.8 7 Comentarios finales Por medio de un rastreo histórico se ha podido constatar la posible pervivencia de un personaje incorporado por la teatralidad y fiesta popular en la danza del palo volador. Las fuentes iconográficas novohispanas dan testimonio de la participación de un personaje con mascara de negro incorporado a una tradición prehispánica. Su referencia en prácticas posteriores en el siglo XX lo describen de manera más detallada en sus actividades y funciones dentro del ritual. A su vez demuestran que existe una continuidad de la idea de un personaje gracioso, parecido con la imagen del estereotipo del “negrito cómico”. 7 Comunicación con Asunción Genaro García, Pilatos en Papantla, Veracruz, y con Pablo Genaro Vázquez, volador de la misma ciudad, el 2 de marzo de 2017. 8 Entrevista con Bulmaro Maldonado, Maestro volador de Huauchinango, Puebla, el 7 de agosto de 2017. 150 Iconografia musical na América Latina La importancia de este personaje queda demostrada con la función que adquirió con su incorporación al ritual. Su presencia no fue algo casual o por capricho, sino que se convirtió en parte fundamental en el desarrollo del mismo, al ser el que cuida de cualquier accidente a los voladores. Sin duda hace falta realizar más investigaciones de este tipo que nos permitan articular el pasado mostrado con las representaciones novohispanas con el ritual actual. El uso de estos testimonios en ambas direcciones pasado-presente nos puede ayudar a entender nuestro pasado y presente etnográfico. Referencias ACOSTA NIETO, Anasella. Ceremonia ritual de los voladores, saber indígena. Revista El Tequio: la Presencia Hecha Palabra, Los Angeles, año 1, n. 4, p. 18-20, [200-]. BARRUCHI Y ARANA, Joaquin. Relación del festejo que a los marqueses de las amarillas les hicieron las señoras religiosas del Convento de San Jerónimo (México, 1756). Edición de Frédérick Luciani. Madrid: Iberoamericana, 2011. CABALLERO, Jorge. Reviven tradición cosmogónica en Veracruz: el corte del Palo Volador. La Jornada, México, 23 sept. 2008. Disponible en: http://www.jornada. unam.mx/2008/09/23/index.php?section=espectaculos&article. Acceso em: 21 nov. 2016. CLAVIJERO, Francisco Javier. Historia Antigua de Mejico y de su conquista: sacada de los mejores historiadores españoles [...]. México: Imprenta de Lara, 1844. DICCIONARIO de la lengua castellana, en se explica el verdadero sentido de las voces [...]. Madrid: Real Academia de la Lengua Española, 1734. ELIADE, Mircea. El chamanismo y las técnicas acaicas del éxtasis. México: Fondo de Cultura Económica, 2009. GALLOP, Rodney. Aerial Dances of the Otomis. Geograhical Maganize, Londres, 1936a. GALLOP, Rodney. Dancing on a sixty feet pole: a Mexican Indian Corpus Christi game. The Illustrated London News, Londres, v. 100, n. 2615, 1936b. GALLOP, Rodney. Mexican mosaic. Londres: London Faber and Faber, 1939. MOLINERO, Baltasar Fra. La imagen de los negros en el teatro del Siglo de Oro. Madrid: Siglo XXI de España Editores, 1995. El personaje del Pilatos en el ritual dancístico-musical del Palo Volador 151 NÁJERA CORONADO, Martha Ilia. El rito del «palo volador»: encuentro de significados. Revista Española de Antropología Americana, Madrid, v. 38, n. 1, p. 51-73, 2008. PEREZDIEGO, D’Poza. Danza de los voladores (Ama caguinilcan manzana) (los voladores colocan la manzana). México: [s. n.], 1968. RIVAS PANIAGUA, Enrique. Lo que el viento nos dejó: hojas del turruño hidalguense. Pachuca. Hidalgo: Universidad Autónoma del Estado de Hidalgo, 2008. RODRÍGUEZ VÁZQUEZ, Elías y Pascual Tinoco Quesnel. Grafftitis novohispanos de Tepeapulco, Siglo XVI, México: Benemérita Universidad de Puebla, 2006. SALAS CASSY, Erika. Iconografía como testimonio de la representación escénica del “negro cómico” en la Nueva España. Cuadernos de Iconografía Musical, México, v. 3, n. 1, p. 77-88, jun. 2016. STRESSER-PÉAN, Guy. La Danza del Volador entre los indios de México y América central. México: Fondo de Cultura Economica, 2016. STRESSER-PÉAN, Guy. El Sol-Dios y Cristo: la cristianización de los indios de México vista desde la Sierra de Puebla. México: Fondo de Cultura Economica, 2013. TORQUEMADA, Juan de. Segunda parte de los veinteiun libros rituales i monarchia indiana: con el origen y guerras de los indios occidentales, de sus poblaciones, descubrimientos... Madrid: Nicolas Rodriguez Franco, 1723. TUDELA, José. El volador de los mejicanos. Revista de Indias, Madrid, v. 23, n. 7, p. 71-88, 1946. VIDAL, Rodrigo. Ejecutan el ritual del volador. In: GLEZ, Edgar. Blog elfigaropozarica. [S. l.], 23 sept. 2008a. Disponible en: http://elfigaropozarica. blogspot.com/2008/09/ejecutan-ritual-del-volador.html. Acceso en: 25 nov. 2016. VIDAL, Rodrigo. Totonacos mostraron el esplendor de la ceremonia del permiso, corte, arrastre y siembra del palo volador y el vuelo final. In: RUY. Blog Zona de tolerancia: libertad de expresión en movimiento. Veracruz, MEX, 2008b. Disponible en: http://tolerance-zone.blogspot.mx/2008_09 _01_archive.html. Acceso en: 25 nov. 2016. WINFIELD CAPITAINE, Fernando. Patrimonio Cultural de Veracruz. México: Editora de Gobierno del Estado de Veracruz de Ignacio de la Llave, 2005. 152 Iconografia musical na América Latina Os acervos fotográficos dos arquivos nacionais dos países de língua portuguesa Usos e usuários Marcelo Nogueira de Siqueira 1 Introdução: a fotografia A fotografia tornou-se uma das maiores formas de registro da contemporaneidade, em virtude da facilidade promovida pelo avanço tecnológico, dos usos cada vez mais variados e da forma como ela se consolidou socialmente, constituindo-se em um documento presente em arquivos pessoais e institucionais e promovendo novas estratégias de organização e recuperação da informação desses acervos. Os arquivos nacionais são instituições notadamente normatizadoras em seus âmbitos. Portanto, compreender como eles agem em relação a esses acervos pode indicar como as demais instituições de seus países estão trabalhando. A Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) é composta por nações que tiveram uma mesma matriz administrativa e cartorial, porém possuem realidades demográficas, culturais e econômicas distintas, 153 servindo como um campo empírico que pode oferecer abordagens diversas. O objetivo deste trabalho é verificar se os arquivos nacionais da CPLP possuem acervos fotográficos e como eles são disponibilizados ao usuário. A metodologia utilizada será a revisão bibliográfica, a verificação dos sítios eletrônicos e da base de dados e a observância do uso de redes sociais por essas instituições. Os resultados evidenciam o distanciamento entre o trabalho desenvolvido e a necessidade contemporânea de novos usos e usuários de imagens fotográficas. Surgida na primeira metade do século XIX, a fotografia tornou-se, em poucos anos elemento presente em nosso cotidiano sociocultural, primeiramente como arte, depois como artefato afetivo e, em seguida, como objeto de registro, ganhando aura de documento com as coberturas jornalísticas de guerras e conflitos, no início do século XX, e de fonte histórica, com a Escola dos Annales, em França, na década de 1920. (BURKE, 2004) Seu valor de prova como fato acontecido passou a ser objeto da crítica histórica e as informações que ela evidenciava a passaram a ser entendidas como intenção, tanto de quem a registrava como de quem a observava (MAUAD; LOPES, 2012), transformando a fotografia em imagem/documento e, ao mesmo tempo, em imagem/monumento. (LE GOFF, 1984) Nas décadas de 1960 e 1970, surge dentre os arquivistas a noção de que a fotografia, assim como outros documentos não textuais, pudesse integrar fundos arquivísticos. (ROUSSEAU; COUTURE, 1998) Com o surgimento do universo digital e suas possibilidades quase infinitas, a fotografia banalizou-se. Nos primeiros anos do século XXI, com a consolidação da web, as novas tecnologias de comunicação e o advento das redes sociais, a imagem fotográfica multiplicou-se em quantidade e qualidade, tornando-se onipresente em nossas vidas. Para Sontag (2004), fotografar é apropriar-se da coisa fotografada, pois fotos fornecem um testemunho. Dubois (2012) reforça a importância do contexto de produção quando afirma não ser possível compreender a fotografia fora de seu ato de produção. Para Flusser (2002), as fotografias significam conceitos programados que visam passar mensagens específicas a seus receptores. Bauret (1992) afirma que a vemos por toda parte, sem entendê-la em sua integridade. Borges (2008) diz que a fotografia introduziu um novo tipo de ver e dar a ver a diversidade do mundo moderno. Kossoy (2007) propõe uma reflexão sobre a representação e o fato, o aparente e o oculto, o documento e a memória. Gaskell (1992) destaca o uso de imagens na pesquisa histórica como forma sofisticada na contribuição de uma visão do passado. 154 Iconografia musical na América Latina A fotografia tornou-se uma das maiores formas de registro da contemporaneidade, em virtude da facilidade promovida pelo avanço tecnológico, em que cada pessoa portadora de um smartphone tornou-se um fotógrafo em potencial,1 do compartilhamento promovido pelas redes sociais, dos usos cada vez mais variados e da forma como ela se consolidou culturalmente, constituindo-se em um documento presente em arquivos pessoais e institucionais e promovendo reflexões sobre as formas de organização, processamento técnico e disponibilização da informação, como estratégias para atender novas e velhas demandas de um público utilizador cada vez mais amplo e plural. 2 Os arquivos Enquanto instituições, os arquivos existem desde as primeiras civilizações orientais – sumérios, egípcios, assírios e babilônios –, servindo como local de guarda de preceitos religiosos, normas e leis. Durante a Antiguidade Clássica (Grécia e Roma), os arquivos continuaram vinculados ao Estado, mas a nobreza, a alta burocracia e os cidadãos de posses passaram a usufruir de seus serviços notariais, sendo que o direito romano, devido à importância do ato escrito, atribuiu maior relevância ao documento custodiado pelo arquivo, pois é ele que lhe conferia autenticidade. Após o colapso do Império Romano, a fragmentação da Europa e a consolidação da Igreja Católica, os arquivos passaram a se limitar às autoridades feudais e à própria Igreja. (BELLOTTO, 2002) Com o advento do Estado moderno e a centralização do poder, surgiram os grandes arquivos reais e os notariais passaram a ser mais organizados, sendo o uso desses arquivos restritos às questões jurídicas e administrativas. No século XVII, uma série de disputas entre ordens religiosas sobre seus acervos documentais produziu obras referenciais que deram início à constituição da “diplomática”, ciência que estuda as características extrínsecas do documento conferindo-lhe veracidade (TOGNOLI, 2014) e que viria a ser a gênese da arquivologia. Com a Revolução Francesa de 1789, surge a ideia de um arquivo geral da nação, como elemento de identidade e unidade nacional e promovendo a reunião da documentação oficial dispersa para ser organizada segundo critérios de origem 1 Estima-se que, na primeira década do século XXI, o número de aparelhos celulares cresceu de 750 milhões para mais de 5 bilhões. (SCHMIDT; COHEN, 2013) Os acervos fotográficos dos arquivos nacionais dos países de língua portuguesa 155 (proveniência) e de respeito à ordem original de sua produção (estrutura orgânica e funcional). Além disso, esse novo modelo de arquivo nacional promoveu certa liberdade para o cidadão na consulta de informações administrativas. (SILVA, 1999) Na segunda metade do século XIX, surge, nos arquivos, a pesquisa realizada por historiadores no contexto da história positivista, em que o valor dado às informações contidas em documentos de arquivo era a base e praticamente única referência para análise. (SIQUEIRA, 2017) Somente nesse momento que surgiram nos arquivos as primeiras salas destinadas à consulta, evidenciando a natureza hermética e excludente dos arquivos até então. No final daquele século, foi editado o Manual dos Arquivistas Holandeses, obra que sistematiza o fazer arquivístico e que é percebida por muitos autores como marco inaugural da disciplina arquivística. Durante o século XX, sobretudo no pós-guerra, desenvolveu-se o aperfeiçoamento dos arquivos correntes, ligados à administração pública e privada, sobretudo pela consolidação do capitalismo e da forte expansão econômica americana, que provocaram a chamada “explosão documental”. Em paralelo, os arquivos históricos, ligados à pesquisa e à cultura, ganharam um novo estatuto, devido às novas formas de se pensar e se fazer história e com a crescente noção de preservação e salvaguarda da memória, fomentada por organismos como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e o Conselho Internacional de Arquivos (CIA). A partir desse momento e de forma contínua, outros tipos de documentos, como as fotografias, filmes, registros sonoros e outros, foram sendo incluídos no rol dos documentos arquivísticos. No final do século XX e início do XXI, surgiram novas abordagens no pensar e fazer arquivístico, refletindo a necessidade de compreensão sistêmica da informação e atribuindo maior importância ao usuário. As novas tecnologias, o universo digital e a necessidade de gerenciar e otimizar uma crescente e variada produção documental, bem como de atender a novos e múltiplos usuários, fizeram com que os arquivos e suas práticas buscassem outras formas e possibilidades de produção, processamento, preservação, acesso, uso e difusão da informação. 156 Iconografia musical na América Latina 3 O processamento técnico de documentos de arquivo e da informação arquivística O processamento técnico pode ser compreendido como o conjunto de atividades de identificação, classificação, arranjo, descrição e conservação de documentos de arquivo e informações arquivísticas, conforme o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (2005). As atividades elencadas nessa definição referem-se a funções específicas dentro do universo arquivístico, promovendo o desenvolvimento de outras atividades sequenciais. A identificação acontece no momento em que o documento passa a fazer parte do conjunto documental, através de sua criação ou de sua entrada, através de recebimento ou acumulação. A classificação deriva da função ou atividade que o documento desempenha em virtude de sua criação, acontecendo após a definição de um plano de classificação, elaborado de acordo com a estrutura e funções do produtor. É a partir da classificação que o processo de avaliação do documento se inicia, resultando em sua eliminação ou guarda permanente. Os documentos que, por motivos legais ou de valor histórico-cultural, forem avaliados como de guarda permanente serão organizados na forma de arranjo, que deveria ter o plano de classificação como referência. Após essa organização, os documentos e seus conjuntos – fundo, seções, séries e dossiês – serão descritos de forma multinível, para que o usuário possa compreender seu contexto de produção e suas relações orgânicas com outros documentos e conjuntos. Na descrição arquivística, se elencam as características de conteúdo e de forma, mas também as de função e atividade, já explicitadas no quadro de arranjo, se bem elaborado. Na prática arquivística, a indexação deriva da descrição, sendo parte de um mesmo processo de recuperação e disponibilização da informação. A conservação de documentos, apresentada como última etapa sequencial do processamento técnico, deve ser planejada em todas as outras etapas. Atualmente, tem – se preferido a utilização do termo “preservação”, que é mais abrangente e completo. Os acervos fotográficos dos arquivos nacionais dos países de língua portuguesa 157 4 A fotografia enquanto documento de arquivo Documento de arquivo, conforme o CIA em sua Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística, é a “informação registrada, independentemente de forma ou suporte, produzida ou recebida e mantida por uma instituição ou pessoa no decurso de suas atividades públicas ou privadas”. (CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, 2000) Tal definição possui duas características que merecem destaque, uma explícita e outra implícita. A primeira diz respeito à forma e a suporte do documento, que pode ser de qualquer tipo; e a segunda remete à estrutura orgânico-funcional, pois o documento de arquivo é aquele que se insere e se enquadra no decurso das atividades da instituição ou pessoa. Portanto, a fotografia se enquadra perfeitamente na categoria de documento de arquivo caso ela tenha sido produzida em virtude de atividade específica e inerente de seu produtor e guarde relações orgânicas com outros documentos desse mesmo produtor. A fotografia de identificação de um funcionário é um documento de arquivo para a empresa a que esse funcionário pertence, da mesma forma que a fotografia de um evento dessa empresa constante de um relatório ou de uma obra que ela está realizando. Como foi observado, a fotografia só foi percebida como documento de arquivo há poucas décadas e, mesmo assim, dificilmente a encontramos inserida em planos de classificação, da mesma forma que são raras as instituições que a classificam conforme sua função ou atividade. Essa situação levou o Conselho Nacional de Arquivos, órgão responsável por definir a política nacional de arquivos no país, conforme a Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, a criar a Resolução nº 41, de 9 de dezembro de 2014, que dispõe sobre a inserção do documento fotográfico e de outros documentos não textuais em programas de gestão de documentos arquivísticos dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Arquivos, visando sua preservação e acesso. Se, teoricamente, a fotografia já foi entendida como possível documento de arquivo, sua percepção enquanto tal raramente acontece (SIQUEIRA, 2016), optando-se, por desconhecimento ou por pretensas facilidades, por um tratamento não arquivístico de sua informação, desmembrando-a de seu conjunto e promovendo a perda de seu contexto e organicidade. Todavia, a gigantesca produção atual de fotografias por instituições e pessoas, o compartilhamento, a difusão e o uso crescente dessas imagens incitaram uma 158 Iconografia musical na América Latina ampla reflexão de como classificar, descrever, indexar e oferecer a informação a um usuário cada vez mais dinâmico e plural. A fotografia contém múltiplas camadas de informação, podendo atender a necessidades distintas de diversos tipos de usuários. A classificação e a descrição arquivística de documentos fotográficos podem oferecer ao usuário apenas parte de um amplo espectro informacional, contido em camadas, perceptíveis ou não, que ultrapassam o sentido orgânico funcional. Caberá ao arquivista e ao profissional da informação o entendimento que o usuário contemporâneo é cada vez mais assimétrico e mutável, tanto em seu perfil como em suas necessidades. Outras percepções, abordagens complementares e formas interativas e colaborativas de disponibilização da informação possibilitariam novos usos para novos e antigos usuários. 5 A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e seus arquivos nacionais Conforme afirmado anteriormente, por serem os arquivos nacionais instituições normatizadoras em seus âmbitos, a compreensão de como eles agem pode indicar como as demais instituições de seus países estão desenvolvendo suas atividades. Além disso, como os arquivos nacionais possuem o caráter de identidade e pertencimento, podemos entender de que forma tais instituições, representantes do Estado, valoram a importância de seus acervos e de sua disponibilidade ao cidadão. A CPLP, criada em 1996, é composta por nações que tiveram uma mesma matriz administrativa, burocrática e cartorial, porém possuem realidades demográficas, culturais e econômicas distintas, servindo como um campo empírico que poderá oferecer compreensões diversas, sobretudo por seus contextos históricos e políticos, colaborando para uma análise da representatividade de um arquivo nacional e de como a fotografia vem sendo percebida por essas instituições. Os nove países da CPLP estão situados em quatro continentes diferentes e correspondem a mais de 7% do espaço terrestre do planeta (COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LINGUA PORTUGUESA, [200-]), com uma população de cerca de 280 milhões de habitantes. O português é o quinto idioma mais falado no mundo, o terceiro mais falado no hemisfério ocidental e o mais falado no Os acervos fotográficos dos arquivos nacionais dos países de língua portuguesa 159 Hemisfério Sul da Terra, sendo um dos idiomas oficiais da União Europeia e do Mercado Comum do Sul (Mercosul). (LÍNGUA..., [200-]) A seguir, os países que compõem a CPLP (Quadro 1). Quadro 1 – Países da CPLP País Continente Constituição vigente Angola África 1975 Brasil América do Sul 1988 Cabo Verde África 1992 Guiné-Bissau África 1984 Guiné-Equatorial África Não informado Moçambique África 1990 Portugal Europa 1976 São Tomé e Príncipe África 2003 Timor-Leste Ásia 2002 Fonte: elaborado pelo autor com base em dados da Comunidade dos Países de lingua Portuguesa ([200-]). Podemos verificar que todos os países possuem constituições novas, que não ultrapassam 50 anos de vigência, demonstrando uma adequação político-administrativa recente, oriundas de rupturas institucionais ou de redemocratização. 6 Metodologia A pesquisa iniciou-se pela revisão de literatura, fornecendo elementos para uma análise conceitual do tema em questão, bem como dos conceitos que permeiam esta pesquisa, estabelecendo uma base teórica na qual os resultados foram fundamentados. Em seguida, foram identificadas as nações da CPLP, foi verificada a existência de arquivos nacionais nesses países, se eles possuíam documentos fotográficos em seus acervos e como estes eram processados tecnicamente e disponibilizados ao usuário, sobretudo na possibilidade de visualização e usos on-line. Foram observados seus sítios eletrônicos, bases de dados e realizada uma pesquisa na web para constatar a existência de redes sociais desses arquivos nacionais. 160 Iconografia musical na América Latina 7 Resultados Verificou-se a existência de arquivos nacionais em todos os integrantes da CPLP, com exceção de Guiné-Equatorial, último país a ingressar na CPLP e que tem o português como terceiro idioma. Em Guiné-Bissau, não há um arquivo nacional específico, e sim um conjunto de fundos e coleções documentais chamados de Arquivos Históricos Nacionais, ligados ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep). Em Portugal, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo é subordinado à Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas, sendo um dos arquivos de âmbito nacional da rede portuguesa de arquivos, mas, de acordo com os parâmetros desta pesquisa, por sua história e relevância e por ter semelhanças como as demais instituições arquivísticas nacionais, foi escolhido como elemento de comparação. Foi constatado que, dos oito arquivos nacionais existentes, sete possuem sítio eletrônicos, pois o Arquivo Nacional de Angola não possui. Os Arquivos Históricos Nacionais do Inep de Guiné-Bissau possuem suas informações no portal Casa Comum, pertencente à Fundação Mário Soares, de Portugal, que almeja a constituição de uma comunidade de arquivos de língua portuguesa. O Arquivo Nacional de Timor-Leste não possui um sítio eletrônico propriamente dito, mas apenas uma página eletrônica do WordPress. Quadro 2 – Arquivos Nacionais dos membros da CPLP País Instituição Sítio eletrônico Sigla Angola Arquivo Nacional de Angola - ANA Brasil Arquivo Nacional www.arquivonacional.gov.br AN Cabo Verde Arquivo Nacional de Cabo Verde www.arquivonacional.cv ANCV Guiné-Bissau Arquivos Históricos Nacionais – Inep www.casacomum.org AHN Guiné-Equatorial – - GE Moçambique Arquivo Histórico de Moçambique www.ahm.uem.mz AHM Portugal Arquivo Nacional da Torre do Tombo www.antt.dglab.gov.pt ANTT São Tomé e Príncipe Arquivo Histórico de São Tomé e Príncipe www.ahstp.org AHSTP Timor-Leste Arquivo Nacional de Timor-Leste www.arntl.wordpress.com ANTL Fonte: elaborado pelo autor. Os acervos fotográficos dos arquivos nacionais dos países de língua portuguesa 161 Em seguida, foi pesquisado se os referidos arquivos nacionais dispunham de bases de dados on-line. Os arquivos nacionais de Angola e Timor-Leste não possuem, enquanto os arquivos de Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe utilizam o portal Casa Comum para suas bases de dados. Os arquivos do Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Portugal possuem bases de dados on-line próprias. Verificou-se, através de pesquisa pela internet, se os referidos arquivos nacionais possuíam redes sociais, pois se entende que tais meios são importantes ferramentas de difusão do acervo e contato com o usuário, sobretudo no que diz respeito aos documentos fotográficos. Os arquivos nacionais de Angola, Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe não possuem redes sociais e o Arquivo Nacional de Timor-Leste possui uma fanpage no Facebook, que é seu principal canal de comunicação e informação. Os arquivos nacionais de Cabo Verde e Moçambique também possuem fanpages no Facebook. Os arquivos nacionais do Brasil e de Portugal possuem suas fanpages no Facebook e disponibilizam imagens no Pinterest, sendo que o Arquivo Nacional do Brasil também possui conta no Twitter. Todos os arquivos nacionais dos membros da CPLP possuem documentos fotográficos em seus acervos. Entretanto, não foi possível averiguar se o Arquivo Nacional de Angola possui acervo fotográfico em virtude da não existência de sítio eletrônico e também porque não foi localizado seu endereço de correio eletrônico. Os acervos fotográficos dos arquivos nacionais de Moçambique e do Timor-Leste não estão disponíveis em seus sítios eletrônicos. Estão disponíveis, em parte, os documentos fotográficos dos arquivos nacionais do Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Portugal e São Tomé e Príncipe. Destes países, apenas Brasil e Portugal descrevem suas fotografias de acordo com a Isad-G, do CIA.2 Os demais países apresentam catalogações de fotografias selecionadas, sem a devida preocupação com o contexto orgânico. Também não há a utilização de indexação ou a possibilidade de interação entre usuário e instituição. A maior parte do acervo fotográfico dos referidos arquivos nacionais é constituída de fotografias de cunho histórico, retratando solenidades, autoridades e 2 No caso do Brasil, a norma utilizada é a Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade), que é uma adaptação da Isad-G. 162 Iconografia musical na América Latina aspectos do país. São fotografias de viés jornalístico e, sobretudo, oficias, sendo a grande maioria de imagens de algumas décadas atrás. Existem fotografias de natureza privada e coleções. A disponibilização dessas imagens nos sítios eletrônicos, bases de dados ou em redes sociais desses arquivos nacionais se constitui como uma forma de divulgação do acervo, pois quase sempre a imagem fornecida é apenas uma amostra de um conjunto maior. Um dado relevante percebido foi a inexistência de outras formas de recuperação da informação dos acervos fotográficos dos referidos arquivos nacionais. Quadro 3 – Acervos fotográficos e formas de disponibilização Sigla Possui acervos fotográficos Possui base de dados on-line Possui redes sociais Disponibilização on-line de acervo fotográfico* ANA – Não Não – AN Sim Sim Sim Sim ANCV Sim Sim Sim Sim AHN Sim Sim** Não Sim GE – Não Não – AHM Sim Sim Sim Não ANTT Sim Sim Sim Sim AHSTP Sim Sim** Não Sim ANTL Sim Não Sim Não Fonte: elaborado pelo autor. * Nenhum arquivo nacional pesquisado disponibiliza na íntegra seu acervo fotográfico de forma on-line, disponibilizando apenas fotografias representativas do acervo. ** Os Arquivos Históricos Nacionais de Guiné-Bissau e o Arquivo Histórico de São Tomé e Príncipe utilizam a base de dados do portal Casa Comum para disponibilizar as informações de seus acervos. 8 Conclusão No século XXI, a imagem fotográfica banalizou-se, sobretudo pelas novas tecnologias de registro e comunicação, que permitiram o acesso quase universal aos meios de fotografar, compartilhar e consumir imagens, fazendo com que a fotografia se tornasse “natural” em nossas relações sociais. Contudo, embora tão presente em nossas vidas, a fotografia ainda guarda sua aura de espelho, de fantasia, não daquilo que é real, mas daquilo que almejamos que fosse, através Os acervos fotográficos dos arquivos nacionais dos países de língua portuguesa 163 da intenção clara do objeto retratado, do cenário escolhido, do momento desejado e do recorte produzido. As palavras “espelho” e “especulação” derivam de um mesmo ramo etimológico, fazendo-nos repensar a ideia de espelho não como aquilo que reflete o real, mas aquilo que especulamos que fosse, o que traça uma interessante analogia com a relação que temos com a fotografia, as maneiras como a interpretamos. O usuário do documento fotográfico busca informações por vezes despercebidas pela instituição que a preserva e disponibiliza, pois tais documentos não possuem apenas a informação administrativa, jurídica, probatória ou histórica. A fotografia carrega em si elementos afetivos, de memória, culturais, ideológicos e que até mesmo podem representar diversão e lazer para seu público utilizador. Quando de sua criação, a fotografia é contexto, pois ela fixa o acontecimento, paralisando de forma ilusória e intencional a ação registrada. É o momento do recorte e da parcialidade do produtor, sendo sua criação destinada para seu usuário específico. Em seguida, a fotografia torna-se representação, repleta de lembranças, afetividades e sentimentos. É o momento de construção e reconstrução da memória, criando outros contextos para seu produtor e para os usuários. Há ainda uma terceira dimensão, que é a dos usos e reusos, quando novas abordagens, interpretações e intenções ganham contornos definidos e atribuem novos valores e significados à fotografia. Panofsky (1979) enumera em três os níveis a observação de uma fotografia, sendo o primeiro como uma descrição (pré-iconográfico), o segundo como análise (iconográfico) e o terceiro como uma interpretação (iconológico). A fotografia possui diversas camadas de informação, que se sobrepõem, se interagem, se complementam e não se excluem, podendo atender a demandas variadas de um público diverso. Entretanto, o tratamento arquivístico dessas imagens precisa ser planejado para atender a esses múltiplos usos e usuários, que surgem e se transformam em virtude das possibilidades tecnológicas que vão modificando e moldando a maneira de se comunicar e de se consumir informação visual. Se entende-se que as tecnologias da informação progrediram em uma velocidade sem precedentes, oferecendo oportunidades para que novos usuários se beneficiem do conteúdo informacional dos arquivos, imagina-se que novas formas de pensar os arquivos e de oferecer informações além do óbvio devem estar na agenda das instituições arquivísticas, sobretudo as nacionais. 164 Iconografia musical na América Latina Pode-se verificar, com esta pesquisa, que, embora a fotografia já faça parte do cotidiano de nossas instituições arquivísticas, o modelo de tratamento e disponibilização desses acervos ainda está baseado na relação vertical instituição-usuário, deixando este último como um consumidor passivo da informação visual oferecida. As instituições arquivísticas pesquisadas são as de maior representatividade em seus países, servindo como orientador de práticas e modelos a serem adotados pelas outras instituições de suas esferas de competência. Notadamente, muitos dos arquivos nacionais pesquisados não dispõem de infraestrutura, pessoal e de apoio governamental para o desenvolvimento e aprimoramento de seus serviços. Contudo, algumas ações demandam muito mais iniciativas de cunho operacional e aquelas que dependem de aparato tecnológico não são de difícil implementação, nem requerem grandes investimentos. Novas formas de disponibilização da informação e de interação com o usuário poderão otimizar o acesso, o uso e a difusão desses acervos. O uso de ontologias e da folksonomia nos arquivos poderá representar uma significativa melhora nos processos de recuperação da informação e disponibilização das mesmas. No caso das ontologias, especificação formal, explícita e partilhada de uma conceituação (SIMÕES, 2008), que se estrutura em domínios do conhecimento, é possível que elas colaborem na representação do contexto e na estrutura de um arquivo, além de auxiliar na disseminação da informação arquivística. (LUZ, 2016) A folksonomia é uma forma de indexar informações a partir de palavras comumente utilizadas pela comunidade, que irá se utilizar dessas informações e que poderá participar desse processo atribuindo marcadores ou tags. Nesse processo colaborativo, integrado e interativo, a relação instituição-usuário tende a ser horizontal e dinâmica, facilitando a recuperação e disponibilização da informação, para além daquela comumente oferecida. A utilização de novas formas de organização, recuperação e disponibilização da informação visual em arquivos, na forma de instrumentos de pesquisa multifacetados, sobretudo os de interface digital, não deve ser pensada como uma negação aos preceitos arquivísticos ou excludente à sua prática e teoria, e sim como uma forma de aprimorar seus serviços, que, em última análise, têm no usuário seu objetivo, sendo que, no caso dos arquivos nacionais, os usuários são o Estado e a sociedade. Os acervos fotográficos dos arquivos nacionais dos países de língua portuguesa 165 Referências BAURET, Gabriel. A fotografia: história, estilos, tendências, aplicações. Lisboa: Edições 70, 2011. BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivística: objetos, princípios e rumos. São Paulo: AARQ-SP, 2002. BORGES, Maria Eliza Linhares. História & fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EdUSC, 2004. COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LINGUA PORTUGUESA. Estados-Membros. [S. l.], [200-]. Disponível em: https://www.cplp.org/id-2597.aspx. Acesso em: 28 fev. 2018. CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS. ISAD (G): Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2000. CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. Resolução nº 41, de 9 de dezembro de 2014. Dispõe sobre a inserção dos documentos audiovisuais, iconográficos, sonoros e musicais em programas de gestão de documentos arquivísticos dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Arquivos - SINAR, visando a sua preservação e acesso. Diário Oficial da União: seção, n. 240, p. 30, Brasília, DF, 11 dez. 2014. DICIONÁRIO brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 2012. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. GASKELL, Ivan. História das imagens. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. p. 237-271. KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Cotia: Ateliê Editorial, 2007. LE GOFF, Jacques. Enciclopédia Einaudi: volume 1: memória – história. Lisboa: Imprensa Nacional: Casa da Moeda, 1984. 166 Iconografia musical na América Latina LÍNGUA portuguesa. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. [S. l.: s. n.], [200-]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_portuguesa. Acesso em: 28 fev. 2018. LUZ, Charlley dos Santos. Ontologia digital arquivística: interoperabilidade e preservação da informação arquivística em sistemas informatizados de arquivos e na web. 2016. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. MAUAD, Ana Maria; LOPES, Marcos Felipe de Brum. História e fotografia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 263-281. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979. ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Os fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998. SCHMIDT, E.; COHEN, J. A nova era digital. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013. SILVA, Armando Malheiro da et al. Arquivística: teoria e prática de uma ciência da informação. Porto: Edições Afrontamento, 1999. SIMÕES, Maria da Graça. Da abstração à complexidade formal: relações conceptuais num tesauro. Coimbra: Almedina, 2008. SIQUEIRA, Marcelo Nogueira de. A fotografia como fonte histórica e documento arquivístico: a evidência e o registro. In: BRITO, Luciana Souza de (org.). Ensaios teórico-práticos em Arquivologia. Rio Grande: Editora FURG, 2017. p. 75-96. SIQUEIRA, Marcelo Nogueira de. Reflexões sobre o fazer e o pensar arquivístico relativo aos documentos audiovisuais, iconográficos e sonoros. In: SOTUYO BLANCO, Pablo; SIQUEIRA, Marcelo Nogueira de; VIEIRA, Thiago de Oliveira. Ampliando a discussão em torno de documentos audiosivisuais, iconográficos, sonoros e musicais. Salvador: Edufba, 2016. p. 29-45. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. TOGNOLI, Natália Bolfarini. A construção teórica da diplomática: em busca da sistematização de seus marcos teóricos como subsídio aos estudos arquivísticos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. Os acervos fotográficos dos arquivos nacionais dos países de língua portuguesa 167 O dueto angélico da catedral e a passagem da Belle Époque em Aracaju (SE) Thais Fernanda Vicente Rabelo Maciel 1 A Catedral de Aracaju: breve histórico A Catedral Metropolitana de Aracaju, em Sergipe (SE), construída no último quartel do século XIX, abriga na parede do altar central uma pintura expressivamente mariana. As cenas principais – Assunção e Coroação da Virgem Maria – são ladeadas por um dueto angélico que, com serenidade, enriquece os acontecimentos com a dimensão musical. A pintura em questão exalta também a forte devoção mariana da Diocese de Aracaju, consagrada à Imaculada Conceição. O ato advém da Coroa Portuguesa, que, em 25 de março 1646, consagrou o reino de Portugal e domínios à Imaculada Conceição de Maria. Séculos depois, quando foi inaugurada a Igreja Matriz de Aracaju, manteve-se a padroeira da região. (LIVRO..., 1949, fl. 7) Este estudo é continuação de uma pesquisa anterior1 e, 1 Versão ampliada do texto apresentado no 3º Congresso Brasileiro de Iconografia Musical, realizado em Salvador, Bahia, no mês de julho de 2015, e que foi merecedor do Prêmio RIdIM-Brasil 2015. 169 para além de apresentar uma análise iconográfica e organológica do dueto angélico, desta vez, observa também, e mais propriamente, sua relação com a passagem da Belle Époque, que, na cidade de Aracaju, teve como protagonista a missão artística italiana. Aracaju foi projetada com a intenção de substituir a cidade de São Cristóvão na função de capital de Sergipe. A mudança da capital se deu em 1855. A construção de um templo católico que suprisse a necessidade do mais novo centro urbano do Estado fazia-se urgente. O prédio da antiga Matriz de Aracaju começou a ser erigido em 1856 durante o governo provincial de Joaquim Jacinto de Mendonça. De acordo com Costa (1968, p. 1): “[...] em virtude da urgência no levantamento da referida igreja, foi alterada a sua primeira planta, admitindo-se um plano mais leve e rápido para atender às necessidades religiosas e urgentes da população da nova Capital”. Por questões políticas, assumindo o governo da nova capital o então barão de Estância, Antônio Dias Coelho, as obras que haviam sido suspensas foram retomadas, porém com grandes alterações no projeto. Sob direção do engenheiro Pedro Pereira de Andrade e tendo passado nessa segunda fase de construção por grandes dificuldades e várias interrupções e incidentes, a Matriz de Aracaju foi finalmente inaugurada no dia 22 de dezembro de 1875 (COSTA, 1968), sob as benções do cônego José Luiz Azevedo, terceiro vigário da paróquia. 2 Uma nova catedral: processo de modernização de Aracaju A estrutura da matriz não agradou a todos os aracajuanos e não se estabilizaria no século XIX. Em 1910, por ocasião da criação da Diocese de Aracaju, a matriz foi elevada à categoria de catedral, conforme se observa na bula papal Divina disponente clementia: E por isso, usando do poder a Nós e a Santa Sé Apostólica reservado, em Letras Apostólicas, seladas com o plúmbico sêlo que tem por início ‘Ad Universas Orbis Eclesias’, dados no dia 27 de abril, do ano do Senhor de 1892, tendo de começar livremente a nova circunscrição das dioceses na República Brasileira enquanto bem poder no Senhor, e suprindo, enquanto necessário, ao consenso dos a quem interesse ou presumam lhes interessem, com a mesma autoridade Apostólica, estatuímos que o território do Estado civil chamado Sergipe se deve desapegar, e determinamos que nesse mesmo território se deve constituir uma 170 Iconografia musical na América Latina episcopal e própria Séde. Por modo próprio e de ciência certa, e com a plenitude do poder apostólico, da arquidiocese de S. Salvador da Bahia desmembramos e desligamos para sempre todo o território que presentemente constitue o Estado civil de Sergipe e que ora faz parte da mesma arquidiocese de S. Salvador e tem, segundo o último recenseamento, quatrocentos e cincoenta mil habitantes; e perpetuamente a erigimos em diocese e erecta a declaramos, devendo-se denominar – Diocese de Aracaju. Além disso, na cidade vulgarmente denominada Aracaju, e que é a capital do mesmo Estado civil de Sergipe, constituímos a Séde e Cátedra Episcopal da nova diocese de Aracaju; e a igreja que ali é dedicada à Imaculada Conceição da Bem aventurada Virgem Maria levantamo-la e elevamo-la à honra e dignidade de Catedral constituímos essa diocese assim erecta sufragânea da igreja metropolitana de S. Salvador da Bahia e submetemos o seu Bispo e os seus sucessores no ofício ao direito metropolitano do mencionado Arcebispo de S. Salvador. (LIVRO..., 1949, fl. 19v-20v) Em princípios da década de 1920, no governo de José Joaquim Pereira Lobo (1864-1933), a jovem capital passaria por um processo de urbanização, semelhante ao que ocorrera em outras cidades do Nordeste brasileiro no mesmo período. O projeto de urbanização/modernização de Aracaju, além de ser consequência das comemorações do Centenário da Emancipação Política de Sergipe, que se dariam no ano de 1920, reflete a imigração italiana no Nordeste brasileiro naquele período. (CAPPELLI, 2010) No aspecto artístico, essa busca pela modernização testemunha a influência da Belle Époque através do pensamento artenovista. Jeferson da Cruz (2014) explica que Aracaju também recebera ecos da Belle Époque inspirada pela capital federal, o Rio de Janeiro. Segundo o autor, o movimento que caracterizou mudanças no comportamento das grandes cidades tinha como modelo os novos costumes que se apresentavam na Europa, sobretudo nas classes elitizadas. Esse movimento de modernização se manifesta no Brasil a partir de meados do século XIX – sobretudo no reinado de D. Pedro II – e se estende até a década de 1930, ganhando maior impulso nos primeiros 20 anos do novo século. Esse processo de modernização tinha a França como principal referência, mas, no Brasil, foram os italianos os maiores responsáveis por tais transformações arquitetônicas e artísticas nos principais centros do país. De acordo com Cenni (2003), a vinda da missão francesa ao Brasil – após a chegada da Família Real ao país – despertou a vinda de artistas de diversos centros da Europa. Alguns mais afoitos, inclusive, para cá vieram à procura de sucesso financeiro ou em busca de aventurar-se. Esses artistas, com tendências O dueto angélico da catedral e a passagem da Belle Époque em Aracaju (SE) 171 estilísticas diferentes entre si, viriam também a aprimorar o ambiente artístico no Brasil. A característica desses artistas é também destacada por Cenni quando explica que, no período em questão – finais do século XIX e início de século XX –, os pintores que obtiveram maior êxito foram os que trabalhavam com pintura de parede, decorações de igrejas e de salões, não se investindo tanto pinturas em tela, por exemplo. Em razão disso, quando a procura pelos pintores “de cavalete” retornou, os pintores de interiores tentaram a todo custo preencher essa lacuna, mas sem as devidas condições, salvo exceções como Antonio Rocco, De Servi, Ferrigno, Alfredo Norfini, Oreste Sercelli e outros poucos. (CENNI, 2003) Sercelli trabalhou também em Aracaju, junto à missão italiana, como será visto mais adiante. Segundo Cruz (2016, p. 26), a Belle Époque foi um movimento entre séculos e seu desenvolvimento se deu em meio a uma época marcada pela dualidade entre um período degenerado (o pós-Primeira Guerra) e a esperança de prosperidade e recomeço. Depois do término da guerra tornou-se moda chamar os anos que a precederam de Belle Époque e confundir esse período com fin de siécle, como se os dois tivessem sido um só. [...] Mas a Belle Époque que só foi assim chamada quando se olhou em retrospectiva através de cadáveres e ruínas, representa os dez anos e pouco antes de 1914. Esses também tiveram seus problemas, mas foram anos relativamente robustos, otimistas e produtivos. O fin de siècle o tinha precedido: uma época de depressão econômica e moral, recebendo muito menos a alegria ou esperança. (WEBER, 1988 apud CRUZ, 2016, p. 26, grifo do autor) É importante destacar que, na primeira década do século XX, Aracaju ainda não se configurava um centro urbano, pois apresentava ainda muitas carências e um aspecto geral rudimentar. Nesse sentido, as transformações advindas com os ventos da Belle Époque seriam muito bem-vindas. (CRUZ, 2014) Esse processo de modernização da jovem capital, como fora chamado, se deu de forma pontual. Foram remodelados prédios como: catedral metropolitana, palácio do governo, além da igreja matriz da cidade de Estância. A iniciativa de remodelação de Aracaju partiu da nobreza local. O governo, em função na administração de Pereira Lobo, contratou profissionais italianos que se encontravam em Salvador. Ao tratar da reforma do palácio do governo, atualmente Palácio Museu Olímpio Campos, o historiador Urbano Lima Neto (1962, p. 92) explica: 172 Iconografia musical na América Latina Não tendo sido aceita nenhuma proposta [...], a concorrência pública na administração antecedente, resolveu o Governo trazer a Sergipe uma equipe de artistas italianos que naquela época se encontrava na Bahia: Belando Belandi, arquiteto e escultor; Oresti Cercelli, arquiteto e pintor; Bruno Cercelli, pintor; Oresti Gatti, escultor, fundidor e pintor; Fiori, fundidor e Frederico Gentil, que trabalhava em serviços de assentamento. Este último, o único sobrevivente ainda entre nós, a quem devemos essas informações. Muitos aracajuanos mais abastados aproveitaram a presença dos italianos contratados pelo governo para a remodelagem dos prédios públicos e remodelaram também suas residências. Assim, a Belle Époque também se evidenciou na cidade através das casas suntuosas em moldes europeus. De acordo com Maciel (2012, p. 29): Nesta segunda década do século XX, por conseguinte, ocorreu um processo de modernização, a jovem capital ganhou ares de cidade, dotada de infra e superestrutura e embelezamento urbano e arquitetônico; a equipe da ‘Missão Italiana’ atualizou a arquitetura de bens públicos e privados, motivando a disseminação do eclético e seus elementos historicistas através de colagens e reapropriações – nas arquiteturas civis de menor porte – do que era moderno, no sentido de atual à época. A busca pela modernização revelou “o anseio de fazerem parte de uma civilização pautada em costumes refinados oriundos da Europa (mais especificadamente na França), no caso de algumas cidades brasileiras, a exemplo de Manaus, Belém, Fortaleza, Natal, Recife, Salvador, Franca (SP), São Paulo, Rio de Janeiro e Aracaju”. (CRUZ, 2016, p. 19) No caso específico de Aracaju, é possível notar esse pensamento de busca pela modernização em meios de comunicação da época, como no Correio de Aracajú, jornal favorável ao governo: “‘dia a dia caminha fulgurante na larga estrada do progresso e da civilisação’, ‘A cidade de Aracajú prospera e florescente capital do futuroso Estado do norte’, ‘Comprehendendo a necessidade de que a civilisação, já em grao tão adiantado para a sociedade daquelle Estado’”. (CRUZ, 2016, p. 140) A catedral passaria também por essa remodelação, que muito alteraria em sua estrutura original. De acordo com Maciel (2012) e com o relatório elaborado para a mais recente tentativa de restauro do prédio, as produções artísticas que a Catedral de Aracaju abriga são de autoria do mestre italiano Oreste Gatti e do seu discípulo Rodolpho Tavares. Deve-se destacar o nome de Oreste Gatti, O dueto angélico da catedral e a passagem da Belle Époque em Aracaju (SE) 173 cuja assinatura consta nas duas principais cenas representadas na parede do altar principal, que consistem em objeto deste estudo. No entanto, as informações sobre Gatti são escassas. Sabe-se que o artista italiano trabalhou também nas pinturas internas do palácio do governo e da então Igreja Matriz de Estância – atual Catedral de Estância (SE) – e que tanto ele quanto Frederico Gentil fixaram residência em Aracaju em razão de a cidade ter-se mostrado favorável. (CRUZ, 2016, p. 143) Gatti teria permanecido em Sergipe até sua morte, em 1943, que teria ocorrido antes mesmo da inauguração de seu último trabalho: a obra da Igreja Matriz de Estância. (BARRETO, 2004) As obras da Catedral de Aracaju só seriam inauguradas no dia 10 de novembro de 1946, com grande festa, em missa solene celebrada pelo então bispo diocesano, D. José Tomaz Gomes da Silva – primeiro bispo da Diocese de Aracaju. (LIVRO..., 1949, fl. 108) A seguir, observamos a construção original no século XIX (Figura 1) e o edifício remodelado, já no século XX (Figura 2). Figura 1 – Matriz de Aracaju, século XIX Fonte: Brito Filho (2009). 174 Iconografia musical na América Latina Figura 2 – Catedral de Aracaju remodelada, primeiro quartel do século XX Fonte: Brito Filho (2009). O novo prédio possui estilo eclético, conservando algumas características do estilo neoclássico, presente na construção original do século XIX e apresentando agora também características do neogótico (ARQUIDIOCESE DE ARACAJU, 2011) após a remodelação. No que se refere aos elementos artísticos e ornamentais da catedral já remodelada, observa-se predomínio do estilo neogótico tanto na arquitetura quanto na pintura parietal. Abóbodas ogivais delineiam o teto do templo. O dueto angélico da catedral e a passagem da Belle Époque em Aracaju (SE) 175 3 Iconografia do altar-mor: comunicação do sagrado Obra do pintor italiano Oreste Gatti,2 o altar-mor da referida catedral apresenta ricas imagens figurativas, bem como elementos decorativos que retratam o tema mariano. A parede central apresenta um arco em estilo neogótico, pontiagudo. Detalhes e arabescos contornam e preenchem o templo. Apesar do predomínio do elemento neogótico na pintura parietal, as cenas representadas na parede central afastam-se do padrão, enfatizam o aspecto eclético da construção e mostram-se mais características do neoclássico, com formas mais simples e claras. No centro inferior da parede central, em um declive côncavo, está representada a Assunção de Maria aos céus. No topo da mesma parede, Oreste Gatti retratou a coroação da Virgem Maria no céu. As duas cenas encontram-se assinadas pelo pintor italiano. Em meio a essas cenas, estão retratados os dois anjos músicos, um à esquerda e outro à direita. Não são iguais. Envolvidos cada qual em uma moldura circular, cada um deles toca um instrumento musical. Em volta dessas três cenas distintas, observam-se no teto, também em abóbodas, vários arabescos. O imaculado coração se repete como elemento decorativo no teto. Nas paredes laterais, foram pintadas a figura de São Pedro, à esquerda – segurando uma chave e olhando para o alto –, e a de São Paulo, à direita – segurando uma pena e uma espada. Ambos estão envoltos em moldura circular semelhante à dos anjos. Os tons de cinza, azul e marrom se sobressaem na pintura parietal (Figura 3). 2 As fontes divergem quanto à escrita do nome do pintor italiano. Cenni (2003) e Maciel (2012) referem-se à Oreste Gatti, mas Lima Neto (1962) escreve Oresti Gatti. Na ausência de autógrafo do pintor, optamos, neste trabalho, por adotar a grafia como Oreste Gatti. 176 Iconografia musical na América Latina Figura 3 – Oreste Gatti. Teto da Catedral de Aracaju. Trompe-l’oeil (cerca de 1930) Fonte: Rabelo (2015 p. 361). Na cena da Assunção (Figura 4), Maria, olhando para frente, encontra-se envolta em nuvens. Em torno da Imaculada, estão 13 anjos, como figuras infantis. Circulam a Imaculada com alegria, sustentando também ramos de flores campestres. Parece encontrar-se em momento lúdico, evocando a ideia de ternura na cena, mais do que de solenidade. Abaixo, os observadores contemplam o acontecimento com admiração e espanto. Personagens idosos, adultos, jovens e uma criança representam a comunidade primitiva de cristãos. Dois dos homens dirigem toda sua atenção ao que aparenta ser um túmulo – onde a Virgem se encontrava. Um deles aponta para o túmulo e outro olha com espanto. Os demais têm seus olhos voltados para cima. Alguns acenam como que em despedida. O cenário é bucólico. O céu é claro, mas torna-se mais escuro do centro da representação para cima, dando ideia de profundidade à pintura. Essa ideia de profundidade também é reforçada pela parede côncava que recebe a cena. Na parte superior da parede central, Gatti pintou a Coroação de Maria (Figura 5), corroborando com a sequência cronológica dos acontecimentos compreendidos na tradição cristã católica. A Virgem, ao centro, com as mesmas vestes da pintura anterior – trajes em azul e bege e o manto dourado –, segurando lírios na mão direita, é coroada pela Trindade Santa. Deus Pai segura com a mão esquerda o mundo e Deus Filho, com a mão direita, sustenta a cruz, enquanto o Espírito Santo, figurado como pomba, situa-se acima. Estão sobre as nuvens. A forma como Maria é representada nessa cena também faz alusão à Imaculada Conceição, não apenas pelos trajes, mas pelos lírios, que representam a pureza. A coroa denota sua majestade sobre céu e terra. O dueto angélico da catedral e a passagem da Belle Époque em Aracaju (SE) 177 Figura 4 – Oreste Gatti. Assunção de Maria. Afresco (cerca de 1930) Fonte: Rabelo (2015, p. 362). Figura 5 – Oreste Gatti. Coroação de Maria. Afresco (cerca de 1930) Fonte: Rabelo (2015, p. 363). 178 Iconografia musical na América Latina A devoção a Maria como Imaculada Conceição advém dos primeiros séculos do cristianismo. No entanto, a Imaculada Conceição de Maria só seria definida como verdade de fé, pelo papa Pio IX, no dia 8 de dezembro de 1854, por meio da carta apostólica Ineffabilis Deus. (PIO IX, 1854, p. 597-619) Além deste, outro dogma mariano aparece claramente representado no altar-mor da catedral: a Assunção de Maria, declarada pelo papa Pio XII na constituição apostólica Munificentissimus Deus (1950), definindo que a Virgem Maria foi assunta ao céu de corpo e alma. Essa ideia se havia mantido viva através da tradição da Igreja. As duas verdades de fé encontram-se interligadas. De fato esses dois dogmas estão estreitamente conexos entre si [...] Mas Deus quis excetuar dessa lei geral a bem-aventurada virgem Maria. Por um privilégio inteiramente singular ela venceu o pecado com a sua concepção imaculada; e por esse motivo não foi sujeita à lei de permanecer na corrupção do sepulcro, nem teve de esperar a redenção do corpo até ao fim dos tempos. (PIO XII, 1950) A ligação entre ambos os dogmas também se observa na pintura da parede central. Em breve descrição da cena da Assunção de Maria, destacamos a figura principal, da própria. A figura se mostra em trajes semelhantes ao da Imaculada, afirmando a tentativa de representar os dois dogmas marianos na mesma cena, mantendo-se a imagem da padroeira em túnica bege e manto azul claro, com um manto sobre a cabeça em dourado – indicativo de sua assunção gloriosa. O detalhe nas vestes segue um padrão já observável em outras pinturas ao longo da história, a exemplo da Imaculada do Escorial (Figura 6), pintada por Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682). É importante mencionar que, antes da remodelação da Catedral de Aracaju, uma cópia da Imaculada de Murillo ocupava a parede do altar central. Obra do pintor sergipano Horácio Hora (1853-1890), a pintura da Imaculada Conceição nunca foi amplamente aprovada pelos fiéis católicos por ser de tamanho desproporcional ao altar e pouco original. Após a remodelação do templo, o quadro foi retirado da parede do altar e, desde então, anexado à parede da sacristia (Figura 7). No que se refere às cenas do altar-mor, pode-se dizer que, em contraste com a decoração anterior à remodelação, as cenas retratadas por Gatti apresentam muito mais detalhes e ênfase, pois reforçam a imagem da padroeira em eventos O dueto angélico da catedral e a passagem da Belle Époque em Aracaju (SE) 179 muito importantes para a tradição da Igreja. As cenas trazem imponência à figura da padroeira e, em consequência, ao prédio a ela dedicado. Figura 6 – Bartolomé Esteban Murillo. Imaculada do Escorial (1660-1665). Óleo sobre tela, 206 x 144 cm. Museu del Prado, Madrid Fonte: Imaculada ([20--]). 180 Iconografia musical na América Latina Figura 7 – Horácio Hora. A Virgem de Murillo. Óleo sobre tela (1877) Fonte: produzida pela autora (2018). Ao tratar da arte decorativa nas igrejas ainda na Idade Média, Gombrich (2000, p. 176) explica que, nesse contexto, a palavra “decorar” é enganadora. “Tudo o que pertencia à Igreja tinha sua função definida e expressava uma ideia precisa, relacionada com os ensinamentos da Igreja”. Evidentemente, no período abordado pelo autor, essa catequese por meio da arte fazia-se necessária à Igreja, considerando que grande parte dos fiéis não era alfabetizada. Portanto, à arte sacra se conferia também um valor de evangelização. Voltando às representações marianas da Catedral de Aracaju, podemos afirmar que há também nelas, ainda que de maneira intrínseca, uma catequese – uma catequese afirmativa do dogma da Imaculada Concepção de Maria. O dueto angélico da catedral e a passagem da Belle Époque em Aracaju (SE) 181 4 Os músicos angélicos Entendidos como seres espirituais segundo a doutrina da Igreja Católica, os anjos, ou mensageiros de Deus, são figuras muito recorrentes na iconografia cristã ao longo da história. A forma como foram representados modificou-se ao longo do tempo. Didron (1886) explica que a representação imaterial dos anjos nos manuscritos antigos foi, no Ocidente, dando lugar a uma representação material, de figura humana e real. Na Idade Média, os italianos os representariam como figuras infantis, enquanto que, posteriormente, seriam representados como homens crescidos, quase envelhecidos, conforme manuscritos franceses, alemães e ingleses. Com o passar do tempo, a figura do anjo vai se tornando cada vez mais humanizada no Ocidente. (DIDRON, 1886) É justamente a humanização da figura angélica que nos aproxima da relação entre os mensageiros de Deus e a música. De maneira discreta, mas não menos importante, estão dois anjos músicos que ladeiam a cena da Assunção. Ambos apresentam fisionomia infantil. O anjo à esquerda de quem observa possui uma túnica em tom bege, próximo ao róseo. Está de pé, com a perna levemente inclinada para melhor apoiar o instrumento que executa. Seu olhar compenetrado dirige-se unicamente para o braço do instrumento. É necessário ressaltar o cuidado do pintor para com a postura do músico angélico que graciosamente dedilha seu instrumento de cordas, com braços bem dispostos sobre o mesmo. O anjo em questão encontra-se encostado em um longo cortinado verde. Aos pés, muitas flores. Quanto ao ambiente, nota-se que Gatti se preocupou em detalhá-lo também na representação dos anjos. O solo é terroso e, ao fundo, há um monte arroxeado. O céu é representado em tons pastéis roseados, como que no crepúsculo, conforme se observa na Figura 8. O anjo à direita (Figura 9) está vestido em uma túnica azul, encostado também em um longo e espesso cortinado verde, no mesmo tom que o anterior. Ao fundo da imagem, o solo é terroso, os montes arroxeados, como que distantes, e o céu também de crepúsculo. Esse anjo toca também um instrumento de cordas – neste caso, friccionadas. Seu olhar está voltado para o instrumento. Está como que sentado. É também relevante notar o cuidado do pintor para com a postura do músico que cuidadosamente executa seu instrumento. Seus braços roliços posicionam-se com precisão. 182 Iconografia musical na América Latina Figura 8 – Oreste Gatti. Anjo músico situado à esquerda do altar-mor. Afresco (cerca de 1930) Fonte: Rabelo (2015, p. 364). Figura 9 – Oreste Gatti. Anjo à direita do altar-mor. Afresco (cerca de 1930) Fonte: Rabelo (2015, p. 365). Do ponto de vista organológico, a representação iconográfica dos instrumentos não é precisa. No entanto, em estudo anterior, chegou-se à conclusão de que os instrumentos tocados pelo dueto angélico são um bandolim, tangido cuidadosamente pelo anjo à esquerda – instrumento de cordas pinçadas, de pequeno porte, semelhante ao alaúde, com caixa acústica de fundo abaulado, braço reto com inclinação na parte das cravelhas, sem trastes –, e de um O dueto angélico da catedral e a passagem da Belle Époque em Aracaju (SE) 183 violoncelo, tangido pelo anjo à direita – também com cordas friccionadas, a afinação em quatro cordas presas ao pequenino estandarte e o braço reto, paralelo às cordas e sem trastes. Com caixa de ressonância estreita, o instrumento possui também um espigão em madeira. A nível performático, observamos a postura tradicional de arco para violoncelo, com o arco segurado por cima. Trata-se, portanto, de dois instrumentos presentes na tradição europeia. 5 Análise do conjunto iconográfico da parede central A questão central da análise iconográfica sobre a pintura do altar central é a relação entre o dueto angélico e a cena da Assunção de Maria. Apesar de, em primeiro momento, não se apresentar claro, ambos integram o mesmo acontecimento. No entanto, os anjos ganham um destaque especial, sendo afastados da cena central. Para uma melhor visualização, apresentamos as cenas aproximadas na Figura 10, a seguir. As semelhanças entre a cena da Assunção e as cenas angélicas se expressam nos seguintes elementos: solo terroso, céu em tons pastéis e montanhas arroxeadas, arranjos florais quase idênticos – aos pés dos anjos à esquerda e sobre o túmulo, na Assunção –, a cor das vestes dos anjos e da própria virgem – que podem fazer alusão ao manto da Imaculada – e o cortinado verde, esclarecendo que os anjos participam da mesma cena. Percebemos o motivo de ter o artista a preocupação de detalhar os ambientes no qual estavam os músicos. Separando os anjos músicos da cena principal, Gatti conseguiu não apenas enfatizar com maior detalhe – mais do que seriam se estivessem imersos no plano do acontecimento –, mas também destaca elementos pictóricos intrigantes, como o cortinado verde, que, aparentemente, em nada dialoga com a cena campestre e quase bucólica da Assunção. No âmbito artístico e musical, é possível conjecturar que se trate de uma menção à ópera italiana, herança italiana nas terras brasileiras, nesse caso intencionalmente representada na parede da catedral. Assumindo a ideia de uma representação dramática e musical, é possível compreender a razão do cortinado e dos anjos afastados como que integrando o cenário da própria ópera, mas em planos distintos. Entende-se também a possível razão de praticamente todos os personagens, apesar de indicarem movimento, estarem posicionados de frente para quem observa. Também a escolha dos instrumentos afasta a ideia de uma solene 184 Iconografia musical na América Latina sacralidade. Dessa forma, observa-se que a prática musical representada na parede central se contrapõe aos sóbrios acordes produzidos pelos tubos do órgão alemão, construído em 1881, instalado no coro da igreja desde que ainda era matriz (RABELO, 2014, p. 81), mas não perde de vista os elementos europeus. Figura 10 – Oreste Gatti. Anjos músicos (lado esquerdo e direito do altar) e cena da Assunção de Maria. Afresco (cerca de 1930) 6 Considerações finais O estudo sobre a pintura do altar central da catedral de Aracaju ultrapassou os limites do iconográfico e revelou o encontro entre contexto histórico e social. O olhar para as harmoniosas pinturas da catedral também ressaltou a passagem da Belle Époque em Aracaju e a maneira como a cidade buscou, nas três primeiras décadas do século XX, assemelhar-se à cidade luz e aos grandes centros do Brasil. As cenas retratadas na catedral colocaram em destaque a missão artística italiana, protagonista da remodelação da cidade. O dueto angélico da catedral e a passagem da Belle Époque em Aracaju (SE) 185 Os pincéis de Oreste Gatti conferiram ao templo católico maior riqueza de detalhes e a sua personalidade artística. Apesar da falta de informações acerca do referido artista, sua obra exprime leveza ao templo, através de semblantes serenos, mesmo em meio aos acontecimentos grandiosos e também das tonalidades pastéis das cores utilizadas pelo pintor. Dessa maneira, entremeia-se às pinturas uma sutil catequese mariana: a Imaculada Conceição, padroeira de Aracaju, foi assunta ao céu e, em glória, foi coroada pela Trindade Santa (cena culminante). Portanto, remontando a ideia da arte sacra como catequese, ainda que não fosse sabido sobre a padroeira da cidade, a catequese mariana estaria ali claramente figurada não apenas nas cenas principais, mas em diversos elementos decorativos espalhados por todas as paredes da igreja. Na Catedral de Aracaju, os anjos tocam à Maria. Tocam música italiana e, participando de uma “ópera sagrada”, fazem a Imaculada “subir ao céu”. Conduzidos pelos contornos melódicos da Belle Époque, sua música exprime, ainda que apenas simbolicamente, uma sonoridade viva e terna. Compenetrados em seu fazer musical, testemunham a passagem da missão artística italiana pelo estado de Sergipe e evidenciam a sensibilidade de um artista ainda pouco estudado, mas que soube expressar sua arte com grande sutileza e sagacidade em concordância com a delicadeza da cidade de Aracaju. Referências ARQUIDIOCESE DE ARACAJU. Catedral Metropolitana de Aracaju: restauração. Aracaju: Secult, 2011. BARRETO, Luís Antônio. Altenesch e Wladimir Preiss. Infonet, Aracaju, 12 nov. 2004. Disponível em: http://www.infonet.com.br/luisantoniobarreto/ler. asp?id=25727&titulo=Luis_Antonio_Barreto. Acesso em: 17 jul 2015. Acesso em: 8 jul. 2015. BRITO FILHO, José de Oliveira. Praça Olímpio Campos e Parque Teófilo Dantas. In: Aracajuantigga. Aracaju, 16 set. 2009. Disponível em: http://aracajuantigga. blogspot.com.br/2009/09/praca-olimpio-campos-e-parque-teofilo.html. Acesso em: 26 maio 2015. CAPPELLI, Vittorio. A Belle Époque Italiana no Rio de Janeiro: aspectos e histórias da emigração meridional na modernidade carioca. Rio de Janeiro: EdUFF, 2015. 186 Iconografia musical na América Latina CAPPELLI, Vittorio. La presenza Italiana in Amazzonia e nel Nordest del Brasile tra Otto e Novecento. Maracanan, Rio de Janeiro, n. 6, p. 123-146, 2010. CENNI, Franco. Italianos no Brasil: “andiamo in Merica”. 3. ed. São Paulo: EdUSP, 2003. COSTA, Carlos. Resenha retrospectiva: matriz de Aracaju. Aracaju, 1968. Arquivo da Cúria Metropolitana de Aracaju. CRUZ, Jeferson Augusto da. Uma mão de verniz sobre o Tabuleiro de Pirro: ecos da Belle Époque em Aracaju (1918-1926). 2016. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2016. CRUZ, Jeferson Augusto da. O Rio como exemplo: ecos da Belle Époque em Aracaju - SE (1920-1926). In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH - RIO: SABERES E PRÁTICAS CIENTÍFICAS, 16., 2014, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: Anpuh-Rio, 2014. p. 1-12. DIDRON, Adolphe Napoleon. Christian iconography: the history of christian art in the Midle Ages. London: William Clowes and Sons. 1886. v. 2. ENCICLOPEDIA ilustrada de los instrumentos musicales: Todas las épocas y regiones del mundo. 2. ed. Barcelona: Hf.Ullmann, 2011. ENJUTO, Clemente Arranz. Cien Rostros de María: para la contemplatión. Madrid: Paulus, 1998. GOMBRICH, E. H. A história da arte. Tradução Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: LTC, 2000. GROUT, Donald J. PALISCA, Claude V. História da música ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007. IMACULADA. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. [S. l.: s. n.], [20--]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Imaculada_-_Murillo.jpg. Acesso em: 20 maio 2015. LIMA NETO, Urbano. O Palácio Olímpio Campos: 1855-1964. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Aracaju, v. 26, p. 79-89, 1962. LIVRO de tombo. Registros Históricos da Arquidiocese de Aracaju. Arquivo Eclesiástico da Catedral Metropolitana de Aracaju, 1949. O dueto angélico da catedral e a passagem da Belle Époque em Aracaju (SE) 187 LUPI, João. Porque os anjos são músicos? In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE FILOSOFIA. MEDIEVAL: METAFÍSICA, ARTE E RELIGIÃO NA IDADE MÉDIA, 13., 2013, Vitória. Anais [...]. Vitória: DLL/UFES, 2013. MACIEL, Josinaide Silva Martins. Olhar aproximado para as residências Souza Freire E Hora Oliveira: bens modernistas de interesse cultural. 2012. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012. PINTO, Tiago de Oliveira. Som e música: questões de uma antropologia Sonora. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 222-286, 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ra/v44n1/5345.pdf. Acesso em: 22 fev. 2014. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976. PIO IX. Pii IX Pontificis Maximi Acta, Pars prima. Roma: Typographia Bonarum Artium, 1854. v. 1. PIO XII. Constituição Apostólica do Papa Pio XII: Munificentissimus Deus: Sobre A Definição Do Dogma Da Assunção de Nossa Senhora em corpo e alma ao céu. 1950. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/pius-xii/pt/apost_ constitutions/documents/hf_p-xii_apc_19501101_munificentissimus-deus.html. Acesso em: 10 jul. 2015. RABELO, Thais Fernanda Vicente. Os anjos músicos da catedral: estudo iconográfico musical sobre a pintura do altar mor da Catedral de Aracaju (SE). 2015. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ICONOGRAFIA MUSICAL, 3., 2015, Salvador. Anais [...]. Salvador: RIdIM-Brasil, 2015. p. 355-372. RABELO, Thais Fernanda Vicente. Estudo histórico e organológico em torno do órgão de tubos de Laranjeiras (SE). 2014. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. 188 Iconografia musical na América Latina O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura do teto da sacristia da antiga Sé Primacial do Brasil1 Belinda Maria de Almeida Neves2 1 Introdução A presente pesquisa iniciou-se durante as obras de restauração da Catedral Basílica de São Salvador, antigo templo do colégio dos religiosos da Companhia de Jesus na Bahia.3 Presentes na igreja em virtude de nossa pesquisa de doutoramento, tivemos acesso a cinco fragmentos de painéis com pinturas religiosas, guardados nas dependências do templo. 1 O presente texto é uma versão revista e ampliada da comunicação apresentada durante o 4º Congresso Brasileiro de Iconografia Musical – “Música, Imagem e Documentação na Sociedade da Informação”, que foi merecedora do Prêmio RIdIM-Brasil 2017. 2 Doutoranda em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sob orientação do Prof. Dr. Luiz Alberto Ribeiro Freire. Bolsa de pesquisa Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb). 3 A restauração ocorre desde 2015, realizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) mediante recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – Cidades Históricas e Marsou Engenharia. 189 Esses fragmentos foram anteriormente inventariados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),4 embora sem informações adicionais que pudessem revelar a sua origem ou temática religiosa. Fomos, portanto, estimulados pelos profissionais que trabalham na obra de restauração a realizar alguns estudos sobre o contingente com o intuito de analisar a sua possível origem e temática, uma vez que os mesmos poderiam pertencer ao programa iconográfico jesuítico para a igreja do Colégio da Bahia. Procedemos, então, a sua separação e medição para início da investigação. Figura 1 – Fragmentos de pintura religiosa nas dependências da Catedral Basílica de Salvador. Óleo sobre madeira. Autoria desconhecida, [sem data] Fonte: Neves (2016). 4 Iphan – Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados – Módulo VII – Salvador IV – Volume 88 – Agosto/2003. O painel objeto de nosso estudo está inventariado com o número BA/03-0170.0499. 190 Iconografia musical na América Latina 2 O ostensório e o coro angélico Como objeto principal de nosso estudo, evidenciamos o painel cuja pintura apresenta um ostensório com um crucifixo na parte central, rodeado por seres celestiais e anjos músicos, indicando a adoração ao Santíssimo Sacramento, prática adotada pelas irmandades nas igrejas paroquiais após o Concílio de Trento, com ênfase nos sacramentos da Igreja e na eucaristia. A pintura foi realizada diretamente no suporte de madeira, em vinhático,5 sem base de preparação. Passou por intervenção anterior, possivelmente entre 1978 e 1995 (LEAL, 2002),6 pois apresenta enxertos na mesma tipologia de madeira, além de visível reintegração cromática. O tipo de ostensório retratado na pintura corresponde a uma tipologia utilizada no século XVII; exemplares da época podem ser apreciados no Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o que nos conduz a interpretar, nesse quesito, que a referida pintura seja do mesmo período, embora os instrumentos musicais ali retratados complementem essa indicação, dos quais trataremos especificamente adiante. 5 Para a identificação da qualidade de madeira utilizada para elaboração do painel e dos enxertos, contamos com a colaboração do entalhador Jairson Rocha, no sítio de restauração. 6 A igreja passou por restaurações diversas nesse período. O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 191 Figura 2 – Conjunto pictórico composto por um ostensório e anjos músicos. Óleo sobre madeira, 278,4 x 151 cm. Autoria desconhecida, [sem data] Fonte: Neves (2016). 192 Iconografia musical na América Latina Sendo o ostensório o motivo central da obra, há indicativo de uma parte faltante, à direita, possivelmente também com seres celestiais e anjos músicos, conferindo à pintura equilíbrio e harmonia. Analisando o conjunto, estimamos que a largura original do painel tivesse uma dimensão aproximada de 221 cm, conforme demonstramos a seguir: Figura 3 – Estimativa de composição para o painel completo, durante o processo de investigação, com projeção espelhada da lateral existente Fonte: Neves (2016). O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 193 Com o avanço nas pesquisas, a hipótese dos elementos faltantes se confirmaria mediante o acesso à obra A Sé Primacial do Brasil – Notícia histórica, de Manuel Mesquita dos Santos (1933).7 Na publicação, o autor apresenta o referido painel completo nas dependências da sacristia da Irmandade do Santíssimo Sacramento da antiga Igreja da Sé, demolida em 1933. Na legenda da Figura 17 do livro, há a informação: “Alegoria ao Santíssimo Sacramento. Grande quadro no tecto da Sacristia da Irmandade”. Figura 4 – Alegoria ao Santíssimo Sacramento. Pintura no teto da sacristia da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé Primacial do Brasil, demolida em 19338 Fonte: Santos (1933). 7 Agradecemos ao Dr. Francisco de Assis Portugal Guimarães pela indicação dessa publicação e, igualmente, pelo seu empenho em viabilizar o nosso acesso à mesma, o que foi fundamental para nosso processo de pesquisa. 8 Fotogravura de Marcial Tosca. Reprodução fotográfica de Belinda Neves (2017). 194 Iconografia musical na América Latina As informações contidas no livro contribuem de forma valorosa para a identificação da procedência da pintura, que ainda sobrevive, embora incompleta. Uma possível autoria ainda não foi identificada, o que demanda a continuidade nas investigações. Quanto às dimensões do conjunto, entendemos que não estariam muito distantes do estimado no início da pesquisa e, com relação às partes faltantes, não foram identificadas nas instalações da Catedral Basílica durante as atuais obras de restauração. O contingente complementar pode ter sido reutilizado anteriormente como aproveitamento de madeira – prática comum nas obras em igrejas – ou perdido, ou carcomido pelos cupins. A parte traseira do painel apresenta, igualmente, informações que merecem atenção e aprofundamento. Observamos a presença da cruz da Ordem de Cristo e grafismo que pode indicar possível autoria, que, até o presente momento, não foi identificada. Nota-se que o conjunto apresenta manchas indicativas do contato com a água, possivelmente oriundas de chuvas e goteiras a que esteve submetido, seja na antiga igreja de origem, seja nas dependências da Catedral Basílica. Figura 5 – O verso do painel, que apresenta enxertos em madeira. Autoria desconhecida [sem data] Fonte: Neves (2016). O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 195 Figura 6 – À esquerda, a cruz da Ordem de Cristo e, à direita, grafismo com possível indicação autoral. Imagens do verso do painel Fonte: Belinda Neves (2016). Na parte frontal, a pintura apresenta orifício central no ostensório pintado, o que nos chamou a atenção desde o início da investigação, um indicativo de painel de forro, com passagem para fiação elétrica. Figura 7 – Orifício no painel e detalhe Fonte: Neves (2016). 196 Iconografia musical na América Latina O acesso às fotografias da antiga Igreja da Sé nos permitiu visualizar a composição de apenas uma parte do forro, mas com luminária pendente, conforme a Figura 8. Figura 8 – Sacristia da Irmandade do Santíssimo Sacramento, com luminária pendente no teto, onde se localiza a pintura do ostensório com os seres celestes e anjos músicos Fonte: Braga ([1928]). É notável a ornamentação da sacristia da Irmandade, com pinturas de grande porte compondo as laterais e o teto do recinto. O grande arcaz ainda sobrevive; esteve guardado nas dependências da Catedral Basílica até início de 2017, na mesma sala em que se encontram os fragmentos das pinturas apresentados na Figura 1, quando de lá foi transferido para as dependências do Palácio Arquiepiscopal, onde ficará exposto para admiração dos visitantes após a conclusão das obras de restauração naquele edifício. Três das pinturas das paredes laterais da fotografia, com temas religiosos, podem ser vistas nas instalações do Museu de Arte Sacra da UFBA.9 Desconhecemos o destino das demais peças de mobiliário e ornamentos da sacristia após a demolição da igreja em 1933. 9 Conforme informações fornecidas pelo Museu de Arte Sacra da UFBA, as pinturas são: A batalha de Abraão contra Cordorlaomor (228cm x 202 cm), O sacrifício de Melquisedec (315,5 cm x 194 cm) e O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 197 3 A junção e análise das partes do painel O acesso à imagem na obra de Manuel Mesquita dos Santos (1933)10 nos permitiu proceder à junção entre o painel atual e a sua parte faltante: Figura 9 – O painel completo mediante a junção da parte existente com a faltante11 Fonte: Neves (2017). A junção totaliza 36 seres celestiais e anjos músicos e nos permite analisar o conjunto de instrumentos musicais presentes na obra. Contamos com o auxílio do Prof. Dr. Márcio Páscoa12 para essa missão, que contribui igualmente para Oferenda de Abraão a Melquisedec (320 cm x 192 cm). A autoria das pinturas é desconhecida. 10 Ver Figura 17 na obra do autor. 11 Tendo como base a imagem reproduzida no livro de Manuel Mesquita dos Santos (1933) e fotogravura de Marcial Tosca. 12 Nossos agradecimentos pela disponibilidade em nos auxiliar nessa tarefa. 198 Iconografia musical na América Latina a estimativa de datação da pintura em virtude da tipologia dos instrumentos ali presentes e analisados. Figura 10 – Parte inferior do painel existente, com destaque para os anjos músicos e instrumentos musicais. Autoria desconhecida, [sem data] Fonte: Neves (2016). O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 199 Todos os instrumentos musicais se encontram na parte inferior do painel, como destacamos na Figura 10. O primeiro instrumento à esquerda é um cordofone, instrumento chamado, no contexto luso-brasileiro, de rabecão.13 Notou Márcio Páscoa que o instrumento tocado na representação iconográfica tem um corpo pequeno, de violoncelo, com as cravelhas em número de quatro, mas um braço muito longo. Para o pesquisador, é possível que isso tenha ocorrido em virtude de uma intenção de ilusão de perspectiva por se tratar de pintura de teto, além do fato de que muitos pintores não reproduziram fielmente todas as características dos instrumentos musicais em suas obras. Ao lado do rabecão está a harpa, com base incompleta pela terminação da pintura, instrumento frequente na iconografia cristã até o século XVII. Complementa Márcio Páscoa que “o instrumento foi muito praticado, sobretudo na Igreja Católica, após o Concílio de Trento, especialmente onde não havia órgãos de grandes dimensões”. Acrescenta Páscoa (2017) que: Os instrumentos harmônicos ou polifônicos (que tocam mais de uma nota ao mesmo tempo) serviam para apoiar a afinação das demais vozes e instrumentos na execução do serviço litúrgico. Temos na nossa literatura memorialista no eixo luso-brasileiro muito exemplos de padres que tocavam harpa. A prática não parece ter se estendido além da primeira década do século XVIII por questões de gosto, quando outros instrumentos, como o cravo e o pianoforte (piano) viriam a substituir. A harpa também tem uma forte simbologia cristã que apoiava sua prática por causa do Rei Davi. Ela aparece bastante na iconografia européia de fins da Idade média até século XVII e no nosso caso ibero-americano parece concentrar-se mais no XVI-XVII, embora haja relato de muitas harpas nas missões jesuítas do Paraguay quando do inventário da saída desta ordem religiosa do espaço de domínio espanhol. Ou seja, mais uma vez é de se supor que em determinadas regiões houvesse uso e costume mais tradicional. À direita do harpista e em segundo plano está outro ser celestial tocando um instrumento de sopro, que sugere ser uma flauta, embora a extensão completa do mesmo esteja ocultada pelos tubos do órgão. Informa Márcio Páscoa que 13 “Havia o rabecão grande (contrabaixo ou baixo de viola e assemelhados) e o rabecão pequeno (violoncelo). Há duas famílias de cordofones friccionados por arco em grande uso no período dos séculos XVI-XVIII na Europa, que são as violas de gamba (perna, em italiano) e o das violas da braccio (braço, em italiano). As violas de gamba foram comuns na Itália até o século XVI e mal chegado o século XVII pareciam ter caído de uso”. (PÁSCOA, 2017) 200 Iconografia musical na América Latina “se trata de uma flauta doce, sendo o tipo de bocal e do tubo um fator determinante, mais antigo que os modelos em uso no período posterior a 1680/90. Ou seja, a pintura nos remete a um instrumento de época anterior”. O conjunto ao redor do órgão apresenta, em segundo plano, um anjo cantor que carrega em suas mãos um livro e parece seguir a canção. O órgão, da mesma forma que a harpa, não se completa em virtude da extensão pictórica e apresenta um organista com as duas mãos sobre o teclado. Observou Márcio Páscoa que o anjo que se encontra em primeiro plano no conjunto movimenta o fole que bombeará o ar para passar pelos tubos do órgão; complementa que “esses pequenos órgãos eram chamados entre os séculos XIII e XV de portativos (portáteis) e depois, nos séculos seguintes até o XVIII, adquiriram maior dimensão e passaram a ser chamados de positivo”.14 Nota-se que o referido órgão possui apenas uma fileira de tubos e, por essa razão, sua natureza é portátil, conforme identifica o pesquisador. Por não haver continuidade do instrumento na parte inferior da pintura, não é possível identificar se o mesmo se encontra sobreposto ou acoplado a uma mesa. É relevante informar que, nesse painel, há marcas de antiga moldura – na base, parte superior e lado esquerdo –, com cerca de dois centímetros. Isso nos permite concluir que os instrumentos musicais que estão incompletos na sua base (harpa e órgão) foram dessa forma concebidos pelo pintor, pois a moldura confirma o dimensionamento da malha pictórica nos fragmentos existentes. A parte que apresentamos em preto e branco, complementando o painel na Figura 9, também sugere a presença de instrumentos musicais, embora a sua identificação seja desafiante em virtude da qualidade da imagem impressa no livro, na qual nos baseamos para compor o conjunto. Os anjos e os instrumentos musicais se encontram na base do painel faltante, da mesma forma que no painel existente. A qualidade da imagem nos conduz a interpretar o rol de instrumentos ali existente com uma larga faixa de possibilidades. Entretanto, não temos a pretensão de indicar instrumentos com precisão, nem esgotar as possíveis vias de análise e interpretação neste artigo. 14 “Em italiano, de ponere, que significa colocar; podiam ser levados para se colocar em algum lugar da igreja ou casa, sobrepostos sobre mesas ou suportes”. (PÁSCOA, 2017) O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 201 Com o avanço das pesquisas e a utilização de novos recursos para tratamento da fotografia do livro de Manoel Mesquita dos Santos (1933), novas proposições poderão surgir. O conjunto formado pelos músicos do painel faltante é desafiador, como antes mencionamos, e contamos igualmente com o auxílio do pesquisador Márcio Páscoa. Sinalizado à direita, temos um instrumento cordofone com um arco em meia-lua, possivelmente outro rabecão, conferindo a esse instrumento as duas extremidades do painel. Figura 11 – Os músicos da parte faltante do painel15 Fonte: Neves (2017). Os instrumentos de sopro presentes na imagem parecem ser flautas e, como notou Márcio Páscoa, é possível que o conjunto apresente o terno de flautas, 15 Tendo como base a imagem reproduzida no livro de Manuel Mesquita dos Santos (1933) e fotogravura de Marcial Tosca, sinalização nossa. 202 Iconografia musical na América Latina ou seja, um trio de flautistas.16 Nesse caso, estima-se que o instrumento não identificado seja uma flauta fagote, ou uma dulciana,17 ou ainda uma flauta tenor, ou flauta baixo. São instrumentos que, pela sonoridade grave, se complementam com o rabecão nesse conjunto, estando nas duas extremidades da pintura, como esclarece o pesquisador na entrevista. 4 O estudo dos demais fragmentos de pintura A continuidade analítica do conjunto de cinco fragmentos de pintura religiosa apresentado na Figura 1 nos conduz ao segundo painel, com dimensões maiores, mas com a mesma estrutura e tipologia de madeira como suporte, cromatismo e profundidade (2 cm), características semelhantes às que foram encontradas no painel anterior, o objeto principal de nossa análise, o ostensório e anjos músicos. É possível que esse segundo conjunto, que também apresenta uma parte faltante à esquerda, também fosse parte integrante do teto da sacristia da Irmandade do Santíssimo Sacramento da antiga Igreja da Sé. 16 “Há relatos na literatura de termos de compra e venda, relatos de viajantes, entre outros documentos do Brasil dos séculos XVI e XVII, e mesmo do XVIII que se utilizam do termo ‘terno de flautas’ quando se referem à venda, prática ou uso deste instrumento, referindo-se ao trio de flautas”. (PÁSCOA, 2017) 17 “A dulciana e o fagote são da família dos sopros de palhetas duplas, instrumentos muito praticados em Portugal e no Brasil, com o nome genérico de baixão”. (PÁSCOA, 2017) O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 203 Figura 12 – Segundo painel com temática religiosa.18 Dimensões 370 x 100,8 cm. Autoria desconhecida, sem data Fonte: Neves (2016). O painel pode ser dividido em duas partes: a parte superior é composta por anjos e uma vasta gama de flores; e a parte inferior, que apresenta quatro religiosos sobre nuvens, sendo que um deles está incompleto pela tábua faltante à esquerda. Nota-se que o fundo dos dois painéis é ocre, e os motivos florais e angélicos são bem semelhantes, o que estreita a possibilidade de serem componentes do mesmo conjunto, conforme Figura 13. As composições com motivos florais foram muito comuns nos séculos XVII e XVIII. Camélias, rosas, lírios, jasmins e anêmonas, entremeados com anjos e também santos católicos, são alguns dos tipos presentes nas pinturas das igrejas baianas, em tetos e painéis de parede, em suportes de madeira e em tela. Na igreja do Colégio da Bahia, antigo templo dos religiosos jesuítas e atual Catedral 18 Inventariado pelo Iphan sob nº BA/03-0170.0498. 204 Iconografia musical na América Latina Basílica de São Salvador, é possível visualizar os exemplos agora mencionados.19 Nos séculos XVII e XVIII, também há a moralização de flores e frutas.20 Figura 13 – Comparação entre os dois painéis na temática e no cromatismo Fonte: Neves (2016). Composições iconográficas envolvendo anjos, seres celestiais e motivos fitomorfos também se referem à emblemática mariana, tema amplamente abordado por Silva Filho (2014) em sua pesquisa de doutoramento. A observância na estrutura do teto da sacristia da Irmandade do Santíssimo Sacramento da antiga Sé, visível parcialmente na Figura 8, nos permitiu fazer 19 Motivos semelhantes estão nas quatro pinturas em tela da capela da Senhora Santa Ana, nas portas do camarim da capela-mor e nas pinturas do teto da antiga livraria dos jesuítas. Sobre o camarim da capela-mor, ver Hora (2011). 20 Sobre esse assunto, consultar Barreira (1622) e também Rosario (2008). O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 205 alguns ensaios e proposições com a junção das duas pinturas. Ressaltamos que não utilizamos escala e medições para este artigo; assim, as corretas proporções para a inclusão das duas pinturas no forro da sacristia daquela igreja somente serão possíveis mediante o acesso à planta baixa do templo, na continuidade das pesquisas, em que será mais bem apurada essa hipótese em virtude das dimensões dos painéis e suas molduras. Figuras 14 – À esquerda, a junção das duas pinturas com o segundo painel na parte superior do teto. À direita, a mesma junção com o segundo painel na parte inferior Fonte: Neves (2017). Nas duas propostas de junção, espelhamos e invertemos a segunda pintura, da mesma forma como demonstramos o painel com o ostensório na Figura 3. Seja a segunda pintura colocada na parte superior ou inferior, sugere que ali poderia estar retratado um grande número de religiosos, como Moisés, Aarão, apóstolos e doutores da Igreja. Esse contingente deve ter sido bem ilustrado, caso algum dia se confirme essa hipótese, e estimamos ter sido inspirado no grande afresco do Museu do Vaticano, intitulado A disputa do Santíssimo Sacramento, obra do pintor Rafael Sanzio (1483-1520). Na Figura 12, observamos, ao lado direito da pintura, um indivíduo com um livro na mão. Padre Geraldo Coelho de Almeida21 identifica 21 Nossos agradecimentos pela disponibilidade em nos auxiliar nessa tarefa. 206 Iconografia musical na América Latina ser ele o apóstolo Paulo, pois assim é normalmente representado na iconografia. Esclarece Padre Geraldo a relação do apóstolo Paulo com a eucaristia: Seu relato constante da Primeira Carta aos Coríntios (1Cor 11, 23-26) constitui a referência mais antiga sobre a instituição da Eucaristia, uma vez que os evangelhos que tratam do assunto, ainda não tinham sido escritos, quando Paulo foi martirizado. A Carta aos Coríntios teria sido escrita em Éfeso (anos 54 – 56). Já sua morte teria ocorrido em Roma, entre os anos 64 e 68. Os evangelhos mais antigos, Marcos e Mateus teriam sido escritos a partir dessa última data. (ALMEIDA, 2018) No afresco existente no Museu do Vaticano, o apóstolo Paulo também está localizado à direita no grande painel de Rafael.22 Não temos como afirmar a existência da mesma sequência de religiosos nos dois painéis. Apenas uma investigação iconográfica mais abrangente apontaria as semelhanças e novas hipóteses. Na continuidade, as três pinturas restantes do contingente analisado apresentam igualmente as mesmas características pictóricas entre si, além de estrutura de forro do tipo macho e fêmea, suporte em vinhático com pintura realizada diretamente na madeira, sem base de preparação, e dimensões aproximadas. Os três últimos painéis com fragmentos de pintura retratam cenas relacionadas ao “Livro do êxodo”,23 no Antigo Testamento, quando os hebreus saíram do Egito, onde eram escravizados. A numeração dos painéis segue a sequência cronológica da narrativa bíblica, e estimamos que cada uma das referidas pinturas tivesse, originalmente, a largura entre 120 e 140 centímetros,24 pela composição iconográfica da cena narrada. O painel 3 (Figura 15)25 refere-se ao maná, o pão enviado por Deus para saciar a fome da comunidade de Israel, que caminhava pelo deserto de Sin após a saída do Egito e reclamava a Moisés e a seu irmão Aarão a falta de comida: 22 Para conhecer os integrantes nomeados nessa pintura, acesse: http://www.museivaticani.va/ content/ museivaticani/es/collezioni/musei/stanze-di-raffaello/stanza-della-segnatura/disputa-del-ss--sacramento.html 23 Êxodo (Ex 16, 1-35) na Bíblia Sagrada (1990, p. 68-115). 24 No estudo sobre as dimensões das pinturas religiosas com suporte em madeira realizadas entre os séculos XVII e XVIII, verificamos que as mesmas não são idênticas, mesmo quando presentes na mesma capela ou recinto, fazendo parte de mesma composição temática. Portanto, é comum que as dimensões sejam aproximadas. 25 Inventariado pelo Iphan sob nº BA/03-0170.1920, juntamente com o painel 4. O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 207 Toda a comunidade de Israel murmurou contra Moisés e Aarão no deserto dizendo: Era melhor termos sido mortos pela mão de Javé na terra do Egito, onde estávamos sentados junto à panela de carne, comendo pão com fartura. Vocês nos trouxeram a esse deserto para fazer toda essa multidão morrer de fome. (ÊXODO, 1990, 16, 2-3) Então, Javé, ouvindo os murmúrios do povo de Israel, disse a Moisés: “Diga-lhes que comerão carne à tarde e, pela manhã, se fartarão de pão. Assim ficarão sabendo que eu sou Javé, seu Deus”. (ÊXODO, 1990, 16, 10-12) A pintura retrata na parte superior o rosto de Deus e, abaixo, pequenos flocos que caem e são recolhidos pela população. Aos pequenos flocos, “a Casa de Israel deu-lhe o nome de maná: era branco como a semente de coentro, e seu sabor era como um bolo de mel”. (ÊXODO, 1990, 16, 31) Complementa a sagrada escritura que “os filhos de Israel comeram maná durante quarenta anos, até chegarem à terra habitada. Comeram maná até chegarem à fronteira de Canaã”. (ÊXODO, 1990, 16, 35) 208 Iconografia musical na América Latina Figura 15 – Fragmentos de pintura religiosa com a temática bíblica do “Livro do êxodo”, nas dependências da Catedral Basílica. Autoria desconhecida Fonte: Neves (2016). O fragmento da pintura sugere o complemento de uma tábua à direita e outra à esquerda, completando as figuras ali retratadas. Estimamos a largura original dessa pintura em aproximadamente 120 centímetros. O painel 4 (Figura 16)26 é composto por apenas uma tábua e apresenta a imagem de Moisés com a vara na mão e, na parte inferior, um jato de água. Refere-se, a cena retratada, a Moisés, que fez jorrar a água do rochedo, matando 26 Inventariado pelo Iphan sob no. BA/03-0170.1920, juntamente com o painel 3. O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 209 a sede do povo de Israel e dos animais. O episódio é narrado no “Livro do êxodo” (ÊXODO, 1990, 17, 2-7) e no “Livro dos números”. (NÚMEROS, 1990, 20, 1-13) A sagrada escritura apresenta a narrativa de que novamente o povo de Israel, com sede, se amotinava contra Moisés e Aarão: Quem dera tivéssemos morrido quando nossos irmãos morreram diante de Javé! Por que você trouxe a comunidade de Javé a este deserto, para morrermos aqui junto com nossos animais? Por que nos fez sair do Egito, para nos trazer a este lugar deserto, onde não se pode semear, sem figueiras, vinhas e romãzeiras, e até sem água para beber? (NÚMERO, 1990, 20, 2-5) Moisés e Aarão afastaram-se do grupo. Foi então que Javé apareceu a Moisés e disse: “Pegue a vara, junto com seu irmão Aarão, e reúna a comunidade. Em seguida, na presença deles, ordene que a rocha dê água. Você tirará água da rocha para dar de beber a comunidade e aos animais”. (NÚMERO, 1990, 20, 7-8) Assim foi feito: a água jorrou em abundância na fonte de Meriba, na qual homens e animais puderam saciar a sua sede. Nesse painel, podemos identificar uma tábua faltante à esquerda, completando o rochedo com a água que ali surge. À direita, duas tábuas completariam a cena, com Aarão atrás de Moisés e o povo de Israel assistindo ao fenômeno. Estimamos a largura original dessa pintura também em aproximadamente 120 centímetros. O painel 5 (Figura 19)27 é composto por duas tábuas e a cena retratada demonstra uma pessoa caída no chão, com parte de uma serpente sobre sua roupa. Outros componentes, com fisionomia apreensiva, olham para cima, e uma moça estica os braços na mesma direção. O tema reflete a continuidade da saída do Egito, narrado no “Livro dos números” (NÚMERO, 1990, 21, 4-9) sob o título de “O sinal da salvação”, mais conhecido como o episódio da serpente de bronze. Conforme a narrativa bíblica, o povo de Israel continuaria a caminhada, tomando a direção do Mar Vermelho. Não suportando a viagem, começou a murmurar novamente contra Deus e contra Moisés: “Por que nos tiraste do Egito? Foi para morrermos neste deserto? Não temos pão nem água, e estamos enjoados desse pão de miséria”. (NÚMEROS, 1990, 21, 5) 27 Inventariado pelo Iphan sob no BA/03-0170.1919. 210 Iconografia musical na América Latina O “pão de miséria” a que o povo se referia era o maná. “Então Javé mandou contra o povo serpentes venenosas que os picavam, e muita gente de Israel morreu. O povo disse a Moises: Pecamos, falando contra Javé e contra você. Suplique a Javé que afaste de nós essas serpentes”. (NÚMEROS, 1990, 21, 6-7) Javé, no entanto, ordenou a Moisés que fizesse uma serpente venenosa e a colocasse sobre um poste. Aqueles que fossem mordidos e para ela olhassem ficariam curados. A cena retratada no painel é complexa e ainda faltam elementos importantes na sua composição. À direita, estimamos uma tábua faltante com o intuito de completar as pessoas do povo de Israel. À esquerda, entre uma e duas tábuas faltantes, pois deveriam estar presentes a serpente de bronze no poste e também Moisés, habitualmente juntos na iconografia da cena bíblica, em pinturas e estampas da época e em períodos posteriores. Em virtude da composição da narrativa religiosa, é possível que a largura aproximada desse painel, originalmente, variasse entre 120 e 140 centímetros, ligeiramente maior que os painéis 3 e 4. A análise e a interpretação dos fragmentos dos cinco painéis nos permitiram dividir e classificar o contingente em dois grupos distintos. O primeiro grupo é formado pelos painéis 1 e 2. Sobre o primeiro deles, se tem a confirmação de origem na antiga Igreja da Sé. O segundo painel, pelas características físicas e iconográficas, é possível que fizesse parte do conjunto do teto da sacristia da Irmandade do Santíssimo Sacramento, na mesma igreja. Entretanto, ainda abordaremos o tema como uma hipótese a ser ou não confirmada mediante avanço nas investigações. O segundo grupo, formado pelos painéis 3 a 5, possui as mesmas características iconográficas e físicas, distinguindo-se do primeiro grupo também por essas características. Não há, até o momento, informações que identifiquem a procedência desses fragmentos pictóricos. Entretanto, vale ressaltar que a temática bíblica do êxodo é associada aos bispos, por serem esses os condutores do rebanho da Igreja Católica – que orientam o povo para um ideal de sociedade, fé e dignidade –, assim como foram Moisés e Aarão os condutores do povo de Israel. Podem, portanto, ter relação com a antiga Igreja da Sé, mas possivelmente em outro recinto. O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 211 5 Dos porões da catedral à restauração dos painéis Até o presente, momento apresentamos as etapas do processo de investigação e a identificação dos painéis com as cenas religiosas. Relembrando a Figura 1, estavam esses painéis já restaurados e guardados em uma antiga cela da igreja, contígua ao extinto colégio da Companhia de Jesus em Salvador, hoje Faculdade de Medicina da UFBA. Com o avanço nas investigações, foi possível a identificação dos restauradores daqueles painéis, as etapas da intervenção e o acesso a imagens do período. Portanto, essa etapa é a que antecede o nosso acesso a essas pinturas e contribui para o entendimento do processo na sua totalidade. As informações sobre a restauração daqueles painéis nos foram fornecidas por Túlio Vasconcelos, que coordenou uma “equipe de funcionários do IPAC – Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, locados no CERBA – Centro de Restauração, e à disposição das obras da Catedral Basílica de Salvador”.28 (ALMEIDA, 2018) Essa equipe era composta por um coordenador, seis auxiliares técnicos e três marceneiros. Conforme informamos anteriormente, a Catedral Basílica passou por intervenções em diversos recintos entre 1978 e 1995, e a restauração das referidas pinturas ocorreu entre 1986 e 1988, em etapas, pela equipe. Túlio Vasconcelos relata como ocorreu a “descoberta” daquelas pinturas: Neste mesmo período, fragmentos de altares da Igreja da Sé estavam abandonados nos porões da Catedral, quando no dia 19 de maio de 1986, identifiquei junto aos materiais da carpintaria da construção civil, algumas tábuas com fragmentos de pintura que seriam utilizadas nas recomposições das madeiras dos pisos dos corredores. Essas tábuas, de diversas dimensões, foram recolhidas e armazenadas no atelier de restauração de bens móveis, e, após limpeza superficial e prospecção da camada pictórica, ficaram identificadas como elementos pertencentes ao forro da Sacristia da Irmandade e as maiores como Forro da Nave da Igreja da Sé. (ALMEIDA, 2018) A reutilização de madeiras foi fato rotineiro nos templos religiosos, como tivemos a oportunidade de mencionar anteriormente. Não foi exceção nas obras realizadas na Catedral Basílica. Nota-se, entretanto, que as tábuas seriam 28 Nossos agradecimentos pela colaboração e cessão de imagens para ilustração deste artigo. 212 Iconografia musical na América Latina reutilizadas nas composições dos pisos em madeira nas obras da igreja, quando foram identificadas por Túlio e separadas do conjunto da carpintaria. De fato, esse episódio foi crucial para a sobrevivência do contingente histórico, salvo da destruição por Túlio Vasconcelos e, posteriormente, restaurado. Figura 16 – Os fragmentos de madeira contendo as pinturas da antiga Igreja da Sé. Autoria desconhecida, sem data. Fotografia de Elias Mascarenhas em 29 de maio de 1986 Fonte: acervo pessoal de Túlio Vasconcelos. Reprodução de Belinda Neves mediante projeção de slides, junho de 2018. O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 213 Na imagem, é possível verificar como foram encontrados os painéis. Os 53 anos entre a demolição da antiga Igreja da Sé e a localização das tábuas pintadas nos porões da catedral minimizam a chance de que a pintura do ostensório seja futuramente recomposta, assim como os demais painéis temáticos. Podem ter sido utilizados como matéria-prima em obras anteriores na igreja, principalmente pelas condições em que se encontravam. Nota-se também na imagem que o painel à esquerda está repintado por tinta azul clara, em conformidade com o relato de Túlio Vasconcelos. Na restauração, essa camada pictórica subjacente foi removida. O painel com o ostensório e anjos músicos, além dos enxertos, passou por uma limpeza e a retirada do verniz oxidado. A pintura a óleo de qualidade foi submetida a pouca reintegração cromática. As etapas são descritas a seguir pelo restaurador: Após a limpeza superficial do painel, foram desenvolvidas as seguintes etapas: 1. consolidação do suporte, com injeções de resina de Paraloid B 72, em áreas com degradação hidrolítica; 2. remoção do verniz oxidado com solvente à base de acetona e álcool etílico, auxiliado por ações mecânicas de bisturi. 3. pequenas reintegrações cromáticas, com aquarela. (ALMEIDA, 2018) A limpeza da pintura pode ser observada na comparação das imagens. Sobre os procedimentos adotados com as pinturas dos painéis, informa Túlio Vasconcelos que “como se tratava de fragmentos de um monumento religioso demolido, resolvemos então desenvolver serviços de conservação, tendo em vista uma ação ‘minimalista’, com pouca reintegração no campo pictórico”. (ALMEIDA, 2018) Repintado com tinta azul também estava o segundo painel do conjunto, apresentado na Figura 12. Nas imagens a seguir, vemos o referido painel coberto de tinta e com a remoção em andamento, aparecendo a imagem do apóstolo Paulo (Figura 17). Perguntamos ao restaurador se o mesmo era da opinião de que o contingente repintado de azul também pertencia à antiga Igreja da Sé: “[...] acredito que sim. Devido às dimensões, forma construtiva das tábuas e a excelente qualidade da pintura a óleo. São remanescentes do forro da nave, que apresentava repintura azul, possivelmente oriunda da ‘Reforma Neoclássica da Bahia’”. (ALMEIDA, 2018) 214 Iconografia musical na América Latina Refere-se nosso entrevistado a uma grande mudança conceitual e estilística originada pelos ideais iluministas, em que as pinturas barrocas são substituídas pela cor branca e tons pastéis em vários templos, com a intenção de proporcionar maior leveza e luminosidade, tema amplamente abordado pelo pesquisador Luiz Alberto Ribeiro Freire (2006). Túlio Vasconcelos estima que as pinturas encontradas com o painel do ostensório e anjos músicos sejam remanescentes do forro da nave, na ocasião pintado de azul claro. É uma proposição realmente possível, embora nossa proposta ainda caminhe na hipótese de que o painel 2 (Figura 11) fosse parte integrante do teto da sacristia da Irmandade do Santíssimo Sacramento, conforme demonstramos na Figura 14. Novas hipóteses poderão surgir com um aprofundamento nas pesquisas e acesso a novas imagens do templo, uma pesquisa que não se esgota. O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 215 Figura 17 - Em preto em branco, a limpeza do painel com pintura oxidada durante a restauração, e a revelação da pintura na parte mais clara Fonte Neves (2016).29 29 Fotografia do acervo fotográfico do Ipac [s.a/s.d na fonte]. Reprodução fotográfica de Belinda Neves a partir de contato fotográfico, em junho de 2016. Em cores, o painel na atualidade, para efeito comparativo. 216 Iconografia musical na América Latina Figura 18 – À esquerda, o painel repintado com tinta azul e, à direita, parte da camada subjacente já removida, aparecendo o livro e a mão do apóstolo Paulo. Autoria desconhecida. Fotografias de Elias Mascarenhas, entre 1986 e 1988 Fonte: acervo pessoal de Túlio Vasconcelos. Reprodução de Belinda Neves mediante projeção de slides, junho de 2018. 6 A Sé Primacial do Brasil Faremos aqui um breve histórico da Igreja da Sé, concentrando nossa narrativa na sua fundação, destino das irmandades e elementos históricos mais relevantes até a sua demolição. A história da Igreja da Sé antecede à sua criação física. Conforme Afrânio Peixoto (1945, p. 30), “Dom João III dirige, em julho de 1550, ao Pontífice, pedindo seja levantada em igreja-catedral a igreja do título do Salvador, na cidade outrossim chamada do Salvador”. O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 217 A igreja ainda não existia, como frisa o autor, mas a primitiva Igreja da Ajuda, construída pelos jesuítas, seria a futura Igreja da Sé. Complementa Afrânio Peixoto (1945, p. 30): “Quando, em agosto de 49 [1649], chegou o vigário Manuel Lourenço, não encontra Sé nenhuma onde exercer o seu ministério e é, na Conceição da Praia, que celebra e onde assiste, como o Bispo, chegado em junho de 52 [1652], prefere a Ajuda, chamada por isso Sé de palha”. A Sé, de taipa e palha, também teria sua nova construção em pedra e cal, com reformas e ampliações ao longo dos séculos, como boa parte das igrejas edificadas no período. Sua entrada principal era voltada para o mar da Baía de Todos os Santos. Teve duas torres sineiras, configuração modificada nas reformas ocorridas. Tornou-se um templo sólido, robusto, com ornamentação de altares em ouro e prata, imaginária rica e variada, adornada com pedras preciosas. Seus púlpitos testemunharam os sermões de grandes oradores sacros, como Antônio Vieira (1608-1697), Alexandre de Gusmão (1629-1674) e Eusébio da Soledade (1629-1692), entre muitos outros. Figura 19 – Fachada da Igreja da Sé. Álbum A Sé Primacial do Brasil, Bahia 1553-1928. Fotografia de Eduardo Braga Fonte: Neves (2017). 218 Iconografia musical na América Latina Como todo templo colonial, a Igreja da Sé possuía um rol de irmandades, as quais se encarregavam da organização de festas, ornamentação do templo, auxílio aos irmãos e enterramentos. Manuel Mesquita cita algumas das existentes na antiga igreja: Nossa Senhora das Maravilhas, Nossa Senhora da Fé, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora do Amparo e Santíssimo Sacramento. (SANTOS, 1933) Entre todas as irmandades existentes na antiga Sé, a do Santíssimo Sacramento merece destaque: sua capela e sacristia foram ricamente ornamentadas pelos seus integrantes com pinturas, frontal e sacrário em prata lavrada. “A riqueza da capela é completada por uma custódia de ouro com pedras preciosas formando uma cruz – e por uma antiga estante e respectivo missal com encadernação de prata lavrada”. (SANTOS, 1933, p. 51) Ainda, o autor complementa que: A Capela do Santíssimo foi construída em 1648, oferta do Capitão D. Felipe de Moura e de João Peixoto Viegas. Os ricos doadores da ornamentação de prata da majestosa Capela do Santíssimo Sacramento pertencem à história brasileira, como troncos de famílias nobres portuguesas estabelecidas no Brasil, nos primeiros anos da sua povoação racional. (SANTOS, 1933, p. 51) A Irmandade do Santíssimo Sacramento promoveu inúmeras melhorias no templo, às suas próprias custas, ao longo da existência da igreja, o que contribui para a compreensão da sua importância e do papel social desempenhado pelas irmandades no período colonial. Conforme Maria Helena Flexor (2010, p. 48): Por meio dessas irmandades ou ordens, o leigo desempenhava um papel preponderante nas funções religiosas, desde a construção de uma igreja até a ornamentação das procissões ou celebração de Te Deum. É preciso ainda salientar a atração social, o significado mundano das irmandades e ordens terceiras. Vistas sob esse aspecto, elas tiveram um papel bastante importante, permitindo inclusive a participação de mulheres, possibilitando sua ação efetiva na sua administração, além de deixar entrever o status social de seus componentes. Era comum o cidadão pertencer a várias irmandades, mesmo em igrejas diferentes, e o ingresso nestas era considerado um fator de prestígio social, além da garantia do recebimento de indulgência plenária e a remissão dos pecados. Complementa a autora que: O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 219 Na prática, as irmandades e ordens terceiras proporcionavam assistência social, tinham caráter mutualista, ofereciam ajuda financeira e dotes para as moças pobres, socorriam as viúvas, órfãos e desempregados, davam auxílio aos velhos, ofereciam hospitalização, faziam visitas a enfermos e prisioneiros, acompanhavam enterros de forma decente, davam hábito como mortalha e sepultura aos mortos, além de orações regulares por sua alma. (FLEXOR, 2010, p. 44) Eis a importância das irmandades e confrarias para a sociedade colonial e, em especial, a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja da Sé, associação de prestígio e renome para a sociedade baiana. A história da antiga Igreja da Sé começaria a mudar após a expulsão da Companhia de Jesus, em 1759. Em 1765, o cabido optou pela transferência para a antiga igreja do colégio dos jesuítas, que estava vaga desde a expulsão daqueles religiosos, uma vez que a Igreja da Sé se encontrava em obras. A nova locação também passou por obras ligeiras30 para abrigar o cabido e, a partir de então, passou a ser a nova catedral da cidade.31 Conforme Luiz Freire (2006, p. 38), após a transferência para a igreja dos jesuítas, “a Irmandade do Santíssimo Sacramento recusou-se a deixar o antigo templo e passou a ser responsável por sua custosa manutenção, empreendendo a reforma da talha e da ornamentação no século XIX”. Em 1870, a capela-mor foi totalmente reformada pela Irmandade do Santíssimo Sacramento. 7 A demolição da Sé Os habitantes da Cidade do Salvador presenciaram, no início do século XX, uma grande reforma urbana e demolição de igrejas em nome do progresso. A mudança no traçado de bondes, de ruas e a abertura de novas e grandes avenidas fizeram tombar os alicerces da antiga Igreja da Ajuda, da antiga Igreja de São Pedro e também da antiga Sé. Manuel Mesquita dos Santos (1933, p. 9) inicia o texto de sua obra da seguinte forma: 30 As obras foram coordenadas pelos engenheiros José Antonio Caldas e Manuel Cardoso de Saldanha. 31 Em 1923, foi a Catedral da Bahia elevada à categoria de Basílica Maior. 220 Iconografia musical na América Latina O actual Prefeito da Cidade do Salvador, Capital do Estado da Bahia – Dr. José Americano da Costa e Sua Excia. Revdma. o Snr. D. Augusto Álvaro da Silva, Arcebispo da Bahia e Primaz da Bahia, acabam de assinar um contracto para a expropriação da Sé, afim de efectuarem a sua demolição. O compromisso firmado entre o Arcebispado da Bahia – também denominado como a Mitra em referência ao típico chapéu que identifica a função e poder espiritual –, a Prefeitura Municipal e a Companhia Linha Circular de Carris da Bahia tinha como justificativa um novo traçado de bondes e remodelações na Praça da Sé. Estava a Sé Primacial do Brasil no meio do caminho do novo traçado. A quantia paga pela Companhia Linha Circular à Mitra foi 300:000$000 – 300 contos de réis – em moeda corrente destinada a auxiliar a desapropriação e demolição, dando o município a sua plena, geral e irrevogável quitação. (SANTOS, 1933, p. 9) Não havia, portanto, retrocesso à demolição da antiga Igreja da Sé. Manuel Mesquita dos Santos não escreve um livro, mas um documentário histórico, um manifesto sensível com o intuito de evitar a demolição do templo. Não foi o único na Bahia e no Brasil. A demolição da Sé era fato em andamento, apesar de intensos protestos da população, manifestos sucessivos publicados em jornais, missivas trocadas entre autoridades, e múltiplas iniciativas da sociedade para reverter o que já havia sido confirmado. Em 1928, a família Martins Catharino teve a iniciativa de registrar em fotografias a nave, altares e dependências da Igreja da Sé, originando o álbum A Sé Primacial do Brasil, Bahia 1553-1928, com fotografias de Eduardo Braga ([1928]). Esse álbum foi ofertado ao Museu de Arte Sacra da UFBA pela família de Alberto Martins Catharino em 18 de novembro de 1964 e constitui um relevante registro histórico e iconográfico da antiga igreja, juntamente com a obra de Manuel Mesquita dos Santos. Registros fotográficos da antiga Sé ainda estão presentes nos arquivos de jornais e em algumas instituições baianas.32 O artista Presciliano Silva (18831965)33 registrou também, através de sua pintura, a antiga igreja e a capela do Santíssimo Sacramento. 32 Arquivo Público Municipal – Fundação Gregório de Mattos e Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. 33 Presciliano Atanagildo Isidoro Rodrigues da Silva. O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 221 A demolição da igreja teve início em 1933, após a transferência das imagens, em procissão, para a Catedral Basílica. Com esse acervo, a imaginária e outras peças da Sé, foi criado o Museu da Catedral e, posteriormente, parte das alfaias e pinturas que ornamentaram o antigo templo foi transferida e está exposta no Museu de Arte Sacra da UFBA, com destaque para o frontal e sacrário em prata lavrada, que pertenceram à capela do Santíssimo Sacramento. Em 1973, Fernando da Rocha Peres escrevia Memória da Sé, fruto de uma pesquisa ampla e meticulosa em fontes históricas, incluindo em seu trabalho informações e fotos sobre a demolição da antiga igreja. Tornou-se fonte obrigatória de pesquisa e fundamentação, juntamente com a obra de Manuel Mesquita dos Santos (1933) e o álbum com fotografias de Eduardo Braga ([1928]). Embora se tenha notícias da maioria das imagens religiosas da antiga igreja, pouco se sabe sobre o destino da talha dos altares, forros, azulejos. Sabe-se que, na demolição, muitas coisas se perderam e outras foram vendidas a particulares, o que torna a pesquisa sobre o templo uma investigação contínua e desafiadora. Após a demolição da antiga Sé, vários foram os destinos das irmandades que ali funcionavam. Em 1935, a Irmandade do Santíssimo Sacramento solicitou ao cabido a sua transferência para a Igreja de São Raimundo, onde estava instalada a Adoração Perpétua ao Santíssimo Sacramento.34 O cabido, em 12 de novembro do mesmo ano, responderia que, “depois de discutido o assumpto, dá o seu parecer contrário a tal transferência, uma vez que a finalidade da Irmandade do S.S. Sacramento é justamente manter e incentivar o culto de Jesus Sacramentado na Sé da Bahia, donde vem o seu título”.35 Posteriormente, em novembro de 1938, o Relatório das irmandades, confrarias e devoções existentes na antiga Igreja da Sé,36 escrito pelo cônego Appio Silva, confirmaria a transferência daquela irmandade para a Catedral Basílica, pela autoridade 34 O título de Adoração Perpétua ao Santíssimo Sacramento foi conferido pelo arcebispo D. Augusto Álvaro da Silva em 1933, na ocasião do Congresso Eucarístico. 35 Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador. Laboratório Eugênio Veiga (LEV) da Universidade Católica do Salvador (UCSal). Freguesia de São Salvador – Caixa 01 – Documento GA/CHAN/ IOPM/COR/41(Manuscrito). 12/11/1935. 1 fl. 36 Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador. LEV/UCSal. Arquivo da Freguesia São Salvador da Sé – Caixa 01 – Relatório das irmandades, confrarias e devoções existentes na antiga Igreja da Sé. Bahia, 1938. Documento GA/CHAN/IOPM/REL/01 – (datilografado) 8 fls. 222 Iconografia musical na América Latina diocesana, com todas as suas imagens e alfaias. Entretanto, desde então, havia realizado somente duas festas. No início de 2018, os painéis com o ostensório e os demais fragmentos de pintura foram transferidos das instalações da Catedral Basílica para o Palácio Arquiepiscopal, onde serão expostos ao público juntamente com o antigo arcaz que aparece na Figura 9, após a conclusão das obras de restauração daquele edifício. As investigações sobre o conjunto remanescente da Sé Primacial do Brasil jamais serão finalizadas, aos olhares dos historiadores da arte e dos restauradores. Este artigo aborda algumas hipóteses que poderão contribuir para futuros estudos e sinaliza a importância da análise seletiva sobre a reutilização de materiais nas intervenções ocorridas nos templos religiosos. Salvo das mãos do carpinteiro por Túlio Vasconcelos, um pequeno conjunto de fragmentos pictóricos dos forros da antiga Igreja da Sé ainda sobrevive, embora com muitos elementos faltantes. E saem do anonimato para relembrar, novamente, a importância da Sé Primacial do Brasil. Referências ALMEIDA, Geraldo Coelho de, SJ. Identificação dos religiosos no painel. [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida por e-mail do destinatário, 1 abr. 2018. ALMEIDA, Tulio Vasconcelos Cordeiro de. Acervo fotográfico da Restauração das pinturas da igreja da Sé. Bahia. 1986-1988. 1 álbum (25 fotos) color. 10x15 cm. Fotografias de Elias Mascarenhas. ALMEIDA, Tulio Vasconcelos Cordeiro de. Restauração dos painéis da antiga Sé. [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida por e-mail do destinatário, 13 jun. 2018. ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA DE SALVADOR. LABORATÓRIO EUGÊNIO VEIGA – LEV – UCSAL. Freguesia de São Salvador da Sé – Caixa 01 – Documento GA/CHAN/IOPM/COR/41 [Manuscrito]. 12 nov. 1935. 1 fl. ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA DE SALVADOR. LABORATÓRIO EUGÊNIO VEIGA – LEV – UCSAL. Freguesia São Salvador da Sé – Caixa 01 – Relatório das Irmandades, Confrarias e Devoções existentes na antiga Igreja da Sé. Bahia, 1938. Documento GA/CHAN/IOPM/REL/01 – [Datilografado] 8 fls. O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 223 BARREIRA, Isidoro de. Tractado das significacoens das plantas, flores e fructos que se referem na sagrada escriptura. Lisboa: Pedro Craesbeeck, 1622. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulus, 1990. Edição pastoral. BRAGA, Eduardo (org.). A Sé Primacial do Brasil, Bahia 1553-1928. Salvador, [1928]. 1 álbum (33 fotos): p&b; 35 x 27 cm. Acervo da biblioteca do Museu de Arte Sacra da UFBA. CONGRESSO BRASILEIRO DE ICONOGRAFIA MUSICAL, 4., CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E SISTEMAS DE INFORMAÇÃO EM MÚSICA, 2., 2017, Salvador. Anais [...]. Salvador: RIdIM-Brasil, 2017. ÊXODO. In: BÍBLIA Sagrada. São Paulo: Paulus, 1990. p. 68-115. Edição pastoral. FLEXOR, Maria Helena Ochi. Igrejas e conventos da Bahia. Brasília, DF, IPHAN, 2010. v. 1. FREIRE, Luiz Alberto R. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006. HORA, Edmundo. O portal da reverência eucarística no altar-mor da Catedral Basílica de Salvador: uma revelação pictórica. In: INTERNATIONAL RIDIM CONFERENCE, 13., CONGRESSO BRASILEIRO DE ICONOGRAFIA MUSICAL, 1., 2011, Salvador. Anais […]. Salvador: UFBA, 2011. p. 178-188. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Inventário de Bens Móveis e Integrados – Módulo VII – Salvador IV – Volume 88. Salvador: IPHAN, 2003. INTERNATIONAL RIDIM CONFERENCE, 13.; CONGRESSO BRASILEIRO DE ICONOGRAFIA MUSICAL, 1., 2011, Salvador. Anais […]. Salvador: UFBA, 2011. LEAL, Fernando Machado. Catedral Basílica de São Salvador da Bahia. Salvador: IPAC, 2002. MASCARENHAS, Elias. Restauração das pinturas da igreja da Sé. Salvador, Bahia. 1986-1988. 1 álbum (25 fotos) color. 10x15 cm. NEVES, Belinda M. A. Fragmentos de pintura religiosa na Catedral Basílica de Salvador. Salvador, 2016. 1 álbum (26 fotos) color. 10x15 cm. NEVES, Belinda M. A. O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura do teto da sacristia da antiga Sé Primacial do Brasil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ICONOGRAFIA MUSICAL, 4., CONGRESSO BRASILEIRO DE 224 Iconografia musical na América Latina PESQUISA E SISTEMAS DE INFORMAÇÃO EM MÚSICA, 2., 2017, Salvador. Anais [...]. Salvador: RIdIM-Brasil, 2017. p. 627-655. NÚMEROS. In: BÍBLIA Sagrada. São Paulo: Paulus, 1990, p. 148-192. Edição pastoral. PÁSCOA, Márcio. Identificação dos instrumentos musicais [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida por e-mail do destinatário 10ago. 2017. PEIXOTO, Afrânio. Breviário da Bahia. Rio de Janeiro: Agir, 1945. PERES, Fernando da Rocha. Memória da Sé. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo do Estado, 1999. ROSARIO, Antonio do. Frutas do Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008. Fac-símile da edição de 1702. SANTOS, Manuel Mesquita dos. A Sé Primacial do Brasil – Notícia histórica por Manuel Mesquita dos Santos. Professor do Colégio Antonio Vieira S. J. Fotogravuras de Marcial Tosca. Bahia: Cia. Editora e Gráfica da Bahia S.A., 1933. SILVA FILHO, Wellington Mendes. A iconografia musical da Sala do capítulo do Convento da Ordem Primeira de São Francisco em Salvador – Bahia. 2014. Tese (Doutorado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. O ostensório e o coro angélico nos fragmentos de pintura... 225 A trajetória do tenor Giovanni Badaracco através da crítica e da iconografia musical entre 1899 e 1901 Luciane Viana Barros Páscoa A Companhia Lírica Italiana de José Fernandes de Carvalho foi a primeira em seu gênero, no século XX, a figurar no palco do Teatro Amazonas. Dentre os integrantes do elenco, destacou-se o tenor Giovanni Badaracco, que despontou entre os demais por suas qualidades vocais e cênicas, fato que evidenciou a boa recepção pelo público e pela crítica. Naquele segundo semestre de 1901, a referida companhia seguiria a Belém, apresentando-se no palco do Theatro da Paz. Durante pesquisa realizada para ampliar conjunto fotográfico referente aos artistas em trânsito no teatro musical de Manaus e Belém durante o Período da Borracha (1850-1910), foram recolhidas nove fotografias de Giovanni Badaracco. Dentre elas, sete imagens tiveram a autoria identificada e possuem a assinatura de Charles William Alisky (1866-1946) e Theodore Christopher Marceau (1859-1922), fotógrafos norte-americanos, o que remete à presença do cantor em Los Angeles e São Francisco entre 1899 e 1900, datas em que esteve engajado na Lambardi Italian Opera Company. Este texto discorrerá sobre essas imagens sobreviventes, na tentativa de recuperar a trajetória e a crítica sobre o tenor Giovanni 227 Badaracco entre os anos de 1899 e 1901, quando a circulação dessas imagens e a recepção crítica atestam uma mesma etapa de sua vida artística. Nascido em Roma em 1865, Giovanni Badaracco foi considerado um tenor de “[...] excelentes notas, cheias, redondas, especialmente no registro alto, que emite sem esforço e lhe permite chegar sem esforço aos sobreagudos”. (PÁSCOA, 2006, p. 242) Foi bastante elogiado nos anos da virada do século XIX para o XX e sempre era chamado a repetir as árias agudas em cena aberta, tais suas qualidades de spinto. Os registros históricos mostram que iniciou sua carreira em 1893 no Teatro Quirino, de Roma, com Ernani, la Forza del destino e La traviata. Na cronologia da ópera em Manaus, realizada por Márcio Páscoa (2006, p. 242-243), verifica-se que Badaracco esteve em Sofia, no Teatro Luxembourg, em 1895; em Catania, no Teatro Nazionale, em 1896; em Lima, no Teatro Politeama, em 1897, e Teatro Principal, em 1898; em Ancona, no Teatro Vittorio Emanuele, em Verona, no Teatro Ristori, em Manaus, no Teatro Amazonas, e em Belém, no Theatro da Paz, em 1901. Deve ter se integrado à Lambardi Italian Opera Company na altura em que esse grupo desenvolveu uma turnê mexicana, pois, antes, em janeiro de 1899, Badaracco esteve no Teatro Nacional da Cidade do México com a citada companhia cantando ao lado de Bianca Barducci e Pedro Bugamelli, interpretando La bohème, parceiros comuns nos palcos californianos nos meses seguintes. Nessa digressão mexicana, Badaracco alternou os papéis de tenor do repertório com Giuseppe Agostini, que logo em seguida iria para Belém, onde se apresentou em temporada em 1900. (MAURIZI, 2007, p. 46) No México, Badaracco já destacara-se no papel de Don José, em Carmen, como foi registrado pela crítica em Los Angeles, na sua chegada: “O senhor Juan Badaracco possui uma voz esplêndida e fará um Dom José ideal. Esse é um papel no qual tem aparecido com grande sucesso ao longo da sua turnê mexicana e, certamente, atenderá todas as expectativas daqueles que assistirem à apresentação esta noite”.1 A partir de 1904, as notícias indicam atuação mais frequente na América do Sul, especificamente na Argentina, em Buenos Aires, no Teatro Marconi, 1 Los Angeles Herald, n. 315, 11 ago. 1899. Original: “Signor Juan Badaracco is in splendid voice, and will, make an ideal Don Jose. It is a role in which he appeared with great success throughout their Mexican tour, and will certainly fulfill all the expectations of those who will hear the performance this evening”. 228 Iconografia musical na América Latina (1904-1905); e em Rosário, nos Teatros Colón (1905 e 1907) e Nuevo Politeama (1906). Em 1906, esteve cantando no Teatro Parque Fluminense, no Rio de Janeiro, pela companhia lírica de Michele Tornese, e, em seguida, no ano de 1907, registrou-se sua passagem por São Paulo, no Teatro Santana. A partir de 1908, os dados encontrados remetem à sua fixação em Buenos Aires, com participação nas temporadas do Teatro Coliseu e Teatro Marconi, nas temporadas de 1911, 1917, 1920 e 1921, devendo ter circulado por outras cidades do cone sul nesses intervalos. O repertório desenvolvido por Giovanni Badaracco foi vasto e significativo: Carmem, La Gioconda, Un ballo in maschera, La forza del destino, La traviata, I Pagliacci, Cavalleria rusticana, Manon, Aida, Il trovatore, Ernani, Manon Lescaut, Il Guarany, Rigoletto, Norma, Gli ugonotti, Lucrezia Borgia, L’africana, La bohème, Tosca, Íris, Jone, Lucia di Lammermoor, Fra diavolo, Il barbiere di Siviglia, I puritani. Nas temporadas de Manaus e Belém (1901), Giovanni Badaracco encarregou-se da maioria dos papéis. De Rigoletto a I Pagliacci, o tenor dominou quase todas as peças de Verdi e mais as de Ponchielli e Gomes. (PÁSCOA, 2006, p. 231) A Lambardi Italian Opera Company foi uma companhia itinerante dirigida pelo empresário Mário Lambardi, ativa no Caribe e nos Estados Unidos desde o fim de 1896 até 1913 ou 1914. Sua primeira turnê começou na pequena cidade portuária Puerto Cabello, Venezuela, em dezembro de 1896 e eventualmente seguiu para outros países da região, pois incluiu paradas em San José, Curaçao, Maracaibo, Barranquilla, Cartagena, Cidade do Panamá, Quito e Lima. Nessa ocasião, a companhia rodou por pelo menos um ano ininterruptamente. Entre 1899 e 1901, excursionou pelo México, Estados Unidos, Cuba, Jamaica e novamente o Peru. Durante os anos seguintes, retornaram a América Latina, chegando a Valparaíso, no Chile, em 1904. Retornaram aos Estados Unidos em 1906-1907, fazendo apresentações principalmente na Costa Oeste. Seguiram-se muitas turnês nos mesmos modelos, durante as quais frequentemente combinavam destinos nos Estados Unidos com outros da América Central e Caribe. Em março de 1913, apresentaram-se no Havaí, com 14 obras em uma temporada de três semanas. (KAUFMAN, 2002) A chegada da Lambardi Italian Opera Company em Los Angeles foi anunciada em 7 de maio de 1899, após três meses percorrendo o México com críticas positivas, estabelecendo-se no Los Angeles Theater como a grande atração da cidade entre os meses seguintes, de maio a agosto de 1899. O elenco da Lambardi A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 229 Italian Opera Company em Los Angeles estava assim distribuído: Bianca Barducci, Beatriz Franco, Lola Überto, Amelia Sostegni, Ernestina Marchetti e Eliza Nerozzi, dentre sopranos e contraltos. Os baixos, barítonos e tenores contavam com Pedro Bugamelli, Ubaldo Travaglina, Fernando Avedona, G. Salassa, Carlos Vizzardelli, G. Passatto, Domenico Russo, Giuseppe Ferrari e Giovanni Badaracco. A orquestra era dirigida pelo maestro Ugo Barducci e o coro era dirigido por Francesco Murine. A direção de cena era de Luigi Bergami, cantor e diretor com passagem pelo teatro Alla Scala de Milão.2 No repertório da turnê, estariam presentes as óperas Un ballo in maschera, La Gioconda, I Pagliacci, Cavalleria rusticana, La bohème, Il trovatore, Ernani, Otello, Rigoletto, Fausto, Romeo e Giulietta, Aida, La traviata, La favorita, Carmen, L’af ’ricana e La forza del destino, dentre outros títulos que surgiriam depois, como Lucia di Lammermoor e Ruy Blas, por exemplo. Figura 1 – Anúncio da Lambardi Italian Opera Company Fonte: Los Angeles Herald (7 maio 1899). Vale mencionar que, no periódico pesquisado, muitos nomes dos cantores italianos aparecem traduzidos para o espanhol e que há generalizada confusão entre os títulos em italiano e francês de muitas óperas. No primeiro caso, isso se deve à passagem da companhia pelo México e pela recepção da crítica de periódicos mexicanos publicada pela imprensa norte-americana. Giovanni Badaracco integrou nessa temporada os elencos de Carmen, Cavalleria rusticana – principais sucessos do tenor na turnê mexicana –, I Pagliacci, Il trovatore, Ernani, Ruy Blas, Il barbiere di Siviglia, Lucia di Lammermoor, I puritani e Rigoletto. 2 Los Angeles Herald, n. 219, 7 maio 1899. 230 Iconografia musical na América Latina Figura 2 – Giovanni Badaracco como Cânio em I Pagliacci, de Leoncavallo. Foto: Charles William Alisky, São Francisco, cerca de 1899 Fonte: Wikimedia Commons (2018).3 Essa primeira fotografia representa o tenor no papel de Cânio em I Pagliacci (Figura 2). A composição cênica remete à fotografia de estúdio com traje de cena e gestual dramático, com cenário naturalista ao fundo. Na inscrição da fotografia, aparece: “Alisky – Foto – S.F.”. Charles William Alisky nasceu em 1º de junho de 1866 na Califórnia e posteriormente mudou-se com sua família para Portland, onde seu pai se tornou um proeminente homem de negócios. Estudou arte em Munique e Dresden durante os anos de 1890 e 1891. Após o retorno da Europa, abriu um estúdio de arte em Portland com sua esposa, Charlotte Duncan, entre 1892 e 1893. Após o divórcio, em 1898, Charles Alisky retornou à Califórnia e trabalhou como pintor, daguerrotipista e, depois, como proprietário de um negócio teatral até sua morte em San Francisco, em 12 de dezembro de 1946. (HUGUES, 2002) 3 Disponível em: http://commons.wikimedia.org.wiki/file:badaracco_giovanni. A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 231 Essa imagem obedece aos princípios estéticos da fotografia oitocentista, principalmente a que registra e divulga artistas com trajes de cena. Essa e as demais composições a serem vistas aqui foram feitas em estúdio e seguiram padrões da arte pictórica tradicional. As divisões e dissensões entre a fotografia artística, científica e comercial se aprofundaram nas últimas décadas do século XIX. A fotografia comercial se expandiu para o mercado internacional, juntamente com o recém-popular cartão postal. Além disso, a câmera Kodak, projetada para uso de amadores, chegou ao mercado em 1888 e seu sucesso produziu um aumento de produção desse tipo de equipamento. O impacto mais profundo ocorreu na década de 1890, quando novas técnicas permitiram que as fotografias fossem impressas diretamente ao lado de jornais e revistas, criando um público novo e acentuando o papel social dos fotógrafos que ficaram conhecidos como fotojornalistas. Os dispositivos de criação de imagens, a química e os princípios oferecidos ao público a partir de 1839 fomentaram o que poderia ser chamado de segunda grande invenção da fotografia em meados do século XIX, quando vários experimentos foram realizados por parte de cientistas, na indústria, governo e também nas artes. De fato, em seus primeiros anos, a fotografia era chamada de “arte-ciência”, um termo que reconhecia a aproximação entre os conceitos. Na segunda metade do século XIX, já eram acessíveis ao público várias publicações sobre o progresso da fotografia em periódicos e manuais. Além disso, à medida que a fotografia se espalhava pelo mundo, novos usos e interpretações se multiplicavam rapidamente. Logo a fotografia entrou no universo da crítica de arte, no qual sua estética foi definida e debatida juntamente com o valor de suas influências na sociedade. (WARD; MARIEN; WARD, 2003) Uma prática social semelhante começou com o daguerreótipo, em que as imagens eram frequentemente superpostas para adicionar cor e definição ao trabalho. Fotógrafos como Félix Nadar e Etienne Carjat, em Paris, fizeram estudos de retrato de artistas plásticos, escritores e músicos que pertenciam aos seus círculos sociais. A princípio, os fotógrafos tentaram difundir suas obras, que muitas vezes retratavam celebridades, para a reprodução mecânica na mídia impressa. O debate sobre fotografia e arte foi constante no século XIX, tanto no emergente gênero de crítica fotográfica quanto no trabalho de praticantes que tentavam usar o equipamento para fins artísticos. Entre os primeiros fotógrafos de arte estavam membros de clubes europeus de intercâmbio fotográfico, que 232 Iconografia musical na América Latina trocavam seus esforços uns com os outros, mas não tentavam ganhar dinheiro com suas imagens, pois entendiam que a fotografia artística tinha um caráter experimental, diferente da fotografia comercial, na medida em que esta última procurava agradar a um público amplo. (WARD; MARIEN; WARD, 2003) Desse modo, muitos fotógrafos que produziram comercialmente na virada do século XIX para o XX ficaram esquecidos. Suas imagens, entretanto, não estavam destituídas de senso estético associado ao objetivo propagandístico. As fotografias de Badaracco acentuam alguns aspectos da crítica recolhida durante a temporada norte-americana, em que se exaltou o fato de que o tenor sempre causou boa impressão pelo porte e beleza física, pelo carisma, pelas qualidades cênicas e vocais. Em sua primeira aparição em Rigoletto, mesmo estando indisposto, seu desempenho foi bastante elogiado: No papel do Duque [de Mântua] mostrou possuir uma voz magnífica que está bem de acordo com a sua fina aparência. [...] O dueto com Gilda no segundo ato foi tão comovente, com a paixão e ternura que exigiu, mas foi realmente no último ato que Badaracco conquistou seu público. Sua interpretação de ‘La donna è mobile’ provocou uma tormenta de aplausos e foi forçado a repetir a cativante ária. E no grande quarteto do mesmo ato, sua voz soou com um poder sustentado que era simplesmente maravilhoso.4, 5 Em 22 de maio de 1899, foi levada à cena La traviata e, na crítica publicada no dia seguinte, ficou registrado que Badaracco não teve um bom desempenho, pois estava doente da garganta: cantou bem em algumas partes e, em outras, a voz parecia desfocada, na opinião do crítico, dando espaço à soprano, que se destacou no espetáculo, sobressaindo-se aos demais. Em 30 de maio seguinte, cantou em Fausto e o crítico do Los Angeles Herald disse que a voz robusta do cantor não se adequava ao papel, mas que o tenor cativou 4 “In the role of the Duke [of Mantua] he displayed the possession of a magnificent voice which well accorded with his fine appearance. [...] The duet with Gilda in the second act was such with all the fire, passion and tenderness it demanded, but it was really in the last act that Badaracco thoroughly captured his audience. His singing of ‘La donna e mobile’ brought down a storm of applause and he was forced to repeat the captivating air. And in the great quartet of the same act his voice rang out with a sustained power that was simply marvelous”. 5 G. A. Dobinson. “At the Theatre, Los Angeles Herald, 20 maio 1899, p. 5. A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 233 o público pelo seu estilo de voz ao sustentar muitas notas.6 Badaracco cantou mais tarde em Carmen, em 11 e 14 de agosto e, antecipando mais uma récita, o crítico ressaltava que seria uma excelente exibição pela voz esplêndida do tenor, que havia criado um Dom José ideal.7 Integrou ainda o elenco de Il trovatore em 21 de julho e 17 de agosto, recebendo da crítica os trechos transcritos a seguir: [...] tudo e todos pareciam estar em sintonia, e apesar da veia de tristeza que permeia a ópera [...] o Manrico de Badaracco foi pictoricamente bom e seu canto do papel, por melhor que seja, ainda se destaca por algumas falhas que parecem fazer tanta parte de seu método que provavelmente sempre existirão. Suas notas altas são boas e ele é evidentemente popular.8, 9 Sobre Ernani, cantada em 24 de julho, foi mencionado que o papel estava em mãos eficientes, mas, quando cantou I puritani no dia 25, a crítica asseverou que a ópera estava em tonalidades altas e que Badaracco não sabiamente forçou a voz em detrimento do efeito artístico para fazer seu papel, mas que, ainda assim, foi aplaudido veementemente várias vezes.10 Em 30 de julho, ao lado de Bianca Barducci e do maestro Ugo Barducci ao piano, Badaracco fez uma récita benemerente para os alunos da Whittler State School, a convite do advogado e financista John W. Mitchell, no hall da assembleia. Mitchell proferiu uma palestra sobre arte italiana e os mestres italianos e uma comparação da velha Itália com a Califórnia, a Itália na América.11 Badaracco cantou Un ballo in maschera em 4 de agosto e a crítica do Los Angeles Herald apenas mencionou ter sido uma excelente apresentação, semelhantes termos que o jornal usou para falar sobre a a récita de La favorita em 29 de agosto 6 Los Angeles Herald, 31 maio 1899. 7 Los Angeles Herald, 19 ago. 1899. 8 [Sem autor] At the theatre. Los Angeles Herald, 22 julho 1899, p. 5. 9 “[...] everything and everybody seemed to be in tune, and in spite of the vein of sadness that runs through the opera [...] Badaracco’s Manrico was pictorially fine and his singing of the role, good as it is, is yet distinguished by some faults that seem to be so much a part of his method that they will probably always exist. His high notes are good and he is evidently popular”. 10 Los Angeles Herald, 26 jul. 1899. 11 Los Angeles Herald, 11 ago. 1899. 234 Iconografia musical na América Latina de 1899, em que elogiou o espetáculo e mencionou que Badaracco foi obrigado a bisar a famosa passagem Spirto gentil.12 Quase ao mesmo tempo, Badaracco e a companhia lírica estiveram em San Francisco no Teatro Alhambra, onde o tenor apareceu em Il trovatore, Un ballo in maschera e Rigoletto, e nos dias 16, 17 e 18 de junho respectivamente, ao lado de Bianca Barducci e Luigi Bergami nos demais papéis principais. Nessa cidade, houve uma decisão por estender os espetáculos por mais uma semana, devido ao grande sucesso.13 A récita de Il trovatore havia sido tão boa que o público pediu mais duas récitas extras antes de encenarem outros títulos.14 Ainda em San Francisco, o tenor foi convidado para a inaguração de uma nova sala de concertos, a Sala Fischer, que aconteceu em 25 de março de 1900, onde Badaracco cantou ao lado de Bianca Barducci o 4º ato de Il trovatore. A crítica em San Francisco menciona os mesmos atributos lidos no Los Angeles Herald, destacando que Badaracco era um tenor robusto e que possuía todas as qualificações necessárias que o faziam tão querido “ao coração das garotas das matinês. Um gigante em estatura com um esplêndido rosto e uma voz melodiosa e bem treinada. Fez um Manrico ideal”.15 Em 29 de junho de 1900, outra notícia registrava a presença do tenor em San Francisco, ocasião em que realizou concertos ao lado de Bianca Barducci, Ugo Barducci e outros, enquanto uma parte da companhia lírica de Mário Lambardi estava em Cuba.16 A partir, daqui o tenor começou a se deslocar novamente e, em breve, chegaria à Amazônia. Na fotografia de autoria de Charles Alisky, foram percebidos os atributos cênicos e o traje que pertencem à iconografia usual para personagens heroicos da Idade Média tardia nas óperas oitocentistas, como é o Manrico em Il trovatore (Figura 3). O tenor utiliza um casaco curto com cinto sobreposto, um calção curto com meia semelhante ao tecido de helanca escura, botas curtas, capa, uma espada pequena na cintura. Acima do paletó, vê-se uma gola de renda aplicada. A postura do cantor, com os braços cruzados, e a expressão de tensão evocam uma cena em ambiente com referências tardo-medievais e renascentistas. 12 Los Angeles Herald, 30 ago. 1899. 13 San Francisco Call, v. 86, 17 jun. 1899. 14 San Francisco Call, v. 86, n. 20, 17 jun. 1899. 15 San Francisco Call, v. 87, n. 125, 25 mar. 1900. 16 San Francisco Call, n. 29, 29 jun. 1900. A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 235 Il trovatore, como se viu, foi um dos grandes sucessos do cantor, inclusive sendo escolhida para a récita de seu benefício artístico já em Manaus no ano de 1901. Figura 3 – Giovanni Badaracco como Manrico em Il trovatore, de Verdi. Foto: Charles William Alisky, São Francisco, cerca de 1899 Fonte: Wikimedia Commons (2018).17 Na terceira imagem desse conjunto, vê-se o tenor com uma soprano não identificada, provavelmente Bianca Barducci, da Lambardi Opera Company, com o figurino evocativo de I Pagliacci (Figura 4). Destacam-se aqui a composição de orientação diagonal, a harmonia do figurino leve dos personagens e a presente alegria emanada através do registro fotográfico, que enfatiza o carisma do tenor, descrito em crítica de periódico amazonense em 1901: 17 Disponível em: http://commons.wikimedia.org.wiki/file:badaracco_giovanni. 236 Iconografia musical na América Latina No seu rosto de atleta romano sobressai a expressão penetrante dos olhos, a quem a fronte larga e branca imprime um cunho particular de refletida energia. Suas mãos esguias e bem talhadas acentuam-lhe a propriedade do gesto magistral, que o distingue nas suas belas atitudes de artista. A sua boca, que tem uma dolorosa expressão de antiga amargura, nem parece o órgão gerador de sua voz prodigiosa.18 Figura 4 – Giovanni Badaracco e soprano em I Pagliacci, de Leoncavallo. Foto: Charles William Alisky, São Francisco, cerca de 1899 Fonte: Wikimedia Commons (2018).19 18 A Federação, 25 jul. 1901. 19 Disponível em: http://commons.wikimedia.org.wiki/file:badaracco_giovanni. A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 237 O desempenho do tenor nessa ópera de Leoncavallo foi muito aplaudido na temporada lírica de 1901, em Manaus, pela Companhia Lírica Italiana de José Fernandes de Carvalho – conhecido como Juca Carvalho –, no Teatro Amazonas. Nessa ocasião, também integrou o elenco de La Gioconda, Il trovatore, Manon Lescaut e Il Guarany, sob a direção do maestro Giorgio Polacco. Na fotografia em que Badaracco personifica Enzo Grimaldo, da ópera La Gioconda, a ênfase na composição diagonal é acentuada pelo cantor, que está sentado numa simulação de tronco de árvore no estúdio, com saia plissada, camisa de mangas bufantes, colete e sapato com polainas de couro, usando um anel na mão direita e um punhal na faixa na cintura. Figura 5 – Giovanni Badaracco como Enzo Grimaldo em La Gioconda, de Amilcare Ponchielli. Foto: Charles William Alisky, São Francisco, cerca de 1899 Fonte: Wikimedia Commons (2018).20 20 Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Badaracco_Giovanni7.jpg. 238 Iconografia musical na América Latina Essa composição iconográfica reúne os atributos de figurino do personagem, príncipe que se disfarça como marinheiro, conforme se percebe de outras fotografias de cantores na pele do personagem, como é o caso de Beniamino Gigli e Giacinto Prandelli representando Enzo Grimaldo (Figuras 6 e 7). Badaracco interpretou esse papel nas temporadas líricas de Manaus e Belém, em 1901. Figura 6 – Beniamino Gigli como Enzo Grimaldo, em La Gioconda, 1914 Fonte: Wikipedia (2018).21 21 Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:GigliGioconda1914.jpg. A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 239 Figura 7 – Giacinto Prandelli como Enzo Grimaldo, em La Gioconda Fonte: Giacinto Prandelli (2018). Outro sucesso de Badaracco foi o papel de Turiddu em Cavalleria rusticana, de Mascagni (Figura 8). A criação desse papel nas temporadas do México e na Califórnia foi bastante elogiada pela crítica. Na fotografia, o tenor está no estúdio, em pé, evidenciando o traje típico siciliano, com calça presa por uma faixa, paletó curto aberto, gravata larga e panejada e, na cabeça, um barrete típico. Levanta com a mão direita um copo de vinho, outra menção ao personagem Turiddu. Na imagem, consta a inscrição de Alisky. 240 Iconografia musical na América Latina Figura 8 – Giovanni Badaracco como Turiddu em Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni. Foto: Charles William Alisky, São Francisco, cerca de 1899 Fonte: Wikimedia Commons (2018).22 É muito provável que as fotografias aqui apresentadas tenham circulado na Amazônia nesse período, como difusão e apresentação profissional do artista, ao lado de restante material publicitário, como foi o caso da crítica mexicana publicada no Herald de Los Angeles, material que geralmente antecedia e anunciava a vinda de uma companhia lírica. Tais imagens pontuam ainda a digressão do cantor pelo lugar onde realizou carreira. 22 Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Badaracco_Giovanni4.jpg. A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 241 Visão mais alargada sobre a recepção da atuação de Badaracco nas cidades de Manaus e Belém consta nos estudos de Márcio Páscoa (2000, 2006, 2009a, 2009b), em que foram recolhidas críticas dos espetáculos das temporadas líricas nessas cidades. Algumas das fontes primárias citadas por Páscoa (2000, p. 225), como os jornais Amazonas e A Federação, eram forças políticas antagônicas e, muitas vezes, a rivalidade entre os periódicos afetava o teor da crítica ou crônica lírica. A Companhia Lírica de Juca Carvalho reuniu nomes significativos e valores individuais, a começar pelo maestro Giorgio Polacco,23 uma das maiores notoriedades artísticas a reger no Teatro Amazonas naquele tempo. Figura 9 – Anúncio da Companhia Lírica Italiana de José Fernandes de Carvalho em Manaus, 1901 Fonte: Páscoa (2000). 23 Nascido em Veneza, em 12 de abril de 1875, lá iniciou seus estudos, seguindo para o Conservatório de Milão e, depois, para São Petesburgo. Foi maestro-assistente no Convent Garden (Londres) em 1890, fazendo seu début ao reger Orpheo ed Euridice, de Gluck, no Shaftesbury Theatre. Trabalhou como regente em diversas cidades europeias e na América do Sul. Em 1912, estreou no Metropolitan Opera House sucedendo Toscanini, permanecendo ali até 1917. Depois trabalhou em Chicago, na Chicago Civic Opera, de 1922 a 1930, quando se retirou por motivos de saúde. Foi regente de inúmeras premières líricas de óperas de compositores. Seu prestígio promoveu o début de vários cantores em diversos teatros e cidades, e possivelmente todos os grandes cantores da época foram regidos por ele. (PÁSCOA, 2000, p. 226-227) 242 Iconografia musical na América Latina O elenco estava composto pelas sopranos Carlota Zucchi-Ferrigno, Cleonice Campagnolli, Elvira Miotti, Ada Patalano e Mabel Nelma. Os tenores eram Giovanni Badaracco, Giorgio Quirolli, Michele Sigaldi e o comprimário Giuseppe de Marco. Os barítonos eram Enrico de Francheschi, Franco Polimeni e Simeone Mongelli. Os baixos eram Michele Fiore, Salvatore di Giulio e Alceste Mori. (PÁSCOA, 2000, p. 226) Na crítica feita ao ensaio geral de Il Guarany, o crítico observou que “o tenor Badaracco, Pery, por algumas vezes foi aplaudido em algumas passagens por causa da sua voz extensa e bem afinada, mas não por estar bem conhecedor do papel, o diapasão de sua voz por vezes esteve em desacordo com a orquestra”.24 O sucesso da companhia rendeu vários elogios ao tenor, como se pode ver na crônica do jornal A Federação,25 na coluna “Perfis a carvão”: Badaracco é, a nosso ver, o rival da Zucchi, no desempenho da arte em que são profissionais. O nosso criticado é um cavalheiro no seu trato íntimo, se bem que pouco expansivo e extremamente cortês. De uma inteligência pronta e lúcida, o artista que o público tem admirado mantém as mesmas atitudes nobres e linha esbelta do palco nas suas palestras poderosas, sempre sustentadas com certa elevação intelectual, rara de ordinário, em gente de teatro, habituada a enredos medíocres de bastidores. [...] Badaracco não é somente o tenor poderoso, cuja voz melodiosa pode enfeitiçar o mais indiferente auditório. Se ele possuísse apenas esse dom precioso, que é puramente mecânico e que por isso encontra mais poderosa concorrência no gorjeio evocativo das flautas e no sentido soturno e comovente dos órgãos não mereceria o qualificativo nobre de artista, de que se pode orgulhar. A expressão de sua frase musical, a eloquência extraordinária de sua mímica superior, suas atitudes perfeitas, riscando-lhe em relevo a mais acentuada psicologia de artista emocional, que se funde com sua ária transmitindo-lhe toda a requintada energia dos próprios sentimentos. Nós que temos a bossa fechada às seduções da música, já nos temos por vezes extasiado ante o poder fascinante do talento desse artista. Mas achamo-lo inexcedível, assombroso e formidável interpretando Os Palhaços, com tamanha intensidade mental, com uma tão fiel identificação psicológica, que o seu papel mais parecia uma criação de momento, dessas que nascem da inconsciência de um cérebro predestinado, que a reprodução de um tipo engenhosamente gerado pelo gênio de um escritor. Jayme Aroldo26 24 Amazonas, 23 jul. 1901. 25 A Federação, 25. jul. 1901. 26 A Federação, 25. jul. 1901. A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 243 A posição do crítico do periódico Amazonas sobre a atuação de Badaracco em Manon Lescaut, parece, entretanto, de uma subjetividade discordante: Não é possível que uma empresa organizada para uma tournée no estrangeiro, composta de elementos heterogêneos contratados aqui e acolá possa obter um ensemble homogêneo. Cousa alguma preocupa a empresa para bem servir o público. Partes são distribuídas a artistas que se sacrificam fazendo-as, visto não estarem de acordo com seu registro de voz, e haja nisto o haverem confiado o ‘roule’ de Des Grieux na Manon Lescaut ao signor Badaracco.27 Para Páscoa (2000), essa colocação do crítico com relação ao papel de Des Grieux, realizado por Badaracco, poderia ser interpretada mais como uma impertinência ou mesmo gosto pessoal, pois ele era o tenor principal da companhia e as exigências vocais da ópera de Massenet seriam parecidas com as dos papéis realizados em I Pagliacci e Il Guarany. Vê-se que, na opinião do crítico do periódico A Federação, o desempenho do tenor foi satisfatório: Há muita gente que supõe que Juca Carvalho, empresário da Companhia Lyrica que está trabalhando no Teatro Amazonas, trouxe um só Badaracco e uma só Miotti; e eu, como toda gente, estava na mesma persuasão. Hoje, porém, eu sei que os Badaraccos são dois, como duas são a Miotti. O que cantou a Gioconda, Trovatore, Aida e outras, é um; o que cantou Os Palhaços, e a Manon Lescaut, é outro [...]. O primeiro dos Badaracco não me desagradou, mas também não me deixou ficar impressão nenhuma favorável a seu respeito, como cantor, entenda-se. O contrário disto aconteceu com o segundo, que embora não sendo artista consumado, interpretou e executou inteligentemente o papel de palhaço, cantando com grande expressão a dificílima romanza do 1º ato: ‘Ridi, Pagliaccio’, romanza tanto mais difícil quanto mais facílima é cair no ridículo se não for bem cantada. Na Manon Lescaut, o seu trabalho é mais completo, especialmente no 3º ato, onde revelou estudos mais sérios, tornando bem distintas a parte do canto e a parte dramática. No decorrer da ópera apresenta algumas incorreções que, fáceis de todas de remediar; podem elas passar despercebibas aos olhos do público em geral, mas de modo algum não escapam ao do verdadeiro crítico. Ora, como um artista e que tem por escopo subir sempre na opinião do público, as ligeiras observações que aqui deixo escritas, longe de incomodar, só podem ser bem acolhidas por Badaracco a quem faço reconhecer artista de mérito.28 27 Amazonas, 5 ago.1901. 28 A Federação, 11 ago. 1901. 244 Iconografia musical na América Latina A imagem a seguir trata da divulgação de um concerto de Badaracco, convidando para uma apresentação à comunidade italiana em Manaus. Nesse carte-de-visite,29 consta uma inscrição manual que registra a data de 19 de junho de 1901. Porém, não há, até o presente momento, fontes que corroborem que esse concerto tenha ocorrido antes da estreia da Companhia Lírica Italiana, anunciada para 30 de junho do mesmo ano. Segundo o convite, o tenor cantaria uma ária de Luiza Miller e a récita no Teatro Amazonas seria dedicada à colônia italiana de Manaus. Esse cartão de visita é muito significativo por ter a referência à estação lírica do Teatro Amazonas, como uma antecipação ao público dos valores artísticos da companhia. A fotografia utilizada nesse cartão teve a sua autoria identificada através da inscrição “Marceau”. Trata-se do fotógrafo norte-americano Theodore Christopher Marceau (1859-1922),30 pioneiro na criação de uma cadeia nacional de estúdios fotográficos nos Estados Unidos na década de 1880. Fundou o Marceau Studios em Manhattan, Nova York, Filadélfia e Boston e rapidamente se tornou um dos fotógrafos mais conhecidos do país. Marceau propôs uma ideia que funciona até hoje: o símbolo dos direitos autorais. A carreira de Marceau como fotógrafo começou quando tinha 22 anos, servindo como fotógrafo oficial da expedição astronômica do governo dos Estados Unidos para a América do Sul para observar o trânsito de Vênus. Serviu na equipe do governador de Ohio 29 A fotografia no formato carte-de-visite foi patenteada pelo fotógrafo francês André-Adolphe-Eugène Disdéri, em 1854, e era igualmente popular no mercado internacional, mas não tão duradoura quanto o estereógrafo. Uma câmera especialmente projetada permitia a criação de até oito imagens diferentes, aproximadamente do tamanho de um cartão de visita padrão (2,5 × 4 polegadas). Estúdios fotográficos forneciam adereços e roupas, junto com orientações sobre como posar. O carte-de-visite era barato e podia ser negociado ou coletado. Pessoas famosas usavam o carte-de-visite para relações públicas. Milhões de cartes foram produzidos em uma moda mundial que durou cerca de uma década. (WARD; MARIEN; WARD, 2003) 30 Em 1900, fundou a Marceau Studios em Nova York e contratou Edgar A. Caffey como fotógrafo e operador. Ele também comprou o estúdio Sarony e, durante grande parte da primeira década do século XX, também o gerenciou. Em 1905, Marceau organizou a Professional Photographers Society of New York State e atuou como seu primeiro vice-presidente. Ele também organizou a Liga dos Direitos Autorais, que pressionava o Congresso dos Estados Unidos por proteções de direitos para os fotógrafos, contra a apropriação de suas imagens pelos jornais. Foi Marceau quem recomendou o ícone que simboliza que a imagem era protegida por direitos autorais. Marceau tornou-se um homem muito bem conectado e rico, tornando-se colecionador e proprietário de imóveis. Morreu devido a uma insuficiência cardíaca em sua casa em Premium Point, New Rochelle, em 22 de junho de 1922. Seu filho, Theodore Marceau Jr., rapidamente assumiu os negócios do estúdio antes de vender a marca. (STANSKA, 2017) A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 245 e do governador da Califórnia. Com o tempo, Marceau diversificou os estúdios fotográficos, que faziam retratos, fotografias científicas e fotojornalismo ocasional. Esse fotógrafo teve muito interesse em retratos teatrais de encenação, pois usou muitos adereços, cortinas e cenários pintados em suas composições. Marceau também se especializou no retrato oficial, imagens de viagem e fotografia publicitária. Muitas pessoas famosas foram fotografadas por ele, que teve diversas lojas de fotografia de serviços locais, como fotografias de casas, fotos da sociedade e imagens de funções oficiais. Figura 10 – Carte-de visite de Giovanni Badaracco para a apresentação à comunidade italiana em Manaus. Inscrição: 19 de junho de 1901. Foto do centro: Theodore Marceau, cerca de 1899 Fonte: Wikimedia Commons (2018).31 A fotografia de Giovanni Badaracco feita por Theodore Marceau em seu estúdio em Los Angeles32 evidencia a formalidade do traje, com camisa de gola 31 Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Badaracco_Giovanni2.JPG. 32 No detalhe da inscrição do nome de Marceau na fotografia que representa Giovanni Badaracco, consta logo abaixo do nome do fotógrafo a referência à cidade do estúdio. 246 Iconografia musical na América Latina ligeiramente levantada, gravata de tecido adamascado, lenço menor no bolso do casaco, cabelo curto e bigode, tal como a moda do período permitia vestir os homens mais jovens. A imagem retoma a composição do busto-retrato neoclássico, possui nitidez no primeiro plano e um segundo plano ligeiramente desfocado, comum ao pictorialismo fotográfico do período. Sua cabeça está virada para a esquerda, com olhar direcionado a um ponto fora do espaço composicional. Na Figura 10, percebe-se uma diferença sutil no retrato de perfil utilizado no carte-de-visite, confirmando que se trata de duas fotografias da mesma sessão, mas com direção de arte diferente. Na Figura 10, o tenor está com a cabeça em perfil oblíquo e, na Figura 11, em postura mais altiva, com a cabeça mais elevada e em perfil completo. Figura 11 – Retrato de Giovanni Badaracco. Foto: Theodore Marceau, cerca de 1899 Fonte: Wikimedia Commons (2018).33 33 Disponível em: http://commons.wikimedia.org.wiki/file:badaracco_giovanni. A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 247 Antes do término da temporada lírica, houve um sarau na casa do governador do estado do Amazonas, Silverio Nery, promovido pela esposa dele. Nessa ocasião, foi registrada pela crítica a participação de Badaracco: Fez-se ouvir em primeiro lugar o tenor cuja voz possante e bem moldada conquistou inteiramente o público desta capital em interpretações que a crítica já consagrou, por admiravelmente belas, com os mais justos encômios e merecidos elogios. Badaracco esteve em um de seus dias felizes, e com aquela expressão que só por si faria dele um artista dos mais completos, soube encher toda a sala com as cordas sonoras de sua voz melodicamente timbrada e própria para traduzir os mais sutis movimentos da alma. Executando trechos de Andrea Chenier de Giordano, do Pagliacci de Leoncavallo, da Gioconda de Ponchielli, mais uma vez se confirmou brilhantemente os seus foros e privilégios de consumado cantor.34 Certamente, Giovanni Badaracco foi um dos baluartes da temporada do Teatro Amazonas. A crítica não o considerava somente um tenor poderoso, cuja voz melodiosa poderia “enfeitiçar o mais indiferente auditório”, mas um cantor inteligente, que detinha a expressão de sua frase musical, da dramaticidade e das atitudes perfeitas na cena. (PÁSCOA, 2009b, p. 125) Logo após a digressão em Manaus, a Companhia Lírica Italiana esteve em Belém, no Theatro da Paz. Lá, Badaracco cantou em Il trovatore, I Pagliacci, Aida, Ernani, Un ballo in maschera, Il Guarany, Manon Lescaut, La Gioconda e Rigoletto. O elenco que se anunciou no Pará foi o mesmo que atuou em Manaus. A primeira menção à passagem de Badaracco em Belém foi feita na récita de Il trovatore: Encarregado da parte de Manrico, procurou o tenor sr. Badaracco vencer a natural comoção da estréia, não conseguindo totalmente, em consequência de um certo ‘baixamento’ da voz, com que teve de lutar no correr dos dois primeiros atos. Entretanto, reanimou-se no 3º, chegando a cantar com bastante correção e segurança o último dueto com ‘Leonor’, no derradeiro ato. É um artista sóbrio e discreto.35 Badaracco continuou apreciado pela crítica paraense em I Pagliacci: 34 A Federação, Manaus, 9 ago. 1901. 35 Folha do Norte, Belém, 31 ago. 1901. 248 Iconografia musical na América Latina Canio, distribuído ao sr. Badaracco, esteve irrepreensível. Aplaudímo-lo calorosamente no ‘Ridi, Pagliaccio’ É para lastimar que, artista da velha escola dramática, não tivesse procurado tirar todo o partido da frase fina da ópera: ‘La comedia e finita’.36 Na apresentação de Aida, quarta récita livre da temporada, Badaracco teve um desempenho considerado regular: Regular no primeiro ato, correto em quase todo o segundo, tendo-nos agradado no concertante final deste ato; pareceu-nos um pouco inexpressivo no dueto e terceto do terceiro ato. No quarto ato, no dueto com Amneris, pareceu-nos um tanto hesitante, apesar da pequena responsabilidade da sua parte. No dueto final com Aida agradou-nos sem restrições e não lhe regateamos os nossos aplausos.37 Figura 12 – Giovanni Badaracco como Radamés em Aida, de Verdi. Estúdio fotográfico não identificado, cerca de 1899 Fonte: Wikimedia Commons (2018).38 36 Folha do Norte, Belém, 31 ago. 1901. 37 Folha do Norte, Belém, 31 ago. 1901. 38 Disponível em: http://commons.wikimedia.org.wiki/file:badaracco_giovanni. A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 249 Essa imagem sem identificação do fotógrafo ou estúdio representa Badaracco em personagem de ópera que pode ser atribuído como Radamés, em Aida, pelo exotismo do traje do cantor e do cenário, que remete ao mundo de herança clássica, com arcos e balaustradas, coluna em ruínas rodeada de folhas e flores. A postura do cantor, apoiado com o braço na coluna, confere uma similaridade à estatuária clássica, com o apoio necessário em um suporte e o ligeiro afastamento das pernas, para proporcionar equilíbrio e movimento. O traje é inusual, uma espécie de túnica curta com aplicações metálicas, em sentido geométrico – circulos e triângulos – e uma base de fundo, calça e camisa interior de tecido mais claro ranhurado. O sapato apresenta o mesmo tecido da calça, sem interrupção. Sua expressão é altiva e serena. No dia 5 de setembro de 1901, ainda na temporada em Belém, o par verdiano – Zucchi-Ferrigno e Badaracco – retornava ao palco do Theatro da Paz para interpretar Ernani: Fez o papel de Ernani o tenor Badaracco. Elegante allure desembaraço na parte dramática, cantou aceitavelmente toda a serata, se excetuarmos a falta de pureza como emitiu certos agudos e para os quais se socorre por vezes do efeito nasal, pouco artístico, mas perdoável. Estimaríamos vê-lo prolongar menos algumas notas em que se mostra seguro, mas que são boas apenas para ‘espantar o burguês’. Assim parece-nos de mesmo efeito, igualmente, a maneira impetuosa com que retoma o fôlego para emitir outras notas, emprestando-lhes uma expressão apaixonada, mas desagradável. Foi bem nos dois primeiros atos, contribuindo para o bom efeito do ‘pezzo concertante’ do terceiro, e preencheu agradavelmente o quarto ato é a cena final da morte, em que se nos afigurou sacrificar um pouco a parte dramática à vocalização.39 Segundo Páscoa (2006, p. 167), “nada escapava ao temível cronista do periódico paraense”, que se destacava pelos conhecimentos musicais do gênero operístico. Para o autor, de nada adiantaria saber o nome do articulista, pois naquele tempo estavam todos protegidos por pseudônimos, o que lhes garantia maior liberdade de escrita e crítica. A imagem a seguir provavelmente representa Giovanni Badaracco como Duque de Mântua, em Rigoletto (Figura 13). A fotografía evidencia uma composição de estúdio organizada, na qual o personagem representado está sentado 39 Folha do Norte, Belém, 7 set. 1901. 250 Iconografia musical na América Latina numa cadeira, com um modelo de traje utilizado na iconografia usual, como também pode ser observado na fotografía de Nancy Sorensen, retratando Richard Tucker como Duque de Mântua (Figura 14): roupa em estilo pré-renascentista ou renascentista, possível uso de listras, elementos bufos e acessórios, tais como anéis e colar com medalhão, ou outras representações do poder ducal, a que se pode acrescer uma cadeira senhorial. A referência ao cenário é de um ambiente palaciano interno, com uma cadeira entalhada, rodeada de tecidos nobres, na toalha da mesa e no cortinado. Figura 13 – Giovanni Badaracco como Duque de Mântua em Rigoletto, de Verdi. Estúdio fotográfico não identificado, cerca de 1899 Fonte: Wikimedia Commons (2018).40 40 Disponível em: http://commons.wikimedia.org.wiki/file:badaracco_giovanni. A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 251 Figura 14 – Richard Tucker como Duque de Mântua em Rigoletto, de Verdi. Foto de Nancy Sorensen Fonte: Lyric Opera de Chicago ([2018]). Sempre uma estreia aguardada na estação lírica paraense era a cultuada partitura de Carlos Gomes, Il Guarany, efetivamente apresentada dos dias 21 e 22 de setembro, caracterizando-se como uma récita a preços mais baixos e anunciada como popular.41 Pery, o generoso e apaixonado guarany, foi interpretado pelo sr. Badaracco, que se não nos arranca francos aplausos, merece-nos contudo muito boas referências pela estudiosa maneira com que cantou a ópera, especialmente depois da conhecida ária ‘Sento una forza indomita’ que sublinhou com muita expressão. Sentimo-lo um tanto fraco e talvez pouco estudado na entrada do primeiro ato, que tem o ouvido mais fortemente acentuada por diversos intérpretes, bem como pareceu estar mal compreendido o seu papel na cena com o 41 Folha do Norte, Belém, 22 set. 1901. Frisas de primeira ordem a 40$000 e camarotes de segunda ordem a 25$000 citado por Páscoa (2006, p. 168). 252 Iconografia musical na América Latina cacique, que temos visto mais altiva, mais ‘bene mercatta’ [sic] Em todo o caso o sr. Badaracco não deixou de agradar-nos, como já dissemos acima, e estamos certos de que este artista, assim como a sra. Quiroli, uma vez livre da impressão do receio que pareceu-nos estar possuído, nos dará um melhor Pery, em outra audição do Guarany.42 Pecebe-se, no discurso do crítico, a preocupação com a execução de uma ópera brasileira pela companhia italiana, e ele enfatiza que os cantores, apesar de terem estudado os papéis com afinco, ainda precisariam compreender melhor os personagens. O que se pode verificar é que o ritmo e a frequência dos espetáculos na temporada lírica eram frenéticos, e certamente isso afetou a qualidade vocal dos cantores. Acrescenta-se nesta cronologia do tenor a notícia de uma temporada lírica entre dezembro de 1906 e janeiro de 1907, no Rio de Janeiro, no Teatro Parque Fluminense e Teatro São Pedro de Alcântara. Giovanni Badaracco integrou os elencos de Aida (13 de dezembro), La Gioconda (18 de dezembro), Carmen (27 de dezembro) e Rigoletto (31 de dezembro ou 1º de janeiro). A Companhia Lírica tinha como diretor artístico o tenor Giorgio Quirolli, que esteve em Manaus em 1901 e 1902. A companhia fez outras óperas com outro tenor, Michele Tornesi, que era o empresário do grupo, ou mesmo sem especificar quem foi o intérprete: Tosca, La bohème, Iris, I Pagliacci, Cavalleria rusticana, Il trovatore, Fausto e Manon Lescaut. Badaracco poderia ainda ter cantado em Il trovatore, Cavalleria rusticana ou I Pagliacci, seu repertório habitual.43 Os comentários críticos encontrados no periódico carioca apontam para um cansaço vocal do cantor, sugerindo que poderia também não estar bem de saúde. Provavelmente, o processo de decadência deveu-se aos esforços típicos da época, em que as exigências artísticas e econômicas empurravam o cantor a um limite, o que, no caso de Badaracco, significa que chegou a cantar até mesmo cinco títulos diferentes por semana. Em dezembro de 1908, foi registrada sua participação na temporada no Teatro Coliseu, em Buenos Aires, no elenco de Aida e La forza del destino. Entre março e abril de 1911, figurou no elenco de Norma e Jone, no Teatro Marconi, em Buenos Aires. Nesse mesmo teatro, esteve nos anos de 1917, 1920 e 1921, 42 Folha do Norte, Belém, 23 de set. 1901. 43 Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, dez. 1906 e jan. 1907. A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 253 que são seus últimos registros conhecidos, nas montagens de La traviata, Fra diavolo e Madama Butterfly, já atuando como comprimário. Faleceu em Buenos Aires, em 1940. Quadro 1 – Repertório operístico realizado por Giovanni Badaracco nas turnês dos Estados Unidos (Los Angeles e San Francisco, 1899-1900) e Brasil (Manaus e Belém, 1901) Lambardi Italian Opera Company, Los Angeles e San Francisco, 1899 Companhia Lírica Italiana de José Fernandes de Carvalho, Manaus, 1901 Companhia Lírica Italiana de José Fernandes de Carvalho, Belém, 1901 Carmen La Gioconda Il trovatore Cavalleria rusticana Il trovatore I Pagliacci I Pagliacci Manon Lescaut Ainda Il trovatore Il Guarany Ernani Ruy Blas I Pagliacci Un ballo in maschera Ernani Ainda Il Guarany Il barbiere di Siviglia Manon Lescaut Lucia di Lammermoor La Gioconda I puritani Rigoletto Rigoletto Fontes: Páscoa (2000, 2006) e Los Angeles Heral (1899). Mesmo com a ausência de registros que documentem a sua atividade lírica entre 1902 e 1903, percebe-se que o profícuo período entre 1899 e 1901, referente às temporadas no México, Califórnia e Norte do Brasil, teria sido o auge da carreira de Giovanni Badaracco, pois as críticas e as imagens atestam esse momento. Referências A FEDERAÇÃO. Manaus: [s. n.], 1901. AMAZONAS. Manaus: [s. n.], 1901. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1995. (Obras Escolhidas). CASTELNUOVO, Enrico. Retrato e sociedade na arte italiana. São Paulo. Companhia das Letras, 2006. 254 Iconografia musical na América Latina DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. 9. ed. Campinas: Papirus, 2009. FABRIS, Annateresa. A fotografia oitocentista ou a ilusão da objetividade. Revista de Artes Visuais, Porto Alegre, v. 5, n. 8, p. 7-16, 1993. FOLHA DO NORTE. Belém: [s. n.], 1901. FONTCUBERTA, Joan. O beijo de Judas: fotografia e verdade. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2010. FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991. GAZETA DE NOTICIAS. Rio de Janeiro: [s. n.], dez..1906/jan. 1907. GIACINTO PRANDELLI. Disponível em: http://www.giacintoprandelli.com/index. php/it/multimedia/le-fotografie/gli-spettacoli/. Acesso em: 23 abr. 2018. HUGUES, Edan Milton. Artists in California, 1786-1940. 3rd. ed. Sacramento: Crocker Art Museum, 2002. KAUFMAN, T. Lambardi, Mario. In: OXFORD UNIVERSITY PRESS. Grove Music Online. Oxford: Oxford University Press 2002. http:////www.oxfordmusiconline. com/grovemusic/view/10.1093/gmo/9781561592630.001.0001/omo9781561592630-e-5000004260. Acesso em: 26 jul. 2018. KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. 3. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2014. LE GOFF, Jacques. Reflexões sobre a história. Lisboa: Edições 70, 1986. LOS ANGELES HERALD. Los Angeles: [s. n.], maio/ago. 1899. LYRIC OPERA DE CHICAGO. Richard Tucker: tenor. Chicago, [2018]. Disponível em: www.lyricopera.org/about/legendsoflyric/richardtucker. Acesso em: 15 abr. 2018. MAURIZI, Paola. Ettore Patrizi, Ada negri e la musica. Perúgia: Morlacchi, 2007. PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014. PÁSCOA, Márcio. Cronologia Lírica de Manaus. Manaus: Valer: Governo do Estado do Amazonas, 2000. PÁSCOA, Márcio. Cronologia Lírica de Belém. Belém: Associação de Amigos do Theatro da Paz, 2006. PÁSCOA, Márcio. Ópera em Belém. Manaus: Valer, 2009a. (Série Ópera na Amazônia - 1850-1910). A trajetória do tenor Giovanni Badaracco... 255 PÁSCOA, Márcio. Ópera em Manaus. Manaus: Valer, 2009b. (Série Ópera na Amazônia -1850-1910). SAN FRANCISCO CALL. San Francisco: [s. n.], n. 29, 29 jun. 1900. SAN FRANCISCO CALL. San Francisco: [s. n.], v. 86, n. 20, 17 jun. 1899. SAN FRANCISCO CALL. San Francisco: [s. n.], v. 87, n. 125, 25 mar. 1900. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. STANSKA, Zuzana. Theodore Marceau: The Pioneer of Photographic Studios. Daily Art Magazine, [s. l.] 3 July 2017. Disponível em: https://www. dailyartmagazine.com/theodore-marceau/. Acesso em: 27 jul. 2018. WARD, J. P., MARIEN, Mary Warner; WARD, Gerald W. R. Photography. In: OXFORD UNIVERSITY PRESS. Grove Art Online. Oxford: Oxford University Press, 2003. Disponível em: http:////www.oxfordartonline.com/groveart/view/10.1093/ gao/9781884446054.001.0001/oao-9781884446054-e-7000067117. Acesso em: 13 mar. 2018. 256 Iconografia musical na América Latina O músico vestido de preto Representações e interpretações possíveis na obra de Anton Domenico Gabbiani (1652-1726) sobre os músicos do grand príncipe Ferdinando da Toscana Márcio Páscoa Ao final do século XVII, não eram francamente comuns os lugares onde um músico vivesse exclusivamente da atividade musical performática profissional. Até pouco tempo e por muitos lugares, o músico acumulou funções diferentes da artística quanto ao serviço da senhoria que o empregou e o mais certo é que tenha buscado afazeres variados ou, na melhor das hipóteses e para casos e lugares estritos, acordos diversos para tocar em ocasiões e para comitentes diferentes. Essa exclusividade de função está relacionada à formação de agrupamentos perenes e da exigência de um serviço de música constante, para finalidades religiosas, muitas vezes, mas ainda para a movimentação de festejos profanos e, sobretudo a partir do século XVII, para o teatro musical. Foi justamente ao marcar posição como profissional exclusivamente musical que se verificou um conjunto de usos particularmente próprios que os músicos passaram a praticar. 257 A indumentária utilizada pode marcar tanto a posição social do músico no corpo comunitário mais alargado em que se insere, o que remete à vida citadina, como pode também identificar as corporações aí inseridas, religiosas, por exemplo, mas também civis e militares e, com isso, um distintivo de classe. Nesse sentido, um dos contextos mais interessantes que a iconografia musical proporciona é o que deixou registrado o artista florentino Anton Domenico Gabbiani (1652-1726), a serviço da corte dos Médici, ao ter pintado quadros com músicos que ficaram conhecidos como relacionados ao grand príncipe Ferdinando (1663-1713), dos quais alguns interessam aqui. Ferdinando de Médici (1663-1713) foi comumente chamado grand príncipe por ser o primogênito de Cosimo III (1642-1723), grão-duque da Toscana, e nascido do casamento deste, em 1661, com Marguerite Louise de Orleans (16451721), ela mesma sobrinha de Luís XIII da França e neta de Maria de Médici. O rápido desgaste do casamento dos pais, culminando na volta da mãe para a França em 1675, parece ter ajudado muito a contaminar o relacionamento do príncipe com o pai, de quem vivia apartado e em igual conflito, gerando, assim, simpatia pelo lado materno. Dedicado ao mecenato das artes, já tradicional em sua família, passou a se valer da música mais como identidade pessoal do que prestígio político (ROSSI ROGNONI, 2014, p. 39), haja vista que não apenas contratou músicos, como seus antecessores, mas dominava com destreza alguns instrumentos, especialmente o cravo. Em 1679, o príncipe Ferdinando e seu tio Francesco Maria de Médici (16601711), que mais tarde se tornaria cardeal, deram início às temporadas de ópera na Villa de Pratolino, uma das residências suburbanas da família ducal. Até 1710, houve contínuas apresentações anuais, acontecidas quase invariavelmente no mês de setembro. Todas as óperas tomavam lugar no Grande Salão da residência e só em 1696 passaram a ser acomodadas num pequeno teatro que Ferdinando fez construir no terceiro andar do edifício. Francesco era só três anos mais velho que Ferdinando, já possuía vida de espetáculos e festas em sua vila de Lappeggi e foi, na ausência da mãe do grand príncipe, a figura de ascendência sobre a vida deste – quando as óperas do Pratolino começaram, eles tinham 19 e 16 anos, respectivamente. Valendo-se em parte de músicos empregados pelo pai, Cosimo III, ou a serviço dos tios, Ferdinando foi arrolando uma equipe muito particular, que incluía alguns músicos que não eram pagos pelos caminhos normais do estado toscano. 258 Iconografia musical na América Latina Um dos protegidos de seu pai, que viria a se tornar seu amigo e também protegido, era o pintor Anton Domenico Gabbiani (1652-1726). O pai do pintor era Giovanni Gabbiani, provveditore del tinello do grão-duque Ferdinando II (16101670), e permaneceu até o tempo de seu sucessor Cosimo III. (HUGFORD, 1762, p. 2) A função era uma das provisões do guardaroba, fragmentado no século XVII em muitas repartições de acordo com a natureza dos objetos guardados e dos seus usos – aqui, no caso, uma provedoria das salas de estar/jantar ou copa, ou seja, dos objetos inúmeros que a constituíam. Também o tio do artista estava empregado próximo do grão-duque, sendo ajudante de câmara do príncipe Giovan Carlo di Médici (1611-1663), mais tarde cardeal. (HUGFORD, 1762, p. 2) O irmão mais velho de Anton Domenico gozou de instrução superior, se doutorando em Leis, tornando-se eclesiástico e subindo ao prestigioso posto dos giudici criminali degli otto, que era uma corte superior e tradicional de Florença criada em 1378 e que teve inicialmente um caráter de polícia judiciária, evoluindo para a competência de um juízo técnico, administrativo e penal – decaindo de poder até o fim da era Médici –, em face do juízo de convicção, político e de total alcance, exercido pelo soberano grão-duque. Anton Domenico pintou um retrato deste irmão ainda em condição secular, que esteve em posse de Ignazio Hugford, biógrafo do pintor. (HUGFORD, 1762, p. 3) O talento de Anton Domenico Gabbiani revelado na infância não passou despercebido na escola dos padres jesuítas em que estudou no início da adolescência, onde o mestre Valerio Spada (1613-1688) o demandou no desenho de letras capitulares e de figuração dos livros que ali se copiavam, para daí aconselhar o pai a investir em estudos mais sérios. Foi sob a avaliação do pintor Giusto (Justus) Sustermans (1597-1681), afamado retratista que entrou ao serviço do grão-duque Ferdinando II, que Gabbiani seguiu estudos com Vincenzo Dandini (1609-1675), discípulo de Pietro da Cortona (1596-1669), que o introduziu na estética deste afamado mestre. (HUGFORD, 1762, p. 2) Em 1673, foi mandado por Cosimo III, já grão-duque reinante, para a Accademia Fiorentina, em Roma, sob Ciro Ferri (1634-1689), onde passou três anos estudando e trabalhando. Esteve de volta em Florença, de passagem para Veneza, onde se aperfeiçoaria no ateliê de Sebastiano Bombelli (1635-1719) no período de 1678 e 1679. Restabelecido em Florença em 1680, começou a trabalhar como pintor independente, ao mesmo tempo que se aproximava do herdeiro ducal e “rouba O músico vestido de preto 259 o coração do Grande Príncipe Ferdinando”1 (HUGFORD, 1762, p. 6), sendo, além de admirador, um dos seus mais constantes mecenas, vindo algumas vezes a apreciar o artista trabalhando em seu ateliê por longos minutos. Ferdinando de imediato lhe encomendou muitos retratos para seus apartamentos do Palácio Pitti e das vilas onde costumava estar. (HUGFORD, 1762, p. 6) Foi nesse contexto que foram elaborados os quadros com músicos a serviço de Ferdinando, que podem ser datados do período entre 1684 a 1687, segundo registros da Depositeria, que pagou despesas em nome do pintor (HILL, 1990, p. 561), existindo mesmo registro específico de pagamento feito a Gabbiani em julho de 1685 para vários retratos destinados à Villa de Pratolino (CHIARINI, 1976, p. 333), para onde se destinariam os quadros com os músicos. Destes, o mais enigmático é o item nº 2.802 do inventário nº 1.890. Figura 1 – Trio de músicos do grand príncipe Ferdinando com escravo mouro. Óleo sobre tela, 141 x 208 cm. Galleria Palatina, Palazzo Pitti, Inventário nº 1.890, nº 2.802, atualmente na Galleria dell’Accademia, Museo degli Strumenti Musicali Fonte: foto produzida pelo autor (2018). 1 “ruba il cuore al Grand Príncipe Ferdinando”. 260 Iconografia musical na América Latina A obra é francamente idealizada sob as influências mais candentes na formação de Gabbiani. Está presente o intenso e sólido colorido de primeiro plano sobre fundo escurecido e monocromático, com saída lateral para um horizonte semicrepuscular, que se observa em Carlo Maratta (1625-1713), outro pintor cortonesco com quem Gabbiani teve contato em Roma. Também se vê claramente a busca por maior expressão dos retratados a partir do jogo da cor, como em Bombelli, que reacendeu para o florentino a tradição veneziana, uma vez que já tomara conhecimento da impressionante coleção de pintura veneziana do cardeal Leopoldo de Médici (1617-1675), irmão de Ferdinando II. Afinal, tinham sido essas as intenções de Gabbiani quando se dirigiu à república lagunar: “tomar posse do colorido veneziano das excelentes obras dos antigos mestres, ou seja, Ticiano, Paolo [Veronese] e Tintoretto, que foram as maiores luminárias daquela grande escola, copiando um número escolhido, do qual ele sempre mantinha ornando o seu quarto na própria casa onde ele pintava”.2 (HUGFORD, 1762, p. 6) Entretanto, há muito mais na obra de Gabbiani aqui em causa. O erudito historiador de arte e carmelita Pellegrino Orlandi (1660-1727) já havia destacado em seu Abecedario pittorico que Gabbiani “obteve sucesso com bom colorido, com melhores invenções e com o máximo de design em contos, países, arquitetura e em animais”.3 (ORLANDI, 1719, p. 78) A invenção a que se refere Orlandi é a inventio retórica, a argumentação do discurso da obra. A base desse argumento, por assim dizer, é uma espécie de sacra conversazione, termo que se aplicou para um tipo de pintura religiosa em que a Virgem e o Menino Jesus aparecem flanqueados por figuras de santos, coexistindo todos em iguais dimensões físicas, num mesmo espaço e luz, que muitas vezes é diferente do plano restante da obra, para ressaltar a conexão espiritual dos personagens, a partilha de uma emoção comum e, sobretudo, flagrar um processo dialético em construção. (GAUK-ROGER, 2003) 2 “impossessarsi del colorito veneziano dall’opere eccelentissime di quelli antiche Maestri, cioé, Tiziano, Paolo [Veronese] e Tintoretto, chi sono stati i maggiori luminari di quella gran scuola, copiando uno scelto numero, di cui principalmente tenne sempre adorna la sua stanza nella própria casa ove dipingeva”. 3 “riusci con buono colorito, con migliori invenzioni, e con massimo disegno in istorie, in paesi, in architettura, ed in animali”. O músico vestido de preto 261 Nessa elaboração de Gabbiani, os personagens da conversa que os conecta em torno de um tema próprio são três músicos – cravista, violinista e cantor –, flagrados em meio a ensaios para a interpretação de alguma obra musical de cunho operístico. Ao menos dois deles são hipoteticamente reconhecíveis. O cantor deve se tratar de Francesco de Castris (cerca de 1650-1724), também conhecido como Cecchino – Checchino, Checco – de Massimi, por causa de um mais antigo mecenas seu, o cardeal Camillo Massimi (1620-1677), a quem ele serviu até a morte deste. Por volta de 1679, Checco passou a Ferrara sob proteção do marquês Ippolito Bentivoglio d’Aragone (1611-1685), ocasião em que se apresentou em óperas produzidas em Bolonha e Veneza. Nesse momento, desenvolveu proximidade pessoal e profissional com o compositor Giovanni Legrenzi (1626-1690), para quem cantou muitas óperas. (VITALI, 2002a) Apareceu pela primeira em Florença para cantar na produção local de Caligula delirante, de Giovanni Maria Pagliardi (1637-1702), com um elevado cachê de 142,6 scudi – fora despesas de traslado –, tanto quanto ganharia o autor da ópera. (KIRKENDALE, 1993, p. 438) Entretanto, só em fins de 1686 seu nome apareceu arrolado nas despesas de Estado, quando deve ter passado definitivamente a integrar os serviços do grão-ducado (KIRKENDALE, 1993, p. 437), uma vez que estava morto o marquês, seu mecenas. A atribuição de identidade desse cantor no quadro de Gabbiani é feita por Hill (1990, p. 546), argumentando que os outros três cantores castrados em atividade na corte já estão retratados num segundo quadro conhecido pelo título de Três músicos do grand príncipe Ferdinando. Os nomes dos cantores neste outro quadro (Figura 2) estão visíveis nas partituras que trazem diante de si. Da esquerda para direita, veem-se Vincenzo Olivicciani (1646/1647-1726), Antonio Rivani (1629-1686) e Giulio Maria Cavalletti (1668-1755). 262 Iconografia musical na América Latina Figura 2 – Inventário nº 1890, nº 2.807. Trio de músicos do grand príncipe Ferdinando. Retrato de Vincenzo Olivicciani, Antonio Rivani e Giulio Cavalletti. Óleo sobre tela, 144 x 153 cm. Galleria Palatina, Palazzo Pitti, atualmente na Galleria dell’Accademia, Museo degli Strumenti Musicali Fonte: foto produzida pelo autor (2018). Figura 3 – Inventário nº 1.890, nº 2.807. Trio de músicos do grand príncipe Ferdinando. Retrato de Vincenzo Olivicciani, Antonio Rivani e Giulio Cavalletti. Detalhe das partituras com o nome de Vincenzo Olivicciani e Antonio Rivani Fonte: foto produzida pelo autor (2018). O músico vestido de preto 263 A pintura em questão pode ser relacionada ao mesmo contrato com Gabbiani de 1685 e não pode ser muito posterior a 1687, vez que Rivani faleceu em Florença em 1686, enquanto Cavalletti se transferiu para Bolonha em 1687-1688. Figura 4 – Inventário nº 1.890, nº 2.807. Trio de músicos do grand príncipe Ferdinando. Retrato de Vincenzo Olivicciani, Antonio Rivani e Giulio Cavalletti. Detalhe da partitura com o nome de Giulio Maria Cavalletti Fonte: foto produzida pelo autor (2018). Ao lado de Castris (Figura 1), está o violinista Martino Bitti (1655/16561723), também trazido à corte toscana naquele ano de 1685 (KIRKENDALE, 1993, p. 432) e igualmente registrado pela primeira vez na produção de Caligula delirante, de Pagliardi, com o pagamento de 25 scudi. A hipótese de ser Bitti se deve à idade do retratado e à comparação com os demais instrumentistas de arco constantes nas demais pinturas a óleo desta série produzida por Gabbiani (Figura 5), em face ainda dos registros de pagamento que não permitem supor outro violinista para além desses. 264 Iconografia musical na América Latina Figura 5 – Inventário nº 1.890, nº 2.805. Músicos do grand príncipe Ferdinando. Óleo sobre tela, 140 x 233 cm. Galleria Palatina, Palazzo Pitti, atualmente na Galleria dell’Accademia, Museo degli Strumenti Musicali. Identificação provável, da esquerda para direita: Pietro Salvetti, Federigo Meccoli, Giovanni Battista Gigli, G. Asolani, músico não identificado (provavelmente, da família Veracini ou Asolani), Antonio Veracini e Francesco Veracini Fonte: foto produzida pelo autor, 2018. Parece ainda menos provável saber quem seria o músico sentado ao cravo, diante da documentação existente. A princípio, seria lícito pensar que se tratasse do próprio compositor Giovanni Maria Pagliardi, uma vez que Bitti e Castris teriam se integrado ao grupo de Ferdinando por causa da representação de Caligula delirante; especialmente Bitti, genovês como Pagliardi, foi quase certamente uma indicação do compositor ao grand príncipe. (KIRKENDALE, 1993, p. 432) Pagliardi poderia, então, estar aí retratado por vários motivos. Entre eles, está o fato de ter sido o professor de cravo e contraponto trazido por Cosimo III para a educação musical de Ferdinando e o príncipe sempre ter demonstrado deferência com o mestre, fosse na escolha de suas obras ou nos presentes que lhe enviava. (KIRKENDALE, 1993, p. 418) Mestre de capela dal Gesú de Gênova, Pagliardi deve ter entrado ao serviço dos Médici entre 1668 e 1670, pois, já em 1672, no libreto da supracitada ópera, que foi seu trabalho de estreia nesse campo, era mencionado como “maestro di capella del sereniss. Gran Duca di Toscana”. (KIRKENDALE, 1993, p. 418) O músico vestido de preto 265 Entretanto, ao menos duas constatações levantam dúvida sobre tal representação pictórica. A primeira é o retrato do músico feito a pastel, de cerca de 1690, por Domenico Tempesti (1652-1718) e hoje conservado no citado inventário nº 1.890, sob a cota nº 2.537 – onde também estão esses quadros de Gabbiani –, que mostram uma pessoa totalmente diferente do cravista ao lado de Bitti e Castris (Figura 1). Dela se percebe que Pagliardi não só era, como parecia muito mais velho que Bitti e Castris, conservando a imagem e vestes de religioso, como Olivicciani (Figura 2). Por fim, uma sugestão do próprio quadro de Gabbiani: a partitura ao cravo não é obra de Pagliardi e, portanto, não poderia se relacionar ao músico à sua frente, como se fazia comumente com a representação de compositores. Figura 6 – Trio de músicos do grand príncipe Ferdinando com escravo mouro. Inventário nº 1.890, nº 2.802. Detalhe da partitura: incipit do dueto É destino ch’io siegua infedele, de Bernardo Pasquini Fonte: foto produzida pelo autor (2018). Identificada como o dueto E destino ch’io siegua infedele (HILL, 1990, p. 546), de Bernardo Pasquini (1637-1710), sobrevive em duas cópias manuscritas bastante tardias, na British Library, sob as cotas de localização Gb-Lbl 31.492, datável de 1786, e Gb-Lbl 5.056, datável de cerca de 1760. Ambas aparecem dentro de cadernos de coletâneas de duetos de autores italianos do mesmo período, a primeira com 20 árias e a segunda com 42 itens, sendo que, em ambos os casos, é a única obra de Pasquini nas compilações. Isso aponta para uma relativa fama da peça, a despeito de sua composição aparentemente avulsa e fora de inserção em qualquer ópera do seu autor. As duas coletâneas são manuscritos ingleses, 266 Iconografia musical na América Latina um deles inclusive esteve na posse do presidente da Academy of Ancient Music londrina de fins de 700, Peter Stapel, mas copiada pelo organista Edmund Olive, segundo se lê na ficha de catalogação dos espécimes. Seriam, portanto, peças de interesse já histórico àquela altura, talvez compiladas de fontes italianas anteriores, quase certamente advindas de cantores ou dos autores, quando da forte presença italiana em Londres em começos do século XVIII. O próprio Handel estaria a serviço de Ferdinando em Florença nos primeiros anos do século XVIII e depois seguiria para a Inglaterra. Deve-se também logo afastar aqui a hipótese de o retratado ao cravo ser Pasquini. Sabe-se que, aos 50 anos, não seria essa sua aparência por causa de uma pintura feita por Andrea Pozzo (1642-1709) em cerca de 1690, que hoje integra o mesmo inventário nº 1.890 do Polo Museal Fiorentino (nº 8.483), em que se encontra a obra de Gabbiani aqui em discussão. O quadro, entretanto, deu entrada nesse acervo somente em 1924, adquirido à família Ricordati, de Bugiano, muito próxima do compositor e que conservava a obra de longa data. (PANCHERI, 2010, p. 53-54) Entretanto, Pagliardi pode estar mencionado de outra maneira na obra de Gabbiani (Figura 1) e a partitura de Pasquini aí representada pode até mesmo reforçar a ideia. O quadro conta com alguns elementos simbólicos da presença de Ferdinando, como a esfinge que se vê ao fundo à esquerda, objeto de arte que remete à magnífica coleção que o grand príncipe cultivou até o fim de sua vida. Também há uma efígie em pedra no plinto pintado na parte de baixo, à direita do quadro. Ela não parece retratar nenhum dos Médici em particular e também não encontra semelhanças inquestionáveis com nenhum dos retratados por Gabbiani, pertencentes ao círculo de Ferdinando. A imagem do cantor Olivicciani é a referência mais próxima (Figura 2). Pode, entretanto, ser a representação de um dos grandes do Império Romano – Júlio Cesar e Galba são as mais próximas referências iconográficas dessa imagem, mas sem semelhança conclusiva –, uma vez que a Vila de Pratolino estava profusamente decorada com bustos e efígies de imperadores romanos, como alegoria de poder e tradição que os Médici cultivavam. Igualmente enigmática é a figura do schiavo moro, alheio à conversação musical. Ele aparece num outro quadro de Gabbiani com serviçais da corte e é, portanto, um personagem histórico também. O músico vestido de preto 267 Figura 7 – Anton Domenico Gabbiani. Ritrato di quatro servitori dela corte medicea (cerca de 1684-1687). Óleo sobre tela. 215 x 140 cm. Galleria Palatina ed Appartamenti Reali. Inventário nº 1.890, nº 3.827 Fonte: foto produzida pelo autor (2013). Nessa obra datável do mesmo período das que retratam os músicos, o escravo mouro veste-se – como na Figura 1 – de um rico traje de seda em tons de marfim com brocados, tafetá adamascado, de cara fatura, em nítido contraste de tratamento com os demais; sobretudo os anões, considerados às vezes por 268 Iconografia musical na América Latina algum tipo de habilidade, mas quase sempre perto da presuntiva animalitas, haja vista que compartilhavam da invisibilidade social dos animais de estimação e, portanto, podiam estar presentes até nos espaços e eventos secretos dos nobres e consanguíneos. (FERRARO, 2017, p. 203-214) O escravo mouro também está muito melhor vestido que o presumível bufão ao seu lado, certamente porque sua origem ou o que ela representa compunha uma representação maior, desejável pela corte dos Médici. Os pajens de qualquer origem precisavam estar vestidos de maneira condizente com a posição social de sua ascendência, bem como o lugar que ocupavam na corte – ou que se pretendia que ocupassem –, sendo respeitáveis por sua profissão. Era parte da doutrina da honra desde o cinquecento, agora evoluída para um disciplinamento comportamental e espiritual da sociedade toscana e outras cortes de seu relacionamento, que se estendeu também a uma disciplina econômica, criando a noção de que tudo e todos sob a gestão da casa granducal, célula fundamental e exemplar das demais famílias de qualquer dignidade, estavam sob o cuidado, a proteção e o regramento da senhoria. (CONT, 2012, p. 142-143) Deve-se ressalvar que a presença de negros na corte medicea não era uma novidade, assim como a escravidão não foi prerrogativa de raça – a região do Mediterrâneo já tinha seu comércio de escravos estabelecido antes das navegações. Cosimo I Médici (1389-1464) teve um filho com sua escrava Maddalena, destinando-o à Igreja, enquanto Alessandro di Médici (1510-1537), o primeiro duque de Florença e o primeiro da família a governar por hereditariedade, tinha a alcunha pública de Il Moro, por causa de seus traços e cor da pele, uma vez que era filho bastardo de Lorenzo II (1492-1519) com a serva negra Simonetta da Collevecchio. (FLETCHER, 2016) Assim, para além de histórica, o escravo mouro pintado por Gabbiani na conversa musical (Figura 1) parece ter uma função alegórica. Ele é o único personagem que não olha o expectador e contempla ao alto à sua direita, apoiado no plinto sob a efígie à romana. Segura cordões azuis amarrados ao pé de um papagaio. Seu plano posterior também é diferente do que está pintado para os músicos. Estes residem dentro do espaço arquitetônico pintado – o espaço da cultura, o espaço de Ferdinando –, enquanto o jovem tem por trás de si o horizonte aberto, composto pelo arvoredo e o céu – símbolos da natureza e de pretensa liberdade. O papagaio simboliza bem mais que o exotismo e a consequente ideia de que o Ocidente civilizado compreendeu e dominou espaços e O músico vestido de preto 269 culturas fora dele. Ele é um símbolo de alteridade e conflitos de valores. Desde a Antiguidade Clássica, papagaios eram entendidos de maneira antropomorfizada, quer para Aristóteles ou Plínio, o Velho, e as suas muitas habilidades, inclusive a da imitação da fala humana, eram entendidas como um tipo de baixa inteligência – acima de outros animais – e comparáveis a pessoas subordinadas ou estrangeiros. (BOEHRER, 2004) Ficava implícito nessa elaboração conceitual que a natureza se subordinava à cultura, pois os papagaios podiam aprender a falar, pegar coisas, repetir gestos e reagir a certos movimentos e expressões estimulados pelo ser humano. Essas habilidades eram entendidas não como meramente imitativas, mas cognitivas, conforme a ciência em tempos modernos veio a comprovar. (PEPPERBERG, 2004, 2016) A apropriação dos papagaios na arte também vem desde a Idade Antiga e era sempre um símbolo de virtude ou habilidade do ser humano representado ao seu lado ou do meio em que se inseria. Na Idade Moderna, foi reforçada essa noção de algum tipo de alter ego do ser humano com quem está relacionado ou a projeção de sua condição. Assim, as várias representações de papagaios presos em gaiolas ou ao lado delas estavam conectadas à condição de seus donos, também reclusos devido a alguma ordem social opressora, por razões de gênero, de raça, de origem etc. (BOEHRER, 2004) As referências pictóricas mais próximas de Gabbiani para a iconografia do papagaio estão na profusão de representação da ave na pintura dos Países Baixos durante o século XVII e sua compreensão muda conforme o tema. Podem estar associados a outros animais e representar a natureza luxuriante e a exuberância da criação divina; podem estar pintados junto a homens, mulheres e grupos familiares, significando a fidelidade ou a confiança – o papagaio como símbolo do confidente é comum também fora desse ambiente –; podem ainda estar associados à Virgem Maria, e as faculdades cognitivas e o exótico se juntam aí como maneira de explicar os muitos milagres que Deus opera – a Virgem que teve um filho e continuou virgem, o pássaro que fala etc. –; ou ainda o papagaio solto da gaiola, que pode significar a liberdade sexual ou a intenção amorosa; sem falar na sua associação com instrumentos musicais e, portanto, significar ele mesmo mais um recurso sonoro, o canto ou a música em si. (GONZALEZ, 2017; VAN DE VELDE, 2014) O papagaio na pintura de Gabbiani representa a situação do jovem que o traz amarrado aos cordões azuis, ou seja, ele mesmo sob controle de um ente 270 Iconografia musical na América Latina superior em uma proposta metafísica. Resta saber por que essa representação acompanha a conversa musical mais ao centro do quadro. A busca por essa resposta não pode deixar de lado as razões pelas quais os retratados estão ali a ensaiar ou por que foram reunidos sob vontade de Ferdinando. A ópera Caligula delirante fala de servidão, submissão, além de loucura e amor. O libreto de Domenico Gisberti (1635-1677) é pouco fiel aos fatos históricos que envolveram os personagens, embora ele afirme, no prefácio de seu libreto, que se baseou em Suetônio (69-c. 141) e Juvenal (cerca de 55/60-127), que de sua parte já parecem ter distorcido a imagem do Calígula histórico como louco e devasso. O seu argumento é a ascensão e a loucura de Calígula, que chega a se apaixonar pela Lua, diz falar com Júpiter diretamente e pretende banir a esposa Cesónia. Juntam-se aí alguns episódios embaralhados, que Gisberti chama de os “Amores de Tigrane”, rei da Mauritânia que, feito escravo por Artabano, rei dos partas, esconde sua condição em hábito e aspecto de mouro e vive em Roma fingindo-se pintor. O Tigrane histórico, ao tempo de Calígula, já era o sexto deste nome e não foi rei da Mauritânia, que era a terra que os romanos chamavam aos atuais espaços da Argélia, Marrocos e redondezas. Tigrane VI (antes de 25 d.C. – depois de 68 d.C.) cresceu em Roma – chamava-se Gaius Julius Tigranes – e sendo descendente do trono da Armênia, reino cliente de Roma, veio a ser coroado por Nero, após os romanos derrotarem as forças resistentes, em 58 d.C. Tigrane se bateu contra os partas e enfrentou muitos conflitos até renunciar a coroa em 63 d.C., sendo que nada dele se soube depois disso. Nenhum dos quatro monarcas partas com o nome de Artabano viveu nessa época. No libreto de Gisberti, Tigrane reencontra sua mulher Teosena em Roma, agora desejada por Artabano para esposa e igualmente cortejada por Calígula, a quem ela parece corresponder. As idas e vindas amorosas do enredo que envolvem todos eles mostram a constância de Tigrane – de origem e essência nobres, embora sob o artifício de outra identidade e aparência –, os excessos, inclusive amorosos, de Calígula – representação dos excessos do poder –, o voluntarioso Artabano e a infidelidade relativa de Teosena, vítima das circunstâncias e, portanto, moralmente flexível por conveniência, como talvez devessem ser no século XVII os cortesãos com responsabilidades ambivalentes às suas vontades e seus senhores entendidos como voluntariosos, devassos e excêntricos. O músico vestido de preto 271 A alegoria do escravo mouro como o Tigrane de Gisberti/Pagliardi relaciona-se à narrativa de cunho amoroso e, no contexto esboçado, há pela menos um paralelo de realidade que se relaciona ao quadro. Francesco de Castris foi, muito provavelmente, amante do grand príncipe Ferdinando, conforme relatos de diversas fontes. (KIRKENDALE, 1993, p. 440-446) Sua ascendência foi tal que se dizia que o herdeiro da Toscana nada resolvia sem participar a ele, condição que sobreviveu ao casamento de Ferdinando com Violante da Baviera, em 1689. (KIRKENDALE, 1993, p. 446) Essa situação durou até Ferdinando trocar Castris – do mesmo modo que já havia trocado o castrato Petrillo, amante anterior – pela soprano Vittoria Tarquini, apelidada de La Bambagia ou La Bambace (a bomba!), que também cantou sob o mecenato dos Médici. Formalmente contratada em 1699 a serviço de Gian Gastone (KIRKENDALE, 1993, p. 652), o futuro e último grão-duque da Toscana – filho mais novo de Cosimo III –, Ferdinando deve tê-la conhecido muito antes disso. Ainda na sua primeira digressão a Veneza, ele havia sido convidado pelo abade Grimani para ir ao Teatro San Giovanni Grisostomo ouvir uma brava cantatrice na ópera Orazio –com texto e música atribuídos respectivamente a Grimani e a Tosi – em 24 de janeiro de 1688, e sua satisfação foi tal que presenteou a soprano com um diamante de 100 scudi. (SELFRIDGE-FIELD, 2007, p. 184-185) Tarquini, que estreara em Veneza nessa ópera, retornou à cidade aparentemente para só mais uma ocasião, para cantar em La forza della virtú, de Carlo Pollarolo (1653-1723), em fins de 1692 e início de 1693, enquanto Ferdinando também retornaria apenas mais uma vez à mesma cidade, mas em 1696. (SELFRIDGE-FIELD, 2007, p. 205) Assim, se tudo decorreu de modo avassalador como aparentemente sucedia com Ferdinando, o envolvimento dele com Tarquini coincide com uma das datas possíveis (cerca de 1684-1687) de contrato, acabamento e entrega do quadro em que Castris figura. Deve-se ainda ressaltar que Gabbiani deve ter testemunhado o início do caso do seu amigo e mecenas com a soprano, pois acompanhou o príncipe a Veneza nessa primeira viagem. (HUGFORD, 1762, p. 8) Isso explicaria Gabbiani ter pintado expressão preocupada e tristonha no cantor, diferente das descrições de época, que mencionam as qualidades físicas e intelectuais de Castris. (KIRKENDALE, 1993, p. 439-444) Castris foi o maior salário de todos os músicos na corte dos Médici em sua história de mecenato (KIRKENDALE, 1993, p. 437) e suas habilidades diplomáticas puseram-no na condição de intermediário de interesses da corte 272 Iconografia musical na América Latina com outros artistas, empresários e autoridades, também entre artistas e contratantes, assim como era ele quem intermediava assuntos de Ferdinando a Cosimo III. (KIRKENDALE, 1993, p. 437-446) Castris tentou difamar Tarquini, que, não sendo menos talentosa e precedida de grandes atuações em teatros dos maiores centros musicais italianos da época, tampouco era menos inteligente. (KIRKENDALE, 1993, p. 438) Cosimo III aproveitou a oportunidade para afastar ambos de Ferdinando, impondo a Castris um serviço diplomático em Roma, mediante uma boa pensão e o abrigo do Palácio Médici naquela capital. (KIRKENDALE, 1993, p. 437-446) Pelo outro lado, a carreira de Tarquini e o assédio de outros pretendentes operaram a favor dos planos do grão-duque. O texto da ária de Pasquini – É destin ch’io segua infedel –, então, parece bastante adaptável ao caso real entre Castris e Ferdinando, assim como pode perfeitamente ter servido de real enxerto a Caligula delirante. Protótipo desse libreto, ou versão prévia, fora usado pela primeira vez na produção de uma peça intitulada La pazzia in trono, ovvero Caligola delirante (1660), com apenas o prólogo e algumas árias postos em música por Francesco Cavalli (1602-1676), resultando em insucesso. (SELFRIDGE-FIELD, 2007, p. 105) Pagliardi o aproveitou e sua ópera estreou-se em 26 de dezembro de 1671 no Teatro de SS Giovanni e Paolo, em Veneza. A publicação do libreto em 1672 – provável erro tipográfico – já mostrava mudanças de texto, e a ópera foi retomada na temporada seguinte, em fins de 1672, mediante plateia recheada de estrangeiros, nobres de Milão e Gênova e até mesmo o príncipe de Mônaco. (SELFRIDGE-FIELD, 2007, p. 105-106) Só em Veneza foi retomada em 13 temporadas até 1696, a maioria delas durante a década de 1680, constituindo-se num fenômeno para os padrões da época. (SELFRIDGE-FIELD, 2007, p. 106) Apenas no ano de 1675 chegou a ser montada em cinco cidades diferentes. (KIRKENDALE, 1993, p. 419) Montagens em Nápoles, no Teatro San Bartolomeo em 1673; Roma, no Teatro Tordinona em 1674, assistida aqui pela rainha Cristina da Suécia; Bologna, no Teatro Formagliari em 1674; Ferrara, em Santo Stefano em 1675; Milão, no Teatro Regio em 1675; Pesaro, no Teatro del Sole em 1675; Vicenza, no Teatro di Piazza em 1675; Palermo, no Teatro della Cittá em 1678; Verona, em Temperati em 1680; Florença, em Pratolino em 1685; Gênova, Teatro Falcone em 1688; Crema, em 1689; e ao menos duas produções de Veneza (1680) atestam, pelos libretos publicados e a sobrevivência de alguns manuscritos musicais, muitas mudanças em que material textual e musical foi retirado e acrescido, inclusive personagens, O músico vestido de preto 273 especialmente bufos. (KIRKENDALE, 1993, p. 422-423) Não só se percebe nisso a prática do pastiche disseminada em larga escala no ambiente operístico, mas como nessa obra de Pagliardi ela foi muito útil para a sobrevivência da ópera, o que torna absolutamente plausível que o dueto de Pasquini possa ter sido inserido na montagem de Florença ou em outras. O exame do libreto da ópera para a produção de 1680 no Teatro di SS Giovanni e Paolo, conservado em Milão (MUS0025046),4 em comparação à grade orquestral conservada na Biblioteca Marciana de Veneza (ARM0007282), possivelmente usada numa das representações da cidade, mostra muitas diferenças. Mas em ambos há mais de um ponto em que caberia o dueto de Pasquini com o mencionado texto, pois sobretudo passagens a solo foram suprimidas e duetos foram inseridos no lugar. Mas continua anônimo o acompanhante do dueto ao lado de Bitti e Castris. O cravista Federigo Meccoli (1635-1710), contratado como tal durante o tempo de Cosimo III, já parece estar devidamente retratado (Figura 5), sobretudo na pintura em que acompanha um quinteto de cordas, e tem a seu lado no baixo contínuo o alaudista e teorbista Giovanni Battista Gigli (?-1703). A função de Meccoli pode ser entendida como acompanhante do grupo de músicos que fazia as récitas operísticas do Pratolino, cuja produção entre instrumentistas e cantores não ultrapassava 15 ou 17 pessoas, conforme listas de pagamento e libretos. (KIRKENDALE, 1993) Assim, como nas óperas havia sempre em torno de sete a dez cantores – a depender da presença de personagens bufos –, a orquestra podia variar entre os sete retratados e um número que não chegaria ao dobro disso. Entretanto, assim como os cantores poderiam ser contratados avulsos, ou oriundos dos serviços particulares de outros membros da Casa Médici, ou ainda requisitados dos teatros, igrejas e congregações de Florença e cercanias, os instrumentistas também poderiam advir de semelhante origem. As melhores chances de resposta para identificação estão, entretanto, nos trajes e restantes cuidados com que Gabbiani os representou. Os músicos da orquestra (Figura 5) possuem roupas coloridas, de cor lisa, exceto Gigli, que usa um casaco estampado de grandes motivos florais; Meccoli, que está com um casaco preto; e o violoncelista Pietro Salvetti (1636-1697), que usa um casaco acinzentado escuro ou preto. Ele se encontra no primeiro plano de luz que Gabbiani elaborou vindo da esquerda para a direita. Apenas Salvetti 4 Códigos de localização dos libretos na Biblioteca Nazionale Braidense na Itália. 274 Iconografia musical na América Latina e os violinistas usam uma gravata borboleta, fechando o jabot e escondendo as voltas que normalmente a tradicional cravat dava no pescoço do homem, como se vê nos demais personagens. Os violinistas devem ser Antonio (em pé) e Francesco Veracini. (HILL, 1990, p. 545) Eles estiveram envolvidos nas produções operísticas do Pratolino desde 1677 até a chegada de Bitti, que se tornaria o preferido de Ferdinando. (HILL, 1990, p. 546) O quadro, então, pode ser o mais antigo da série, feito ainda em 1684-1685, ocasião em que Francesco Veracini (1638-1720) e seu filho Antonio Veracini (1659-1733) teriam por volta de 47 e 26 anos respectivamente. Enquanto o pai adquiria cidadania florentina em 1685 – à altura da chegada de Bitti –, o mais novo gozava de algum apoio e encorajamento de Ferdinando e sua avó, a grã-duquesa Vittoria della Rovere (1622-1694), que ficara nas responsabilidades maternas do grand príncipe quando a mãe deste voltou para a França. Antonio Veracini foi colecionador e provavelmente negociante de instrumentos musicais, não somente violinos, atividades que ele pode ter continuado a partir de seu pai, cujo testamento já registrava muitos instrumentos e quadros. (HILL, 1990, p. 546) Este foi músico regular na catedral e nas apresentações semanais de oratórios sob o estipêndio da Congregação de San Filippo Neri. Sua aposentadoria, em 1708, deve ter repassado as posições a Antônio, que já era maestro di capella dos teatinos de San Michele, onde ficou por 30 anos. Antonio Veracini pode ter alcançado posição mais privilegiada que o pai, uma vez que, como violinista e compositor, providenciou e tocou música para apresentação de oratórios, sob contrato regular ou ocasional, com metade das confraternidades religiosas laicas de Florença, atividade de grande visibilidade e prestígio. (HILL, 1990, p. 554) Aparentemente mais discretos ao lado deles no quadro de Gabbiani, os violistas devem ser membros da família Asolani, pois quatro deles estiveram a serviço dos Médici, sendo que, destes, à época do quadro, somente Giovanni Francesco estava em atividade. (KIRKENDALE, 1993, p. 394, 399-400) Seus encômios não passavam de oito scudi, mesmo acumulando as funções de um irmão seu falecido – os 2/3 do que Bitti ganhou em seu contrato regular, de 12 scudi – e ainda que tivessem os Asolani servido aos balli ou concerto dei franzesi ou franzosini, como se chamava esse grupo. (KIRKENDALE, 1993, p. 394) Não se descarta ainda que um dos violistas (sentado) pudesse ser mais um membro da família Veracini, em vista de alguma similaridade de traço – ele aparece O músico vestido de preto 275 também em outro quadro do grupo instrumental em que está presente o príncipe Ferdinando. A aparente junção de dois ou três gostos de vestir, que se observa nos músicos da orquestra de Ferdinando, pode se referir a costumes e extratos sociais da sociedade florentina do momento. Extratos altos e médios de Florença passaram a dar muito apreço à moda desde o fim da Idade Média. Sendo a indústria têxtil um dos principais recursos econômicos da Toscana, tecidos foram desenvolvidos ou obtidos nas trocas comerciais a tal ponto que a exuberância das vestes chegou a provocar a edição da Prammatica sopra il vestire, um conjunto de sete fascículos contendo normatização com força de lei concernente ao vestir, editada entre 1384 e 1467, cuja intenção era censurar o luxo das roupas, considerado exibicionista e não decoroso com a vida pública. Destinada diretamente às mulheres, uma vez que os homens se impunham o uso do lucco, uma toga solta de cor escura, normalmente preta, a Prammatica refletia na verdade um tipo de ética de orientação religiosa, emanada de códigos de conduta seguidos por irmandades religiosas e congregações – às vezes laicas – que consideravam o luxo um pecado, concepção por demais disseminada no mundo católico durante a Idade Moderna, embora nem sempre seguida. A própria pintura do trecento em diante atesta que tais normas de decoro, mesmo que associadas às narrativas de tragédias pessoais e comunitárias que apareciam com o tempo para amedrontar usuários, foram deixadas de lado por grande parte da sociedade, e não só mulheres. Cosimo I (1519-1574), por exemplo, gostava de cores vivas e mesmo do amarelo, cor associada em outros lugares da Itália a grupos marginalizados, como judeus ou prostitutas. (CURRIE, 2016, p. 93) Assim, o desejo pela indumentária se deu a tal ponto que o ato de ir às compras para obter adereços, tecidos e peças de roupas prontas se tornou realidade relativamente comum em começos do século XVII na sociedade florentina. (CURRIE, 2016 p. 59) O mais comum, entretanto, seria o comprador adquirir o tecido e os acessórios, contratar um artesão – alfaiate, costureiro etc. – e supervisionar a confecção do traje. Mesmo que as mulheres em Florença tenham sido responsáveis por certas despesas com roupas suas ou de seus filhos e marido, conforme atestam recibos e fontes similares (CURRIE, 2016, p. 60), a tarefa de percorrer lojas para a grande maioria dos florentinos era, por prática social, uma tarefa mais masculina; aparentemente, pessoas de ambos os sexos tinham desenvolvido em cidades comerciais, como Florença, 276 Iconografia musical na América Latina uma noção perspicaz de negócios e sabiam distinguir bons produtos e sua relação com bons preços, a ponto de ser natural que muitos homens cuidassem da compra do enxoval – inclusive roupas intimas – de irmãs e filhas. (CURRIE, 2016, p. 60) Florentinos abastados podiam comprar seda, lã, linho, couro e tecidos adamascados – tafetá e cetim, inclusive – com facilidade durante o seicento e tinham grande número de fornecedores na cidade e em muitos outros lugares. (CURRIE, 2016, p. 66) A preferência masculina entre os séculos XVI e XVII era por tecidos leves – raramente aparecia o veludo –, seda lisa, sobretudo, como parecem estar usando os Veracini, ou com motivos pequenos de estampa, costurados ou bordados, ficando os motivos cada vez maiores, como o casaco de Gigli, perto do fim do século e numa perspectiva de novidades de fabricação e tendências de consumo. O grande consumo por materiais de dentro e de fora de Florença já indicava consumismo de larga escala, mas uma das mais eloquentes evidências foi a avassaladora adoção de modelos culturais vindos da França na segunda metade do século XVII (CONT, 2012, p. 142), impulsionado talvez pelo casamento de Cosimo III, a consequente proximidade política e parental com Paris – outros Médici se relacionaram à corte francesa –, ou ainda a projeção que Luís XIV alcançava para além da França, sem falar na relação sentimental do príncipe Ferdinando. O gosto francês repercutiu, então, na sociedade florentina em muitos aspectos, inclusive na moda, que já dava sinais de influência contínua em inícios do século XVII. (CURRIE, 2016, p. 114) Tecidos e roupas mais elaborados, combinações de laços, gravatas e jabots, como os Veracini e Salvetti (Figura 5), mas também Castris, Bitti e o não identificado cravista – usam o mesmo arranjo de gravata e jabot –, foram evidências do auge de tais influências. Sobretudo os trajes de Castris e o cravista, assim como Cavalletti e Rivani (Figura 3) adotam ao exagero a moda das mangas de casaco e camisa: a camisa branca interna começou a aparecer décadas antes, com os punhos bufantes, mas, em meados de 1680, a manga do casaco estava exuberantemente virada para fora, algo que já se usava de modo mais discreto anteriormente, aumentou de tamanho e passou a ser tão grande que era, na verdade, um novo acessório do casaco, sendo abotoada a este e em tecido diferente, por vezes de cor diferente e em contraste de padronagem. O mais desconcertante é que, embora se perceba o cuidado em muitos casos como esses abordados aqui, do retratado em suas escolhas de traje com O músico vestido de preto 277 que seria imortalizado em pintura, muito pouco se sabe documentalmente a respeito desse processo de escolha e sobre a inclusão de particulares tipos de roupas. (CURRIE, 2016, p. 94; RIBEIRO, 1995, p. 7) Algumas escolhas podem ser também do pintor. Nos dois quadros com trios de músicos, há sempre a presença curiosa de um personagem de preto. No caso de Olivicciani, é bastante fácil constatar que são suas vestes sacerdotais. Pintado ali com menos de 40 anos, ele nada deixa perceber a fama que granjeou. Nascido em Pescia, ele já aparecia na lista de pagamentos da Depositeria estatal florentina sob contrato com a corte aos 18 anos de idade. Sua fama se espalhou rápido e, em 1669-1670, já cantava também para a Congregação dell’Oratorio de Florença, enquanto os Médici aumentavam seu salário para 23,5 scudi. (KIRKENDALE, 1993, p. 409) As tentativas que empresários e intermediários fizeram ao longo da década de 1660 para contratá-lo para as produções líricas nos teatros de Veneza envolveram trocas de carta e abordagens as mais diversas, de modo quase incessante. (GLIXON, 2006, p. 183-184) Mas o soprano só cantaria em Veneza na produção local de Ercole in Tebe, em dezembro de 1670, no Teatro San Salvatore. (SELFRIDGE-FIELD, 2007, p. 102-103) Essa ópera, com libreto de Giovani Moniglia (1625-1700) e música de Jacopo Melani (1623-1676), foi estreada em Florença nas festas de casamento de Cosimo III e Marguerite d’Orleans, em 12 de julho de 1661, e retomada em Veneza com adaptações de libreto por Aurelio Aureli (1652-1708) e música por Giovanni Antonio Boretti (1640-1672). Vincenzino, como era conhecido, foi chamado em seguida para a corte de Leopoldo I em Viena – registros em 1668 e 1674 –, onde esteve bastante tempo e em períodos intercalados com retornos a Florença. Em 1676, voltou à Toscana por estar muito doente e necessitar fazer um tratamento médico, mas logo retomaria a carreira, cantando para a Compagnia dell’Arcangelo Rafaello e se engajando nas produções do Pratolino. Cantou em Greco in Troia, de Pagliardi, estreada no casamento do príncipe Ferdinando com Violante da Baviera em 1689. Esteve ainda mais uma vez em Veneza em 1683, numa aclamada produção de Il re infante, com música de Carlo Pallavicino e libreto de Mateo Norris (SELFRIDGE-FIELD, 2007, p. 156-157), oportunidade provavelmente aproveitada por estar de regresso de Viena, onde estivera mais uma vez em 1682, sempre engajado em ópera. 278 Iconografia musical na América Latina No primeiro semestre de 1699, esteve cantando no Palácio Laxenburg, da corte austríaca, frequentando continuamente a folha de pagamentos dos Habsburgos, de 1700 a 1711, quando obteve pensão: 600 gulden quando na ativa, reduzido a 400 depois de 1715. Florença também lhe pagou todos os salários, mesmo durante sua ausência. (KIRKENDALE, 1993, p. 411) Ele era o segundo artista mais bem pago da história da corte toscana. Seu testamento revela acúmulo substancial de bens: uma casa na Piazza Santo Spirto, 1006; uma villa e duas fazendas na diocese de Florença, onde montou duas capelas, gado, prataria, joias e outros bens, sem mencionar o que obteve em Viena. Parte do que deixou foi para dotes de oneste fanciulle. (KIRKENDALE, 1993, p. 411) Então, a opção pelas vestes negras de seu compromisso sacerdotal, que possivelmente nunca exerceu profissionalmente, diz muito mais respeito a uma vida de moderação, sem luxos – hospedava-se frequentemente em casas conventuais –, propensa a um naturalismo estético e ético, conforme a tradição de austeridade desejada por parte da sociedade florentina e, portanto, mais fiel a seus princípios morais e sociais do que necessariamente pela profissão religiosa. Os dois cantores, igualmente castrados e na tessitura de soprano, que estão ao seu lado no quadro aqui reproduzido, foram igualmente bem-sucedidos. Antonio Rivani, conhecido à época como Tonino, Ciccolino e, sobretudo, Ciecolino (1629-1686), foi talvez o mais famoso na altura em que Gabbiani pintou o quadro e, portanto, o colocou ao centro, além de ser também o mais velho dos três. Nascido em Pistoia, irmão de outro cantor castrado, o padre Giulio Rivani, foi instruído em canto pelo padre Felice Cancellieri, que havia estado por 20 anos empregado como cantor na corte dos Habsburgos, em Viena. Rivani começou sua carreira muito cedo, pois em 1638 já tomava parte da ópera Erminia sul Giordano, de Michelangelo Rossi, e a partir do ano seguinte já estava engajado na capela da Catedral de Pistoia. (FANELLI, 2001) Em meados dos anos 1640, deixou sua cidade natal para entrar a serviço de Gian Carlo di Médici, para quem já trabalhava um dos membros da família Cancellieri como camareiro do nobre. Terá cantado o papel titular de La Datira (REARDON, 2016, p. 11), libreto de Salvetti (1645), em Siena, nessa altura. Mas, com a nomeação de Gian Carlo para a posição de cardeal, mudou-se para Roma, onde foi novamente emprestado para produções operísticas. Gian Carlo foi mandado de volta a Florença pelo papa Alexandre VII e, assim, Rivani integrou muitas produções do Teatro della Pergola por anos consecutivos, sobretudo de O músico vestido de preto 279 1657 a 1663, especialmente em óperas de Jacopo Melani (1623-1676), como, por exemplo, nos citados festejos de casamento de Cosimo III com Marguerite d’Orleans, em 1661, na ópera Ercole in Tebe. (BESUTTI, 2002) A partir de 1660, essa atividade se intercalou com diversas viagens a Paris para cantar em entretenimentos na corte francesa, inclusive festejos do casamento real, balés e óperas, destacando-se a estreia de Ercole Amante, de Francesco Cavalli, no papel de Juno. O sucesso levou-o a aceitar proposta de generoso salário da rainha Cristina da Suécia, então vivendo em Roma desde muitos anos. Ela já devia conhecer o cantor desde que travou contato próximo com Giovan Carlo em sua estada romana. A rainha cedeu os serviços do cantor à corte de Turim, onde Rivani se demorou mais que o permitido para retornar, mas reassumindo o serviço de Cristina da Suécia em 1669. Voltou a ser dispensado para se apresentar em várias cidades italianas, incluindo-se Bolonha (1673) e Mantua (1682). (FANELLI, 2001) A partir desses últimos anos, deve ter se reaproximado da corte medicea e entrado a serviço de Ferdinando para as produções do Pratolino. Devia ter amealhado um considerável patrimônio, pois possuía propriedade rural junto a Pistoia. Faleceu, ao que tudo indica, repentinamente em Florença, sendo velado sob comoção em Santo Stefano. Gabbiani o representou com um casaco ajustado ao corpo inteiramente de vermelho liso, uma representação que se tornaria muito comum no século XVIII nos quadros de músicos virtuoses ou em posição proeminente de maestro al cembalo. As imagens conhecidas popularmente de intérpretes-compositores virtuoses, como as de Vivaldi e Mozart, mas ainda de grandes operistas, como Jommelli e Handel, majoritariamente vestidos em vermelho vivo ou mais escurecido pelo uso de veludo, são apenas alguns exemplos facilmente acessíveis para comparação, que se estendem a um infindável número de representações de músicos. Completando o quadro está Giulio Maria Cavalletti, também conhecido como Giulietto. Em 1683, já era um dos membros da Congregazione dei Musici di Roma, seguindo para a temporada de 1683/1684 do Teatro San Bartolomeo de Nápoles. No ano de 1684, já estava na Capela de São Marcos, em Veneza. Deve ter ficado em Florença a partir de 1685, antes de ir estudar em Bolonha com Giovanni Paolo Colonna (1637-1695) e talvez Francesco Antonio Pistocchi (1659-1726), havendo entrado na Accademia Filarmonica e na capela de San Petronio em 1688. Tomou parte em produções romanas da obra do bolonhês 280 Iconografia musical na América Latina Giacomo Perti, em 1696, antes de mais um biênio de trabalhos para os Médici em Florença e Pratolino. Cavalletti tinha se mantido na lista de pagamento de Santa Maria Maggiore, em Roma, desde 1683 até 1692, época em que passou possivelmente à proteção de Francesco Maria de Médici, e de 1698 a 1703, empregado como virtuoso di camera da duquesa de Laurenzano. Nenhum desses vínculos o impediu de cantar frequentemente nas mais diferentes cidades, como Siena, Nápoles, Milão, Turim (REARDON, 2016, p. 238) e Barcelona, para onde se transferiu ainda em 1707, ao lado de vários cantores, instrumentistas e compositores, como Caldara, Chelleri, Astorga e Porsile. (STEIN; LEZA, 2009, p. 254) Em Barcelona, ele se tornou primo musico di camera – entre 1707 e 1713, arrolado como soprano e contralto – e vice-maestro de capela do rei Carlos III, tendo ficado encarregado de supervisionar temporadas do Teatro de La Lonja. Aparentemente, as conexões vienenses que o levaram à Espanha o trouxeram para a Áustria em 1720 e de volta a Roma em 1723, já beneficiário de uma pensão. Seu vínculo com o grand príncipe Ferdinando pode ter acontecido na altura em que Gabbiani o pintou ao lado dos colegas cantores, mas foi retomado em 1705-1707, quando criou o papel título de Amleto, de Gasparini, e Spiridate em Artaserse, de Perti. Somam-se em seus currículos várias estreias de óperas de Alessandro Scarlatti em Nápoles. Parte da sua fama se deveu a sua extensão superior a duas oitavas, o que lhe permitia cantar papéis de dois registros; sua graça e delicadeza de traços o candidatavam costumeiramente a partes femininas. (VITALI; RIEPE, 2002) A riqueza que o jovem castrato adquiriu ao tempo do quadro é presumível de suas vestes, embora se deva ter em conta que a posição proeminente que precisou sustentar deve tê-lo levado a optar por roupas de cara e elaborada fabricação, dentro das tendências mais fortes do gosto francês que se impunha e da superexposição pública do cantor. Ele usa um casaco negro ou de tom escuro muito próximo, com motivos florais pequenos, com manga dupla, de cor vermelha e tecido firme na parte superior e uma fazenda branca e cheia de movimento do panejamento antes de um punho rendado ou brocado. A camisa ou um segundo casaco mais leve é vermelho e de botões pequenos, peça comum a partir de 1670 na indumentária masculina. (HART; NORTH, 1998) Por analogia, se vê que, no quadro dos músicos com o schiavo moro, se conforma situação semelhante. Castris, talvez o mais jovem dos três retratados, O músico vestido de preto 281 veste um casaco azul de padrão misturado entre a parte superior lisa e a inferior estampada por motivos fitomórficos. Gravatas – a branca em volta do pescoço e a borboleta de cor por fora –, jabot à francesa, grandes mangas em duas partes, a de cima abotoada ao casaco e a debaixo em tecido mais mole se misturando ao punho, em um padrão semelhante ao de Rivani e Cavalletti, são usos semelhantes ao do cravista. Afinal, o cravista pode não ser efetivamente um compositor ou virtuose do instrumento, contratado para a função, mas ele também mais um dos cantores castrados atuantes em Florença. No quadro, a face imberbe do músico, como a dos colegas cantores Castris, Rivani, Cavalletti e Olivicciani, o denuncia nesse sentido. Além dos já citados, há registro de pelo menos um cantor que pode se encaixar no perfil: Carlo Antonio Zanardi (1657-1704) está entre os músicos pagos por Ferdinando desde 1685 (KIRKENDALE, 1993, p. 652), podendo ter começado carreira em Florença (1684), mas cantou em Roma, Veneza, Livorno, Reggio Emilia e Gênova como virtuoso del principe di Toscana (ADEMOLO, 1888, p. 193) e amealhou recursos suficientes para comprar bens caros, como instrumentos de tecla de Cristofori (BADURA-SKODA, 2017, p. 46), sendo o pouco que se sabe dele, além de ter começado carreira em Bolonha. (VITALI, 2002b) A posição desse personagem ao cravo é provavelmente a mesma que a de Rivani no outro quadro: está a conduzir o ensaio das recentes e queridas aquisições de Ferdinando: Bitti e Castris. A indumentária na moda mais atual do tempo, cara e exuberante, também aponta para um castrato de condição enriquecida ou assim desejando parecer: seu casaco vermelho chega a ser mais rico que o usado por Rivani no outro quadro, porque tem padrões em dourado delineando braços, ombros, peito e uma larga barra da peça de roupa, evidenciando um excelente trabalho manual. Mas não é só a face imberbe que esconde a idade difícil de presumir. Há um grande cuidado com a maquiagem, subterfúgio, aliás, que se tornaria comum no século XVII. O exemplo evidente aqui é o fato de Rivani parecer mais novo que Olivicciani, mesmo sendo quase 20 anos mais velho que o clérigo (Figura 2). As perucas também atuam nesse sentido dissimulatório, uma vez que o volume e a cor do cabelo natural não podem ser vistos. Essa maquiagem e todo o conjunto de artes e atos do ornamento, como o vestuário, o enfeite, a decoração, aplicadas ao rosto e ao corpo, pretendem simular virtuosismo nas aparências e conforma-se na ideia de Platão – e o século XVII é um século de moral platônica sob fogo de 282 Iconografia musical na América Latina ataques antiplatônicos – de que a toalete é superficial, enganadora, indigna, ilude as pessoas quando empresta as roupagens de uma beleza outra que não a original. (LICHTENSTEIN, 1994, p. 46, 50) Isso não se aplica exclusivamente à kosmetiké, o conjunto dos disfarces proporcionados pela toalete, mas é o que a teoria platônica pensa da pintura como um todo. O ato de pintar é, por si só, um ato de disfarçar, segundo Platão, uma lacuna ou um defeito, pois desnaturaliza a aparência, como que corrompendo a verdade da natureza. A pintura seria, então, uma forma de corrigir os defeitos desta. (LICHTENSTEIN, 1994, p. 51) O problema na toalete dos indivíduos, assim como na pintura da realidade, que é modificada pelas cores, é que essa invenção constitui um outro indivíduo ou uma outra realidade. Assim, tal como a ilusão faz desaparecer as referências do sujeito, permite um novo sujeito, ou mesmo uma ampliação do existente, impossivelmente distinto entre o seu essencial e suas representações. E quem na condição desses castrados não recorreria à toalete? Comumente de infância pobre ou obscura, criados na casa de muitos irmãos ou de pais ausentes, em uma vila igualmente pobre ou um arrabalde perdido no interior das províncias, sob o forte interesse de lucro monetário ou institucional dos adultos que os castraram, eles eram fortemente treinados para um desempenho, sempre numa espécie de contrato de risco, para alcançar o que, em termos de virtude artística, poucos poderiam alcançar e, com isso, frequentar, integrar e sobreviver em um meio social de outros requisitos, exigências, decoro e comportamento, com pessoas de origens diversas as quais sempre estariam em descompasso – de origem, em relação aos senhores; de posses e atenção, em relação aos demais empregados. Assim, a toalete não apenas ornamenta o corpo e suas vidas, como essa reprovável atitude aos olhos dos platônicos os resgata de uma realidade insípida e os transporta a um mundo em que proporcionam também eles a fantasia a quem os assiste. Seriam eles a solução aristotélica da existência de modelo platônico. Mas esse é também o ofício do pintor. E este, desde o momento em que pinta, já sabe que não estará nunca de conformidade moral com a obediência à verdade essencial. Uma vez feito isso, ele sabe que seu ato não é o do filósofo, ao tempo de Gabbiani, então, a filosofia moral de orientação platônica. O pintor sabe, como Gabbiani devia saber, que a ilusão e a fantasia são a fonte do prazer e do desejo, que, como já dizia Quintiliano – um dos poucos retóricos da Antiguidade Clássica lidos no século XVII –: “outros também se deixam levar pelas aparências, por rostos depilados e polidos, por cabelos ondulados presos O músico vestido de preto 283 com grampos, brilhando com uma cor artificial, estes descobrem mais beleza do que poderia oferecer a natureza não alterada...”. (LICHTENSTEIN, 1994, p. 111) Nesse sentido, Gabbiani parecia consciente do poder da cor, da sua eloquência, num sentido amplamente retórico. Se assim o for, nosso cravista/cantor parece uma antítese da figura de Castris, mas que com ele se completa numa representação geral: este tem casaco de base azul, a cor da espiritualidade – quiçá para representar o que sentiam os que experimentaram sua musicalidade e desempenho –, com detalhes brancos – da pureza, complementar de uma beleza metafísica –, enquanto sua gravata borboleta e as mangas de suas vestes são vermelhas como os laços de sua partitura em que ensaia o dueto da infidelidade – e aqui se entenda a infidelidade também como o ato de iludir a verdade – do seu personagem (um dos muitos) mediante uma aparência frágil e preocupada. O presumível cantor ao cravo está de casaco vermelho, a cor quente dos assuntos terrenos, das atitudes dos que tem sangue a correr nas veias – e o cartesianismo vigente no século XVII já teorizava cientificamente que os sentimentos, as emoções e a expressão dependem desse fluxo de sangue para existir –, o vermelho da “senhoria, de reis, cardeais e grandes personagens”. (DOLCI, [1565], p. 24) Esse casaco tem detalhes amarelos, talvez símbolo do ouro e da riqueza, do sucesso profissional e material, mas com gravata e mangas azuis, a preparar o outro cantor ao pé de si, em tom de confiança e calma que só a serenidade da experiência ou o conhecimento dos meandros da corte lhe podia ter dado, a melodia e a harmonia daquele dueto, alegoria do real, pouco digerível para o jovem Checco. O equilíbrio entre ambas as figuras é precisamente a mediação entre a verdade, desejada, mas insossa, e a ilusão, necessária e prazerosa, ainda que por vezes dolorida. É uma alegoria da maturidade/experiência e a juventude/ aprendizado entre os que sabem que a toalete cria outros personagens para além do real, ao invés de submeter e aprisionar o sujeito essencial. Resta saber que lugar ocupa o violinista Martino Bitti nessa representação. Não era padre, mas, como Meccoli e Salvetti, está vestido em preto, com o mesmo detalhe de gravata e jabot a que o cravista e o violoncelista se permitiram. De Meccoli pouco se sabe, sendo o mais relevante aqui que foi muito requisitado e ainda, por ser compositor, aparece em alguns elogios literários da época. (KIRKENDALE, 1993, p. 407-409) Salvetti, por sua vez, foi filho de um escultor com trabalhos diversos para Florença e os Médici. Isso deve ter facilitado seu 284 Iconografia musical na América Latina acesso ao guardaroba ducal, do qual obteve autorização de copiar instrumentos já aos 19 anos de idade, o que ele repetiu outras vezes até o ano em que morreria. Sabe-se que tocava outros instrumentos de arco, além do violoncelo, com o qual parece ter sido mais habilidoso, situação que o levou a ser também um tutor musical do príncipe Ferdinando, a quem mais tarde serviu exclusivamente (1691) como músico. Acostumado com a cena dramática e sendo também compositor, esteve, entre 1658 e 1661, na orquestra de ópera da florentina Accademia del Sorgenti, no Teatro del Cocomero, e compôs belissime sinfonie – música orquestral – para a Congregação dell’Oratorio em 1663, aparecendo aí nos anos seguintes em oratórios, com intervalo obtido em 1664 para estar a serviço do arquiduque Ferdinand Karl em Innsbruck. Seus interesses e formação excederam a música e o perfil comum do músico, pois dedicou-se à matemática, ótica e acústica com profundidade científica, lhe afamando não só na Itália, mas na França e Inglaterra. (KIRKENDALE, 1993, p. 402-406) Bitti, por fim, foi, segundo documentação da época (1693), contratado para virtuoso del violino del sr. Prencipe di Toscana, mas esteve envolvido em muitas apresentações por toda a Florença, sendo sempre considerado um virtuose do instrumento, muito elogiado por suas performances, sempre dadas em posição destacada ao lado de músicos, e ocasiões importantes. Eventualmente, também se envolveu com composição musical, incluindo um pastiche ao lado de Francesco de Castris e Alessandro Scarlatti, além de árias, atos ou trabalhos líricos integrais – ópera, oratório etc. – e sonatas, das quais algumas foram publicadas em Londres, atestando a larga fama que ostentou. (KIRKENDALE, 1993, p. 432-437) Vestir-se de preto emprestava dignidade e gravidade ao usuário (CURRIE, 2016, p. 99) e, diante da mudança abrupta das modas desde o trecento, como se viu, o uso da roupa preta era uma moda antimoda, um pouco a recusa de ceder às variações que foram se tornando constantes e sofisticadas. Ao menos 9 de 14 autores conhecidos e estudados sobre o estudo da cor em Itália nos séculos XV e XVI defendem a permanência do preto (GAVEL, 1979, p. 138) como parte de composição colorística em obras e elaborações decorativas. Dentre estes, destaca-se Lodovico Dolci, humanista, homem de letras – tradutor de Cícero – e teórico de arte que argumenta que a cor negra é a dos togados, como os advogados, procuradores, notários, médicos, filósofos, frades, dentre outras condições pessoais, porque denota virilidade, temperança e firmeza, não podendo ser O músico vestido de preto 285 essa cor confundida ou transformada em outra. (DOLCI, [1565], p. 25) A isso se pode deduzir e acrescer que é a cor dos sábios, estudados e dignos do alto respeito no seu ofício, como o violinista virtuoso Bitti; o oposto dos cantores, que, embora sobre base azul ou vermelha, congregam mais cores, indicativo de mentes bizarras e cheias de apetites diferentes. (DOLCI, [1565], p. 25) O preto como sinal de moderação foi popularmente usado desde os tempos de Baldassare Castiglione (1965, p. 126), posto que o seu personagem Federico Fregoso já recomendava o uso comum do preto no ambiente da corte, ou ao menos o tom mais escuro, por considerar grave e repousado, e ainda elogia o uso frequente que os espanhóis faziam da indumentária em negro. Claro estava que o uso de roupas masculinas pretas já passara a certo grau de popularidade quando o cinquecento chegou a termo e mesmo depois disso. Uma vez que essa cor em roupa era obtida por procedimentos diversos, embora não custosos, um grande número de usuários de diversas profissões usou roupas negras na Toscânia. Livros de contas de alfaiates de fora de Florença revelam que os clientes comuns a comprar regularmente roupas pretas incluíam oficiais militares, proprietários de albergues, barbeiros, marinheiros, sapateiros e construtores, alguns deles pagando menos por materiais baratos. (CURRIE, 2016, p. 100) Vários tecidos de outras cores custavam realmente muito caro, como o carmim, o violeta profundo, o verde escuro, o púrpura, os azuis claros, as cores rebaixadas e os tons acinzentados. (CURRIE, 2016, p. 100) Mas os tons diversos de preto, determinados pela variedade e qualidade dos materiais empregados, estiveram em larga demanda também, e isso podia indicar, pela carestia e raridade do traje, a estatura socioeconômica do usuário. Só dessa maneira seria possível ter ideia das posses dos usuários: uma vez padronizados pelo uso das vestes negras, os comerciantes e diversas outras classes profissionais de Florença, mas também do norte da Itália, recorriam ao preto como um disfarce, uma maneira de mascarar desejos, de controlar vaidade e excessos de masculinidade, como pré-requisito de sobrevivência nos negócios e na própria corte. (CURRIE, 2016, p. 107) Se a estratégia de não aparentar sua riqueza e seus gostos funcionava nos negócios e no trato público, o ambiente da corte retornou ao preto com ainda mais força do que usara antes, na medida em que também servia aos negócios de Estado e da diplomacia. Embora existisse uma atribuição das vestes pretas como parte de um decoro seguido e influenciado pela corte espanhola, está suficientemente provado que o uso ibérico começou 286 Iconografia musical na América Latina praticamente ao mesmo tempo que no norte italiano (CURRIE, 2016, p. 107), sendo um dos precedentes mais interessantes para o uso do preto como símbolo de manifestação político-estético-diplomática a já sabida adesão a roupas negras por Filipe de Burgúndia, o Bom, para protestar contra o assassínio de seu pai, João Sem Medo, em 1419. Os cortesãos fiéis a Filipe adotaram a mesma moda a partir daí, e o uso teria se espalhado e normalizado o hábito. No final do século XVII, no círculo de Ferdinando ou no ambiente do Pratolino, usar o preto poderia ser uma desculpa dos votos feitos por Olivicciani, Pagliardi e do castrato Filippo Melani (KIRKENDALE, 1993, p. 412-413), ou ainda por causa do vínculo acadêmico e científico, que pode ser o caso de Salvetti, ou ainda o decoro do organista eventual que era Meccoli. Mas o fato novo parece ser o virtuoso violinista, preferido do seu mecenas – e é verdade também que os mecenas usaram preto pelos mesmos motivos acima – e uma das estrelas da corte florentina, Martino Bitti, ser assim retratado. Não se pode saber ao certo se foi Bitti quem escolheu ser assim representado ou se a escolha foi de Gabbiani em seu projeto retórico para o quadro, afinal o preto serve perfeitamente para equilibrar a obra na polarização oferecida entre os outros dois músicos. De qualquer forma, a vida de Bitti está longe do que as muitas cartas que envolvem Checco, Vittoria Tarquini e Ferdinando mostram de rumoroso e discutível na trajetória desses cortesãos e no meio profissional que muito extrapola a cidade. A vida de Bitti – Martinello, para os íntimos – está modestamente descrita apenas pelas muitas participações públicas de sua atividade musical e alguma militância discreta com associações de músicos por necessidade estrita de socialização, sobretudo numa cidade onde as classes e os gêneros se fortaleceram recorrendo ao aspecto institucional de seus coletivos. Bitti pode perfeitamente ter sido um dos muitos adeptos do paramento em negro para preservar sua posição de spalla, violino primo, ensaiador – como se vê no quadro – dos principais cantores da corte, e de notoriedade – uma vez que sobreviveu a Antonio Veracini e Francesco Maria Veracini imigrara. Assim, se tornou uma força de influência para que também mais essa classe de profissionais em processo de consolidação no Ocidente europeu passasse a usar o negro com os mesmos propósitos de visibilidade invisível dos demais acima citados, em busca de ser respeitada pela estabilidade, gravidade, decoro, temperança e seriedade que precisavam e que se pensava de um homem vestido de preto. O músico vestido de preto 287 Referências ADEMOLO, Alessandro. I Teatri di Roma nel secolo decimosetimo. Roma: Pasqualucci ed., 1888. BADURA-SKODA, Eva. The eighteenth-century fortepiano grand and its patrons from Scarlatti to Beethoven. Bloomington: Indiana University Press, 2017. BESUTTI, P. Rivani, Antonio (opera). In: OXFORD UNIVERSITY PRESS. Grove Music Online. Oxford: Oxford University Press, 2002. Disponível em: http:////www.oxfordmusiconline.com/grovemusic/view/10.1093/ gmo/9781561592630.001.0001/omo-9781561592630-e-5000904334. Acesso em: 11 jul. 2018. BOEHRER, Bruce Thomas. Parrot Culture: Our 2500-Year-Long Fascination with the World’s Most Talkative Bird. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004. CASTIGLIONE, Baldassare. Il libro del Cortegiano. Torino: Einaudi, 1965. CHIARINI, Marco. Antonio Domenico Gabbiani e I Medici. In: KUNST der Barock in der Toskana: Kunst der Barock in der Toskana. Munich: Verlag F. Bruckmann, 1976. CONT, Alessandro. I Paggi nele Corte Italiani del Seicento. Firenze: Leo Olschki ed., 2012. CURRIE, Elizabeth. Fashion and masculinity in Renaissance Florence. London: Bloomsbury, 2016. DOLCI, Lodovico. Dialogo di M. Lodovico Dolci, nel quale se ragiona dele qualitá, diversitá, e proprietá dei colori. Veneza: Sessa e fratelli, [1565]. FANELLI, J. Rivani, Antonio. In: OXFORD UNIVERSITY PRESS. Grove Music Online. Oxford: Oxford University Press, 2001. Disponível em: http://www.oxfordmusiconline.com/grovemusic/view/10.1093/ gmo/9781561592630.001.0001/omo-9781561592630-e-00000456477. Acesso em: 11 jul. 2018. FERRARO, Eleonora. Ventura e sventura dei nanni nelle corti de Seicento. Rivista Internazionale di Filosofia Online, [s. l.], ano 12I, n. 23, p. 201-214, magg. 2017. FLETCHER, Catherine. The Black Prince of Florence: The Spectacular Life and Treacherous World of Alessandro de’ Medici. London: Bodley Head, 2016. 288 Iconografia musical na América Latina GAUK-ROGER, Nigel. Sacra Conversazione. In: OXFORD UNIVERSITY PRESS. Grove Art Online. Oxford: Oxford University Press, 2003. Disponível em: http://www.oxfordartonline.com/groveart/view/10.1093/gao/ 9781884446054.001.0001/oao-9781884446054-e-7000074882. Acesso em: 8 jul. 2018. GAVEL, Jonas. Color: A study of its Position in the Art Theory of the Quattro & Cinquecento. Stockholm: Almqvist & Wiksell International, 1979. GLIXON, Beth; GLIXON, Jonathan. Inventing the business of opera: the empresario and his world in seventeenth-century Venice. Oxford: Oxford University Press, 2006. GONZALEZ, Kristen H. More than Mimicry: The Parrot in Dutch Genre Painting. 3 Nov. 2017. Disponível em: https://purl.org/nga/documents/literature/essays/ more-than-mimicry-the-parrot-in-dutch-genre-painting. Acesso em: 13 jul. 2018. HART, Avril e North, Susan. Historical fashion in detail: the 17th and 18th centuries. Londres: Victoria & Albert Publications, 1998. HARVEY, John. Men in black. London: Reaktion books, 1995. HILL, John Walter. Antonio Veracini in context: new perspectives from documents, analysis and style. Early Music, Oxford, v. 18, n. 4, p. 545-562, 1990. HOLMES, William. Opera observed: views of a Florentine impresario in the early eighteenth century. Chicago and London, Chicago University Press, 1993. HUGFORD, Ignazio Enrico. Vita di Antonio Domenico Gabbiani, pittor fiorentino. Firenze: Francesco Moucke, 1762. KIRKENDALE, Warren. The Court Musicians in Florence during the Principate of the Medici. Florença: Casa Editrice Leo S. Olschki, 1993. LICHTENSTEIN, Jacqueline. A cor eloquente. São Paulo: Siciliano, 1994. ORLANDI, Pellegrino Antonio. Abecedario pittorico. 2a ed. Bologna: Constantino Pifarri, 1719. PANCHERI, Roberto. Contributo all’iconografia di Bernardo Pasquini. Quaderni Trentino Cultura 17, Cultura per il territorio. Atti. Pasquini Symposium 2010, a cura di Armando Carideo. Trento, Provincia Autonoma di Trento: Giunta della Provincia autonoma di Trento; Assessorato alla Cultura, Rapporti europei e Cooperazione, 2010. O músico vestido de preto 289 PEPPERBERG, Irene M. Cognitive and communicative abilities of Grey Parrots: Implications for the enrichment of many species. Animal Welfare, [s. l.], v. 13, p. 203-208, 2004. PEPPERBERG, Irene M.; NAKAYAMA, Ken. Robust representation of shape in a Grey parrot (Psittacus erithacus). Cognition, Amsterdam, v. 153, p. 146-160, 2016. REARDON, Colleen. A sociable moment: opera and festive culture in baroque Siena. New York, Oxford University Press, 2016. RIBEIRO, Aileen. The art of dress: fashion in England and France, 1750-1820. New Haven: Yale University Press, 1995. ROSSI ROGNONI, Gabriele V. Il Gran Principe Ferdinando e la Musica. In: SPINELLI, Riccardo (ed.). Il Gran Principe Ferdinando de’ Medici (1663-1713): collezionista e mecenate. Florence: Giunti, 2013. p. 115-125. SELFRIDGE-FIELD, Eleanor. A New Chronology of Venetian Opera and Related Genres: 1660-1760. Stanford: Stanford University Press, 2007. STATUTI DEI COMUNE DI FIRENZE. Disponível em: http://www.archiviodistato. firenze.it/ inventari/s/statuti/dati/prammatica.html. Acesso em: 19 jul. 2018. STEIN, Lousie K.; LEZA, José Máximo. Opera, genre and context in Spain and its American colonies. In: DELDONNA, Anthony R.; POLZONETTI, Pierpaolo (ed.). Cambridge Companion to Eighteenth century opera. Cambridge University Press, 2009. p. 244-269. VAN DE VELDE, Hildegard. The Parrot: the decorative beauty of its plumage (guia do visitante à exposição homônima ocorrida na Rockox House, Antuérpia, 20142015). Antwerp: KMSKA/ROCOKHUIS/HETGULDENCABINET, 2014. VITALI, Carlo. De Castris [De’ Massimi], Francesco. In: OXFORD UNIVERSITY PRESS. Grove Music Online. Oxford: Oxford University Press, 2002a. Disponível em: http:////www.oxfordmusiconline.com/grovemusic/view/10.1093/ gmo/9781561592630.001.0001/omo-9781561592630-e-5000901271. Acesso em: 8 jul. 2018. VITALI, Carlo. Zanardi, Carlo Antonio. In: OXFORD UNIVERSITY PRESS. Grove Music Online. Oxford: Oxford University Press, 2002b. Disponível em: http:////www.oxfordmusiconline.com/grovemusic/view/10.1093/ gmo/9781561592630.001.0001/omo-9781561592630-e-5000907802. Acesso em: 18 jul. 2018. 290 Iconografia musical na América Latina VITALI, Carlo; RIEPE, Juliane. Cavalletti, Giulio Maria. In: OXFORD UNIVERSITY PRESS. Grove Music Online. Oxford: Oxford University Press, 2002. Disponível em: http://www.oxfordmusiconline.com/grovemusic/view/10.1093/ gmo/9781561592630.001.0001/omo-9781561592630-e-5000901026. Acesso em: 5 jul. 2018. O músico vestido de preto 291 Using our own voices, telling our own herstories Reflections about sound creation based on voice and technology1 Isabel Nogueira 1 Introduction This paper presents a reflection about women sound artists who use technology and their own voices, discussing how they develop relationships between the use of these tools, the use of their own voices and the images they use to represent themselves publicly. The method chosen is within the scope of the most radical qualitative methodology and is based on feminist epistemologies, which are, therefore, a path and vision, respectively. 1 This chapter is a revised and enhanced version of the paper presented on The First International Conference on Women’s Work in Music, celebrated in Bangor University in September 2017. 293 This work aims to be collaborative, radically qualitative, polyphonic and conceived in a collective feminist practice, where initial reflections can be brought from the voices of different women. The sound artists that we analyze here are Brazilian women, active in Brazil and in other countries, who are involved in feminist networks and artivisms, create and perform their own music using voice – singing, spoken words, abstract sounds or modified voice – as an important element in their sound creation, but distant from the model traditionally associated with the singers. They are: Bella, Leandra Lambert, Isabel Nogueira and Marcela Lucatelli. We consider the activity of these sound artists as a way of challenging historical and contemporary cultural assumptions about both women’s voices and the normative male in sound arts practice. We will present here some results of this project, with the report of three women about how they use technology and their own voices as well as their images and the relationship they establish between them, their artistic trajectories and their gender condition. 2 The studies that come before this paper I am a woman composer and performer, I work as a full professor at Federal University of Rio Grande do Sul, and I coordinate a Research Group in Gender Studies, Body and Music. I am part of Medula Collective of Sound Experiments and I create songs using voices, soundscape, traditional instruments and synthesizers, in a feminist concept. This paper is part of an ongoing research project that is being developed to construct a Cartography of Brazilian Women in the Experimental Music and Sound Art. First, I would like to talk about my place of speech concerning to the music and sound field, that I use to consider as also my place of listening. (NOGUEIRA, 2017) My first contact with music was at eight years old, in Pelotas city, south of Brazil. While I started studying piano, I also used to write small tales, stories and poetry, besides developed my classical ballet studies. After my piano graduate studies, I got a PhD in musicology. Therefore, my place of speech is the one of a white, middle-class woman from the south of Brazil, who had the opportunity to do formal studies of music on 294 Iconografia musical na América Latina elementary, undergraduate and graduate levels, and acts as a researcher, teacher, mother, performer and sound creator. My research work started in 2001, studying photographs of women composers and performers that have been carrying out concerts in Brazil and South America in the first half of the 20th century, observing the visual constructions they decide to do. I notice very strong patterns being used throughout time, such as not looking straight at the camera, not smiling, and the preference of looking at the horizon, emulating a distance from reality, according to the romantic idea. The absence of these performers and composers in the Brazilian musical historiography and in the records made me think about the silence, choices and power games; but at the same time, it brought to me the relevance of these documents as traces, testimonies, notes for the reading of a story that perhaps had no other way of being told. During my doctorate, and later, in my career as a musicologist, researcher and teacher, I studied the feminist theories and the theories about gender and music that have been devoting attention to the deconstruction of the socially imposed concept of what it is “to be a woman”, also questioning that single, monolithic “being a woman” in the fields of music and musical practice. As for the musical practice specifically, Lucy Green (2001, p. 24) notes that “according to their musical involvement, women have different social considerations, tracing different levels of acceptance and threat to a supposed and imposed concept of femininity”. Women who sing would be affirming such concept of femininity: the social imagery associates the body exposure to a detachment from the intellectual capacities. Women who teach music are also considered affirmative of their ideal femininity: they care for other people, which can be seen as an extension of maternal activities – an activity also considered as detached from the development of an autonomous intellectual work. In this author’s perspective, there is an intermediary place, occupied by instrumentalist women, partially transgressive of this conventional ideal of femininity. Women composers and improvisers would transgress this concept, through the development of an autonomous intellectualized work. I have developed this work from the feminist epistemologies, and Margareth Rago highlights the importance of the feminist epistemologies as a lens to view the world, noting that they do not seek just the inclusion of gender relations, but questioning the very process of producing knowledge, built from relations Using our own voices, telling our own herstories 295 of power, privileging the rational processes instead of the subjectivity, considering certain actors, environments, and documents as more valid than others. The possibilities feminist studies open are not limited to the inclusion of female subjects, but seek to offer a new vision, by inserting the notion of subjectivity and situated knowledge. Therefore, proposing a thought that thinks of itself as postcolonial, situated, and feminist requires not only an effort to include new characters in a story told in the same way, but implies finding new visions, a new focus, new lenses to tell the story. It is necessary to consider aspects such as the historicity of the concepts, cultural relativity and the co-existence of multiple temporalities. (RAGO, 1998, p. 10-12) 3 The research Taking as my starting point the feminist epistemologies and the need for new lenses to see and construct history, as Rago points out, and considering the questioning of hegemonic narratives and the understanding of difference markers as determinants of places of speech and listening, I am concerned about the methodological organization of this paper. Inspired by this, I seek to reflect, in a mediation carried out by discussion networks, by dialogues between women in the field of music and sound creation, about how women perceive their image, the use of voices in their sound creation and the relationship between it and their artistic production. I seek to reflect on the discourses and the narratives of themselves so that they lead us to construct knowledge about the invisible-visibility route of women in music from discourses and narratives in the first person. To this end, I have proposed to the female interpreters and/or composers to share photographic images used to publicize their artistic works. Along with the choice and sending of these photographic images, I asked them to describe and attribute meanings to what they think about their images in that photograph, seeking to listen to what the artists themselves think about them, in a relation between self-image and their artistic trajectories, their convergences, divergences, consensuses and dissent. In this first interpretive synthesis resulting from the project, I want the report about three artists with different forms of sound 296 Iconografia musical na América Latina production, objecting what they want to say, in their own words, how they consider that personal image they use publicly is related to their artistic proposal. I would like to present an artist-based research that is related to an idea of musicology about our present time. Accordingly, I propose that the view of the musicologist or the qualitative researcher be not the fundamental axes of the analysis of the images, but I propose here that the senses attributed to them be given in the first person, by the artists themselves, built in close relation with their histories and trajectories. I also propose the emergence of meanings that the artists themselves attribute to their image constructs and are constructed by their gender condition. 4 Methodology Supported by feminist epistemologies and clearly directed by the necessity of horizontalization of the relations between researchers and artists, I decided to use the method of qualitative investigation, named as radical qualitative or critical qualitative. According to Norman Denzin (2001), the radical qualitative research and its related practices emerge from a moment when criticism of the cultural issues involving researchers and their methodological practices needed to be criticized and questioned. The researches and the academic writing itself are not innocent practices, free from ethical commitments. Women and men write in very different ways about cultures, and this, especially in the 1980s and 1990s, led cultural researchers, anthropologists, and sociologists to question each other and identify that “narrative turn” was needed to ensure that the narrative was done by the people investigated. And this should be done not only in the way of developing research itself, but in the ways of writing the papers. In this kind of research, the research results are interpretative themselves. In the article written in 2001, Norman Denzin called this the seventh moment of qualitative research, in which the essence of research could be understood as the attempt to express the aspirations of a free, just and democratic society. The bases of interpretation that are the main task of this type of investigation are the political, ethical and aesthetic positions of the researcher, the groups or Using our own voices, telling our own herstories 297 persons investigated and the awareness that the interpretations of the research activities will bring up these questions. Certain that the epistemological basis for my investigation will be focused there, I try to organize the steps of the investigation, inviting, initially, thirty women participants of networks of discussion on music and gender, in different levels of theoretical familiarity with the subject. I made a first contact by email stating my intentions. The proposal was: You need to choose a photograph of you that you consider representative of the image you use publicly (as you wish or are usually represented); think about how you perceive the artistic concept of your work, pointing out if you observe clear connections between this concept and that image; record an audio speaking freely on the following questions: How do you perceive your music/sound production? What is your artist statement? Choose an image that you think represents you and comment on how this image relates to your wishes and intentions as an artist. Of the thirty women who collaborated with us, we have already presented a paper about five of them at the 4th Brazilian Conference on Music Iconography, organized by RIdIM-Brasil, which was celebrated in Brazil, on July 2017. In this paper, I will present the work, ideas and voices of three of these composers/performers. All of them were informed about all steps of the investigation and their publication and agreed to the dissemination of their images and testimonials. The discourses constructed by these artists were read entirely. They thrilled me. They impacted me. In the initial proposal of this investigation I heard the women’s narratives and looking at their images, tracing the lines that would later help me to form the meshes between their narratives and their images. Listening and looking, looking and seeing... There was a time when I needed to get away. I referred papers that I had already read. One of them, the first chapter of the book “Lines, a brief history” from the anthropologist Tim Ingold (2007) provoked me in the first sentences of the text. There was something beyond narratives and descriptions that did not materialize in the two-dimensionality of paper. 298 Iconografia musical na América Latina I know these women, we participate of some networks together and we usually talk of music and sound art issues... I knew something was missing. The chapter “Language, music and notation” led me to reflect: the notation of singing closed the voices and their musicality became standardized. In the same way, the writing of the speech standardized its musicality. Orality is musical. Oral language is essentially music in all cultures. Making music out of these women’s speeches is a form of interpretation, it would be returning to the essence, to a kind of essential interpretation. So, I decided to use the Arts Based Research – a kind of critical Qualitative Inquiry – as a method and decided to create music using these women’s voices describing themselves, and their discourse would be mediated by their images. Arts Based Research is about converting something that is not necessarily artistic in an artistic way, and, in this case, I was investigating self-narratives of women composers and creators in sound art. Their production is in the artistic field, and I could say it is in a hybrid way because they use different kinds of art expression, and in this case, I propose to create a sound piece using their speaking voices. Otherwise, their sound work includes voices, in different ways – spoken words, singing or processed voices – and their speaking voices can be considered as part of their potential sound creation. Historically, Cathy Lane points out that women’s voices have been compared to all that is animal, lowly, or related to sexual temptation and seduction, death and corruption. Women’s voices are also related to the tradition of singing, which has been an accepted place for the female musical practice, far from the composition or the use of technologies, related to a supposed normative male universe. So, it was important for me, after hearing their voices on the interviews and seeing the images they send to this project, to create a sound work using their voices, because I am part of this network, and, besides all, I was looking for a research based on arts and in feminist epistemologies. Using our own voices, telling our own herstories 299 5 The sound artists Figure 1 – Leandra Lambert (28/05/74) Source: Leandra Lambert selfportrait. Composer-performer and multimedia artist. Doctor in Arts UERJ/ Paris 1, with a scholarship Capes PDSE. She participated in exhibitions, events, concerts, radio programs, and performances in Brazil, USA, UK, France, Chile, Cuba, Norway and Russia, among them Festival Novas Frequências 2016 and Documenta 2017 radio. First place in the III Latin American Competition of Electro-Acoustic Composition Gustavo Becerra-Schmidt. She held two individual exhibits, published books, articles, and phonographic records. She practices soundwalks, researches free and forced transits, impediments, absences and disappearances, relating experience, memory and environment, history, imagination and myths of each place, with a poetic and political approach. As a composer-performer her focus is in the use of voice, electronics, experimental methods, free improvisation, altered field recordings and small everyday objects. She came from projects that mixed electronic, experimental and punk/post-punk since the early 1990’s, being among the local pioneers of that sound. Now she has two solo projects, Cut-up Tragedy, and Lori, that will release an album this year; and two duos, Strana Lektiri (with Isabel Nogueira) and Terra Incognita (with Alex Mandarino). 300 Iconografia musical na América Latina In Leandra’s words: I do sound experiences, art works and performance. I practice unruly walks in the city and out of the urban area. Search for free and forced transits, impediments, absences, traces and disappearances. I relate experience, memory and environments, stories, imagination and myths of each place with a poetic and political approach. As a composer and performer, I use some voices and electronics cut-up techniques, experimental methods, free improvisation, mixed diverse technologies, altered field recordings, and everyday objects. I have dealt very much with the idea of the unfathomable – insondável in Brazilian Portuguese: unfathomable is what one does not probe, depths of impossible access. The ethological origin of insondável refers to going under the wave – onda. From the Latin subundare – unda – wave – also present in flood. Sounds are made in waves: it consists of waves and moves in waves. In the same way as the sound, sea is defined by physics as disturbances that flow in some medium, in space and time. We are always under these troubles. Figure 2 – Bella (08/07/1988) Source: Bella. Bella is Brazilian and was born in Rio de Janeiro. She lives in São Paulo. Composer, performer, sound and visual artist. Bella often works with interdisciplinary fields and collaborative works. She takes part of Meteoro, a group formed by her, Anais-Karenin and Juliana Borzino. Her work is to erase the boundaries between sound and space from a performance focused on the imperceptible movements of reality. She operates with improvisation, field recordings, physicochemical experiences and visualities. Bella has performed at MAM-RJ, Festival Using our own voices, telling our own herstories 301 Novas Frequências-RJ, Festival Música Estranha – SP, FIME-SP, Acéfalo Festival (Valparaiso), Acker Stadt Palast (Berlin), Lo Spazio (Poschiavo), Rumor-Ciclo de Arte Sonora (Recife), and many others. In Bella’s words: I had a varied background and I already lived creative processes working with song, with music, studied visual arts, dance, theatre, and when I started to think of my work alone, it started from many inspirations. One of my inspirations was mythology, as an imaginary starting point, of fantasy, I study a lot of mythology, so this worked as a basis for inspiration where I was creating connections with colour, with the sound itself. I have been practicing improvisation a lot, and I have been researching pure sound, I am researching the sonority of objects, recordings, material relations, what sound can cause or manifest materially. I practice the use of elements: how can a magnet interact with a stone, wood, water? If I put the sound in a certain space, inside a box, or a corridor, what happens, how do we listen to it? I am interested in how we listen, how listening can be transformed, varied. I study the feedback, I use cassette tapes, I think of producing installations, specific sites, and I can say that what I study in practice is the symbology, the symbol. Figure 3 – Marcela Lucatelli (13/04/1988) Source: Marcela Lucatelli selfportrait. Marcela Lucatelli can already be hailed as one of the most innovative vocalists and composers of her generation. Lucatelli has earned international recognition for her extremely original, sensuous and politically charged performance works. Born in Brazil and based in Denmark, her pieces have been performed by some 302 Iconografia musical na América Latina of the most edgy ensembles in the world such as Apartment House (England), Mocrep (USA), Hidden Mother (Sweden) and herself, at diverse festivals and international events such as Nordic Music Days, Darmstadt Internationale Ferienkurse fur Neue Musik, Copenhagen Jazz Festival, Festival Internacional de Linguagem Eletronica (File), WOMEX, Áudio Insurgência, Waverly Festival NYU, among other events worldwide. Her critically acclaimed first album PHEW! – The Last Guide for a Western Obituary shows her notorious vocal skills and conceptual irony synthesized in groundbreaking contrasts and unclassifiable grooves. In Marcela Lucatelli’s words: I perceive my music and sound production as inevitable, it’s not something I really chose to do, it’s a survival for me, a survival method. It is directly related to my personal experiences as a human being, as an existent one, as a person who was also born in this body, with these genitalia, and I realize that in my production, technically it has a very strong visual aspect, theatrical intermedia, multimedia, post whatever this use of various media may be called, various aesthetic elements to create a notion of time use. My artist statement is a very strong expression of a voice that is not only mine, which began with the study of singing, the word melody, timbre, a communication of a depth of the word, the language that exploded in it, which is like a splinter of the corner that has exploded for several media, for the video, the instrument, the object, the body, the visuality, the image that is formed with these media all, that is made over time. The three artists chose images that do not obey the traditional way the artists present their images, either by the large shadow on one side of the face, in the case of Leandra, or using blurring, in the case of Bella, or by the everyday mood, in the case of Marcela. I asked them to choose photographs that represented them at this moment of their lives, and these images are their choices. At the same time, their performances in the field of experimental music, developing hybrid roles, can demonstrate an experimental attitude, that goes beyond a music genre definition only by its sonic aspects. Their attitude, that includes performance, sound creation and political proposals, configure an artivist aproach, combining art and life and bringing a creative perspective to the images that represent them. In the field of electronic music, and I could extend this to the experimental music that uses electronic devices, there are mostly men, and the women must negotiate their ways of being part of this. Using our own voices, telling our own herstories 303 As Freida Abtan (2016, p. 3) points out: None of the girls I knew as a teenager taught each other how to do technical things. We read books and discussed the world, watched movies, talked about our families, our feelings, our thoughts, but we weren’t really involved in skills-sharing unless it was related to school. When I wanted to participate in my friends’ musical experimentation, I was joining a skills-sharing network that for them had always been male. We could say that a processed voice is a bodyless voice, but we also could think that these hybrid voices comes from hybrid bodies, that creates new ways of existing in this world. I want to bring here Ingold’s concept about web, to consider how it works to connect women in the specific field I am concerned: Unlike communication networks, for example, the threads of a spider’s web do not connect points or attach things. They are woven from materials exuded by the body of the spider and are arranged according to their movements. In that sense, they are extensions of the spider’s own being as it trails the environment. (INGOLD, 2012, p. 40) So, I feel myself as part of this network, and I can consider my sound work as a possible research about these artists voices, in a process mediated by the dialogue. According to Marilia Velardi (2018, p. 51-52): Artists know about the richness of the processes, how they involve order followed by chaos, followed by order [...] and chaos. They are about flow, fluency, stagnation, stops, discards and incorporations. How they are changed on the way and how often these ways is more interesting than the final results. To take care of the routes, to value the processes and narrate them in detail, errors and hits: this is perhaps the most important premise of those who thinks that research within and outside Arts can be inspired by artists in their processes, and not only by consecrated epistemologies or theory a priori. Especially if the proposal is to investigate living experiences put into the moving world. And doing a narrative that can be consistent with all this - and bring it to the Academy – looks more like a task, an urgency. To the Arts, but also for science and technology. 304 Iconografia musical na América Latina 6 Plots of sounds, images and voices 2016, May: Renata Roman and Natacha Maurer develop the Dissonantes project in São Paulo, Brazil, for visibility of the production of women composers: Isabel participates in the project with Leandra, with the Strana Lektiri duo. Leandra lives in Rio de Janeiro, Isabel lives in Porto Alegre, they work through online sound exchanges. On the same day, Sanannda Acacia played, she has a musical project in partnership with Bella, who also plays in the Dissonant Project, on another day. Marcela Lucatelli was also there and wrote a text for the Linda Review of Electroacoustic Culture about the participation of women in the Dissonantes project. Isabel makes a cut up from Marcela Lucatelli’s text and produced the song “Mar of dissonant alchemists”. Isabel begins writing a column for Linda Review of Electroacoustic Culture. The editors of the Linda Review of Electroacoustic Culture are Flora Holderbaum and Alessa Camarinha, who also work with sound creation and belong to the Sonora Music and Feminism Network, as well as Bella, Marcela, Isabel and Leandra. Marcela, Leandra, Bella and Isabel work with voice, technology and transformed sounds in their creations, using diverse artistic manifestations and think their images and trajectories as multimedia and intertextual. I am in this field, I participate in this movement, I use to create experimental music, to think and to write about that, there is no neutrality possible. During this work, I noticed a few things: as a first point, I notice that the reports were made for me, that people recorded their audios thinking and attending an invitation made by a named person, who knows them and participates in the same networks, the same environments, and shares interests. I understand that this generated reports that would be different if the author or the author of the proposal were someone else. When speaking, one speaks to someone, who sought to generate a kind of listening, by all the elements involved in this relationship. So, what I bring here does not come from this work alone, but from a built path, and that engages these people in themes and environments that are important not only to me, but to them as well. Using our own voices, telling our own herstories 305 An important and consciously chosen element was the email text of the invitation, which was intended to provide as much information as possible about the project, so that further clarification was not necessary to avoid influencing the narratives. At first, I was extremely happy with the number of positive responses, about thirty women answered affirmatively about the proposal to participate in the project, some of them commenting that they had never thought about this, those who felt instigated by the questions asked. I was interested in being careful not to interfere with the way of speaking, attempting to create a nice environment for their expression, in the way that could be the most appropriate, convenient and comfortable for them, to deconstruct the idea that only some forms of expression would be accepted, once this is an unexplained but recurrent message in musical circles. At the same time, I tried to deconstruct, as I could, and it seemed possible, my place as a researcher and university professor, seeking to demonstrate that there would be no wrong answers or inadequate settings, but that all their opinions and manifestations would be considered. It seemed to me that this meant applying the questions posed by feminist epistemologies about the importance of the horizontality of processes and the value of the speaking place of each of the interviewees. At the same time, the importance of the evidence of mobile subjectivities was put to me, as Margaret Rago puts it. For this reason, I notice that my place of speech is not only about the physical body and their performative crossings (BUTLER, 2000), but an expanded body, which encompasses the theoretical and documentary corpus I use in my productions, and how this production is read. 306 Iconografia musical na América Latina Figure 4 – Isabel Nogueira (02/05/1972) Source: Isabel Nogueira. 7 Final considerations The process of speaking about oneself is a challenge, since it implies a dive in their motivations and subjectivities, making choices about their own narrative forms. These diverse and nomadic elements point to the mobile subjectivities Margaret Rago speaks about, going beyond an essential feminine but considering the different forms of construction that cross the condition of gender. Not a single way to be a woman, not a choice of an image or a voice considering its beauty or seeking to please other people. The purpose of bringing musicology closer to artistic practices, involving creation and performance, is in the wake of the feminist epistemologies themselves, since we believe that music and gender research acquire their most significant Using our own voices, telling our own herstories 307 bias when articulated, defined and re-dimensioned with the practices, the artivisms (arts+ activism) and their links with different realities. We believe that the trajectories and projects, both artistic and academic, developed by the women participating in this research are at the same time demonstrations and examples of how spaces are articulated, symbolically and practically, for the development of feminine protagonism, for the questioning of traditionally generated places in the field of music, contemplating other repertoires and practices. I would like to bring Gloria Anzaldua’s words, that reflects the same purpose I have tried with this paper, to offer a way to think about gender and music through art- based research and feminist epistemologies: However, it is not enough to stand on the opposite bank of the river, shouting questions, defying patriarchal, white conventions. An opposing point of view binds us in a duel between oppressor and oppressed; closed in deadly combat, as police and thug, both are reduced to a common denominator of violence. ‘Counterpositioning’ refutes the views and beliefs of the dominant culture and is therefore proudly challenging. Every reaction is limited by, and subordinated to, that against which it is reacting. Because ‘counterpositioning’ springs from a problem with authority – both external and internal - it represents a step toward the liberation of cultural domination. However, it is not a way of life. At a certain point, on our way to a new consciousness, we will have to leave the opposite bank, with the cut between the two mortal combatants healed in some way, so that we are on both sides at the same time and at the same time, to see everything with snake and eagle eyes. Or perhaps we decide to disengage from the dominant culture, to erase it altogether as a lost cause, and to cross the frontier into new, separate territory. Or we can take another route. The possibilities are numerous, once we have decided to act instead of just reacting. (ANZALDÚA, 2005, p. 706) Creating new ways to develop research, combining musicological and iconography studies, and at the same time understanding they are always interpretative and there is no possible neutrality is, in my way of thinking, our challenge. On the way to a qualitative research that can include a feminist perspective, I would like to remember Freida Abtan’s words, when she says: Now when people ask me how to get more women involved in electronic music culture, I have two answers: share your skills with them, but also: share your friends with them. Remember that culture is something that we build together, 308 Iconografia musical na América Latina by doing, and teaching each other how to do. Host a workshop. Throw some shows. Promote each other’s work. Open up your files and show each other what you’re making, and more importantly, show each other how you’re making it. Help each other to get your art out into the world. Don’t worry if they don’t already know how to be involved, we are all going to build the future of music together. (ABTAN, 2016, p. 6) References ABTAN, Freida. Where is she? Finding the women in electronic music culture. Contemporary Music Review, Oxfordshire, v. 35, n. 1, p. 53-60, 2016. ANZALDÚA, Gloria. La conciencia mestiza/ Rumo a uma nova conciencia. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 704-719, set-dez. 2005. Translation of Ana Cecília Acioli Lima. BUTLER, Judith. Corpos que pesam. In: LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 153-172. DENZIN, Norman K. The seventh moment: qualitative inquiry and the practices of a more radical consumer research. Journal of Consumer Research, Oxford, v. 28, n. 2, p. 324-330, 2001. GREEN, Lucy. Música, género y educación. Madrid: Ediciones Morata, 2001. INGOLD, Tim. Lines: a brief history. Londres: Routledge, 2007. INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: Emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 18, n. 37, p. 25-44, 2012. NOGUEIRA, Isabel. Lugar de fala, lugar de escuta: criação sonora e performance em diálogo com a pesquisa artística e com as epistemologias feministas. Revista Vórtex, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 1-20, 2017. RAGO, Margareth. Feminismo e subjetividade em tempos pós-modernos. In: COSTA, Claudia de Lima; SCHMIT, Simone Pereira (org.). Poéticas políticas feministas. Florianópolis: Editora das Mulheres, 2004. p. 31-41. VELARDI, Marília. Questionamentos e propostas sobre corpos de emergência: reflexões sobre investigação artística radicalmente qualitativa. Revista Moringa Artes do Espetáculo: João Pessoa, v. 9, n. 1, p. 43-54, jan./jun. 2018. Using our own voices, telling our own herstories 309 Iconografia musical oculta Estudo de caso em marcas d’água1 Pablo Sotuyo Blanco 1 Levantando a questão Tem sido um longo caminho a partir das fichas originais de catalogação – em formato de cartões – utilizadas pelo Répertoire International d’Iconographie Musical (RIdIM) até o presente banco de dados on-line. Dois conjuntos de campos de dados distantes separados por 40 anos, com apenas um objetivo em comum: a catalogação descritiva de iconografia musical em nível mundial e a recuperação da sua informação. Como podemos ver nas fichas catalográficas – originalmente concebidas pelo Comitê Central em janeiro de 1973 –, a catalogação da iconografia musical era, então, focada na busca (e recuperação) de informações relativas ao autor – em seu primeiro nível –, à obra – incluindo seu título, locais correlatos e suas características em seu segundo nível – e a descrição 1 Versão traduzida, revisada e ampliada do texto apresentado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), durante a sessão RIdIM no congresso da IAML, realizado em Viena, no ano de 2013. 311 do “material visual com conteúdo ou conotação musical” 2 (CALDERISI, 1974, p. 23, tradução nossa) em seu terceiro nível, dentre outros detalhes (Figura 1). Figura 1 – Ficha original para catalogação RIdIM Frente Verso Fonte: Calderisi (1974, p. 25). 2 “visual material with musical content or connotation”. 312 Iconografia musical na América Latina A inclusão de uma pequena fotografia do item descrito na ficha de catalogação foi, certamente, um compromisso tecnológico entre o que a Ciência e Tecnologia da Informação foram capazes de fornecer naquele tempo e o que era realmente desejado. Talvez, como Alan Green brilhantemente expôs durante a sessão do painel RIdIM, na Conferência da International Musicological Society (IMS), em Roma, em 2012, o estado atual da tecnologia de computadores multimídia seria o que Barry Brook teria imaginado como a ferramenta “definitiva” na recuperação de informação para iconografia musical. (GREEN, 2012) Segundo Green (2012) explica, em seu relatório sobre a 9ª reunião do RIdIM em 1978, Barry Brook, claramente “antecipando a era da World Wide Web”, resumiu o painel de discussão sobre aplicação das novas tecnologias de informática para catalogação e recuperação de informação visual, como segue: Idealmente, os dados armazenados e computadorizados do RIdIM devem ter duas facetas: a) a informação catalogada deveria estar disponível para a recuperação via conexão telefônica, e b) a imagem em si deveria ser armazenada, talvez através de um método semelhante ao da televisão, produzindo uma reprodução imperfeita na tela para identificação [...] o aspecto catalográfico de informatização já foi testada; o verdadeiro problema está na sua junção com a exibição dos materiais visuais armazenados.3 (BROOK; CALDERISI, 1979, p. 127, tradução nossa) Enquanto ganhamos em especificidade e complexidade, poderíamos ter perdido um pouco da simplicidade e adaptabilidade que todo o processo de catalogação descritiva teve originalmente. Em algum momento deste processo histórico de 40 anos, aparentemente a informação relevante para iniciar a catalogação sofreu grandes transformações, relocando o tipo de objeto – ou item, como se denomina atualmente – como uma preocupação de primeiro nível para todo o processo. Isso pode ser interpretado sem rodeios, como se a questão “o que é” fosse mais importante do que aquelas que dizem respeito ao autor ou 3 “Ideally, computerized and stored RIdIM data should have two facets: a) the catalogued information should be available for retrieval on a dial-up basis, and b) the picture itself should be stored, perhaps through a method similar to that of television, producing an imperfect reproduction on the screen for identification. A better copy can be made, if desired, from microform files. Through the latter approach, materials could be made available in areas that do not have sophisticated computer facilities. The cataloguing aspect of computerization has already been tested; the real problem is in joining it to the display of stored visual materials”. Também citado em Green e Ferguson (2013, p. 3). Iconografia musical oculta 313 seu título, dentre as informações necessárias para tornar público um registro catalogado no banco de dados on-line do RIdIM (Figura 2). Assim, o tipo de item parece ter ganhado uma relevância tal que, aparentemente, nenhum registro deveria ser publicado pelo Corpo Editorial central do Association RIdIM, sem primeiro determiná-lo no registro, mesmo que isso possa distorcer a natureza do item devido a uma incompleta – ou taxonomicamente questionável – lista de tipos de item disponível. Figura 2 – Primeiro nível do formulário de catalogação da base de dados on-line do Association RIdIM Fonte: base de dados on-line do RIdIM (2018).4 Talvez essa redefinição conceitual ao longo do tempo responda a uma cadeia sutil de condições concatenadas na relação entre termos tais como item, material e meio (dentre outros) que, muito provavelmente, começou com a fusão conceitual entre obra/objeto na versão anterior do banco de dados on-line do 4 Disponível em: https://db.ridim.org/item_form.php. 314 Iconografia musical na América Latina RIdIM, assim modelando a presente situação da natureza aparentemente “objetificante” do item. Segundo já discutimos oportunamente (SOTUYO BLANCO, 2017; SOTUYO BLANCO; ARAÚJO, 2016), no intuito de acomodar as demandas científicas relativas à iconografia musical, essa noção de item – e a lista de possibilidades a ela atrelada – precisou ser discutida taxonomicamente, depois de breves considerações ontológicas, para poder chegar a suas tipologias de forma mais firme e segura.5 2 De Rerum et Imago Naturae: considerações sobre ontologia e taxonomia de tipos de item Tendo em vista que qualquer sistema de classificação deveria refletir uma estrutura taxonômica que responda a uma organização de tipo árvore hierarquicamente definida, em termos gerais, pode-se dizer que os tipos de itens nas fontes visuais carecem de uma certa construção taxonômica lógica, refletindo aparentemente uma falta de consenso acerca do “quê” as fontes visuais são ou “do quê” elas podem ser feitas – isto é, buscando uma definição de fronteiras por meios ontológicos – e, então, a partir daí, discutir como organizar todo o conjunto, assim definindo uma espécie de hierarquia de relações entre ambos conteúdos informacionais. Como um exemplo claro do que se quer dizer aqui, pode-se usar o sistema de classificação para instrumento musicais de Hornbostel-Sachs. Mesmo com seus problemas internos, está ainda em uso generalizado entre os estudiosos – superando os seus principais críticos –,6 porque ela foi construída e organizada de acordo com uma estrutura muito clara, que começou com uma simples pergunta: o que é comum a todos os instrumentos de música? Eles produzem som sob demanda, principalmente de acordo com: a) os seus materiais de vibração; b) como são modelados e produzidos; e c) como eles são utilizados. 5 Para melhor entendimento dos conceitos de “taxonomia” e “tipologia” utilizados na nossa produção cf. Meyer; Tsui e Hinnings (1993). 6 Para uma exaustiva revisão de literatura relativa ao Sistema H-S, cf. Araújo e Sotuyo Blanco (2017). Iconografia musical oculta 315 Essa ordem organizada de quesitos, como galhos de árvores, sustenta – em termos gerais – toda a taxonomia organológica do sistema de classificação de instrumentos musicais desenvolvido por Hornbostel e Sachs. Agora, com relação à iconografia musical, mesmo sendo capazes de iniciarmos uma taxonomia de tipos de itens em formato de árvore que seja elegante, hierárquica, includente e abrangente, pedindo emprestadas ferramentas de disciplinas como a biologia, por exemplo, incluindo o uso de nomenclaturas latinas únicas para cada uma de todas as combinações possíveis de obra/ objeto, meios, materiais e técnicas, assim permitindo incluir tantas ramificações segundo fossem necessárias, dito esforço constituiria um tour-de-force altamente contraproducente para o momento presente. Principalmente porque um dos erros mais comuns é assumir que a iconografia precisa ter um tipo de matéria tangível, que pode ser utilizada para definir e organizar o seu primeiro nível de classificação e, consequentemente, catalogá-la. Talvez isso fosse verdade antes da era digital, quando a realidade virtual e outros elementos ou aspectos digitais, eram apenas um sonho dos escritores de ficção científica e seus fãs. Assim, entender a iconografia musical em nível documental, como o conjunto de fontes visuais relativas à cultura música – sejam ornamentais, decorativas e/ou ilustrativas –, em duas ou três dimensões, fixas ou móveis, independentemente de seus meios, fabricação e/ou exposição/visão é, para dizer o mínimo, uma ideia bastante conservadora. Certamente, essa definição precisa de melhorias para alargar suas fronteiras. O website oficial da Association RIdIM diz claramente: [RIdIM] se ocupa da catalogação de fontes visuais com temática musical e, em segundo lugar, funciona como um marco de referência para a sua interpretação. Assim, o objetivo principal do RIdIM é o desenvolvimento de métodos, meios e centros de pesquisa para a classificação, catalogação e estudo das fontes iconográficas relacionadas à música. (ASSOCIATION RIDIM, [201-], grifo nosso) A iconografia musical é, em primeiro lugar e sem lugar a dúvidas, visual, sem necessidade de qualquer outra consideração relativa à natureza do seu material, seu suporte ou os meios utilizados na sua realização. Aquilo que vemos contendo assunto relacionado à música é o que chamamos de iconografia musical. No entanto, essa afirmação tem dois aspectos entrelaçados: um físico e outro cultural. 316 Iconografia musical na América Latina No aspecto físico, sendo a iconografia musical uma fonte visual relativa à música, ela precisa ser vista por algum dos meios disponíveis ao observador. Nesse mesmo sentido da visibilidade, da mesma forma que uma vez precisamos expandir os limites do campo da iconografia musical a fim de incluir fontes visuais que precisam de intermediação tecnológica para serem vistas com clareza – como negativos de fotos, slides e fotogramas de filmes –, somos obrigados a fazê-lo mais uma vez para incluir as imagens relativas à cultura musical que parecem estar escondidas ao olho nu pela própria natureza de sua produção, precisando de atitudes especiais para identificá-las e expô-las, assim divergindo da atitude geralmente esperada. Seguidamente, uma outra questão precisa ser levantada. Aquilo que define a relação temática da fonte visual com a música pode ser algo que esteja frequentemente incorporado em cada discussão específica, contudo, geralmente assumido como conhecida: a nossa própria carga ou matriz cultural – única ou múltipla. Essa carga parece estar incorporada na definição da lista de tipos de itens, embora não se restrinja a ela. Qualquer iconografia musical, independentemente do seu material ou meios de realização e/ou percepção, tem um peso cultural: a sua própria maneira de funcionar na cultura e na sociedade. Parafraseando a discussão tradicional de Merriam (1964, p. 209-227) sobre os usos e funções da música na sociedade, a iconografia musical tem usos e funções que ainda precisam ser melhor definidos e discutidos, pois eles são uma parte importante delas. Apesar de que o grande uso social e/ou cultural da iconografia música seja ornamental, decorativo e/ou ilustrativo, ela também pode funcionar dentro dos mesmos parâmetros discutidos por Merriam porque opera na cultura e na sociedade comunicando valores e ideias, mantendo (ou desafiando) tradições e definindo sentidos de propriedade – e por extensão, de alteridade –; ou seja, ativando diversos tipos de mecanismos culturais e/ou sociais, por assim dizer. A partir daí, é preciso agora definir a inclusão da iconografia musical não visível a olho nu: as marcas d’água relativas à música. Iconografia musical oculta 317 3 O que dizer acerca das marcas d’água relativas à música? De acordo com Stanley Boorman ([200-], tradução nossa), as marcas d’água são Os vestígios deixados no papel pela utilização de desenhos nos moldes ou correias (‘fios’) utilizadas para a sua fabricação. Estes geralmente aparecem como um afinamento da textura do papel quando a folha é observada a contraluz. As marcas têm uma história de mais de 700 anos no Ocidente, e continuam a ser utilizadas até os dias atuais (especialmente em papel moeda). Desde que as marcas foram usadas como identificadores do papel, e uma vez que eles variam consideravelmente ao longo do tempo e segundo o local, eles são de grande valia para o estudioso na tentativa de datar ou localizar manuscritos. [...] As marcas d’água são uteis para o estudioso, por três razões. O usuário do papel raramente ou nunca se importou com a folha de papel específica ou com a marca d’água que continha; assim, em primeiro lugar, as marcas podem ser tomadas para representar algo específico sobre o documento, sem as distrações de quaisquer influências sociais ou culturais externas que poderiam afetar estilos de caligrafia e decoração. A segunda razão reside na grande variedade de desenhos de marca d’água e o vasto território em que elas podem ser localizadas; e a terceira razão depende da maneira pela qual cada molde era único, deixando uma marca d’água que não seria exatamente duplicada e de relativamente curta duração, se deteriorando sob o peso de sequências sem fim de polpa de papel ensopado em água. Cada molde tem uma vida útil que vai depender das circunstâncias, mas moldes parecem ter tido uma vida útil máxima de cerca de três ou quatro anos antes de serem substituídos. Da mesma forma, o estoque de papel mantido por um papeleiro teria se esgotado com a maior frequência possível (por simples motivos comerciais), de modo que o papel feito com um molde particular normalmente deixaria o moinho de papel e a papelaria a poucos anos da sua fabricação.7 7 “The traces left in paper by the use of designs in the moulds or belts (‘wires’) used for its manufacture. These usually show as a thinning of the paper’s texture when a sheet is held up to the light. Marks have a history of over 700 years in the West, and continue to be used to the present day (especially in currency). Since marks were used as identifiers of the paper, and since they vary considerably over time and place, they are of great value to the scholar attempting to date or localize manuscripts. […] Watermarks are of use to the scholar for three reasons. The user of the paper rarely if ever cared about the specific sheet of paper or the watermark it contained; so, first, the marks can be taken to represent something specific about the document, without the distractions of any outside social or cultural influences that could affect styles of handwriting and decoration. A second reason lies in the vast range of watermark designs and the extent to which they can be localized; and the third depends on the manner in which each mould was unique, leaving a watermark that would not be exactly duplicated, and relatively short-lived, deteriorating under the weight of endless sequences of water-sodden paper-pulp. The individual mould has a lifespan that will depend on circumstance, but moulds seem to have had a maximum life of about three or 318 Iconografia musical na América Latina Embora haja um consenso geral em torno da definição de marca d’água descrita por Boorman, assim como do seu uso e proveito históricos, o uso acadêmico de marcas d’água não pode ser reduzido a esses três motivos. Em primeiro lugar porque, como em qualquer processo humano de produção-consumo no espaço sociocultural, as assim chamadas “influências sociais ou culturais externas” já estavam incorporadas na textura do papel e no desenho da marca d’água do seu produtor. Em segundo lugar, porque esses mesmos aspectos – textura de papel e marca d’água – podem certamente afetar o seu uso por escritores, músicos, artistas ou qualquer outra pessoa, em função das suas preferências por um tipo de papel ou de outro. O papel não é um mero portador ou suporte vazio. Mesmo a Associação Internacional de Historiadores do Papel, do inglês International Association of Paper Historian (IPH) começou a discutir marcas d’água como arte decorativa durante o seu 31º Congresso em 2012.8 O “Índice de classes e subclasses de marcas d’água” do IPH, empregando 25 categorias ligadas a um código alfabético (de A à Z, sem a letra I), inclui não apenas instrumentos musicais (sob a letra-código O), mas também muitas outras classes que eventualmente podem incluir motivos relativos à música, como se mostra (em negrito) na Tabela 1. De acordo com Harris (2017, p. 59, tradução nossa), “O sistema do IPH tem sido aplicado em alguns projetos de pequena escala, [...] mas, de todos os modos, não parece ter ganhado uma aceitação em larga escala”.9 four years before they were replaced. In the same manner, the stock of paper held by a stationer would have turned over as frequently as possible (for simple commercial reasons), so that paper made with a particular mould would normally have left the papermill and the stationer’s shop within a very few years of its manufacture”. 8 Congresso realizado de 17 a 19 de setembro de 2012 nas cidades de Bade-Vurtemberga (Alemanha), Basileia (Suíça) e Alsácia (França). Mais informação disponível em: http://www. paperhistory.org/news.ht. 9 “The IPH system has been applied in some small-scale projects, […], but otherwise has not gained wide-spread acceptance”. Iconografia musical oculta 319 Tabela 1 – Lista do código alfabético do IPH e categorias das marcas d’água correspondentes Código alfabético Categorias A Figuras humanas; homens; partes do corpo B Mulheres C Mamíferos D Pássaros E Peixes; répteis; insetos; moluscos F Figuras míticas G Plantas (em geral); flores; grama H Árvores; arbustos; trepadeiras J Céu; terra; água K Construções; partes de construções L Transportes; veículos M Defensa e armas N Ferramentas; equipamento; roupa O Instrumentos musicais P Containers Q Miscelânea de objetos R Insígnia de patente; maça, cetro, joias S Símbolos e sinais religiosos ou mágicos T Heráldica; brasão de armas; marcas de construtor; marcas de comerciante U Figuras geométricas V Números; numerais W Letras individuais X Monogramas; abreviaturas com letras Y Nomes; palavras Z Marcas d’água não classificáveis Fonte: adaptado de Harris (2017, p. 58). À primeira vista, a estrutura do sistema do IPH assemelha-se mais ou menos ao sistema de classificação de iconografia denominado Iconclass, principalmente devido aos seus rótulos de estrutura do primeiro nível, como se mostra na Tabela 2. 320 Iconografia musical na América Latina Tabela 2 – Distribuição do primeiro nível do sistema de classificação Iconclass Código numérico Conteúdo de primeiro nível 0 Abstrato, Arte não-representacional 1 Religião e magia 2 Natureza 3 Ser humano, homem em geral 4 Sociedade, Civilização, Cultura 5 Ideias e conceitos abstratos 6 História 7 Bíblia 8 Literatura 9 Mitologia clássica e História Antiga Fonte: adaptado de Iconclass (c2012). Mesmo que o sistema de classificação Iconclass pareça estar melhor desenvolvido e estruturado do que o do IPH para marcas d’água – sem mencionar a sua maior aceitação –, nenhum dos dois pode ser considerado, strictu sensu, taxonomicamente preciso, porque a divisão categórica não responde a uma estrutura hierárquica clara. Por que História Antiga está separada de História? Por que Bíblia não está incluída em Literatura ou em Religião e Magia? Assim, sem uma “coluna vertebral” no primeiro nível – assim definindo os subníveis posteriores –, o máximo que pode ser dito sobre esses dois sistemas classificatórios é que ambos definem uma série de categorias arbitrárias que são carregadas culturalmente. Assim, qualquer compreensão dos objetivos de reunir e recuperar informação iconográfica em nível mundial por parte do RIdIM precisa resolver este desafio de forma inter ou mesmo multi-cultural. Outro exemplo desse tipo de tendência taxonômica é o projeto “Bernstein – Memória do papel”, que apresenta o seu conteúdo organizado numa estrutura do tipo árvore, cujo primeiro nível – desprovido de qualquer codificação alfanumérica visível (Figura 3) – é tão arbitrário e culturalmente tendencioso como os casos anteriores (Tabela 3), espécie de divisão estrutural semelhante. Esse projeto, desenhado como portal na web que vincula diversas iniciativas institucionais dedicados ao papel, conhecimentos relativos a ele e à sua história, em diversos países (THE BERNSTEIN CONSORTIUM, 2018), oferece uma interface de busca on-line que vincula, atualmente, 38 bancos de dados relativos a Iconografia musical oculta 321 marcas d’água,10 disponibilizando um conteúdo com mais de 248 mil exemplos – em torno de 12 mil registros menos que os mais de 260 mil disponíveis em 2013. Essa aparente redução no número de registros pode ser eventualmente explicada quando consideradas as possíveis falhas de consistência na administração dos registros entre as diversas bases de dados, devido a divergências na arquitetura da classificação. Segundo informa a interface: “[a ferramenta] Procurar motivo só funciona corretamente para as bases de dados de marcas de água que utilizem a classificação Bernstein modificada por WZIS (WZIS, WZMA, WIGB, IVC+R)”.11 (THE BERNSTEIN CONSORTIUM, 2018, grifo do autor) Ao observar o montante de registros que o WZIS compartilha no projeto Bernstein – mais de 54% do total – se entende porque é ele quem define a sistemática a ser utilizada pelos demais bancos de dados. Tabela 3 – Distribuição do primeiro nível da organização do projeto Bernstein Ordem 1 Conteúdo de primeiro nível Figuras, antropomórficas 2 Fauna 3 Figuras mitológicas 4 Flora 5 Montanhas/astros 6 Objetos 7 Símbolos/insígnias 8 Figuras geométricas 9 Brasões 10 Marcas 11 Letras/algarismo 12 Marca indefinida Fonte: adaptada de The Bernstein Consortium (2018). 10 Completando assim 25 a mais que as 13 disponíveis na versão apresentada no congresso da IAML em 2013. 11 As siglas WZIS, WZMA, WIGB, IVC+R representam, respectivamente, ás bases de dados do Wasserzeichen Informationsystem, Wasserzeichen des Mittelalters, Watermarks in Incunabula printed in Great Britain, e Institut Valencià de Conservació i Restauració. 322 Iconografia musical na América Latina No entanto, ao observar a sistemática utilizada, segundo foi dito anteriormente, os princípios estruturantes não parecem ter critérios consistentes de organização temática, permitindo assim um importante grau de superposição de categorias e subcategorias e, consequentemente, de equívoca localização das marcas d’água e, finalmente, de controle da informação a ser recuperada. Como exemplo, observemos as duas subcategorias relativas à música, ambas inseridas na categoria de objetos (ou realities – identificadas com o número 6): os instrumentos musicais (nível 6.6) e os sinos (nível 6.9) (Figura 4). Fora a questão inicial de se ter separado os sinos dos restantes instrumentos musicais – o que denota uma visão preconcebida e sem fundamento de ambos conjuntos –, quando observamos em detalhe cada um deles, detectamos que os instrumentos musicais compreendem dez subcategorias de terceiro nível, incluindo os guizos no seu nível 6.6.9 (Figura 4). O problema aparece quando o usuário realiza buscas usando termos controlados unicamente em inglês e, nesse caso, ambos tipos de marcas d’água são denominados com o mesmo termo “bell”, gerando assim problemas na informação recuperada e inconsistências nos volumes de registros em cada nível. Por não mencionar os problemas de ruído de informação gerados ao buscar trompas (horn) e recuperar trompas misturadas com chifres de diversos animais. Ainda, algumas das suas tipologias retornam registros que poderiam estar incluídos no nível 1 – Figuras antropomórficas, como nos casos das harpas, os trompetes e os guizos, incluídos na Tabela 4. Iconografia musical oculta 323 Figura 3 – Vista geral das categorias de primeiro nível do projeto Bernstein Fonte: adaptada de The Bernstein Consortium (2018). Figura 4 – Detalhe da subclasse “Instrumentos Musicais” no segundo nível do projeto Bernstein Fonte: adaptada de The Bernstein Consortium (2018). 324 Iconografia musical na América Latina 4 O que podem dizer as marcas d’água relativas à música sobre a produção em papel de um artista? Embora se possa argumentar que a simples representação de marcas d’água de instrumentos musicais, sem quaisquer outros elementos – ou contextos – dificilmente poderia ser usada como evidência visual relacionada à música em qualquer pesquisa musicológica séria, é exatamente ali onde se faz necessária uma percepção mais abrangente da questão como um todo: afinal, a simples representação não é tão simples quanto parece. Por um lado, isso acontece porque ainda precisa ser desenvolvido um estudo comparativo profundo sobre como e por que os fabricantes de papel escolhiam ou definiam seus identificadores não visíveis. Por que foram os sinos ou trompas – sozinhos ou combinados com outros elementos – tão amplamente difundidos como marcas d’água? O que era que seus proprietários acreditaram ou gostariam que eles pudessem representar ou significar para os outros – além da propriedade comercial –? Por outro lado, a identificação de marcas d’água na produção cultural de qualquer tipo baseada no papel pode não apenas reforçar a ideia de um mercado internacional do papel, mas também das relações socioeconômicas entre pessoas, cidades, regiões e até mesmo países, cortes e reinos. Entre os muitos exemplos bem documentados, A obra religiosa de Marcos António Portugal, 1762-1830, pesquisa brilhantemente realizada por António Jorge Marques em 2012, inclui – entre muitos outros aspectos relevantes – um estudo aprofundado das marcas d’água encontradas em toda a sua produção musical sacra. O que fica claro através de sua leitura é que de modo algum pode a sua escolha sobre os tipos e qualidades de papel – mesmo mudando ou se adaptando a cada momento da vida ou local em que morou – ser considerado insignificante. Um par de exemplos pode lançar alguma luz sobre esse assunto. A preferência de Marcos Antonio Portugal pelo papel italiano – como foi o produzido por Giorgio Magnani (Figura 5) ou pelo britânico – sobretudo aquele identificado como sendo produzido por J. Budgen (Figura 6) diz muito sobre o seu status social e os recursos financeiros à disposição, incluindo o contexto social, político e econômico (cultural) nos quais esteve imerso. Também pode mostrar o quanto ele estimava sua própria produção musical assim como sua rede social e de patronos. As marcas d’água são testemunhas silenciosas dessas escolhas sutis que, ao mesmo tempo, funcionam como “cartões de apresentação” Iconografia musical oculta 325 pela qualidade que transferem ao registro neles fixado. Na qualidade do papel, se apoia uma apresentação escrita diferenciada devido a uma relação sutil entre as qualidades de origem e fabricação dos bicos de pena, dos tipos de tinta e das formas e cuidados no uso do papel. Figura 5 – Trompa dentro de brasão coroado / marca d’água GM (contramarca AL MASSO) Itália, Giorgio Magnani [?]; c.1806-1822; ≈Wolfe 22 Fonte: Marques (2012). 326 Iconografia musical na América Latina Figura 6 – Trompa dentro de brasão coroado com três flores de lis / marca d’água JB (J BUDGEN / 1813 contramarca) Inglaterra, desde 1813 ≈Shorter 18 Fonte: Marques (2012). Uma discussão relativa à análise iconográfica/iconológica das marcas d’água relativas à música em papel pode levar a sua melhor compreensão incluindo em quais termos isso poderia acontecer. 5 O que a análise iconográfica/iconológica pode dizer sobre marcas d’água relativas à música? Além de instrumentos musicais isolados, as marcas d’água também contêm representação de figuras cuja descrição disponível através do projeto Bernstein Iconografia musical oculta 327 pode ser discutida e, portanto, reforçada por uma minuciosa análise iconográfica musical e, eventualmente, iconológica musical. Para além dos exemplos incluídos na Tabela 4 – homem tocando harpa, sereia tocando trompete, ou bufão com guizos no seu chapéu –, selecionamos um exemplo cujo estudo de caso, esperamos, nos ajudará a responder à questão aqui colocada. Embora o exemplo analisado na apresentação realizada em 2013, representando uma sereia segurando o que os catalogadores então descreveram como uma esfera, tenha atualmente a sua descrição modificada, reinterpretando a outrora menção da esfera como sendo (agora) um espelho (Figura 7),12 não faltam exemplos semelhantes no projeto Bernstein, ainda referindo objetos tridimensionais esféricos.13 Figura 7 – Sereia com nadadeiras e espelho na sua mão Fonte: Wasserzeichen des Mittelalters (2018). Lembrando que sereias são seres mitológicos com corpo de mulher – da cintura para cima – e cauda de peixe,14 as suas representações visuais podem ser 12 Marca d’água localizada no Universitäts- und Landesbibliothek Tirol de Innsbruck, Áustria, identificada como Cod. 738. 13 Gostamos de pensar que o nosso trabalho teve, por mínimo que fosse, algo a ver com a mudança na descrição da marca d’água reproduzida na Figura 7. 14 Diferentes das mitológicas sirenes, que possuem cabeça de mulher e corpo de pássaro, semelhantes às harpias. 328 Iconografia musical na América Latina rastreadas até o tempo das antigas moedas gregas (Figura 8). Desde então elas evoluíram em símbolo intercultural cujos atributos variam através do tempo e do espaço geográfico. Como veremos, um longo caminho desde as suas origens mediterrâneas. Figura 8 – Moeda cunhada por Demetrius III Eucaerus (?-88 AC - esq.), com a deusa assíria Atargatis (dir.) como peixe com cabeça humana, com véu, segurando flores e com talos de cevada em cada ombro. A legenda aos lados diz: “Rei Demétrio, Deus, Pai amoroso e Salvador”15 Fonte: Wikimedia Commons.16 Entre os 319 exemplos de sereias encontrados em 15 diferentes bancos de dados ligados ao projeto Bernstein,17 existem dez exemplos – na base de dados identificada como WIGB18 – nos quais o círculo presente na marca d’água aparece descrito como globo (globe), junto a outros 11 exemplos – na base de dados identificada como Wittek19 – nos quais o círculo é descrito como bola (ball). Enquanto as catalogadas na base dados de Wittek – identificadas com os números de referência 1847 a 1855, e 2395 a 2396 – foram utilizadas entre 1464 a 1482, em Troyes, as incluídas no projeto WIGB – identificadas com os números de referência 7, 57, 408 a 410, 682, 972, e 1261 a 1263 –, foram produzidas por 15 “ΒΑΣΙΛΕΩΣ ΔΗΜΗΤΡΙΟΥ ΘΕΟΥ ΦΙΛΟΠΑΤΟΡΟΣ ΣΩΤΗΡΟΣ”. Transliteração: “Basileos Dimitriou Theou filopatoros sotiros”. 16 Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:DemetriusIIICoin.png. 17 Dados conferidos até a data da última revisão deste texto. 18 Sigla referente ao projeto Watermarks in Incunabula printed in Great Britain (WIGB). 19 Sigla referente ao projeto Martin Wittek: Inventaire des manuscrits de papier du XVe siècle conservés à la Bibliothèque Royale de Belgique et de leurs filigranes. KB Brussels. Iconografia musical oculta 329 John Lettou e utilizadas entre 1480 e 1486 em Londres, Westminster e Oxford. Em resumo, falamos de marcas d’água produzidas e utilizadas na segunda metade do século XV em cidades da França e da Inglaterra. Sendo todas elas cidades ribeirinhas de importantes vias fluviais20 não parece estranho os fabricantes terem escolhido o motivo geral da sereia para identificar a produção local de papel. Observando-se novamente as marcas d’água selecionadas – Figuras 9 e 10 intencionalmente semelhantes à da Figura 7 – o que ainda nos intriga é entender como os catalogadores puderam identificar especificamente como uma esfera – seja nomeada como globo ou bola – o que aparece como uma simples figura bidimensional, sobretudo se considerados os meios de produção da marca d’agua (fios de arame). Figura 9 – Exemplos de sereias com nadadeiras, segurando uma bola (?) na sua mão (apud Wittek) Fonte: Projeto Bernstein.21 Figura 10 – Exemplos de sereias com nadadeiras, segurando um globo (?) na sua mão (apud WIGB) Fonte: Projeto Bernstein.22 20 Troyes se conecta com Paris – e com o mar aberto – pelo Rio Sena, enquanto Oxford se conecta com Westminster e Londres pelo Rio Tamisa. 21 Disponível em: http://www.memoryofpaper.eu/BernsteinPortal/appl_start.disp. 22 Disponível em: http://www.memoryofpaper.eu/BernsteinPortal/appl_start.disp. 330 Iconografia musical na América Latina À primeira vista, poderíamos dizer que a bola (ou globo) que parece segurar em sua mão poderia ser reinterpretado como uma espécie de espelho, atributo muito comum na iconografia de sereias, sendo acompanhada (ou não) por um pente, ambos (espelho e pente) como símbolos usuais da vaidade e ilusão (Figuras 11 e 12). Figura 11 – Representação de sereia com espelho e pente Fonte: Psalterius Davidicus (1325-1340, fl. 70v). Figura 12 – Sereia penteando seu cabelo e se admirando num espelho Fonte: GKS 1633 4º: Bestiarius (séc. XV, fl. 60r). Sua tradicional natureza sedutora e fatal, sobretudo com relação aos marinheiros que se deixariam levar pelo seu canto – “natureza” historicamente construída para simbolizar o perigo de afogamento nas águas profundas e escuras da emoção, da paixão e da luxúria –, a fez permanecer entre os párias da Arca de Noé (Figura 13). Mesmo na cultura religiosa afro-brasileira, Iemanjá, a divindade Iconografia musical oculta 331 do mar no candomblé, é geralmente representada como uma sereia com um espelho em suas mãos (Figuras 14 e 15). Figura 13 – Sereia com espelho fora da Arca de Noé Fonte: Bíblia (1483, Gen. 6,1-8,22). Figura 14 – “Iemanjá” (1969). Manuel do Bonfim (1928-2016). Casa do Peso, Rio Vermelho, Salvador (Bahia, Brasil) Fonte: Ramos (2013). 332 Iconografia musical na América Latina Figura 15 – “Iemanjá”. Tati Moreno. Praia do Rio Vermelho, Salvador (Bahia, Brasil) Fonte: El-Bainy (2016). No entanto, os espelhos e pentes não são os únicos objetos que as sereias costumam segurar em suas mãos nas representações iconográficas. Há uma vasta gama de itens que pode ser encontrada nas mãos das sereias ao longo da cultura visual ocidental, quando se observa a iconografia correlata, incluindo a própria cauda (Figura 16), um peixe (Figura 17), um livro (Figura 18) e, dentre outras e diversas coisas, instrumentos musicais inclusive (Figuras 19). Iconografia musical oculta 333 Figura 16 – Sereia segurando sua cauda dupla Fonte: Ortus Sanitatis (1491, Tractatus de Piscibus, cap. LXXXIII, fl. dd iiii recto). Figura 17 – Tritão vestido como monge segurando um peixe Fonte: Liber de naturis bestiarum ([meados do séc. XIII], fl. 26r). 334 Iconografia musical na América Latina Figura 18 – Sereia com um pequeno livro. Artista desconhecido, alto relevo, Catedral de Clonfert (Condado de Galway, Irlanda) Fonte: Wikimedia.org. Figura 19 – Sereias com shawm [corneto?] (esq.), rebec (centro) e harpa (dir.). Artista desconhecido. Madeira pintada, 1109-1114 Fonte: Teto da Igreja Românica de St. Martin, Zillis-Reischen, Grisons, Suiça.23 Essas sereias musicistas, pintadas sobre madeira no teto da Igreja Românica de St. Martin, a inícios do século XII, certamente não são a exceção à tendência cultural ocidental de representar uma crescente diversidade de instrumentos 23 Ver imagens em: http://www.flickr.com/groups/1102568@N24/pool/28433765@N07/?view=lg: (esq.), http: //www.flickr.com/photos/28433765@N07/3336874653/in/faves-kimipryor/ (centro), e http://www.flickr.com/photos/ 28433765@N07/3337703662/in/photostream/ (dir.). Iconografia musical oculta 335 musicais aparentemente sendo executados por criaturas mitológicas ao longo do tempo. A lista de instrumentos musicais que os artistas representaram nas mãos das sereias é tão grande que poderiam ser agrupados em classes, com predominância de cordofones – como a viola, o violino e a harpa (Figuras 20), o alaúde [ou vihuela?]24 (Figura 21), e mesmo o charango (Figuras 22)25 e aerofones, tanto isolados (como as trombetas na Figura 23) ou a concertina (Figura 24), quanto fazendo parte de pequeno conjunto instrumental – como o integrado pelo shawm e a lira da Figura 25 –, assim como também compondo – e até mesmo aparentemente regendo – uma espécie de banda de sopros marinha (Figura 26), todos eles carregados do simbolismo e viés cultural (moral e religioso) que autores tais como Jewitt (1878) e Leclerc-Marx (1997), dentre outros, já discutiram suficientemente. Figura 20 – Azulejos de sereias com viola (esq.), violino (centro) e harpa (dir.) Artista desconhecido. Delft, ca.1630-1660 Fonte: Artista desconhecido, Delft, séc. XVII 26 24 Vistarini e Cull (1999, p. 728) denominam o instrumento representado como “vihuela”. 25 Turino (2005) desenvolve um trabalho importante sobre a aparição da sereia no Peru pré-colombiano e sua associação com os cordofones nessa região. 26 Ver imagens em: https://www.antiquetileshop.com/antique-dutch-delft-tile-with-a-mermaid-playing-the-violin-17th-century.html;https://www.antiquetileshop.com/antique-dutch-delft-tile-with-a-merman-playing-on-a-violin-17th-century.html; e https://www.antiquetileshop. com/antique-delft-tile-in-blue-with-a-mermaid-playing-on-a-harp-17th-century.html. 336 Iconografia musical na América Latina Figura 21 – Sereia com alaúde [vihuela?] Fonte: Romaguera, Emblema XII - Pectora Mulcet (1681, p. 117). 27 Figura 22 – Sereias com charangos. Simon de Asto, talha em pedra (1757). Catedral de Puno (Peru) Fonte: Cornejo (2007). 27 Também referido em Reza Vázquez (2008, p. 1334). Iconografia musical oculta 337 Figura 23 – Azulejo de sereia com trombetas (Delft, ca.1650) Fonte: Artista desconhecido, Delft, séc. XVII.28 Figura 24 – Sereia com concertina sentada sobre peixe. Josefina Aguilar (cerâmica, policromia, 1988), Ocotlan, México Fonte: Wasserspring (2000, p. 81) e Folk Art Oaxaca (2018). 28 Ver imagem em: https://www.antiquetileshop.com/antique-dutch-delft-tile-depicting-a-mermaid-with-two-trumpets.html. 338 Iconografia musical na América Latina Figura 25 – Sereias com um shawm, uma lira e aparentemente cantando para Ulisses amarrado ao mastro Fonte: Alciato (1584, p. 160, 1591, p. 139). Figura 26 – Sereia com rebec e shawm (frente-esquerda), aparentemente comandando uma “banda de sopros” integrada por criaturas marinas junto a uma segunda sereia (fundo-direita) com Netuno (centro) Fonte: Conty (ca. 1496-1498, fol. 130v). Iconografia musical oculta 339 Embora com frequência menor, membranofones e idiofones foram também representados nas mãos das sereias. Assim aparecem durante o século XIII, na Catedral de Exeter, na Inglaterra (Figura 27), o século XIV, seja em local desconhecido da França (Figura 28) ou no palácio episcopal de Beauvais (Figuras 29 a 31) e, mais tarde, na Sala das Sereias no Palácio Nacional de Sintra, em Portugal, a finais do século XVII (Figuras 32 a 34). Assim, triângulo, tamborins e pandeiros podem ser adicionados à nossa lista, a fim de ampliar o alcance da diversidade instrumental e cultural musical das sereias musicistas desde os tempos medievais. Figura 27 – Duas sereias com um tambor sobre uma máscara ou cabeça. Artista desconhecido (alto-relevo, 3º quartel do séc. XIII), Catedral de Exeter, Inglaterra Fonte: Bond (1910, p. 7). 340 Iconografia musical na América Latina Figura 28 – Sereia com tamborim (Escultura em calcário, séc. XIV), [s.l.], França Fonte: Centre de Monuments Nationaux. Regard. Banque d’Images des monuments.29 Figura 29 – Sereias musicistas. Artista desconhecido (Teto de madeira pintado, ca. 1313), Palácio Episcopal, Beauvais, Oise, França Fonte: Cordier (2015). 29 Ver em: http://www.regards.monuments-nationaux.fr/en; https://www.reproductions.regards. monuments-nationaux.fr/web_gallery.jsp?tag=true&search=entablement&page=3. Iconografia musical oculta 341 Figuras 30 – Sereias com tromba marina (esq.) e com flauta e tambor (dir.). Artista desconhecido (Teto de madeira pintado, ca. 1313), Palácio Episcopal, Beauvais, Oise, França Fonte: Cordier (2015). Figuras 31 – Sereias com viela (esq.) e com gaita de fole (dir.). Artista desconhecido (Teto de madeira pintado, ca. 1313), Palácio Episcopal, Beauvais, Oise, França Fonte: Cordier (2015). 342 Iconografia musical na América Latina Figura 32 – Sereias musicistas. Artista desconhecido (Teto de madeira pintado, fim do séc. XVII). Sala das Sereias. Palácio Nacional de Sintra, Portugal Fonte: Wikimedia Commons.30 Figura 33 – Sereias com harpa e alaúde [ou bandurra]. Artista desconhecido (Teto de madeira pintado, fim do séc. XVII), Sala das sereias. Palácio Nacional de Sintra, Portugal Fonte: Parques de Sintra (2013). 30 Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/Category: Sala_das_Sereias. Iconografia musical oculta 343 Figura 34 – Sereias com triângulo e pandeiro. Artista desconhecido (Teto de madeira pintado, fim do séc. XVII), Sala das sereias. Palácio Nacional de Sintra, Portugal Fonte: Wikimedia Commons.31 Considerando agora o formato circular dos tamborins representados frontalmente nas Figuras 27 e 28, assim como o seu tamanho em comparação aos das sereias que os seguram –ou que aparentemente os tocam –, isso aunado à postura corporal das sereias, incluindo a disposição dos braços que seguram e aparentemente percutem os tamborins, parecem antecipar as características da sereia com pandeiro do Palácio Nacional de Sintra (Figura 35). Leiautes quase idênticos embora quatro séculos distantes: do século XIII na Inglaterra, passando pelo século XIV na França, até o século XVII em Portugal. Agora, se compararmos esse mesmo leiaute com os exemplos das marcas d’água incluídas nas Figuras 9 e 10, respectivamente produzidas na Inglaterra e na França na segunda metade do século XV (entre 1464 e 1486), poder-se-ia interpretar que tanto o círculo que seguram em uma das suas mãos seria um tamborim quanto que a outra mão pareceria estar percutindo nele. 31 Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/Category: Sala_das_Sereias. 344 Iconografia musical na América Latina Figura 35 – Sereia com pandeiro. Artista desconhecido (Teto de madeira pintado, fim do séc. XVII), Sala das sereias. Palácio Nacional de Sintra, Portugal Fonte: Magnusson (2015). 6 Considerações finais Depois de discutir as principais características dos tipos de itens considerados pela Association RIdIM, incluindo o viés cultural embutido nos diversos sistemas de classificação de imagens atualmente em uso – incluido o Iconclass –, chamamos à atenção para a natureza intercultural eventualmente necessária a empreendimentos de alcance mundial, segundo pretendido pelo Association RIdIM. Iconografia musical oculta 345 Esse viés cultural, segundo detectado no estudo das marcas d’água, não apenas condiciona a sua inclusão na BD do Association RIdIM, como também parece ainda interferir na descrição dos conteúdos visuais de alguns dos itens iconográficos, segundo ficou exposto nas observações e análises comparativas relativas ao desenho das sereias aqui discutidas. Dizer que as figuras esquemáticas contidas nas marcas d’água aqui analisadas seguram – e aparentemente tocam – tamborins, resulta tão acertado e válido quanto quaisquer das demais descrições disponíveis nas bases de dados para itens com desenho bidimensional semelhante. No entanto, a discussão desse tipo específico de item, não idealizado para funcionar como fonte visual evidente a olho nu, parece ter auxiliado na melhoria e ampliação da lista de tipos de itens considerados válidos pela Association RIdIM. Seja o tipo de item um campo de dados obrigatório de primeiro nível ou não, pode não ser a questão central subjacente, mas sim o quão restrito e fechado – e demorado – é o controle central sobre ele. Em outras palavras, a questão mais relevante que surge por trás disso tudo é o quão simples e célere – ou complexo e demorado – deveria ser adicionar uma nova classe ou um novo tipo de item no processo de catalogação pelos usuários. Se, como exposto aqui, as fontes visuais relativas à música não forem simples objetos mas fontes visuais, independente dos meios necessários para a sua visualização e seu grau de (in)tangibilidade, talvez possamos firmar o termo “item” para denominar tais fontes, assim considerando mais seriamente a relação entre taxonomia e tipologia no intuito da sua definição, segundo o RIdIM-Brasil já definiu na sua BD. (SOTUYO BLANCO; ARAÚJO, 2016) Por sua vez, a classificação de assuntos ainda suscita uma presumivelmente longa discussão, em virtude dos possíveis vieses (inter)culturais embutidos e as possíveis maneiras de organizá-los. Association RIdIM deveria separar o controle lexicográfico de vocabulário do controle conceitual. Um possível exemplo nesse sentido poderia ser a solução adotada pelo RIdIM-Brasil para a mesma questão, que parece tê-la resolvido de maneira adequada ao Brasil, pelo menos. Ao considerar o viés multicultural imanente na produção iconográfica constante no Brasil, decidiu-se separar o controle terminológico daquele relativo às tipologias, exigindo apenas do usuário a seleção do grupo taxonômico-tipológico ao qual o item catalogado pertence, dispondo também de uma série de ferramentas de controle interno – inseridas 346 Iconografia musical na América Latina no código de programação – que limitam substancialmente o desnecessário acúmulo de variantes lexicográficas e ambiguidades terminológicas. Certamente não é uma decisão fácil de tomar. No entanto, da perspectiva da comunidade envolvida na identificação e catalogação de fontes visuais relativas às culturas musicais pelo mundo afora, ela parece surgir como realmente necessária. Destarte poder-se-ia estimular adequada e consideradamente a participação da comunidade internacional em torno de metas do RIdIM internacional, de forma claramente cooperativa. Finalmente, no caso que nos ocupou largamente neste trabalho, podemos dizer que as marcas d’água em papel, parafraseando a definição de Boorman, seriam os vestígios deixados no suporte papel pelo uso de desenhos em moldes ou cintos – fios, arames – utilizados para a sua fabricação, detectáveis apenas como afinamentos da textura do papel quando se projeta luz através dele. Pelo menos é o que se pode dizer de nossa perspectiva cultural material. Se marcas d’água digitais (intangíveis) venham ser consideradas, então teremos de considerar que existe um tipo denominado marca d’água, presente em duas categorias: marcas d’água em papel e digitais. Ainda, os assuntos que possam vir a ser detectados nelas – e no restante do patrimônio iconográfico musical – a sua organização deverá incluir alguma forma de mensura dos aspectos culturais detectáveis. Referências ALCIATO, Andrea. Emblemata. tradução Francesa Claude Mignault. Paris: Jean Richer, 1584. ALCIATO, Andrea. Emblemata. Leyden: Officina Plantiniana, 1591. ARAÚJO, Pedro Ivo; SOTUYO BLANCO, Pablo. O SICIM: uma aplicação tecnológica para uma melhor classificação organológica. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ICONOGRAFIA MUSICAL, 4.; CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E SISTEMAS DE INFORMAÇÃO EM MÚSICA, 2., 2017, Salvador. Anais [...]. Salvador: RIdIM-Brasil, 2017. p. 533-550. ASSOCIATION RIDIM. About Association RIdIM – Mission Statement. Zurich, [201-]. Disponível em: http://www.ridim.org/association_pt.php. Acesso em: 1 ago. 2017. Iconografia musical oculta 347 BÍBLIA. Nürnberg: Anton Koberger 1483. Universitätsbibliothek Salzburg. W III 330. Disponível em: http://www.ubs.sbg.ac.at/sosa/inkunabeln/WIII330.htm. Acesso em: 15 Jun. 2018. BOND, Francis. Wood carvings in english churches: misericords. Oxford: Oxford University Press, 1910. (Series: Church Art in England). BOORMAN, Stanley. Watermarks. In: OXFORD UNIVERSITY PRESS. Grove Music Online. Oxford: Oxford University Press, [200-]. Disponível em: http://www. oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/29943. Acesso em: 3 fev. 2018. BROOK, Barry S.; CALDERISI, Maria. RIdIM. Fontes Artis Musicae, Kassel, v. 26, n. 1, p. 125-127, 1979. CALDERISI, Maria. Report of the RIDIM Committee. CAML Review / Revue de l’ACBM, [Ottawa], v. 3, n. 2, p. 23-25, 1974. Disponível em: https://pi.library. yorku.ca/ojs/index.php/caml/article/view/4131/3330. Acesso em: 15 Jun. 2018. CONTY, Evrart de. Le livre des échecs amoureux moralisés. [Paris], ca. 1496-1498. Bibliothèque Nationale de France, 2205. Fr. 143. Disponível em: https://gallica. bnf.fr/ark:/12148/ btv1b8426258c. Acesso em: 15 Jul. 2018. CORDIER, Jean-Yves. Les quatre sirènes musiciennes de Beauvais. In: CORDIER, Jean-Yves Le blog de jean-yves cordier. [s. l.], 28 out. 2015. Disponível em: http:// www.lavieb-aile.com/2015/10/les-quatre-sirenes-musiciennes-de-beauvais.html. Acesso em: 15 Jun. 2018. CORNEJO, Marcela. Los charangos peruanos. In: CORNEJO, Marcela. Cantera de sonidos. Arequipa, 18 sept. 2007. Disponível em: http://canteradesonidos. blogspot.com/2007/09/el-charango-peruano-los-charangos.html. Acesso em: 15 jun. 2018. EL-BAINY, Estenio Iriart. A Arte... As esculturas urbanas. In: EL-BAINY, Estenio Iriart. A Jurubeba Cultural, Salvador, 18 fev. 2016. Disponível em: https:// estenioelbainy.blogspot.com/2016/02/arte_18.html. Acesso em: 15 Jul. 2018. FOLK ART OAXACA. Mermaid on fish with accordion. [s. l.], 2018. Disponível em: http://folkartoaxaca.com/product/mermaid-on-fish-with-accordian/. Acesso em: 25 jul. 2018. FRAUENKNECHT, Erwin; RÜCKERT, Peter; STIEGLECKER, Maria. Bernstein Systematics. [S. l.], 13 Feb. 2012. Bernstein – The memory of paper. Disponível em: 348 Iconografia musical na América Latina http://www.memoryofpaper.eu/products/Bernstein_systematics.pdf. Acesso em: 15 jul. 2018. FRAUENKNECHT, Erwin; KÄMMERER, Carmen; RÜCKERT, Peter et al. Watermark-Terms: Vocabulary for Watermark Description, apr. 2018. Bernstein – The memory of paper. Disponível em: http://www.memoryofpaper.eu/products/ watermark_terms_v11.0_pt.pdf. Acesso em: 15 jul. 2018. GAIUS PLINIUS SECUNDUS (dt. Plinius der Ältere). Naturalis Historia. Frankfurt: [s.n.], 1565. GKS 1633 4º: BESTIARIUS. Det Kongelige Bibliotek, Gl. kgl. S. 1633 4º, Pergaminho, 77 ff.; 21 x 13,5 cm. Inglaterra, séc. XV. Disponível em: http://www. kb.dk/permalink/2006/manus/221/eng/. Acesso em: 15 jul. 2018. GREEN, Alan. Presentation of the new database of the Répertoire International d’Iconographie Musicale (RIdIM). 2012. Trabalho apresentado ao19th Congress of the International Musicological Society, “Musics, Cultures, Identities, Rome, 5 July 2012, Auditorium Parco della Musica, Studio 1. GREEN, Alan; FERGUSON, Sean. RIdIM: Cataloguing Music Iconography Since 1971, Fontes Artis Musicae, Kassel, v. 60, n. 1, p. 1-8, 2013. HARRIS, Neil. Paper and watermarks as bibliographical evidence. Lyon: Institut d’Histoire du Livre, 2017. Disponível em: http://ihl.enssib.fr/sites/ihl.enssib. fr/files/documents/Harris_Paper%20and%20Watermarks.pdf. Acesso em: 10 fev. 2018. ICONCLASS. Contents of Iconclass. The Hague, c2012. Disponível em: http://www. iconclass.nl/contents-of-iconclass. Acesso em: 10 mar. 2018. JEWITT, Llewellynn. The mermaid, and the symbolism of the fish, in art, literature, and legendary lore. The Reliquary, Quarterly Archaeological Journal and Review, [s. l.], v. 19, 1878. Disponível em: http://alternatewars.com /Mythology/Reliquary/Reliquary_Mermaid_Symbolism. htm. Acesso em: 20 jul. 2018. LECLERCQ-MARX, Jacqueline. La Sirène dans la pensée et dans l’art de l’Antiquité et du Moyen Âge. Du mythe païen au symbole chrétien. Bruxelas: Académie Royale de Belgique, 1997. LIBER DE NATURIS BESTIARUM. [Inglaterra, meados séc. XIII]. Biblioteca Bodleiana, MS. Bodley 533. Disponível em: http://bodley30.bodley.ox.ac. Iconografia musical oculta 349 uk:8180/luna/servlet/view/search/what/MS.+Bodl.+533/. Acesso em: 10 mar. 2018. MAGNUSSON, Sauce. Sintra National Palace of Portugal. 2015. Disponível em: http://www.saucemagnusson.com/2015/03/the-portuguese-national-palace-insintra.html. Acesso em: 20 jul. 2018. MARQUES, António Jorge. A obra religiosa de Marcos António Portugal (1762-1830). Salvador: Edufba, 2012. MERRIAM, Alan P. The anthropology of music. Evanston, IL: Northwestern University Press, 1964. MEYER, A. D.; TSUI, A. S.; HINNINGS C. R. Configurational approaches to organizational analysis. Academy of Management Journal, Ohio, v. 36, n. 6, p. 11751195, 1993. ORTUS SANITATIS. [Mainz: Jacob Meydenbach, 1491]. Disponível em: https:// cudl.lib.cam.ac.uk/view/PR-INC-00003-A-00001-00008-00037/1. Acesso em: 10 mar. 2018. PARQUES DE SINTRA – Monte da Lua. Os tetos do Palácio Nacional de Sintra. 2013. Disponível em: https://www.parquesdesintra.pt/pontos-de-atracao/os-tetos-dopalacio-nacional-de-sintra/. Acesso em: 10 jul. 2018. PSALTERIUS DAVIDICUS (1325-1340). British Library, Additional MS 42130. Disponível em: http://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=add_ms_42130_ fs001ar. Acesso em: 10 mar. 2018. RAMOS, Cleidiana. Rastros festivos: festas populares no acervo de imagens do Jornal A Tarde. Studium 35, [s. l.], Nov. 2013. Disponível em: http://www.studium. iar.unicamp.br/35/06/. Acesso em: 18 jul. 2018. REZA VÁZQUEZ, Alma Linda. Atheneo de grandesa (1681): un ejemplo de literatura emblemática catalana. In: GARCÍA MAHÍQUES, Rafael; ZURIAGA SENENT, Vicent Francesc (ed.). Imagen y cultura: la interpretación de las imágenes como Historia cultural. Valencia: Generalitat Valenciana, 2008. p. 1325-1336. v. 2 ROMAGUERA, Josep. Atheneo de Grandesa. Barcelona: Joan Jolis, 1681. SOTUYO BLANCO, Pablo. Iconografía musical Chilena: iconografía musical o fuentes visuales referentes a la cultura musical? Un estudio de caso. Cuadernos de Iconografía Musical, México, v. 4, p. 30-68, 2017. 350 Iconografia musical na América Latina SOTUYO BLANCO, Pablo; ARAÚJO, Pedro Ivo. Acciones estructurantes para la musicología en Brasil: el banco de datos RIdIM-Brasil para fuentes documentales visuales relativas a la cultura musical. Cuadernos de Iconografía Musical, México, v. 3, p. 9-32, 2016. THE BERNSTEIN CONSORTIUM. Bernstein – The Memory of Paper. Vienna, Disponível em: http://www.memoryofpaper.eu/BernsteinPortal/appl_start.disp. Acesso em: 13 jul. 2018. TURINO, Thomas. The Charango and the Sirena: Music, Magic, and the Power of Love. Latin American Music Reviewm = Revista de Música Latino Americana, Austin, v. 4, n. 1, p. 81-119, Spring-Summer 1983. VISTARINI, Antonio Bernat; CULL, John T. Enciclopedia Akal de Emblemas Españoles Ilustrados. Madri: Ediciones Akal, 1999. WASSERSPRING, Lois. Oaxacan ceramics: traditional folk art by oaxacan women. San Francisco: Chronicle Books, 2000. WASSERZEICHEN DES MITTELALTERS. Disponível em: http://www.wzma. at/2015. Acesso em: 18 jul. 2018. WIKIMEDIA.ORG. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/5/5c/Clonfert_mermaid_crop.jpg. Acesso em: 18 jul. 2018 WIKIMEDIA COMMONS. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/ Category: Sala_das_Sereias. Acesso em: 18 jul. 2018. Iconografia musical oculta 351 Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina reunidos em um leque de autógrafos Mary Angela Biason 1 Introdução A complexidade da existência humana está inexoravelmente ligada à nossa noção de finitude. Ao longo da vida, a maioria de nós vai acumulando memórias que em grande medida dão sentido e perspectiva a essa nossa trajetória. Pode ser uma caixa de fotografias, um pacote de cartas de amor, lembranças da infância ou conquistas profissionais. Mas imagine o quão instigante seria viver na companhia dos maiores ícones de seu próprio tempo: grandes escritores, pintores, cientistas, atores aclamados, governantes e ainda poder guardar um testemunho desses encontros. Pois bem, Amélia Machado de Coelho e Castro (Viscondessa di Cavalcanti) sendo casada com um dos mais influentes personagens do Segundo Reinado teve essa oportunidade. Acompanhou e participou de muitas atividades nos campos da política e da cultura, na Europa e no Brasil. E durante 55 anos, em seu leque, como se fora um álbum de recordações agregou pequenas porções desse seu convívio social exuberante. 353 Hoje como parte do acervo do Museu Mariano Procópio em Juiz de Fora, Minas Gerais, o leque soma 68 lembranças das personalidades daquela época. Cada registro diz um pouco de seu autor, por vezes, um desenho, um poema ou uma dedicatória. Naquele universo de personalidades havia músicos de renome que usaram a linguagem musical para se manifestar. Este trabalho tratará das citações musicais autografadas por Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saëns e Jean-Henry Ravina, como também do ambiente intelectual e artístico por onde o leque da Viscondessa foi agitado. 2 Os Viscondes Amélia Machado Coelho nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1853 em um meio aristocrático. Sua ascendência paterna e materna conta com nomes de relevo no cenário político, social e econômico da época. Cresceu em ambiente influente e muito culto, viajando para a Europa com frequência. No século XIX, em muitas famílias abastadas se desenvolveu a prática do colecionismo. Seu primo-irmão, Alfredo Ferreira Lage, também colecionista, foi um dos fundadores do Museu Mariano Procópio. No ano de 1871, casou-se com Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque e dessa união teve dois filhos: Stella e Fernando. Nascido na Paraíba e formado em Direto pela Escola de Recife, Diogo Velho trilhou a carreira política até chegar a senador do Império e Conselheiro de Estado.1 Em 1888, recebeu título nobiliárquico do Imperador D. Pedro II e o casal passou a ser reconhecido como os Viscondes de Cavalcanti (Figuras 1 e 2). 1 Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque (1829-1899) esteve à frente dos Ministérios da Agricultura, da Justiça e dos Negócios Estrangeiros e foi presidente das Províncias do Piauí, Ceará e Pernambuco. Além do título de Visconde, foi agraciado com as comendas da Ordem de Cristo, Grão Cruz da Vila de Viçosa de Portugal e da Coroa Real da Prússia. Ver mais em: https:// www25.senado.leg.br/web/senadores/senador/-/perfil/1576. 354 Iconografia musical na América Latina Figura 1 – Retrato de Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, Visconde de Cavalcanti, feito sobre o leque, autoria de Leon Bonnat, 1899 Fonte: acervo do Museu Mariano Procópio. Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina... 355 Figura 2 – Retrato feito sobre o leque - Amélia Machado Coelho, Viscondessa de Cavalcanti, autoria de Louis Humbert, 1901 Fonte: acervo do Museu Mariano Procópio. O círculo já influente de seu convívio aumenta depois de casada e somado ao seu espírito vivo, transforma a Viscondessa numa das mulheres mais prestigiadas de sua época. Conhecida por falar várias línguas, era visitante assídua de museus, exposições universais, ateliês e salões de belas artes na Europa. E nesse contexto acompanhava e colecionava avidamente trabalhos artísticos e souvenires como pinturas, fotografias, livros, moedas, leques, minerais, flores tumulares, pinturas em miniatura, objetos da História Antiga e da realeza brasileira. Os Cavalcanti possuíam um palacete no Rio de Janeiro, na Rua Vergueiro, que às quintas e aos domingos costumava reunir a intelectualidade presente na cidade para animados bailes e calorosas discussões sobre política, arte e literatura. Diziam que os “landaus, cupês e as berlindas” estacionados faziam filas intermináveis. Não só as figuras importantes do Império, mas todo o corpo 356 Iconografia musical na América Latina diplomático estrangeiro que vivia ou passava pela capital era recebido pelos Cavalcanti e a Viscondessa era enaltecida por sua beleza, simpatia e inteligência.2 (EDMUNDO, 1935) Em 1889, D. Pedro II nomeou Diogo Velho para ser o comissário do Brasil junto à Exposição Universal de Paris. A escolha do imperador não podia ser mais fortuita, uma vez que os Viscondes estavam acostumados a se relacionar com artistas, literatos, políticos e altas autoridades. Com sua personalidade magnética a Viscondessa assenhoreava-se das reuniões sociais cativando, inclusive, a atenção do então presidente da França, Marie François Sadi Carnot. (TOLEDO, 2011) Com o advento da República, Diogo Velho Cavalcanti encerrou sua carreira política e os Viscondes rumaram para a Europa, para sua morada em Paris, que permaneceria tão movimentada quanto o palacete da rua Vergueiro. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1926a, p. 2) Na Europa, mantiveram contato com a família Imperial e o Visconde ainda escreveu um livro sobre as leis do Brasil.3 Muito doente, o Visconde pede para retornar ao Brasil e vem a falecer na cidade de Juiz de Fora - MG. Viúva, a Viscondessa decide ir para a Europa para viver entre Paris e Lausanne, na Suíça. (ÚLTIMA HORA, 1912, p. 1) 3 O Leque O numeroso acervo dos Cavalcanti contava com obras de artistas renomados, dentre eles, uma tela de Frans Post (1612-1680), um pequeno trabalho de JeanHonore Fragonard (1732-1806), e telas de Alexandre Cabanel (1823-1889) e Alphonse de Neuville (1835/6-1885). Também encomendou trabalhos de Leon Bonnat (1833-1922) que pintou o retrato da Viscondessa, e um retrato de sua filha Stella aos 18 anos, pintado por Raimundo Madrazo (1841-1920). No entanto, nenhuma peça traduz com tanta propriedade a efervescência cultural daquela época como seu leque de autógrafos (Figuras 3 e 4). 2 Sobre a vida social da aristocracia, dos tempos coloniais ao fim do Império. 3 Aperçu Politique-Droit Administration. Paris: Librairie Collillon. 1896. O trabalho aborda as leis publicadas no Brasil entre os anos de 1891 a 1896. Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina... 357 Um leque tipo Pericon,4 medindo 103 cm de abertura por 35 cm de raio, montado em papel com douramento nas bordas e varetas de madeira, das quais a primeira e última são entalhadas. Um objeto sem maiores atrativos, mas que tomado como suporte se eleva em importância pelas impressões deixadas pelas pessoas que a Viscondessa conheceu e conviveu. Figura 3 – Leque de autógrafos, face 1 Fonte: acervo Museu Mariano Procópio. Figura 4 – Leque de autógrafos, face 2 Fonte: acervo do Museu Mariano Procópio. 4 Leques Pericon possuem grandes dimensões. Aparecem com grande frequência no século XIX e são utilizados na dança flamenca e no teatro. Pericón também é o nome de uma dança folclórica no Uruguai. 358 Iconografia musical na América Latina Estão presentes no leque as assinaturas de Getúlio Vargas, Alexandre Dumas Filho, Afrânio Peixoto, Barão de Coubertin, Santos Dumont, Pierre Loti, Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Eça de Queirós, Carolus Durant, Jules Worms, Salvador Sanches Barbudo-Morales, Oliveira Martins, Antero de Quental, BenoitConstant Coquelin, Ramalho Urtigão, Victor Cherbulliez e Gabriel Lippmann, somente para citar alguns. Conta também com desenhos de Charles Olivier de Penne, os irmãos Henrique e Rodolfo Bernardelli, Jean Beraud, Jean Gérôme, Léon Bonnat, Louis Eugene Lambert, Louis Humbert, Louis Marie Schryver, Raimundo Madrazo, Pedro Weingartner e alguns não identificados. A primeira assinatura é da família Imperial no exílio, datado em 1890 na cidade de Cannes. Originário do Oriente, o leque foi um dos objetos que junto com a seda e especiarias acompanhou as primeiras trocas comerciais com a Europa. Além da sua utilidade mais evidente, aquela que é amenizar a sensação de calor ou espantar um inseto indesejado, o leque podia se adequar a vários ambientes. Objetos de uso pessoal carregam consigo muito da personalidade e posição social de seus donos. Leques eram feitos segundo modelos diversos – fixos, dobráveis, plissados, de mão ou de teto –, em geral, se diferenciavam pelos detalhes e materiais, tornando-se objetos marcadores de status social. Leques finamente ornamentados com materiais nobres, pintados pelos melhores artistas da época, manuseados em igrejas, espaços de poder ou nos salões da corte reinante, eram obviamente símbolos de distinção. No século XVIII, os leques foram usados para se comunicar à distância. A linguagem gestual extremamente refinada foi muito difundida no século XIX, no entanto, essa função não foi empregada somente nos salões. No Japão antigo, os leques foram utilizados para transmitir comandos durante a batalha e também como arma de extremidades afiadas. Curiosamente, instrumentos musicais também foram usados como comunicação militar. Em especial, o leque da Viscondessa não era para alívio nos dias abafados, tampouco tinha funções bélicas ou inseticidas, mas sim um instrumento de agregação social. Ele servia como um canal facilitador de sociabilidades armazenando lembranças de amigos e pessoas importantes e respeitadas pela sua posição e pela sua arte. No século XIX, não era incomum que leques fossem usados como suporte para colher assinaturas. Guy de Maupassant (1850-1893), escritor francês, deixou um poema assinado no leque da Condessa Potocka. O leque de Marguerite Dreyfus, Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina... 359 jornalista feminista, foi assinado por Madalena Godard e contém citações musicais assinadas por Benjamin Godard, Georges Pfeiffer e muitos outros. Um leque datado em 1880 em Viena, traz citações musicais de 21 compositores, dentre eles Arrigo Boito, Léo Delibes, Charles Gounod, Jules Massenet, Giuseppe Verdi e Charles-Marie Widor. Essa prática não se extinguiu totalmente. Na Espanha, por exemplo, onde as mulheres ainda carregam seus leques nas bolsas, ele serve como suporte para assinaturas de celebridades. O leque da Viscondessa de Cavalcanti transcende a natural admiração do fã pelo artista e de certa forma inverte essa lógica. Ele funciona em muitos casos para demonstrar o afeto do artista pela dona do leque. Poemas e citações são expressamente endereçados a ela bem como desenhos que a retrataram e ao seu esposo. Outra dimensão que pode ser observada são as miniaturas das pinturas que consagraram os artistas e que coloridas dão um toque todo especial ao leque quando totalmente aberto. A despeito da plasticidade das intervenções pictóricas, não podemos deixar de lado a importância dos exemplos musicais ali expressos. Dessa forma, vamos nos ater às quatro citações musicais, correspondendo a Arthur Napoleão, Antonio Carlos Gomes, Camille Saint-Saens, e Jean-Henri Ravina, respectivamente. 4 Arthur Napoleão (1843-1925) Iniciaremos com Arthur Napoleão, que deixou os primeiros compassos da valsa intitulada Ricordati op. 66, datados no Rio de Janeiro, em novembro 1891. 360 Iconografia musical na América Latina Figura 5 – Retrato de Arthur Napoleão. Photographia da Caza Real, Estúdio Emílio Biel & Ca – Porto (datada pelo próprio em 1889) Fonte: https://i.pinimg.com/originals/d7/d0/83/d7d08364989c5cdc833d64e8eddc4141.jpg. Figura 6 – Detalhe do leque, pauta de Arthur Napoleão Fonte: acervo do Museu Mariano Procópio. Pianista e compositor português, Arthur Napoleão dos Santos (1843-1925) nasceu na cidade do Porto e logo revelado como um prodígio musical. Após Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina... 361 algumas apresentações na sua cidade natal, foi levado a Lisboa onde teve o talento reconhecido pela elite local. A partir de 1852, apresentou-se em diversos palcos da Europa e Américas até se fixar no Brasil em 1868. Em terras brasileiras, além de pianista e compositor, tornou-se um atuante homem de negócios no campo das artes, em especial naqueles ligados à publicação e comercialização de partituras musicais. Primeiro se associou a Narciso José Pinto Braga, e fundou a Narciso, Arthur Napoleão & Cia, e em 1880, após a saída de Narciso, Arthur Napoleão se associou a Leopoldo Miguez fundando a Casa Arthur Napoleão & Miguez. (CAZARRÉ, 2006, p. 294; MEDEIROS, 2010, p. 3) Nessa nova sociedade, ele manteve o trabalho de edição de partituras e montou um pequeno salão destinado a apresentações públicas. Sua relação com a Viscondessa era estreita. Cronistas dizem que costumava frequentar sua casa e juntos tocar piano a quatro mãos. (EDMUNDO, 1935) Entre suas obras, encontra-se uma Gavota integrante das Soirées de Rio op. 67, composta em 1887, e a Ballade Romantique op. 63, a quatro mãos composta em 1885, ambas dedicadas à Viscondessa. Arthur Napoleão foi preponderante elo entre o mundo social da Viscondessa e o ambiente musical, sua seara. Dono de uma casa editorial e um salão musical e também em suas viagens e apresentações virtuosísticas, Napoleão uniu esses dois mundos no leque da Viscondessa como veremos a seguir. 5 Antônio Carlos Gomes (1836-1896) Carlos Gomes deixou no leque os primeiros compassos do solo de oboé da Alvorada, Prelúdio orquestral da Cena IV, ato IV da ópera Lo Schiavo, datado no Rio de Janeiro em novembro de 1891 (Figuras 7 e 8). 362 Iconografia musical na América Latina Figura 7 – Retrato de Antônio Carlos Gomes: cartões postais comemorativos do centenário de nascimento de Carlos Gomes, São Paulo: Livraria da Sé, 1936 Fonte: Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA) – Museu Carlos Gomes/Arquivo. Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina... 363 Figura 8 – Detalhe do leque, pauta de Lo Schiavo. Ass: Carlos Gomes. Rio de Janeiro, Novembro: 1891 Fonte: acervo Museu Mariano Procópio. Nascido em Campinas em 1836, Antônio Carlos Gomes era filho de Manoel José Gomes, mestre de capela, responsável pela música na Matriz da vila e como era comum na época também atendia às encomendas para as celebrações oficiais demandas pelo poder público. As atividades de Manoel José Gomes propiciaram que seus filhos, Antônio Carlos e José Pedro, crescessem em um ambiente musical sólido. Carlos Gomes seguiu para São Paulo no ano de 1859, sendo adotado pelos estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. No mesmo ano, provido de cartas de apresentação escritas pelos amigos aos grandes do Império, Carlos foi estudar no Conservatório Imperial no Rio de Janeiro. Viveu a efervescência da ópera nacional, compôs A noite do Castelo e Joana de Flandres e vai estudar em Milão. Sua capacidade composicional aumenta e se verifica amadurecimento entre o iniciante A noite do Castelo (1861), primando em sua última ópera, Condor (1891).5 (VIRMOND, 2007) Após o sucesso de suas óperas na Europa, entre os anos de 1880 e 1889, Carlos Gomes intensificou suas vindas ao Brasil para montar o Guarani, Salvador Rosa e Fosca, sendo bem recebido pelo público e pela crítica. No entanto, quando veio ao Rio em junho de 1889, o empresário que dirigia o Teatro Imperial apresentou dificuldades para montar Lo Schiavo, que só foi possível com a intervenção do Imperador e ajuda financeira de admiradores. A ópera estreou em 27 de setembro de 1889 com regência do próprio compositor sendo aclamada. (COELHO, 2002) 5 As informações colhidas neste trabalho foram complementadas com as conversas mantidas por e-mail com o autor, quem estimo e agradeço pela disponibilidade. 364 Iconografia musical na América Latina Em 1891, quando Carlos Gomes retornou ao Brasil com a ópera Condor, o país e a sociedade brasileira passavam por um momento delicado com a instalação do regime republicano e as tentativas de promulgar a nova Constituição. Nesse contexto, sua vinda não chamou a atenção como anteriormente. Isso não tinha a ver somente com a sua ligação estreita ao regime imperial. A figura de um homem com problemas pessoais e dificuldades financeiras devido a constantes batalhas travadas com os editores de suas obras, acrescidas ao fato da ópera vir com uma nova proposta estética, todas essas condicionantes fizeram com que Condor fosse recebida com certa frieza pelo público no Brasil.6 Antes da estreia da ópera em fevereiro de 1891 no Teatro La Scala de Milão, Carlos Gomes vem ao Rio para preparar a montagem e retorna em agosto para a execução. No mês de novembro, ele assina o leque da Viscondessa. Arthur Napoleão e Carlos Gomes eram próximos. Sendo editor, Napoleão não se furtou em preparar e colocar no mercado peças para piano com as récitas mais famosas das suas óperas. Em 1870, publicou Grande Fantasia de Concerto, versão para um e dois pianos do Guarani op. 50, e por volta de 1889, transcreve Lo Schiavo op. 72. Napoleão ainda visita Carlos Gomes na Itália e aproveita para publicar obras de sua autoria pela Casa Lucca de Milão. Em 26 e 27 de setembro de 1896, poucos dias após a morte de Carlos Gomes, Arthur Napoleão e os músicos portugueses Vianna da Mota e Moreira de Sá estavam em Belém para duas apresentações no Teatro da Paz. Naquela ocasião, tocaram no piano que pertenceu ao Maestro,7 que foi transportado para o teatro. (CAZARRÉ, 2006, p. 101, 293, 303, 306, 354-355) 6 Camille Saint-Saëns (1835-1921) Saint-Saëns foi pianista e compositor precoce. Com apenas 10 anos, já havia executado concertos para piano com elevado nível de dificuldade e composto algumas peças. Estudou no Conservatório de Paris e aos 25 anos já era considerado grande virtuose do piano e do órgão, assim como compositor respeitado. 6 Para entender melhor o universo que ronda Carlos Gomes com o advento da República, ver Virmond (2007, p. 313 e seguintes). 7 Atualmente, o piano está no Museu Carlos Gomes em Campinas. Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina... 365 Sua disposição para viajar o levou a tocar em praticamente todos os continentes. Esteve no Brasil em 1899 para concertos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na capital paulista, executou Variações sobre um tema de Beethoven e um Scherzo para dois pianos com Henrique Oswald,8 que voltariam a tocar no Rio de Janeiro em 1904. No Rio de Janeiro, os concertos de 1899 ocorreram nos dias 18 de junho e 2 e 3 de julho tendo a participação de Arthur Napoleão. Tal como em São Paulo, Saint-Saëns tocou as Variações e o Scherzo para dois pianos, dessa vez com Napoleão. No leque, Saint-Saëns indicou somente o ano do autógrafo, mas tudo indica que ele assinou nessa ocasião9 (Figuras 9 e 10). Figura 9 – Retrato de Camile Saint-Saëns. Fotografia Fonte: Wikimedia Commons (2018). 8 Nessa ocasião, na casa de Luigi Chiafarelli, Saint-Saens toma contato com a obra de Oswald e o elogia bastante. Esse concerto contou ainda com apresentação de Luigi Chiafarelli no harmônio e regência de Vicenzo Cernicchiaro. Mais tarde, em 1902, Oswald se inscreve num dos concursos mais importantes para composição, patrocinado pelo jornal “Le Figaro” e Saint-Saens era o presidente do júri. (MARTINS, 1995, p. 59, 69) 9 Peço encarecidamente aos leitores que identificarem a obra, que entrem em contato. Eu somente tive oportunidade de pesquisar o primeiro volume do catálogo organizado por Sabina Ratner (2002), cujas imagens foram gentilmente cedidas por Paulo Gomes, estudante na Universidade de Huston, EUA. A obra citada no leque pode estar no segundo volume. 366 Iconografia musical na América Latina Figura 10 – Detalhe do leque, pauta Nocturne op. 13. Ass. C. Saint-Saëns / 1899 Fonte: acervo Museu Mariano Procópio. Entre 1903 a 1914, Napoleão executou obras do compositor francês em várias ocasiões no Rio de Janeiro e uma em Campinas. Ele também compôs e dedicou a Saint-Saëns o estudo Course au Clocher, obra que integra o livro Etudes pour virtuoses, publicado na Europa em 1910 e no Brasil, pela sua casa editorial, entre 1913 e 1915. (RATNER, 2002, p. 24, 48, 50, 77, 82, 102, 119, 121, 289, 308, 317, 320, 376, 394, 498) 7 Jean-Henri Ravina (1818-1906) Jean-Henri Ravina fez sua primeira aparição como concertista com a idade de oito anos. Foi encorajado a continuar os seus estudos musicais e em seguida seguiu para Paris para estudar no Conservatório. Lá tornou-se professor assistente, mas logo deixou o cargo para se dedicar à sua carreira de virtuoso. Fez apresentações na França, Espanha e Rússia e suas composições eram imensamente populares. Ao mesmo tempo, adquiriu uma excelente reputação como professor de música. Não temos notícia da vinda desse músico ao Brasil, mas suas obras fazem parte dos programas de concerto nos salões de música do país nos séculos XIX e XX. A obra Noturno Op. 13, presente no leque, foi editada na Europa em 1882. Existe informação de que Arthur Napoleão o havia conhecido numa de suas apresentações em Paris em 1852 (Figuras 11 e 12). (CAZARRÉ, 2006, p. 290) Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina... 367 Figura 11 – Retrato de Jean-Henri Ravina. [photographie, tirage de démonstration] / [Atelier Nadar, 2ª metade do século XIX] Fonte: Biblioteca Nacional da França. Figura 12 – Detalhe do leque, pauta de Nocturne, J.H.Ravina Fonte: acervo Museu Mariano Procópio/Acervo. Sabido que a Viscondessa fazia várias viagens a Paris, indo para lá morar durante muitos anos, é aceitável que ela tenha mantido algum contato com o músico. 368 Iconografia musical na América Latina 8 O Acervo Após a morte do esposo, a Viscondessa passa mais tempo na Europa. Vem ao Brasil esporadicamente e aproveita para distribuir seu acervo entre várias instituições. Em 1926, ela fez a doação de algumas obras para duas instituições no Rio de Janeiro. Para a Escola de Belas Artes10 entrega seu retrato, feito por Leon Bonnat em 1889, quando ela acompanhava o marido na Exposição Universal de Paris, o de sua filha Stella pintado por Raimundo Madrazzo, outro de Alexandre Cabanel intitulado O Árabe e um desenho a lápis de cor de Alphonse de Neuville intitulado Zuavo. Para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) doa o quadro de Franz Post, Ruínas da Catedral de Olinda. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1926b) Em 1928, entrega ao Museu Histórico Nacional alguns objetos da maçonaria pertencentes a Pedro I, o modelo da medalha de Duque de Caxias, um biscuit com busto de D. Pedro I, peças da baixela da Casa Imperial, duas cadeiras antigas e um álbum. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1928) Para o Museu Mariano Procópio, fundado por seu parente em 1915, doa boa parte de suas coleções, inclusive a de moedas e medalhas, uma referência para a numismática no Brasil, cujo catálogo foi publicado no século XIX.11 (CAVALCANTI, 1889) Ainda sobre o leque, uma nota escrita por Eloy, o Herói, em sua Chroniqueta de 21 novembro de 1891, publicada no jornal carioca A Estação, comenta que o leque foi visto no atelier dos Bernardelli. O texto traz a transcrição das citações deixadas por várias personalidades até esta data e faz alusão às notas musicais assinadas por Carlos Gomes e Arthur Napoleão. O cronista nota que havia muito espaço em branco no leque da Viscondessa. (A ESTAÇÃO, 1891, p. 127) O “voo” empreendido pelo leque de autógrafos finda em 1945, um ano antes da morte da Viscondessa, que com sua própria assinatura desce do palco social no qual foi protagonista. 10 Desde 1931, a Escola está integrada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 11 A obra citada foi revisada, aumentada e publicada em Paris, em 1910. Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina... 369 Figura 13 – Retrato da Viscondessa de Cavalcanti. Óleo sobre marfim (fotopintura), autoria ilegível Fonte: acervo Museu Mariano Procópio. Figura 14 – Detalhe do leque, assinatura da Viscondessa de Cavalcanti, 4 de dezembro de 1945 Fonte: acervo Museu Mariano Procópio. Mas o que a história desse leque deixa de mais instigante são suas conexões, contextualizações e também a noção do que um objeto tridimensional aparentemente desligado do mundo da música provoca no pesquisador. Ainda não nos desprendemos da utilização da imagem apenas como ilustração em nossos trabalhos. Temos que ter o cuidado de olhar as imagens em sua profundidade 370 Iconografia musical na América Latina e sermos críticos ao utilizá-las. Qualquer obra de arte tem um conjunto enorme de intenções escondidas. Relações de poder, amores proibidos, crítica social, sarcasmo, em outras palavras, tudo o que se mostra na superfície de uma imagem pode na verdade querer que o espectador mergulhe e não apenas molhe os pés. Estudos sobre iconografia musical deve se aproximar de outras disciplinas para produzir uma densidade na interpretação. Um mundo de possibilidades se abre a nossa volta, basta estarmos atentos. Referências A ESTAÇÃO. Rio de Janeiro: [s. n.], 30 nov. 1891. A MANHÃ. Rio de Janeiro: [s. n.], ano 6, n. 1398, p. 6, 28 fev 1946. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=116408&pasta=ano%20194&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 13 maio 2013. BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ ark:/12148/btv1b531395582/f1.highres. Acesso em: 28 ago. 2018. BRIENEN, Rebecca Parker. O envolvimento mitológico do Brasil Holandês: interpretação dos trabalhos de Albert Eckhout e Frans Post (1637-2011). In: VIEIRA, Hugo Coelho, GALVÃO, Nara Neves Pires; SILVA, Leonardo Dantas (org.). Brasil holandês: história, memória e patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012. p. 75-90. CAVALCANTI, Amélia Machado Coelho Cavalcanti de Albuquerque, Viscondessa de. Catalogo das Medalhas Brazileiras e das Estrangeiras referentes ao Brazil: colleção Numismática Brazilica pertencente á Viscondessa de Cavalcanti. Rio de Janeiro: [s. n.], 1889. CAROZZE, Valquíria Maroti. A menina boba e a discoteca. 2012. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. CAZARRÉ, Marcel Macedo. Um virtuose de Além-Mar em terras de Santa Cruz: a obra pianística de Arthur Napoleão (1843-1925). 2006. Tese (Doutorado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina... 371 CHIMÈNES, Myriam. Mécènes et musicien: du salon au concert à Paris sous la IIIº République. Paris: Fayard, 2004. CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. O mundo cabe num leque. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, n. 44, p. 78-81, maio 2009. CHRONIQUETA. A Estação, Rio de Janeiro, p. 127, 30 nov. 1891. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=709816&pasta=ano%20 189&pesq=leque. Acesso em: 15 maio 2013. COELHO, Lauro Machado. Carlos Gomes: a ópera Italiana após 1870. São Paulo: Perspectiva, 2002. CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s. n.], ano 7, n. 2677, p. 1, 12 nov. 1908. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=089842_01&pasta=ano%20190&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 10 out. 2013. CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s. n.], p. 1, 24 nov. 1935. Suplemento. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=089842_04&pasta=ano%20193&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 24 out. 2013. CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s. n.], p. 6, 27 fev. 1946. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=089842_05&pasta=ano%20194&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 15 nov. 2013. CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s. n.], ano 59, p. 9. n. 20580, 30 abr. 1960. 1º Caderno. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 23 nov. 2013. COSTA, Angelita Maria Rocha Ferrari da. A coleção de pinturas em miniatura da Viscondessa de Cavalcanti no Museu Mariano Procópio. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010. COSTA, Carina Martins. Uma arca das tradições: educar e comemorar no Museu Mariano Procópio. 2011. Tese (Doutorado em História) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2011. 372 Iconografia musical na América Latina DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: [s. n.], ano 25, n. 9726, p. 8, 20 jul. 1954. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=093718_03&pasta=ano%20195&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 18 out. 2013. DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: [s. n.], ano 25, n. 9826, 15 nov. 1954. Seção feminina. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=093718_03&pasta=ano%20195&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 21 nov. 2013. DREYFUS, Jenny. Arte menor. São Paulo: Anhembi, 1959. EDMUNDO, L. O Rio de Janeiro do meu tempo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 1, 24 nov, 1935. Suplemento. FERRAZ, Rosane Carmanini. A formação da coleção de fotografias oitocentistas no acervo do Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora (MG). In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA PÚBLICA: A HISTÓRIA E SEUS PÚBLICOS, 2012, São Paulo. Anais eletrônicos [...]. São Paulo: USP, 2012. p. 30-41. Disponível em: http://redebrasileiradehistoriapublica.files.wordpress.com/2013/01/ahistc3b3ria-e-seus-pc3bablicos-_-anais.pdf. Acesso em: 28 nov. 2013. GAZETA DA TARDE. [S. l.: s. n.], ano XVIII, n. 26, p. 1, 26 jan. 1897. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=226688&pasta=ano%20189&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 5 nov. 2013. GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: [s. n.], ano 51, n. 113, 14 maio 1926a. GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: [s. n.], 14 maio 1926b. GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: [s. n.], 19 fev. 1928a. GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: [s. n.], ano 51, n. 113, p. 2, 14 maio 1926. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=103730_05&pasta=ano%20192&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 13 out. 2013. GAZETA DE NOTÍCIAS, Rio de Janeiro: [s. n.], ano 52, p. 12, 19 fev. 1928b. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=103730_05&pasta=ano%20192&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 17 out. 2013. Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina... 373 GAZETA DE NOTÍCIAS, Rio de Janeiro: [s. n.], ano 52, n. 55, p. 6, 6 mar. 1928c. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=103730_05&pasta=ano%20192&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 14 nov. 2013. LYS, Edmundo. Maravilhas a admirar - um dos belos museus do mundo numa província brasileira. Revista Ilustração. Lisboa, ano 13, n. 294, p. 12-13, 16 mar. 1938. MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald: personagem de uma saga romântica. São Paulo: Ed, 1995. MEDEIROS, Alexandre Raicevich de. Memórias de Arthur Napoleão. In: ENCONTRO REGIONAL DA ANPUH-RIO - MEMÓRIA E PATRIMÔNIO, 14., Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: ANPUH, 2010. Disponível em: http:// www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276017543_ARQUIVO_ TEXTOANPUH.pdf. Acesso em: 28 nov. 2013. O PAÍS. Rio de Janeiro: [s. n.], ano12, n. 4071, p. 2, 24 nov. 1895 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=178691_02&pasta=ano%20189&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 18 out. 2013. O PAÍS. Rio de Janeiro: [s. n.], 24 set 1922, ano 38, n. 13853, p. 5, 24 set. 1922. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=178691_05&pasta=ano%20192&pesq=%22viscondessa%20de%20 cavalcanti%22. Acesso em: 27 out. 2013. RATNER, Sabina Teller. Camille Saint-Saens: 1835-1921: a thematic catalogue of his complete Works. Oxford: Oxford University Press, 2002. v. 1 - The instrumental works. ROBERTSON, Lisa J. Warriors and warfare. In: DEAL, William E. Handbook to Life in edieval and Early Modern Japan. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 131-184. TOLEDO, L. Legado feminino. Tribuna de Minas, Juiz de Fora,18 set. 2011. Disponível em: https://tribunademinas.com.br/noticias/cultura/18-09-2011/ legado-feminino.html. Acesso em: 20 set. 2013. ÚLTIMA HORA. Rio de Janeiro: [s. n.], 5 out. 1912. 374 Iconografia musical na América Latina VIRMOND, Marcos da Cunha Lopes. Construindo a ópera Condor: o pensamento composicional de Antônio Carlos Gomes. 2007. Tese (Doutorado em Música) – Instituto de Artes, Universidade de Campinas, Campinas, 2007. WIKIMEDIA COMMONS. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/4/47/Camille_Saint-Sa%C3%ABns.jpg. Acesso em: 28 ago. 2018. Arthur Napoleão, Carlos Gomes, Camille Saint-Saens e Jean-Henry Ravina... 375 A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista Representações de uma sociedade em transição Diósnio Machado Neto 1 Introdução A Belle Époque paulista foi um período marcado por uma profunda modificação nas estruturas socioeconômicas da região. O avanço da industrialização, que vinha na esteira da pujante economia agrícola que se desenvolvia desde 1870, impulsionava a riqueza da região. Nessa conjuntura, a elite da terra pôs em marcha um processo de transformação socioeconômico-cultural inédito, no que diz respeito à promoção do modelo civilizacional através da cultura artística. Já para a década de 1890, o governo paulista estruturou instituições e políticas públicas para uma elevação da crítica culta no estado. Por essa estratégia, entre outras ações, foram criados a Pinacoteca do Estado (1905) e o “pensionato artístico”, que era um projeto que enviava jovens artistas para a Europa, subsidiados pelo governo. 377 Em todo esse processo, dois pintores tornaram-se as referências do que se buscava: Almeida Júnior e Oscar Pereira da Silva. Ambos produziram obras que formaram a coluna vertebral da Pinacoteca do estado de São Paulo, e em ambos era preponderante o discurso da paulistanidade. Suas pinturas ajudaram consideravelmente a elite da terra a definir uma tipologia de São Paulo buscando retratar os personagens fundadores da raça, a paisagem da região e os costumes e hábitos do cotidiano. Não só discursavam sobre uma tradição, por vezes, inventada como a dos bandeirantes, mas criavam representações de uma nova ordem social, apresentando em seus quadros os modelos da vida urbana desejável às famílias que, pouco tempo atrás, vivam ainda nos moldes coloniais luso-brasileiros. Nesse movimento, os dois artistas também observam que a prática musical também foi afetada. No último quartel do século XIX, o piano entrou na sala de visitas da nova burguesia, substituindo o tradicional apego pelos cordofones dedilhados. As canções deram lugar as árias das óperas italianas. Enfim, houve uma profunda transformação das sonoridades que sustentava a transformação do lugar da cultura. Todo esse novo cenário pode ser discutido por duas telas de Oscar Pereira da Silva: Uma casa Brasileira (s.d.) e Hora da Música (1901). É por elas que este texto buscará analisar uma conjuntura dos novos lugares de escuta, não só analisando o modelo que se impunha à sociedade emergente, mas, também, os contrapontos das tensões vigentes pelo desvelamento das oposições entre o tradicional e o moderno como parte de uma pedagogia iconográfica que se tornou uma ponta de ação da política pública da época. Dessa forma, buscarei não apenas sublinhar a polarização entre o bandeirante e o caipira, como e, principalmente, expor as práticas musicais em dois ambientes paralelos que nunca perderam vigência no Brasil: a música do âmbito rural – que hoje ressurge nas muitas faces do movimento sertanejo musical – e a moderna sala de visita da Belle Époque paulista – hoje transferida para as salas de concertos. No terceiro Congresso Brasileiro de Iconografia Musical – organizado pelo Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil) em 2015 –, desenvolvi o tema da formação da iconografia do caipira usando como base a obra do pintor paulista Almeida Júnior (1850-1899). Destaquei de sua produção o quadro O violeiro, de 1899, para argumentar que o campo tópico do caipira se constituiu por um jogo transcultural que mediava uma nova 378 Iconografia musical na América Latina realidade paulista: o encontro entre os antigos moradores das zonas rurais com os imigrantes italianos. (MACHADO NETO, 2015) Tratei de demonstrar que tal formação tópica amalgamava diversos ícones que eram comuns não só ao homem do campo, mas a toda uma definição da cultura brasileira. Isso porque considerei que essa iconografia ressaltava principalmente a representação de uma indolência que desde tempos remotos era atribuída ao nativo. Um dos principais ícones dessa construção era a relação com a família dos cordofones dedilhados, como a viola, o violão, o machete, o cavaquinho etc. Assim ficava marcada uma realidade sentida, uma certa impossibilidade civilizacional que deveria ser resgatada pela urbanização, branqueamento, letramento e acesso à cultura artística. Nesse espaço, da cultura artística, o ícone que fazia o contraponto à indolência caipira era o piano. O piano representava a educação civilizadora, o meio de acesso à grande cultura. Não só era o instrumento com que a sinhazinha exibia seus melhores dotes, mas também o novo símbolo da casa urbana da nova burguesia. Enfim, era parte do índice que representava a elite da terra através de um espelhamento do que se entendia como reprodução dos ambientes dos melhores centros civilizados. Esse é o aspecto que tratarei de desenvolver por duas telas de Oscar Pereira da Silva: Uma Casa Brasileira (s.d.) e Hora da Música (1901). 2 A marca da sociedade em transição: inventando tradição e impondo superação Para compreender o processo representado nas duas telas anteriormente destacadas, é necessário, primeiro, compreender a conjuntura paulista, principalmente no que diz respeito à construção de um discurso geocultural que buscava sedimentar não só um passado, mas principalmente uma tradição. Nesse processo, que se caracteriza pela modernização da sociedade paulista impulsionada, desde a década de 1870, pela economia agrícola, uma ação fundamental foi a construção de um acervo iconográfico. O que estava em jogo era o que Pierre Nora chamava de “lugares de memória”. Um espaço onde não só o concreto, mas também o simbólico, forjam um sentido de pertenças que alinhavam discursos e sustentavam zonas de influência e poder. Pode-se dizer que justamente foi a conjuntura do progresso econômico de São Paulo que A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 379 exigiu essa ação sobre a memória. Inclusive se considerarmos alguns aspectos da conjuntura política em que se deu a transição paulista para uma economia pré-industrializada, que precisava alterar as antigas mentalidades de negócios das famílias tradicionais com as novas práticas que exigia a economia capitalista que se impunha. A principal característica desse processo foi que a antiga oligarquia agrária do interior de São Paulo e os comerciantes do passado imperial conseguiram manter o controle da política local estabelecendo uma comunhão com os novos ricos, em sua maioria italianos. Esse aspecto do processo de transição socioeconômico-cultural de São Paulo foi fundamental, pois ao mesmo tempo em que criou alicerces nas estruturas seculares de poder, encontraram redes de negociantes já estabelecidas na lógica capitalista do comércio de exportações. Ademais, entre 1890 e 1930, uma bem-sucedida articulação com a oligarquia mineira sustentou uma aliança vitoriosa conhecida como “a política do café com leite” que projetou o modelo socioeconômico paulista para o cenário nacional. No entanto, foi nesse cenário que surgiram alguns dos momentos mais agudos da política brasileira daquela época, como a greve geral de 1917, a Revolta Paulista de 1924 e, principalmente, o Movimento Constitucionalista de 1932. Essas revoltas sociais desvelavam tensões locais constituídas na desarticulação entre o processo civilizatório posto em marcha e a condição social do grosso da população. Havia nelas toda uma questão da alteridade entre a velha elite e a população então formada já no caldeirão da imigração, assim como por uma população multiétnica que acumulava deficits socioculturais-educacionais no decorrer de séculos de abandono a estados de natureza – em 1920 a taxa de analfabetismo era de aproximadamente 65% da população. (INEP, 2001, p. 6) As sedições, assim, eram potencializadas por uma questão de fundo mal confessada, ou pelo menos evitada: o desenvolvimento de São Paulo trazia como marca o encontro de várias etnias que se conjugavam na formação do que seria o paulista, amealhadas pela incapacidade técnica e crítica de suprir as demandas da economia capitalista. Aos poucos, começavam a surgir as ambiguidades de um processo que parecia constituído numa linha evolutiva sem máculas desde o mito fundacional de João Ramalho, passando pelos bandeirantes e culminando nos potentados aristocráticos das grandes fazendas do interior. No entanto, os novos tempos mostraram algumas fragilidades do modelo de poder diante dos inúmeros desafios sociais que o processo de transição trazia, principalmente, 380 Iconografia musical na América Latina questionando os tratos trabalhistas que nos tempos do Império eram impensáveis para as oligarquias dominantes. Em síntese, três séculos após a primeira saga paulista, por onde se olhasse a história de São Paulo havia a marca da miscigenação e do descuido civilizacional. Não era diferente agora, pois a transição da antiga estrutura colonial para o processo de economia capitalista tinha uma forte marca do transculturalismo. As monoculturas de café prosperaram com a força de trabalho da imigração italiana. No contraponto do agronegócio cafeeiro, a diversificação da lavoura teve forte impulso com a imigração japonesa, a partir de 1908. A infraestrutura urbana e de transporte foram feitas a partir de investimentos e transferências de tecnologias inglesas; a The City Company (companhia de geração e distribuição elétrica) e a São Paulo Railway (companhia ferroviária) tiveram grande impacto nesse processo. A modernização do porto de Santos amealhou trabalhadores de diversas etnias, inclusive imigrantes europeus, como espanhóis, que organizaram movimentos políticos desconhecidos de então, como o anarquista e o comunista. O fomento à industrialização no início do século teve como marca a inserção do empresário de origem europeia; as tecelagens e o setor moveleiro eram quase monopólio dos italianos. Esse movimento levou a uma transformação geocultural e impactou frontalmente todo o processo sociocomunicativo da região. Já em 1920, a população paulistana de oriundi chegou a tal dimensão que uma parte da imprensa escrita tinha o italiano como idioma. As artes não ficaram de fora desse processo e tiveram profundo impacto através da colônia italiana; os conservatórios e toda a vida teatral de grande porte, como a temporadas de óperas, eram controladas pela colônia italiana. No entanto, as belas artes buscavam na França a orientação estética. O francês, aliás, era a língua franca entre os intelectuais da época, a tal ponto de que nas reuniões na Villa Kyrial se usava preponderantemente esse idioma. Assim, diante de uma realidade de conjuntura social sincrética, o espírito político modulava o discurso legitimador em direção à questão da raça. No entanto, os sentimentos difusos quanto à pedra de toque sobre esse estatuto tornavam a problematização da representação paulista um campo de difícil articulação. Inclusive porque a corrente filosófica-científica que sustentava o discurso da organização social, o determinismo racial, tinha como base crer na impossibilidade civilizacional de povos miscigenados. Isso impactava de frente A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 381 o discurso da independência intelectual da raça paulista, formada na esteira de muitos encontros étnicos e, então, dependente economicamente dessa gente. Enfim, reconhecer João Ramalho, o fundador da paulistanidade, como patriarca dos mamelucos e os bandeirantes como origem dos caboclos, entre outros símbolos, era uma possibilidade descartada pelos donos das narrativas históricas, na verdade era uma impossibilidade discursiva. Dessa forma, o transculturalismo da própria condição econômica do progresso impôs uma única saída à parcela hegemônica da nova civilidade: criar uma tradição. Desenvolver uma iconografia da raça seria, assim, natural. Era, sobretudo, um processo pedagógico diante de tantas etnias constituintes do novo paulista. Era, também, um contraponto regionalista diante de culturas já afirmadas no consciente coletivo da brasilidade, como a cultura aristocrática carioca e baiana. Enfim, a nova potência econômica brasileira necessitava criar símbolos para a sua afirmação. Símbolos que deveriam ter uma identidade inequívoca, inclusive porque deveriam afirmar a raça paulista como os verdadeiros pioneiros da terra brasílica. 3 A política pública na representação de um projeto regionalista Entre 1870 e 1930, se desenvolveram alguns projetos de construção de uma identidade paulista. Buscando afirmar uma natureza liberal-progressista, porém arraigada numa tradição de homens desbravadores de inquebrantável determinação, a elite da terra atuou em muitos espaços, forjando ideias, discursos, políticas públicas e ações de propaganda. Era, sobretudo, uma ação discursiva prática, consciente, que envolvia um jogo complexo de representações. Inúmeros espaços de discursos foram utilizados na construção de uma tradição que ao mesmo tempo afirmava o nacional, o fazia desde a perspectiva regional de São Paulo. No campo da história, Ferretti e Capelato (1999) afirmam que a elite intelectual “mobilizou algumas das mais importantes personalidades do mundo político e cultural, paulista e não paulista, destacando-se Alberto Salles, Afonso de Taunay, Alfredo Ellis Jr., Paulo Prado, Oliveira Vianna, Washington Luís, Graça Aranha, dentre outros”. Em síntese, para uma pedagogia regionalista, marcada nos feitos e fatos dos paulistas, tanto os 382 Iconografia musical na América Latina homens de negócios, intelectuais, artistas e a pequena burguesia, sustentavam governos que atuaram decididamente na projeção de uma ideia de estado de raiz nacional com um destino de liderança; forjaram a ideia de São Paulo como a “Locomotiva do Brasil”. O processo, no entanto, começou com a projeção de uma política de formação de quadros técnicos, e não mais intelectuais, como foi a base da elite paulista no período pós-Independência, tendo a Faculdade de Direito do Largo São Francisco como a força motriz da distinção da sociedade paulista. Somente em 1873, a elite paulista entendeu a necessidade da instrução pública como fator de transformação social. Surgiu nessa perspectiva o Lyceu de Artes e Ofícios que se projetou como campo fértil para duas outras instituições de formação técnica, tanto no campo das ciências como das artes: a Escola Politécnica, de 1893, e a Pinacoteca do Estado de São Paulo, de 1905. Já na formação de um corpo artístico que sustentasse os ideais de representação regional, o processo foi incrementado na esteira de políticas de bolsas sistematizados na época imperial. Assim, o governo do estado de São Paulo, assim como ocorria no seio da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, destinou fundos para um programa de pensão para jovens artistas estudarem na Europa. Já a partir de 1912, São Paulo criou o programa Pensionato Artístico, que teve em Freitas do Valle seu maior articulador. Esse projeto, aliás, impulsionou a segunda etapa do projeto da “arte nacional”, pois foi a mola propulsora para artistas ligados ao Movimento Modernista, como Anita Malfatti, Victor Brecheret, Francisco Mingnone e Camargo Guarnieri. Nessas ações, pode-se relacionar, ainda, a formação do Museu Paulista, em 1895; a publicação, a partir de 1924, da saga histórica dos Bandeirantes por Afonso d’Escragnolle Taunay – inclusive resgatando a iconografia de Hercule Florence –; a construção do Theatro Municipal de São Paulo, em 1911 – e que, em 1922, acrescentou ao seu conjunto arquitetônico, indexando a paulistanidade, a estátua de Carlos Gomes de Luigi Brizzolara. Como reflexo dessas políticas públicas, também podemos incluir o movimento da sociedade civil organizada, através da formação da Sociedade Cultura Artística, em 1903. Diante do exposto, é fácil compreender que a Pinacoteca do Estado de São Paulo nasceu justamente nesse projeto de transformação cultural de São Paulo. Inaugurada em 1905 na gestão de Bernardino de Campos, o seu acervo desde cedo refletiu o projeto político-ideológico da “tradicionalização” do paulista. O A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 383 maior destaque da coleção era Almeida Júnior, considerado, então, o principal nome do que se entendia por “arte nacional”. Nesse cenário, o artista marcou o rumo que se seguiria nas futuras gerações: o dito “nacional” era de fato o elogio regionalista. Aliás, os periódicos voltados para a divulgação da Cultura Artística estavam sempre atentos a essa questão da política pública da Pinacoteca do estado e seu vínculo com o ideário do discurso com tintas regionais. A maior prova dessa política era o próprio acervo que o museu organizava, já que a grande maioria das obras adquiridas descortinavam as múltiplas dimensões da vida paulista. Entre as estratégias de discurso, destaco o que considero o mais eloquente, a oposição entre dois campos poderosos de persuasão: a tragédia, retratada na imobilidade do homem rural, pelo caipira; e o heroico, forjada sobre a figura destemida do bandeirante. Sobre essa plataforma se desdobrava outro discurso: a oposição entre a tradição e o novo. 4 Tradição e modernidade na formação do discurso iconográfico da paulistanidade Como já afirmei anteriormente, a geração de artistas que fundou a estética da primeira manifestação da “arte nacional”, como Almeida Júnior e Oscar Pereira da Silva, entre outros, tinha como desafio revelar a idiossincrasia paulista, sem perder o contato com o academicismo. A premissa primordial era que a formação desse capital cultural devia conjugar tanto os valores tradicionais das grandes civilizações, como as características reconhecidas no estatuto da terra e da raça na formação dos novos padrões culturais operados pelo desejo e fantasia da sociedade liberal industrializada. Dois elementos, além da representação das paisagens da terra, afloraram quase que naturalmente nesse projeto, como venho sublinhando: o bandeirante e o caipira. Justificava-se esse filtro pelo entendimento de que um era a exposição da verve desbravadora, indômita, e o outro representava o pulsar ingênuo, puro, do homem paulista em estado de natureza. O bandeirante era a representação do homem de armas; era um tipo-ideal para o projeto da ideologia progressista coeva. Por ele se fazia o paralelo com um acervo do heroísmo arcaico, mas também com os conquistadores do Novo 384 Iconografia musical na América Latina Mundo, como os peregrinos americanos, ou mesmo os navegadores europeus. Era um personagem mítico, muito diferente do que foram em verdade os homens seiscentistas que buscaram minerais e escravos gentios no sertão americano. O bandeirante era o símbolo da raça em movimento (Figura 1). Figura 1 – Luigi Brizzolara, Estátua de Antônio Raposo Tavares, 1922, Museu Paulista Fonte: Museu... (2018). Por outro lado, o caipira era um tipo-real, um espelho de uma realidade a ser superada. Assim, no discurso progressista ele foi mitificado por forças que se potencializavam na crítica progressista sobre as comunidades tradicionais rurais. Nessa narrativa, o roceiro da antiga tradição colonial foi apresentado, então, na indolência do abandono, quando não do autoabandono; o que era mais sintomático em tempos de mudança. A tragédia representada no caipira estava assentada numa apatia, inerente do campo, que o mergulhava em muitos vícios, inclusive numa mística insuperável das crendices da religiosidade popular, sincrética em sua natureza (Figura 2). Assim, corretamente descreve Fabíola Rosa (2017, p. 28): Este cidadão foi visto, num primeiro momento, como um ser indolente, sem trato, vadio, ladrão, bêbado, ignorante, preguiçoso, sujo, incapaz, doente, não-civilizado, de baixa inteligência e mais outras adjetivações negativas e A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 385 preconceituosas que o definiam assim como um tipo não adequado para os ideais civilizados e de progresso do Brasil. Figura 2 – Almeida Júnior, Apertando o Lombilho, 1895, óleo sobre tela, 64 x 88 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo Fonte: Apertando... (2017). No entanto, o caipira trazia uma ambiguidade. Isso porque, bandeirante e caipira se confundiam como criador e criatura, e que residia na contiguidade do espaço de vida de ambos personagens. Isso porque, o caipira não encaixava plenamente como elemento da ironia do novo homem diante da imobilidade histórica da raça. Como habitantes abandonados por uma estrutura sociopolítica historicamente centrada no litoral, tanto o caipira como o bandeirante tiveram suas sagas vividas a partir do domínio de uma natureza inóspita. Se a arma do bandeirante foi transformar sua realidade, pondo-se em movimento, a arma do caipira era a inércia em um estado de natureza. No entanto, essa inércia que ao “não saber nada” poderia, ao mesmo tempo, ser uma salvaguarda de um pulsar 386 Iconografia musical na América Latina original, impedia o discurso unilateral do desprezo. E apesar dos incontáveis vícios, o caipira tinha sobre controle, e de forma peculiar, a sobrevivência em ambientes fundamentais para o autorreconhecimento da tradição: o campo. Dessa forma, era difícil historicamente relegar ao caipira apenas o prejuízo de uma raça caída. O caipira representava, também, uma energia da conquista da terra, da raça original, que agora, na figura do bandeirante, se impunha como modelo de personalidade empreendedora. Em síntese, o caipira era a raça assentada no atraso que deveria ser superada pela dinâmica do progresso. Portanto, sendo o bandeirante a raça em movimento e o caipira seu estado de inércia, de apatia, o discurso funcionaria para a comparação entre o desbravador e o conformista; um mesmo ser envolvido por estímulos diferentes. Logo, ao se sublinhar a figura do caipira pela iconografia orgânica, se projetava algo que, mesmo direcionado para o elogio do cosmopolitismo, se resguardava um espaço memorial das distinções com outras raças brasílicas, como o cortesão carioca, o sertanejo nordestino ou mesmo o gaúcho dos pampas. A iconografia, assim, conseguiu opor duas figuras aparentemente incongruentes para mostrar o potencial da raça: o Jeca, um anti-herói do tempo coevo, era um farol apontado para um passado mítico onde o heroico Anhanguera aparecia como fonte da raça. Por essa estratégia, concretizada por um acervo oficial tanto do Museu Paulista como da Pinacoteca do estado, assim como pela reprodução de ilustrações icônicas na literatura e nos muitos livros históricos e didáticos sobre a paulistanidade, firmava-se sobre os novos homens de negócios da Paulicéia a imagem mística desbravadora, mas ciente de uma terra que o definia. Era o antigo e o novo conjugados numa iconografia que expunha uma narrativa antropológica da raça paulista. Para Ferretti e Capelato (1999, p. 70), havia nessa ordem discursiva uma clara intenção que “identificava no paulista uma série de atributos que não eram encontrados nos demais brasileiros”: Os ‘brasileiros’ seriam caracterizados pela submissão e dependência frente ao governo, pela falta de iniciativa, indolência e preguiça. Já os paulistas seriam marcados pelo desenvolvido ‘espirito empreendedor’, pela iniciativa, tenacidade, energia e independência perante o governo. Disso concluía-se que o paulista era uma ‘exceção’ no conjunto do império e o rápido crescimento da A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 387 província e sua participação no movimento republicano, devido única e exclusivamente ao espirito empreendedor de seus filhos, comprovaria tal fato. Olhando por esse viés, o surgimento de uma iconografia que confrontava o bandeirante e o caipira parece ter sido uma estratégia pensada para mostrar o que o paulista era e o que poderia. Tudo mediado pelo projeto de urbanização e desenvolvimento de uma economia capitalista voltada para o comércio exterior. Quanto ao acervo iconográfico da paulistanidade, em si, esse foi se consubstanciando desde o último quartel do século XIX até meados da década de 1930. Artistas como Almeida Júnior (1850-1899), Benedito Calixto de Jesus (18531927), Henrique Bernardelli (1858-1936), Oscar Pereira da Silva (1867-1939), Monteiro França (1876-1944), entre os mais destacados, pintaram obras que formaram o índice que projetou o discurso paulista. Trabalharam sobre temas como a cultura caipira, a saga desbravadora do bandeirante e o cotidiano urbano, retratando as paisagens, costumes e moradias dos paulistas. A eles se juntavam, entre outros, fotógrafos como Militão Augusto de Azevedo (18371905) e Valério Vieira (1862-1941); os escultores Ettore Ximenes (1855-1926), Luigi Brizzolara (1868-1937) e Nicola Rollo (1889-1970); também o cartunista Benedito Bastos Barreto, o Belmonte (1896-1947). Deve-se ainda marcar que a ação discursiva da paulistanidade vinha amparada pelo elogio ao academicismo. Essa era uma expressão de uma ideia de elevação civilizacional que considerava a “cultura artística” uma condição inerente da civilidade. Por cultura artística entendia-se o desenvolvimento do gosto dentro dos padrões canônicos clássico-românticos europeus. Assim, os salões de concertos, os teatros de ópera, conservatórios, liceus de artes e ofícios, pinacotecas, museus, e as sociedades lítero-musicais constituíam um espaço onde a elite da terra promovia sua visão de progresso e civilização. Aliás, a elitização da arte era entendida como uma condição de uma “existência consciente”, como fica explícita num artigo que defendia o canto em português intitulado “Pela Evolução da Arte Nacional”, de José Josué Francisco Basile: Implantam-se estabelecimentos de ensino por toda a parte. A engenharia, o direito, a medicina, os conservatórios, as academias de belas artes, à porfia vão fundindo aceleradamente em seus cadinhos milhares e milhares de mentes que representarão no futuro os graus evolutivos de geração em geração. E são 388 Iconografia musical na América Latina estes por sua vez os dirigentes de amanhã dessas mesmas atividades. (GAZETA ARTÍSTICA, 1911b, p. 4) No entanto, o mesmo colunista afirma que se por um lado o desenvolvimento de uma cultura artística só poderia se concretizar na esteira das experiências estéticas das grandes nações, acredita que fazê-la automaticamente seria uma perigosa inocência: É justificável que nos brasileiros, não tendo uma tradição experimental estabelecida, copiemos os modelos de outras nações mais velhas e mais experimentadas, pois impossível seria armar de chofre um trabalho razoável, pautado pelas múltiplas necessidades do momento presente e tendo a virtude de produzir no futuro com a presteza dos antigos milagres.//As mesmas nações já definidas por uma longa prática, vêm-se na conjuntura de remediarem quotidianamente as novas exigências acomodando-se à evolução.//Feitas, porém, tais considerações com respeito à circunstância de não haver obra definitiva, amesquinharmo-nos copiando cegamente como autômatos os moldes de outras nações, sem a mínima obediência às indicações dos nossos interesses presentes e futuros, é por demais inconsciência ou preguiça, é declarar falida a fé nas próprias forças. (GAZETA ARTÍSTICA, 1911b, p. 4) Havia no ar uma vontade de representar-se por matizes próprias. Assim, nota-se em outra coluna da Gazeta Artística nº 15, de 1911. Num texto assinado por Raul Rudge, as qualidades de paisagista de Antônio Parreiras (1860-1937) são tratadas como um fenômeno isolado entre os nacionais. Para que isso não fosse uma característica que se perdesse, instava por uma política pública de imersão na realidade regional: O remédio seria que o Estado de São Paulo, que mostra interessar-se pelo que respeita à arte, o que já demonstrou com a fundação da Pinacoteca, e cabalmente com a manutenção de diversos moços na Europa, fizesse melhor, em vez de afastar do contato da nossa terra os futuros artistas nacionais, importando por sua conta e risco dois ou três mestres de gêneros que mais se avizinham às nossas tendências. [...] Não tardaria em desenvolver-se o gosto artístico por esses gêneros, entre os quais sobressairia fatalmente a paisagem, tornando-se a nossa melhor pintura, por motivos numerosos e facilmente perceptíveis//E dupla vantagem nos favoreceria: nacionalizar os nossos artistas e naturalizar, certamente, os seus próprios mestres em contato com a radiante natureza brasileira onde a primavera é imorredoura. (GAZETA ARTÍSTICA, 1911a, p. 4) A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 389 Para o colunista, a Pinacoteca do estado tinha papel preponderante numa política de disseminação de uma ideia de cultura artística, mas uma cultura artística compromissada com uma pauta nacional, que era mais bem regional, como venho frisando: É forçoso que o Estado, por qualquer forma, proceda a uma seleção, e firme um critério seguro para vedar a entrada de produções medíocres, que só vêm deturpar a ideia louvável e importantíssima desse fator propaganda de arte e de educação artística. A Pinacoteca não é, não pode ser uma simples coleção cuja importância decorra de uma quantidade avultada de quadros que possuam: não é também um meio de se dispensar proteção descabida a artistas sem mérito, ou um salão onde se exibem telas oferecidas pela mediocridade. O seu fim é muito nobre, muito justo, quiçá indispensável para a salubridade da alma popular. É tão-somente produzir o prazer espiritual para aquele que tem apurado o gosto pela arte, e concorrer para a educação estética daqueles que ainda não obtiveram essa grandiosa ventura. Para que se desempenhe dessa missão é preciso o máximo cuidado, o escrúpulo de submeter à censura, as telas quer oferecidas, quer adquiridas com gastos para o Estado. (GAZETA ARTÍSTICA, 1911c, p. 5) Como se nota, a questão do discurso do acervo, como um lugar de memórias, era uma questão fremente nos formadores de opinião da época. Sobre este manto de pedagogia pela arte, o discurso regional que estava fortemente vinculado a criar uma ideia de paulistanidade, ainda muito tênue no grosso da população. 5 A casa “brasileira”: a iconografia musical para marca da distinção Se até o presente momento vim sublinhando o esforço de caracterização dos personagens míticos da paulistanidade pelos artistas da Belle Époque. No entanto, a ação se expandia para além das entidades representativas da saga da terra. Em paisagens e ambientes domésticos, a narrativa da raça também se consubstanciava. Por elas, desvelava-se algo da moradia rural, como nas pinturas de Almeida Júnior, mas também alguns costumes das casas urbanas. Nesse sentido, a Belle Époque inaugurou, também, o gosto pela nova mídia iconográfica, a fotografia. Por fotos nos chegaram as imagens dos salões, das casas abastadas e, também, das casas da pequena burguesia que rapidamente 390 Iconografia musical na América Latina se estruturavam nos moldes da cidade capitalista europeia. Apenas por fotografia pudemos hoje conhecer a Villa Kyrial, a casa icônica da Belle Époque onde grande parte da intelectualidade artística de São Paulo se reunia em tertúlias organizadas por Freitas Valle. Destaco, também, que foi nesse campo que surgiu um dos primeiros momentos do modernismo paulista: as fotomontagens de Valério Vieira; inclusive a foto icônica do movimento de renovação artística de São Paulo, como é Os Trinta Valérios (Figura 3), de 1901, e que se molda ao redor de uma seção musical num salão da terra. Porém, são nas telas que se revela uma interessante representação da atividade musical no ambiente doméstico urbano. Nelas estão não só as possíveis representações das realidades das casas, utensílios e costumes, mas também a projeção de discursos tal qual trabalhado na formação dos personagens representativos da raça. Em outras palavras, a iconografia musical era um importante índice de localização dos topos discursivos. Figura 3 – Valério Vieira, Os Trinta Valérios, 1901, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro Fonte: Vieira ([1901?]). A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 391 Primeiro há que se dizer que reproduções de telas com temas musicais não eram raras na produção nacional da época. Há inúmeras pinturas que tratam do tema, e por elas podemos observar a retórica que sustentava as representações de estratos sociais, quanto ao espaço, usos e costumes. O movimento do academicismo brasileiro nesse aspecto foi generoso em gerar iconografia musical, tanto dentro de um viés estético do romantismo como do realismo, pós 1870. Assim, desde as obras da Missão Francesa do início do século XIX até os realistas paulistas como Almeida Júnior e Oscar Pereira da Silva a iconografia musical quase sempre ilustra uma questão: o instrumento como elemento de localização numa geografia cultural e socioeconômica. Em linhas gerais, os instrumentos musicais serviam para uma alegoria da distinção, no século XIX e início do XX. Marcando as classes altas, da aristocrática aos grandes potentados agrícolas, estavam os pianos, as harpas e o canto feminino. Esses instrumentos, aliás, conjugavam-se com a representação dos salões aristocráticos no início do século XIX e, posteriormente, nos saraus das casas da burguesia emergente, em geral. Já para o final do século XIX, a pequena burguesia comercial urbana passou a adotar a representação por esses antigos ícones aristocráticos, ou seja, a presença de instrumentos de arte, acrescentando ao piano, o violoncelo e até o violino. No outro extremo, a representação de uma sociedade de costumes arcaicos, independente de seu lugar na pirâmide social, a iconografia se vale do uso de instrumentos como os diversos tipos de friccionados cordofones dedilhados – viola, violão, machete, e, principalmente, a família das rabecas. Nessa retórica, entram, também, instrumentos de sopro como a flauta. A percussão, ou o batuque, era o ícone para a gente miúda ou nos interstícios dos vícios impostos pela sociedade sincrética; esses instrumentos, junto com a viola, marcavam as representações de festas populares, e sua relação interétnica, como os folguedos da religiosidade popular. A tela de Augusto Bracet (1881-1960), Dom Pedro compondo o hino da Independência (1921 – Figura 4), é referencial na representação da iconografia musical de alta dignidade. Quase como uma regra, as cenas eram marcadas pela atenção dos personagens sobre o pianista. O ato da escuta era concentrado demostrando o poder da música para o envolvimento das pessoas; era a liturgia da escuta na perspectiva romântica que se projetava século XIX adentro. 392 Iconografia musical na América Latina Figura 4 – Augusto Bracet, Dom Pedro compondo o hino da Independência, 1922, óleo sobre tela, 190 x 250 cm. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro Fonte: Reprodução de fotografia de Rômulo Fialdini. No contraponto dessa retórica, a música no ambiente privado no Brasil, por vezes, era retratada como uma atividade mais leve, quando não indolente. Os instrumentos, nesse tipo de discurso, são tocados sem as formalidades da execução escolar. A audição não se realiza de forma concentrada ao redor do músico, mas sugere que ela forma parte de um ambiente onde muitas coisas acontecem, além da música. Há uma dissociação da música com uma introspecção causada por ela. No máximo pode haver o estímulo ao corpo – dança, por exemplo –, mas nunca ao intelecto. Um dos principais exemplares dessa narrativa é a litografia de Debret, de 1835, Les dèlassements d’une aprés diner (Figura 5). As mesmas retóricas estão presentes em duas outras telas. A primeira é a de autor anônimo de ca. 1829, Negra ao violão, padre dançando (Figura 6). A outra de José Correia de Lima (1814-1857), Maestro Francisco Manuel ditando o Hino Nacional, de 1850 (Figura 7). A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 393 Figura 5 – Les dèlassements d’une aprés diner, Debret, 1835 (2e Partie, Pl. 8), litografia em cores Fonte: Debret (1835). Figura 6 – Anônimo, Negra ao violão, padre dançando, ca. 1829, Coleção Particular Fonte: Negra... (2008). 394 Iconografia musical na América Latina Figura 7 – José Correia de Lima, Maestro Francisco Manuel ditando o Hino Nacional, 1850, óleo sobre tela, 238 x 175 cm. Museu Nacional de Belas Artes Fonte: Xexéo, Abreu e Dias (2007, p. 94).1 Comparando as quatro iconografias emerge um discurso de imediato, como já afirmei: a dignidade dos instrumentos em relação às representações de dois ambientes distintos. Por exemplares como as telas de Bracet e Lima, podemos dizer que salões ou casas de gente de instrução e de distinção representam-se na atenção meditativa sobre a música ou a presença de um instrumento como o piano representando a dignidade do ambiente e costumes familiares. Por sua vez, em Debret e a gravura anônima o foco está no ambiente doméstico ordinário, 1 Ver em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d9/José_Correia_de_Lima_-_ Maestro_Francisco_Manuel_ditando_o_Hino_Nacional.jpg. A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 395 não miserável, mas sem a dignidade e pompa dos homens da corte; poderia ser a casa da pequena burguesia, ainda sem o apego ao mundo das letras e as liturgias da cultura artística. É recorrente, também um discurso que se tornaria canônico: o piano, a harpa e o canto seriam os instrumentos de uma prática musical da educação elevada, da melhor sensibilidade, do intimismo grave e, portanto, instrumentos de composições e não de dedilhados galhofeiros, como os que se relacionariam aos cordofones da terra, como a viola, o machete, o cavaquinho. Quem melhor define essa perspectiva é Machado de Assis, em “O Machete”. No conto, o escritor carioca descreve qual a diferença entre o violoncelo e a rabeca para Inácio Ramos, um músico de altas aspirações e reverente aos grandes mestres europeus. Machado de Assis (1997, p. 857) sublinha que para o músico de profissão “havia no violoncelo uma poesia austera e pura, uma feição melancólica e severa que casavam com a alma de Inácio Ramos”. A rabeca era para Inácio um instrumento que se ganha a vida, de contentação do exterior, mas insuficiente para a sua identidade que aspirava às grandes composições; para isso, usava o violoncelo apreendido com um “mestre alemão”. Para acentuar essa escolha, Machado de Assim contrastou Inácio Ramos com um anti-herói, Barbosa, o tangedor de machete. Nesse momento define o problema do conto, o machate “era efetivamente outro gênero”, assim como seria, em certo modo, a rabeca. Desenvolve a ideia asseverando que impossível seria acercar-se com o machete aos grandes monumentos da inspiração musical. Falando sobre a arte de Barbosa, a narrativa é taxativa: “O que ele tocou não era Weber nem Mozart; era uma cantiga do tempo e da rua, obra de ocasião”. (ASSIS, 1997, p. 857) No entanto, tais instrumentos, como o machete e a rabeca, revelavam o gosto público formado por gente de trato simples, sem letras ou hábitos superiores no trato da música, também perdidos nos tempos onde a tecnicidade da sociedade capitalista não alcançava. Definido o campo cultural, a adesão à música de Barbosa vinha até do círculo mais íntimo da casa de Inácio Ramos: “Carlotinha [a esposa] foi a denunciadora; ela achara infinita graça e vida naquela outra música, e não cessava de o elogiar [Barbosa] em toda a parte”. (ASSIS, 1997, p. 857) O conto termina com a fuga de Carlotinha com Barbosa. Resignado Inácio Ramos diz ao filho cônscio de uma força que não havia como superar, e estava na música: “hás de aprender machete; machete é muito melhor”. (ASSIS, 1997, p. 857) 396 Iconografia musical na América Latina Nos projetos iluministas para a elevação social pela cultura artística da nova burguesia da Belle Époque paulista, não cabia a resignação de Inácio Ramos. Jornais e revista de vulgarização dos “bons costumes” sublinhavam quais as práticas musicais condizentes com a condição moderna de civilidade, principalmente, em relação à condição feminina. Em uma coluna publicada na Revista Commercial de Santos, em 28 de outubro de 1858, assinada pelo jornalista e escritor português José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha2 (1810-1879), ou Felício de Noronha, fica explícito o lugar comum na relação do aprendizado do instrumento com os dotes desejados para o decoro da mulher: Há muito que os malcriados dizem que as senhoras tem todas grande propensão para a música, especialmente para a rabeca, instrumento que ninguém afina com tamanha perfeição; eu cá não vou para aí e dou a palma ao feio sexo [...] Eu zango com a atitude de uma mulher, a serrar com o arco da rabeca, como uma endiabrada; atitude elegante só a da harpa e lyra [sic], mas Deus me livre de ver mulher minha a tocar rabeca, flauta, corne, serpentão, berimbáo [sic] ou zabumba. (REVISTA COMMERCIAL, 1858, p. 4) A partir de meados do século XIX, nos grandes centros urbanos do Centro-Sul brasileiro, os cordofones dedilhados, especialmente o violão e a viola, foram sendo relegados a instrumento de menor dignidade na exposição dos dotes públicos da mulher, principalmente. Aliás, já é canônico na nossa historiografia que o violão mudou de endereço, dos salões aristocráticos ibero-americanos do século XVIII para as casas de portas abertas para a rua, ou mesmo o morro, onde a população pobre habitava. O violão tornou-se o instrumento de uma figura emblemática do Brasil: o malandro. No entanto, na prática, não ocorreu uma devassa do instrumento, como deixa explícito o próprio conto de Machado de Assis. A tradição colonial fazia desses instrumentos uma pertença estimada nas práticas musicais domésticas, principalmente longe dos palacetes dos capitalistas e comerciantes emergentes das principais cidades brasileiras. São inúmeros os relatos de viajantes que apontam nas casas reuniões onde o violão ou viola era o instrumento central, principalmente na primeira metade do século XIX. Isso pode-se deduzir, por exemplo, 2 José Feliciano radicou-se no Rio de Janeiro, em 1846. Entre muitas atividades literárias, colaborava com a Revista do Conservatório Real de Lisboa. A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 397 dos relatos de Johann Baptist Von Spix e Carl Friedrich Philipp Von Martius, em 1817. Especificamente sobre o Rio de Janeiro, os dois naturalistas bávaros não deixaram dúvidas sobre o gosto dos luso-brasileiros pelos cordofones dedilhados: “O violão, tanto como no sul da Europa, é o instrumento favorito; o piano é um dos móveis mais raros e só se encontra na casa dos abastados. As canções populares, cantadas com o acompanhamento do violão, são parte originárias de Portugal, parte inspiradas pela melodia indígena”. (SPIX; MARTIUS, 1981, v. 1, p. 57) E, apesar de ser curiosa a afirmação sobre a influência melódica indígena, os seus relatos coloriam um estado de coisas confirmado por tantas outras fontes. Os cordofones dedilhados eram presença segura nos saraus e nos divertimentos diuturnos de muitas casas brasileiras. Além da costumeira crítica ao atraso dos costumes, tal condição da prática musical aparece, também, na narrativa sobre a cidade de São Paulo: “O fato de ser a música, igualmente, ainda caótica, e à busca de seus elementos primitivos, não nos estranhava; pois, além do violão predileto para o acompanhamento do canto, nenhum outro instrumento é estudado. Quanto ao próprio canto, o gosto do paulista já é mais desenvolvido”. (SPIX; MARTIUS, 1981, v. 1, p. 141) John Luccock (1975, p. 84) foi outro que, em datas iniciais do século XIX, confirmava que a seresta ao violão era uma constante no Brasil, e se intensificava mais quanto mais rural fosse o lugar das cidades: Fora das cidades, especialmente se a lua estiver cheia, o entardecer encontra os convidados remanecentes em plena alegria de espírito; o sono já dissipou os vapores do alcool, se é que dele se abusou, a roda aumentou com a concorrência dos vizinhos e as guitarras soam, pois que todos sabem tocar; as canções se sucedem, geralmente em tons macios e plangentes, e a dança não fica esquecida. O mesmo tipo de narrativa encontra-se em John Mawe, Auguste de SaintHilaire, Daniel Kidder, Johann Moritz Rugendas, para citar os viajantes mais conhecidos. Porém, avançando para segunda metade do século, as narrativas sobre essa prática musical rareiam e, por vezes, aparecem mais nos romances do que nas cartas ou relatos de viajantes, como sucede com Machado de Assis, em “O Machete”, ou mesmo em Aluísio Azevedo (1857-1913), em O Mulato. Por outro lado, a segunda metade do século foi generosa em mostrar como o piano tornou-se um índice da dignidade familiar. Na medida em que o tempo 398 Iconografia musical na América Latina avançava, desenvolvia-se a “pianolatria” a tal ponto de que não havia conto que falasse da casa brasileira nos centros urbanos que não contivesse cenas ao redor do piano, mesmo quando fosse para demonstrar o conflito entre o gosto ordinário e a demonstração das novas luzes, como ilustra Machado de Assis (1977, p. 115): “a visita dos dois homens (que a namoravam de pouco) durou cerca de uma hora. Maria Regina conversou alegremente com eles, e tocou ao piano uma peça clássica, uma sonata, que fez a avó cochilar um pouco”. Em síntese, diversos tipos de narrativas nos falam sobre como a prática musical marcava a distinção da posição cultural, e geográfica, das famílias. Os cordofones, na medida que avançava o século XIX, caracterizava-se numa prática que não mais condizia com os ambientes urbanos, a não ser na gente miúda sem pretensão a uma elevação social nos novos moldes cosmopolitanos. O violão, a viola, o machete ou o cavaquinho era um domínio das práticas rurais ou do entretenimento com as “canções da rua”. Já o piano se projeta dos hábitos cortesões para dentro das casas de uma burguesia que tinha na metonímia da presença dos salões europeus a sua pretensão de distinção. O piano tornou-se, assim, o símbolo da transição dos antigos costumes do Brasil colonial para uma sociedade que aspirava participar de um modelo civilizacional baseado no liberalismo econômico. Ter um piano em casa, mais do que habilitar-se à prática elegante dos saraus, era ter um ícone do bom gosto e da cultura artística que pedia a época. Mesmo que fosse para tocar música ligeira e para bailar com os galopes da terra. 6 O tradicional e o moderno em duas telas da Belle Époque Todo o discorrido pode ser ilustrado por duas telas de Oscar Pereira da Silva: Uma Casa Brasileira (Figura 8) e Hora da Música (Figura 9). Ambas telas têm na iconografia musical seu centro de discurso. Isso é inegável. No entanto, o que é difícil tratar é que elas trazem um interessante problema: a questão do tempo de representação. Desde um primeiro momento se questiona se são telas que representam o tempo vivido. Isso porque em Uma casa brasileira, o artista apresenta um ambiente doméstico que mais bem seria verossímil para o começo do século XIX. O violão como centro da cena, promovendo a atenção A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 399 dos que estão ao seu redor, inclusive uma moça sentada em uma rede, não seria plausível para o discurso da Belle Époque paulista. Figura 8 – Oscar Pereira da Silva, Uma Casa Brasileira, óleo sobre tela, 40 x 59 cm. Coleção Particular Fonte: Wikimedia.org (2018). Figura 9 – Oscar Pereira da Silva, Hora da Música, 1901, o.s.t., 65 x 50 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo Fonte: Google Arts & Culture (2018). 400 Iconografia musical na América Latina Diante disso, poderíamos levantar várias questões: seria Uma casa brasileira um discurso retórico que recorreria a modelos canônicos de representação das casas abastadas ainda numa perspectiva colonial, como aparece em telas de Rugendas ou Debret? Ou seria coeva para um mundo rural, distantes dos novos costumes e utensílios dos brasileiros imersos na nova ordem sociocultural? Primeira questão é o ambiente. Oscar Pereira, em Uma Casa Brasileira (Figura 8), parece nos remeter mais a uma moradia rural, uma casa de fazenda. As grandes portas internas e externas eram típicas das sedes de fazendas, na arquitetura imperial dos grandes latifúndios. Outrossim, desenha a cena a partir de hábitos e utensílios antigos da sala de visitas, como redes, esteiras e móveis sem encosto, onde as mulheres se sentavam com pernas cruzadas à mourisca. Os ornamentos também são indícios de casa rural tradicional. O quadro com uma imagem de santa e um outro, provavelmente uma foto que sustenta uma palma presa à parede – ainda hoje se vê no interior ramos de flores postos em quadros com imagens de santos –, nos sugere um tipo de catolicismo rústico que as moradias urbanas da Belle Époque descartavam. Na cultura moderna urbana, os símbolos da religiosidade popular foram gradativamente sendo substituídos por quadros de paisagens, natureza morta ou retratos pintados dos membros da família, como vemos na outra tela de Oscar Pereira da Silva, Hora da Música. A cena musical de Uma Casa Brasileira também está mais próxima das narrativas do mundo rural e rural dos tempos do primeiro império. Além do violão, já um índice da prática mais antiga e/ou rural, parece que o outro personagem sentado canta de forma espontânea, como se cantava qualquer canção popular, como os lundus ou modinhas imperiais. Soma-se a isso, o personagem em pé. O desenho deixa em aberto se esse personagem, de bengala e chapéu inglês, está no galanteio para uma dança, ou se soma à roda num cumprimento de quem chega. Aliás, os trajes não são mais condizentes com o homem de negócio urbano da virada do século XX. Toda essa disposição constrói uma ambiguidade. Primeiro, porque a cena realmente nos remete a um mundo desconhecido da Belle Époque paulistana, onde trabalhava Oscar Pereira. A cena, aliás, se assemelha muito ao que narra o Príncipe Maxialiano sobre sua visita a uma fazenda baiana, em 1817: “À noite, encontrei na fazenda de Areias várias famílias reunidas, e especialmente os moços das redondezas. Como era domingo, todos procuravam divertir-se cantando A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 401 com acompanhamento de viola e fazendo toda a sorte de brincadeiras”. (WIED NEUWIED, 1940, p. 438) No entanto, tudo remeteria a uma representação do passado se não fosse por um detalhe, ou melhor, dois. Primeiro, os trajes femininos que em nada se assemelham a tempos ancestrais. Segundo, o que está paralelo à cena musical: duas moças, brancas, uma no cuidado da criança e outra servindo o refresco. Nada impedia o artista remeter ao verossímil da criadagem negra no trato dos serviços da sala de visita, principalmente, as duas ações pintadas. Assim, parece que tal deslocamento, no sentido da verossimilhança, está sobre um paralelismo cultural ainda existente em seu tempo: os hábitos e moradas da sociedade rural. De qualquer forma, tudo fica ambíguo, pois a tela chama-se genericamente de “uma” casa. Tal interpretação se potencializa se compararmos a cena de Uma Casa Brasileira à Hora da Música (Figura 9). Nessa obra, ao contrário da anterior, estão todos os índices da cultura artística desejada pela sociedade urbana da Belle Époque. Primeiro, a própria questão da música. Se em Uma casa brasileira, a prática é feita na memória, aprendida na tradição oral, na tela de 1901 não só há uma partitura aberta que demonstra a reverência ao florilégio musical, como a postura das musicistas indica uma educação escolar. Nesse caso, a corporalidade revela a distinção. Além dos personagens músicos, outro ponto de comparação é de quem escuta. Apesar da representação corporal da ouvinte se assemelhar da pintada em Uma casa brasileira, a mulher que ouve segura um livro que indica o domínio das letras, o que era uma nova condição da moça na sociedade moderna. Ademais, tanto em uma tela, como na outra, a mulher que escuta segura a cabeça e descansa outro braço no colo, como se estivesse muito envolvida na música. É sem sombra de dúvidas a postura da escuta romântica em que a música é uma via de um intimismo profundo. Em Uma Casa Brasileira, esse intimismo da ouvinte feminina é quebrado, no entanto, pelo movimento do homem em frente à cena musical, o que deixa ambíguo o discurso da atenção. Por fim, ao contrário da tela Uma Casa Brasileira, em Hora da Música toda a mobília e adornos remete à casa urbana coeva. Inclusive os quadros, com temas que sugerem o alinhamento com o academicismo romântico, e um biombo, que muito remete ao gosto por utensílios assimilados de culturas não europeias – era, por que não, o reflexo romântico pelos exotismos que a ópera tão bem soube 402 Iconografia musical na América Latina explorar e cristalizar na formação da crítica pública e suas formas de representação, como no design dos interiores domésticos vistos pelo biombo. 7 Conclusão O primeiro aspecto a ser concluído é sobre o esforço iconográfico feito por uma elite paulista no processo de transição para uma sociedade urbana, liberal, letrada e imersa nos cânones da cultura artística europeia. Nesse processo, a intervenção estatal jogou um importante papel fundando instituições como a Pinacoteca do estado e, sobretudo, reunindo um acervo que continha uma narrativa das grandezas da raça, mesmo quando por discursos aparentemente contraditórios ou ambíguos. Tratei de discutir que esse discurso não só estava na apresentação dos pilares do homem, mas na representação da moradia, e seus usos e costumes cotidianos. Nesse processo, coube a arte uma espécie de pedagogia iconográfica, onde os artistas foram instados por políticas públicas a desenvolver uma pintura de verossimilhança, reproduzindo utensílios, vestimentas e práticas, como a música. O faziam, primeiro, amparados numa retórica assimilada do academicismo novecentista. Segundo, usando a estratégia da oposição: o caipira versus o bandeirante; o violão na oposição com o piano; o canto lírico marcando a canção popular. Nessa perspectiva do discurso, enquanto a Hora da Música é uma tela absolutamente sincronizada com a época, Uma casa brasileira abre fendas sobre a representação do tempo que só podem ser resolvidas por pequenos detalhes, como a ação e representação das mulheres na sala de visitas. Assim, comparando as duas telas de Oscar Pereira da Silva, há suficientes evidências para discutirmos que nesse processo buscava-se, também, harmonizar o tradicional e o moderno para dar a Belle Époque não só um sentido de progresso, mas de um progresso que assimilava suas raízes. Enfim, considerando a mesma autoria das duas telas, e sobrepondo um histórico onde um mesmo artista se dedicava a pintar o rústico e o moderno, as duas obras de Oscar Pereira da Silva revelam mais do que estava retratado. Revelam, sobretudo, o entreato de realidades que deveria ser exposto para a superação definitiva de um passado que não poderia ter uma solução de continuidade no A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 403 processo de atualização social da nova sociedade urbana, e capitalista. Enfim, um discurso Iluminista que, ao mesmo tempo em que aproximava mundos e tempos paralelos criando pilares de sustentação no passado, o apresentava como uma realidade inconciliável, por vezes. Era, sobretudo, narrativas para uma pedagogia, através da iconografia alinha aos princípios da cultura artística. As cenas musicais, nesse sentido, ganhavam o mesmo discurso usado na constituição da gênese da raça. Opunham o tradicional e o moderno, como o bandeirante e o caipira, mas ao mesmo tempo projetavam ambos no novo homem paulista: branco, empreendedor e imerso nos modelos da cultura artística europeia. Aliás, esse era o novo impulso colonizador, representando a modernidade através de valores, como a sociedade industrial, que já se impunha em São Paulo pelas mãos de muitos estrangeiros ou estrangeirados. Por fim, resta dizer que alguns anos mais tarde, a leitura de estrangeirismo imposto vai impulsionar toda uma geração de intelectuais paulistas a um movimento de nacionalização estética política que teve seu marco fundamental na Semana de Arte Moderna de São Paulo, ocorrida em fevereiro de 1922. Referências APERTANDO o Lombilho. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: http://enciclopedia. itaucultural.org.br/obra933/apertando-o-lombilho. Acesso em: 27 ago. 2018. INEP. Mapa do Analfabetismo no Brasil. Brasília, DF: INEP, [2001 Disponível em: http://inep.gov.br/documents/186968/485745/ Mapa+do+analfabetismo+no+Brasil/a53ac9ee-c0c0-4727-b216035c65c45e1b?version=1.3. Acesso em: 15 jan. 2017. ASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. 2. ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. DEBRET, Jean Baptiste. La diner / Les delassemens d´une aprés diner. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. 50,4 x 33,4 cm. Disponível em: http://www. brasilianaiconografica.art.br/obras/18735/la-diner-les-delassemens-dune-apresdiner. Acesso em: 27 ago. 2018. 404 Iconografia musical na América Latina FERRETTI, Danilo José Zioni; CAPELATO, Maria Helena Rolim. João Ramalho e as Origens da Nação: os paulistas na comemoração do IV centenário da descoberta do Brasil. Tempo: revista do Departamento de História da UFF, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 67-87, 1999. GAZETA ARTÍSTICA: revista de literatura, música e bella-artes. São Paulo, [s. n.], ano II, 1911. GAZETA ARTÍSTICA. São Paulo: [s. n.], n. 15, p. 4, 1911a. GAZETA ARTÍSTICA. São Paulo: [s. n.], n. 16, p. 4, 1911b. GAZETA ARTÍSTICA. São Paulo: [s. n.], n. 14, p. 5, 1911c, GOOGLE ARTS & CULTURE. Disponível em: https://artsandculture.google.com/ asset/hora-da-música/MwHanh464gCTRA?hl=pt-BR. Acesso em: 27 ago. 2018. LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes Meridionais do Brasil (18081818). São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. MACHADO NETO, Diósnio. As imagens do músico caipira: ideias topificadas e tropificadas na consubstanciação de uma referência cultural paulista. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ICONOGRAFIA MUSICAL, 3., 2015, Salvador. Anais [...]. Salvador: RIdIM-Brasil; UFBA, 2015. p. 149-162. MUSEU do Ipiranga. In: WIKIMEDIA Commons. [S. l.], 2018. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Museu_do_Ipiranga_2018_043.jpg. Acesso em: 27 ago. 2018. NEGRA ao violão, padre dançando. In: WIKIMEDIA Commons. [S. l.], 2008. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Negra_ao_violão,_ padre_dançando.jpg? uselang=pt-br-filelinks. Acesso em: 27 ago. 2018. REVISTA COMMERCIAL. Santos: [s. n.], ano 9, 1858. ROSA, Fabíola. Recantando muitos cantos: a música caipira como espaço de articulação de encontros. 2017. Dissertação (Mestrado em Musicologia) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. SPIX, Johann Baptist von MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil, 1817-1820. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUSP, 1981. v. 1. VIEIRA, Valério. Os trinta Valérios. [S. l.: s. n.], [1901?]. 22 x 28,7 cm em cartão 31 x 37,5. Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_ sophia=443. Acesso em: 27 ago. 2018. A Hora da Música em Uma Casa Brasileira na Belle Époque paulista 405 WIED NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil (1815-1817). São Paulo: Editora Nacional, 1940. WIKIMEDIA.ORG. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/5/5e/Oscar_Pereira_da_Silva_-_Uma_Casa_Brasileira.jpg. Acesso em: 27 ago. de 2018. XEXÉO, Pedro Martins Caldas; ABREU, Laura Maria Neves de; DIAS, Mariza Guimarâes. Missão artística francesa: coleção Museu Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 2007. 406 Iconografia musical na América Latina O Sicim Uma aplicação tecnológica para uma melhor classificação organológica1 Pedro Ivo Araújo 1 Preâmbulo A identificação, descrição e análise organológica realizada a partir de fontes visuais relativas à cultura musical pode não ser uma tarefa simples. Seu resultado depende não somente do entendimento do sistema de classificação organológica utilizado, mas também do estudo do instrumento enquanto elemento inserido em um contexto sociocultural e histórico, incluindo a qualidade da representação e a discriminação entre o real e o alegórico. Nesse entendimento, visando diminuir as eventuais inconsistências e falhas na classificação de instrumentos musicais representados numa fonte visual, também 1 Versão revista e ampliada do texto apresentado durante o 4º Congresso Brasileiro de Iconografia Musical e 2º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Sistemas de Informação em Música, realizado em Salvador, Bahia, e merecedor do 1º lugar no Prêmio Mercedes Reis Pequeno 2017, outorgado pelo capítulo brasileiro da International Association of Music Libraries, Archives and Documentation Centres (IAML-Brasil). 407 aplicável a instrumentos reais, apresentaremos, neste capítulo, o Sistema de Classificação de Instrumentos Musicais (Sicim). O Sicim foi desenvolvido a partir de uma revisão exaustiva da bibliografia relativa ao sistema de classificação, proposto por Hornbostel e Sachs (H-S) em 1914, incluindo, além das diversas traduções dele apresentadas por autores como Baines e Wachsmann (1961); Bermudez (1985); Llimona (2012); Equipe da Universidad Complutense de Madrid (UCM) (2012) e Rocha (2012), as críticas, ampliações e desenvolvimentos produzidos por Kartomi (1990), Juan i Nebot (1998), Pinto (2001), o projeto MIMO (2011) e Arce e Gili (2013). Assim, foram detectados problemas em diversos níveis. Dentre eles, destacamos os lexicográficos e terminológicos, fundamentalmente por não se dispor, até agora, de nenhuma tradução ao português brasileiro que fosse adequada e completa do sistema de classificação H-S. Por sua vez, a tradução parcialmente apresentada aqui – e disponível no Sicim – tenciona resolver tanto a falta de consistência observada no relativo à descrição dos diversos níveis de classificação organológica, previstos na estrutura geral multinível do sistema H-S, quanto a clareza na formulação das referidas descrições, facilitando assim o seu uso. Inicialmente desenhado para ser utilizado no conjunto de ferramentas da base de dados do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil), a utilização do Sicim fora da mesma está sendo elaborada. Destarte, apresentaremos, neste capítulo, as características e funcionamento do Sicim enquanto ferramenta tecnológica no auxílio de uma melhor e mais completa classificação organológica, dos instrumentos musicais, quer no Brasil, na América Latina ou no mundo. 2 Classificação de instrumentos musicais Um dos objetivos da organologia, no âmbito musicológico, é organizar os instrumentos musicais em sistemas de classificação. Essa sistematização pode se dar de diversas formas, seja a partir da análise da produção sonora, do tipo de material vibrante, da morfologia do objeto ou da origem – incluindo, período e cultura. (DOURNON, 1996, p. 17; HOOVER, 1996, p. 4; MYERS, 1989, p. 17; PINTO, 2001, p. 265; PIRES FILHO, 2009, p. 11) 408 Iconografia musical na América Latina O primeiro sistema de classificação de que se tem conhecimento foi desenvolvido pelos chineses aproximadamente no século VIII a.C. Eles vinculavam a matéria prima utilizada na confecção de instrumentos a estações climáticas, ventos, produção agrícola, bem-estar humano, riqueza e poder político, a partir de um pensamento cosmológico e ritualístico. Na música chinesa, o material que constitui o objeto e o seu som são como corpo e alma, ou seja, manifestações do mesmo fenômeno, sendo considerado mais do que um meio de produção sonora. Assim, os chineses distinguiam os instrumentos musicais em oito categorias (Figura 1), conforme o tipo de material2: a seda das cordas; o couro dos tambores; o metal dos sinos; a madeira das matracas e dos bastões friccionados; a pedra dos litofones; o bambu das flautas tubulares; a argila (barro) das flautas globulares e a cabaçã da caixa de ressonância do órgão de boca. (ARCE; GILI, 2013, p. 44; HORNBOSTEL; SACHS, 1914, p. 554; KARTOMI, 1990, p. 37; PINTO, 2001, p. 267; SACHS, 2006, p. 164) Figura 1 – Relação das estações e pontos cardinais com os instrumentos Fonte: Kartomi (1990, p. 39). 2 Kartomi (1990, p. 37) ressalta que a princípio os instrumentos chineses eram classificados em quatro categorias. Entretanto, as fontes não são precisas quanto à divisão, categorizando vezes como instrumentos de metal, couro (pele), bambu e pedra, e outras vezes como instrumentos de metal, pedra, seda e bambu. De acordo com Pinto (2001, p. 267), a divisão foi “concebida para um instrumentário bem-definido, o número finito de instrumentos musicais da cultura chinesa”. O Sicim 409 De acordo com Arce e Gili (2013, p. 44), as primeiras classificações europeias só vieram a partir do século XVI com Martin Agrícola (Musica instrumentalis deudsch, 1529), Pierre Trichet (Traité des instruments de musique, ca. 1640) e padre Marin Mersenne (Traité de l’hamonie universelle, 1627). Esses autores organizavam os instrumentos musicais em quatro grupos: corda, sopro, percussão e outros. Na época, os conjuntos orquestrais europeus utilizavam essencialmente os instrumentos de cordas e sopros, sendo a percussão pouco importante e os outros considerados como inclassificáveis. Ainda, ela é incoerente por não ter um único critério de subdivisão. A divisão das cordas e sopros era feita segundo os componentes que entram em vibração para produzir o som; no caso da percussão, a divisão se dava de acordo com a técnica e a categoria; os instrumentos que não se enquadravam nas categorias anteriores eram incluídos na categoria “outros”. A subdivisão dessas categorias era feita de acordo com o tipo de material de que os instrumentos foram construídos, o que funcionava na categoria dos instrumentos de sopro de madeira ou de bronze. Em 1880, Victor Mahillon idealizou um esquema de classificação que distinguia os instrumentos de acordo com o elemento que entra em vibração para produzir o som. Esse novo método buscava unificar os critérios para a divisão, utilizando como referência a palavra grega “fono” para obter uma maior precisão na nomenclatura. (ARCE; GILI, 2013, p. 44-45) Mahillon (1880, p. 3), portanto, dividiu seu esquema em quatro classes (Quadro 1): a primeira, cujo som é produzido pela elasticidade dos próprios corpos, são os instrumentos autófonos; a segunda, cujo som é produzido pela vibração de membranas tensionadas, são os instrumentos de membrana (membranofones); a terceira são os instrumentos de sopro (aerofones), cujo som é produzido pelo movimento vibratório do ar contido no instrumento; e, por fim, a quarta classe, os instrumentos de cordas (cordofones), cujo som é produzido pela vibração de uma ou mais cordas. Já as subdivisões se davam de acordo com a maneira que o intérprete colocava a matéria do instrumento para vibrar. Dessa forma, Mahillon (1880) considerava que iria obter uma maior consistência na classificação dos instrumentos. 410 Iconografia musical na América Latina Quadro 1 – Sistema de classificação de Mahillon CLASSE DESCRIÇÃO Autófonos instrumentos cujo som é produzido pela elasticidade dos próprios corpos Membranofones (de membrana) instrumentos cujo som é produzido pela vibração de membranas tensionadas Aerofones (de sopro) instrumentos cujo som é produzido pelo movimento vibratório do ar contido nele Cordofones (de corda) instrumentos cujo som é produzido pela vibração de uma ou mais cordas Fonte: adaptação de Mahillon (1880, p. 3). Conforme Hornbostel e Sachs (1914, p. 553), a classificação dos instrumentos musicias é uma metodologia extremamente importante tanto para a descrição dos itens de uma coleção, quanto para o estudo investigativo dos instrumentos musiciais. 3 O sistema Hornbostel-Sachs de classificação No ano de 1914, Erich von Hornbostel e Curt Sachs reuniram o conhecimento organológico que se tinha na época e, fundamentando-se nos princípios da teoria evolutiva biológica e da filogenia,3 desenvolveram um sistema de classificação de instrumentos musicais, cuja hierarquia foi estruturada com base no sistema decimal de Dewey, possibilitando o acúmulo de subdivisões de classificação e eliminando barreiras linguísticas, pois símbolos não verbais podem ser utilizados como linguagem universal. O sistema H-S baseou-se também no esquema idealizado por Mahillon, mencionado anteriormente. Hornbostel e Sachs adaptaram o princípio da classificação de Mahillon por ele já permitir incorporar novas classes instrumentais. No entanto, alteraram o prefixo “auto” dos autófonos para “idio”, buscando evitar confusões entre instrumentos que soam por si mesmo e os automáticos ou automatizados. Assim, as quatro classes ficaram da seguinte forma: Idiofone; Membranofone; Cordofone; e Aerofone. (ARCE; GILI, 2013, p. 45-51; BRANDÃO; SANTOS; GUEDES, 2014; KARTOMI, 1990, 3 A história evolutiva de um grupo, incluindo as relações de parentesco entre suas espécies ancestrais em vários níveis e as espécies descendentes. (AMORIM, 2002, p. 148) O Sicim 411 pp. 167-174; LIBIN, 2001, p. 657; MANN, 2007, p. 119; PIRES FILHO, 2009, p. 18, 142) Posteriormente, com o desenvolvimento dos sistemas de classificação, surgiu uma quinta classe: os eletrofones.4 Hornbostel e Sachs (1914, p. 557-558) estabeleceram que o princípio da divisão das classes em subclasses deveria se dar conforme a natureza e uso do instrumento (Figura 2). Entretanto, pela ampla extensão de subdivisões e pela necessidade de permitir sempre adicionar novas, aumentando ainda mais essa extensão, os autores propositalmente não dividiram os diferentes grupos principais de acordo com um princípio uniforme, deixando o princípio de divisão conforme a natureza do grupo em questão, de modo que as classificações de uma determinada posição dentro de um grupo nem sempre correspondessem com as de outro grupo. Figura 2 – Exemplo da estrutura de classificação dos idiofones Fonte: Kartomi (1990, p. 170). Atualmente, o sistema H-S ainda é considerado o mais indicado e utilizado como ferramenta metodológica, em nível mundial. Ele permite entender um 4 412 De acordo com Kartomi (2001, p. 285), a categoria eletrofone foi incluída em 1937 por Francis Galpin e, posteriormente, por Curt Sachs (1940), Heinz Drager (1948) e a equipe formada por Michael Bakan, Wanda Bryant, Guangming Li, David Martinelli e Kathryn Vaughn (1990). Por sua vez, Ballesté (2012, p. 10) acrescenta também que o grupo de trabalho do Musical Instruments Museums Online (2012), liderado por Margaret Birley (The Horniman Museum, Londres) e tendo contribuições de Arnold Myers (Universidade de Edinburgh) e Saskia Willaert (Musical Instruments Museum, de Brussels), propôs mudanças nas quatro categorias do sistema H-S e a inclusão da classe de Eletrofones, englobando nela a guitarra elétrica, sintetizadores e outros instrumentos eletrônicos. Iconografia musical na América Latina instrumento musical como parte de um sistema de modelos acústicos aplicados em diferentes épocas e locais para obter resultados sonoros semelhantes. Assim, possibilita uma melhor compreensão da descrição da especificidade acústica de cada tipo organológico. O sistema permite também utilizar os conceitos de grupo, família ou parentesco organológico, definindo, de acordo com determinados parâmetros, as tendências estético-sonoras de uma área cultural, ajudando a identificar casos de convergências, mestiçagem, difusão, evolução, parentesco, divergência e ausências. Ainda, o sistema permite a inclusão de novas classes e subclasses, resultando bastante abstrato e geral para a variedade de instrumentos que aparecem representados nas fontes iconográficas ocidentais. Também, aborda os instrumentos musicais segundo padrões internacionais que existem para a documentação de bens patrimoniais. Por último, porém não menos importante, a forma como o sistema foi idealizado possibilita sua sistematização em meios digitais. Sabe-se que no mundo atual a evolução tecnológica vem mudando nossos paradigmas assim como a forma como vivemos e como lidamos com as coisas, muitas vezes, de maneira positiva. Assim, transformar um sistema complexo como o H-S numa aplicação tecnológica facilitaria sua utilização, diminuiria falhas e possibilitaria novas pesquisas no âmbito da organologia. 4 Traduções e adaptações do sistema H-S Na comparação dos trabalhos realizados por autores, instituições e projetos (Quadro 2), foi possível detectar problemas em diversos níveis. Dentre eles, destacamos os lexicográficos e terminológicos, fundamentalmente porque não se dispunha, até agora, de nenhuma tradução ao português brasileiro que fosse adequada ao Sistema Hornbostel-Sachs (H-S) e completa em relação a ele (incluindo todos os desenvolvimentos posteriores). Dos trabalhos listados, só há três traduções em português: o de Pinto (2001) traduzido ao português brasileiro; Rocha (2012) traduzido ao português de Portugal; e Monteiro (2013), também traduzido ao português brasileiro. O trabalho de Pinto e o de Monteiro, embora brasileiros, são resumidos – e, portanto, incompletos – e não acompanham o desenvolvimento de trabalhos feitos internacionalmente até o período. Por sua vez, Rocha também não acompanha a ampliação do sistema H-S por O Sicim 413 outros autores, além de trazer, ao usuário brasileiro, problemas lexicográficos por ser realizado em português de Portugal. Quadro 2 – Lista de trabalhos realizados por autores, instituições e projetos ANO AUTORES IDIOMAS 1961 Baines & Wachsmann Inglês 1985 Bermudez Espanhol 1990 Kartomi Inglês 1998 Juan i Nebot Espanhol 2001 Oliveira Pinto Português (Brasil) 2008 Montagu Inglês 2011 Projeto MIMO Inglês 2012 Llimona Espanhol 2012 Equipe UCM Espanhol 2012 Rocha Português (Portugal) 2013 Arce & Gili Espanhol 2013 Monteiro Português (Brasil) Fonte: Araújo e Sotuyo Blanco (2017, p. 538). É importante destacar aqui o trabalho de revisão bibliográfica fez parte da tese de doutorado e o quadro que auxiliou a análise comparativa das descrições organológicas pode ser encontrado nos apêndices da tese. (ARAÚJO, 2018, p. 179) 5 Problemas lexicográficos e terminológicos Conforme Duckles e demais autores (2001, p. 499), a lexicografia e a terminologia, enquanto disciplinas no campo Musicológico, têm como objetivo condensar, organizar – normalmente em ordem alfabética – e esclarecer os termos utilizados na música. Coover (2001, p. 306) acrescenta que essas disciplinas tentam suprir a “necessidade cotidiana das pessoas de compreender as ideias, palavras, fatos e coisas”. Para Duckles e demais autores (2001, p. 500), os problemas oriundos do campo da lexicografia e terminologia são precisão, conteúdo, equilíbrio e parcialidade. As traduções e transliterações também causam grandes discordâncias no conteúdo, podendo ter como soluções a utilização de palavras-chave multilíngues e abreviaturas padronizadas, juntamente 414 Iconografia musical na América Latina com documentação mais precisa de fontes. A guisa de exemplos dos possíveis problemas detectáveis na lexicografia e terminologia, fundamentalmente devidos à tradução e usos locais, vejamos as Figuras 3 e 4. Figura 3 – A pintura de Baburen e a harpa de boca Fonte: Web Gallery Of Art ([1996]) e Jew’s… (2006). A pintura de Dirck van Baburen (ca. 1595-1624), representada na Figura 3, cujo título é Ragazzo che suona uno scacciapensieri5 (1621 – Museu Central de Utrecht, Holanda), apresenta a imagem de um menino aparentemente tocando uma jew’s harp6 (propriamente jaw’s harp). A harpa de boca é uma “[...] armação metálica de forma circular ou elíptica tendo uma lâmina presa numa das extremidades e que atravessa a região central da armação”. (FRUNGILLO, 2003, p. 145) Para produzir o som, a armação [...] [deve ser segurada] pela borda por uma das mãos e colocada contra a boca e os lábios entreabertos. Com um dos dedos da mão livre é pinçada a extremidade da lâmina central sendo a vibração amplificada pela cavidade bucal. Ao mesmo tempo o instrumentista emite leve sopro com diferentes afinações feitas pelas cordas vocais, o que possibilita executar melodias. (FRUNGILLO, 2003, p. 145) Recorrendo ao sistema H-S, a harpa de boca recebe o código 121.2 e sua descrição organológica é: “[...] a língua é disposta no interior de uma armação em 5 Tradução: "Menino que toca uma harpa de boca". 6 Tradução: "Harpa de boca ou harpa de mandibular". O Sicim 415 forma de haste ou placa e a boca funciona como um ressoador”.7 (HORNBOSTEL; SACHS, 1914, p. 567, tradução nossa) Na análise comparativa das traduções (Quadro 3), pode-se observar que Oliveira Pinto não apresenta nenhuma descrição para este subnível. Ou seja, se buscarmos classificar esse instrumento a partir da tradução de Oliveira Pinto, chegaremos apenas ao subnível 121 cuja descrição é “Idiofones dedilhados inserido em aro”. (PINTO, 2001, p. 272) Rocha (2012, p. 226), que traduziu ao português de Portugal, apesar de incluir esse subnível, não nos oferece uma descrição do instrumento, apresentando apenas o termo “berimbau” para sua identificação. É importante ressaltar que, no Brasil, o Berimbau é um instrumento muito específico. A tradução de Monteiro é a que apresenta menos problemas: “Tambor [sic] de boca. A lingueta repousa dentro de uma moldura em forma de haste ou de plaqueta e depende da cavidade bucal do músico como ressoador”. (MONTEIRO, 2013, p. 123) Quadro 3 – Problemas lexicográficos e terminológicos: harpa de boca Código H-S, 1914 Pinto, 2001 Rocha, 2012 Monteiro, 2013 121 In Rahmenform Die Zunge schwingt innerhalb eines Rahmens oder Bügels. Idiofones dedilhados inserido em aro. Idiofones beliscados com caixilho. Idiofones tangidos em forma de moldura. 121.1 Cricri - Die Zunge ist aus einer Schale herausgeschnitten, so dass sie in dieser einen Resonator hat. Melanesien. Cricri Cricri. A lingueta é esculpida de uma casca de fruta, que serve como ressoador. 121.2 Maultrommeln - Die Zunge sitzt innerhalb eines stab - oder plattenförmigen Rahmens und bedarf des Mundes als Resonators. Berimbau Tambor de boca. A lingueta repousa dentro de uma moldura em forma de haste ou de plaqueta e depende da cavidade bucal do músico como ressoador. - - Fonte: Araújo e Sotuyo Blanco (2017, p. 540). 7 416 “Maultrommeln – Die Zunge sitzt innerhalb eines stab – oder plattenförmigen Rahmens und bedarf des Mundes als Resonators.” Iconografia musical na América Latina Um outro exemplo dos eventuais problemas acima referidos é o caso da matraca (Figura 4), instrumento que consiste em um jogo de lâminas plásticas ou de madeira afixadas em uma das extremidades internas de uma pequena caixa vazada retangular. Ao se girar a caixa por meio de uma haste, as lâminas estalam seguidamente sobre uma espécie de roda dentada, fazendo produzir estalidos que lembram os tiros de uma metralhadora. (DOURADO, 2004, p. 198) Figura 4 – A matraca, simulacro de metralhadora Fonte: Teixeira (2013)8 e Matracas (2017). Segundo Frungillo (2003, p. 207), a matraca é utilizada em diferentes ocasiões: religiosa, militar e comercial. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, a matraca foi utilizada para simular o ruído de uma rajada de metralhadora. (DONATO, 2002, p. 115; KUPPER, 2008, [p. 9]) A classificação desse instrumento apresenta o mesmo problema relatado anteriormente com a harpa de boca. Oliveira Pinto e Monteiro não apresentam definição nesse subnível e Rocha apresenta apenas o termo “Cegarregas”9 (Quadro 4). 8 Fotografia do jornalista José Teixeira que registrou a comemoração dos 81 anos da Revolução Constitucionalista de 1932. Nela, pode-se observar um soldado aparentemente tocando uma matraca. 9 Termo encontrado no Novo Diccionário da Língua Portuguesa que significa “Cigarra. Instrumento que imita o retinir da cigarra. Fam. Pessôa muito faladora, de voz desagradável e impertinente”. (FIGUEIREDO, 1913, p. 407) O Sicim 417 6 Problemas de desvios estruturais? A primeira subdivisão da classe dos idiofones no sistema H-S, distingue os instrumentos pela maneira em que são postos a vibrar. Entretanto, o projeto MIMO parece misturar os princípios estruturantes do sistema, acrescentando dois novos tipos que se referem ao material que compõe o instrumento (Quadro 5). Tabela 4 – Problemas lexicográficos e terminológicos: matraca Código 112.2 H-S, 1914 Oliveira Pinto, 2001 Rocha, 2012 Schrap-idiophone - Der Spieler führt unmittelbar oder mittelbar eine Schrapbewegung aus: ein nichtklingender Körper fährt über einen gezahnten klingenden und wird abwechselnd durch die Zähne Idiofones raspados gehoben und gegen die Idiofones de (raspador, Oberfläche geschnellt, oder raspagem. reco-reco). ein elastischer klingender Körper fährt über einen gezahnten nichtklingenden und erhält auf die gleiche Weise eine Serie von Schlägen. Diese Gruppe darf nicht mit den ReibIdiophonen verwechselt werden. Monteiro, 2013 Idiofones raspados (matraca, reco-reco). 112.21 Schrapstäbe - Ein Zahnstab wird mit einem Stöckchen geschrapt. - - Lâminas de raspagem. 112.211 Schrapstäbe ohne Resonator. - - Lâminas de raspagem sem ressoador. 112.212 Schrapstäbe mit Resonator. - - Lâminas de raspagem com ressoador. 112.22 Schrapröhren. - - Tubos raspados. 112.23 Schrapgefäße - Ein Gefäß mit gefurchter Oberfläche wird geschrapt. - - Vasos raspados. 418 Iconografia musical na América Latina Código H-S, 1914 Oliveira Pinto, 2001 Schrapräder oder Ratschen - Ein Zahnrad, dessen Achse als Stiel dient, und eine Zunge innerhalb eines 112.24 frei um den gleichen Stiel drehbaren Rahmens; beim Herumschwingen schlägt die Zunge gegen die Zähne des Rades. Fonte: Araújo e Sotuyo Blanco (2017, p. 542). - Rocha, 2012 Monteiro, 2013 - Cegarregas Quadro 5 – Novas categorias do projeto MIMO Código H-S, 1914 MIMO, 2012 Araujo e Sotuyo Blanco, 2012 11 Schlag-idiophone. Struck idiophones. Idiofone percutido. 12 Zupf-idiophone. Lamellaphones (or plucked idiophones). Idiofone de flexão. 13 Reib-idiophone. Friction idiophones. Idiofone friccionado. 14 Blas-idiophone. Blown idiophones. Idiofone soprado. 15 - Metal sheets Idiofone de metal. 16 - Flexed diaphragms Idiofone de diafragma flexionado. Fonte: Araújo e Sotuyo Blanco (2017, p. 543). Diante disso, surgem duas questões: 1. Quais os princípios estruturantes do sistema H-S? 2. Como se define cada nível ou subnível do sistema? Analisando o sistema H-S, pode-se observar que ele atende em geral a três questões: 1) Qual a matéria que produz o som? 2) De que maneira essa matéria é posta a vibrar (relacionada à execução)? 3) Qual é a natureza, forma (relacionada à construção)? Contudo, essa estrutura não é hierarquicamente fixa, à exceção do primeiro nível, como foi mencionado em seção anterior. Ou seja, a primeira questão define sempre o primeiro nível, enquanto as outras duas questões podem ter ordens diferentes na definição dos subníveis. O sistema H-S é muito complexo, sendo difícil sua estrutura funcionar de forma unívoca, isto é, cada instrumento O Sicim 419 receber uma única classificação. Montagu (2007, p. 2) alerta para a existência de anomalias e problemas em todos os sistemas, incluindo também o H-S. Em 1971, ele e John Burton tentaram resolver alguns desses problemas. Entretanto, decidiu que, com a grande vantagem que o sistema H-S trazia pela sua grande aceitação e o fato dele não ter, aparentemente, nenhum viés cultural, seria melhor continuar com um sistema que as pessoas utilizam do que sugerir um que não seria utilizado. É importante ressaltar que o trabalho de Hornbostel e Sachs era um experimento, em que se esperavam discussões para sua melhoria e elaboração gradual, as quais não aconteceram de forma significativa, provavelmente devido à Primeira Guerra Mundial. Assim, nunca houve o esforço direcionado para preencher algumas lacunas do sistema, entre elas, o problema de prolongá-lo longitudinalmente tanto quanto se deseja, para definir grupos menores com mais detalhes. Isso causa problemas na introdução de um tipo de instrumento recém-descoberto ou recém-reconhecido. Com relação aos instrumentos que compreendem mais de uma categoria, Hornbostel e Sachs (1914, p. 559-560) já haviam pensado numa maneira de reconfigurar códigos numéricos para destacar aspectos diferentes de um determinado instrumento. De acordo com Arce e Gili (2013, p. 50), problemas como filogenias paralelas, instrumentos intermediários (ex. flautas semifechadas), mestiçagem entre tipos filogeneticamente diferentes, classificação indefinida e instrumentos que soam diferente conforme a forma que são tocados, foram solucionados pelos autores com o acréscimo do sinal “-” no final para incluir características ao instrumento ou o sinal “+” para acrescentar outras categorias ao instrumento. Diante do que foi discutido anteriormente, surgiu a necessidade de desenvolver uma tradução mais consistente e que levasse em consideração todos os desenvolvimentos e ampliações do sistema. Assim, foi desenvolvida uma nova ferramenta, nomeada a princípio como Sistema de Classificação de Instrumentos Musicais (em diante Sicim). 420 Iconografia musical na América Latina 7 O Sistema de Classificação de Instrumentos Musicais (Sicim) A partir da revisão bibliográfica, mencionada anteriormente, foi desenvolvida uma aplicação, que a princípio foi desenhada para ser utilizada no conjunto de ferramentas incluídas na base de dados RIdIM-Brasil, principalmente a partir da categoria Instrumentos nos Termos Controlados. Tal aplicação, nomeada Sicim, se propõe pedagógica e técnica, sendo capaz de crescer com o avanço do seu uso. O Sicim tenciona resolver tanto a falta de consistência observada na revisão bibliográfica no relativo à descrição dos diversos níveis de classificação organológica, quanto à clareza na formulação das referidas descrições, facilitando assim o seu uso. Atualmente, vislumbra-se a utilização do Sicim fora da base de dados RIdIMBrasil, podendo ter uma vida autônoma como ferramenta de auxílio à pesquisa de campo e estudos organológicos, independente da iconografia, servindo de base organológica musical para o Brasil. A ferramenta possui duas visões: uma administrativa, na qual o usuário/ administrador da base de dados tem o controle de toda a tabela com os níveis, subníveis e suas respectivas descrições e vínculos com instrumentos; e outra do usuário/catalogador, auxiliando o usuário a classificar um instrumento que foi identificado em uma fonte relativa à música. Na tela administrativa, as categorias são apresentadas em forma de lista numa tabela, indicando o código, o nome do nível e ações (Figura 5). Com o cursor sobre o nome do nível, aparecerá a descrição organológica. Caso se queira adicionar uma nova categoria no mesmo nível, basta clicar no botão “adicionar novo nível”, que se encontra acima da tabela (Figura 6). O Sicim 421 Figura 5 – Visão administrativa: primeiro nível da classificação H-S Fonte: https://adohm.ufba.br/dbridimbrasil/hornbostelsachs. Figura 6 – Visão administrativa: adicionando um novo nível. Fonte: https:// adohm.ufba.br/dbridimbrasil/hornbostelsachs/cadastrar/. 422 Iconografia musical na América Latina Ao clicar em “adicionar novo nível”, o usuário será direcionado a um formulário de cadastro solicitando o nome da categoria, a descrição organológica e, se for o caso, vincular instrumentos à nova categoria. O primeiro campo do formulário (Código H-S) é preenchido automaticamente pelo sistema. Ao clicar em um nível, a nova tela exibirá o código e a descrição organológica da categoria selecionada, além dos instrumentos relacionados a ela, que estão cadastrados na base de dados RIdIM-Brasil (Figura 7). É importante ressaltar que os instrumentos classificados são adicionados também aos subníveis superiores a ele, assim como, ao excluir um instrumento de um subnível, caso ele esteja classificado em subníveis superiores e inferiores, será excluído apenas dos inferiores. Vale observar também que, à medida que vamos adentrando pelos subníveis, a descrição organológica vai sendo ampliada cumulativamente. Figura 7 – Visão administrativa: primeiro subnível dos idiofones Fonte: https://adohm.ufba.br/dbridimbrasil/hornbostelsachs/index/id/1/c/1/n/2/. Entre as opções apresentadas ao usuário/administrador, quando em um subnível, vale ressaltar a de adicionar um sufixo, ou seja, indicar uma característica O Sicim 423 do instrumento que pode não pertencer à sua estrutura física, ou que não é comum (Figura 8). Figura 8 – Visão administrativa: adicionando um sufixo Fonte: https://adohm.ufba.br/dbridimbrasil/hornbostelsachs/cadastrarsufixo/id/1. Já na visão do usuário/catalogador, na adição de um novo instrumento como termo controlado, os campos “código Hornbostel-Sachs” e “descrição organológica” são preenchidos a partir da ferramenta (Figura 9). Portanto, para classificar o instrumento, o usuário deverá clicar no botão “classificar” que se encontra abaixo do campo “código Hornbostel-Sachs”. Em seguida, surgirá uma lista, em árvore de níveis de descrição, onde o usuário poderá ir selecionando até alcançar o nível desejado ou que tenha conhecimento. Ao selecionar um nível, a descrição será exibida no campo “descrição organológica” (Figura 10). 424 Iconografia musical na América Latina Figura 9 – Visão usuário/catalogador: adicionando novo instrumento Fonte: Araújo e Sotuyo Blanco (2017, p. 545). Figura 10 – Visão usuário/catalogador: classificando instrumento Fonte: Araújo e Sotuyo Blanco (2017, p. 546). O Sicim 425 Para adicionar mais de uma classificação a um instrumento, o usuário deverá clicar em “acrescentar”. O sistema acrescentará um sinal de “+” e iniciará um novo processo de seleção do nível de classificação. Selecionando o nível desejado, o sistema incluirá no campo “Descrição organológica” o texto “Este instrumento também é:” e a descrição do nível (Figura 11). Figura 11 – Visão usuário/catalogador: acrescentando nova classificação Fonte: Araújo e Sotuyo Blanco (2017, p. 546). 8 Conclusões O Sicim surge como uma ferramenta que proporciona um usuário sem nenhum conhecimento sobre organologia ser capaz de classificar um instrumento musical, buscando evitar eventuais erros ocorridos no processo de classificação, mesmo quando feita por pessoas capacitadas. No entanto, é importante promover sua discussão a fim de desenvolvê-lo, ampliá-lo e melhorá-lo, unindo 426 Iconografia musical na América Latina esforços para que de fato se torne uma base organológica que sirva de fonte de pesquisa e possibilite futuros estudos. Com relação às traduções e entendendo que as variantes “português de Portugal” e “português do Brasil” têm relevância, como vimos nos exemplos apresentados, é válido ter uma tradução ao português do Brasil, compreendendo que uma base organológica deve levar em consideração todas as variantes para que seu alcance seja o mais amplo possível. Referências AMORIM, Dalton de Souza. Fundamentos de sistemática filogenética. Ribeirão Preto, SP: Holos Editora, 2002. ARAÚJO, Pedro Ivo Vieira e Assis. Patrimônio documental musicográfico e iconográfico musical no Brasil: problemas e soluções. 2018. Tese (Doutorado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018. ARAÚJO, Pedro Ivo; SOTUYO BLANCO, Pablo. O SICIM: uma aplicação tecnológica para uma melhor classificação organológica. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ICONOGRAFIA MUSICAL, 4., CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E SISTEMAS DE INFORMAÇÃO EM MÚSICA, 2., 2017, Salvador. Anais [...]. Salvador (BA): RIdIM-Brasil, 2017. p. 533-550. ARCE, José Pérez de; GILI, Francisca. Clasificación Sachs-Hornbostel de instrumentos musicales: uma revisión y aplicación desde la perspectiva americana. Revista Musical Chilena, Santiago de Chile, año 67, n. 219, p. 42-80, enero/junio 2013. BAINES, Anthony; WACHSMANN, Klaus P. Classification of Musical Instruments: translated from the original german. The Galpin Society Journal, Oxford, v. 14, p. 3-29, Mar. 1961. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/842168. Acesso em: 9 mar. 2015. BALLESTÉ, Adriana Olinto. Classificação de instrumentos musicais e sua aplicação no Museu Virtual Delgado de Carvalho. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 8., 2012, Salvador. Anais [...]. Salvador: UFBA, 2012. p. 1-18. Disponível em: http://repositorios. questoesemrede.uff.br/repositorios/handle/123456789/671. Acesso em: 14 ago. 2017. O Sicim 427 BRANDÃO, Dolores Castorino; SANTOS, Maria José Veloso da Costa; GUEDES, Vânia Lisboa da Silveira. Organização do Museu Instrumental Delgado de Carvalho da Escola de Música da UFRJ a partir da representação documentária de instrumentos musicais. Revista Brasileira de Música, Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 115-146, 2014. COOVER, James B. Dictionaries and encyclopedias of music. In: SADIE, Stanley (ed.). The new grove dictionary of music and musicians. 2nd. ed. New York: Oxford University Press, 2001. v. 7, p. 306-320,. DONATO, Hernâni. História da Revolução Constitucionalista de 1932: comemorando os 70 anos do evento. São Paulo: IBRASA, 2002. DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de termos e expressões da música. São Paulo: Editora 34, 2004. DOURNON, Geneviève. Mémoire des peuples: guide pour la collecte des musiques et instruments traditionnels. Paris: UNESCO, 1996. DUCKLES, Vincent H.; PASLER, Jann; STANLEY, Glenn et al. Musicology. In: SADIE, Stanley (ed.). The New Grove Dictionary of Music and Musicians. 2nd. ed. New York: Oxford University Press, 2001. v. 17, p. 488-533. EQUIPO UCM; LUCIA ROCHA. Tesauro de instrumentos musicales: Sachs & Hornbostel (en español / portugués). In: BORDAS IBÁÑEZ, Cristina; RODRÍGUEZ LÓPEZ, Isabel (ed.). Imágenes es música: recursos para la catalogación y estudio de fuentes de Iconografía Musical en España y Portugal. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2012. p. 239-293. FIGUEIREDO, Candido de. Novo dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Liv. Clássica Ed, 1913. FRUNGILLO, Mário D. Dicionário de percussão. São Paulo: Ed. UNESP: Impresa Oficial do Estado, 2003. HOOVER, Cynthia Adams. Musical instrument collections: a special challenge. Museum International, Oxford, v. 48, n. 1, p. 4-5, 1996. HORNBOSTEL, Erich M. von; SACHS, Curt. Systematik der Musikinstrumente. Zeitschrift für Ethnologie, Berlim, v. 4, n. 5, p. 553-590, 1914. JEW’S harp. In: WIKIMEDIA COMMONS. [S. l.], 2006. Disponível em: https:// commons.wikimedia.org/wiki/File:Jew%27s_harp.jp g?uselang=pt-br. Acesso em: 18 jul. 2017. 428 Iconografia musical na América Latina JUAN I NEBOT, María Antonia. Versión castellana de la clasificación de instrumentos musicales según Erich von Hornbostel y Curt Sachs: Galpin Society Journal XIV, 1961. Zaragoza: Instituto Fernando el Católico, Diputación Provincial, 1998. KARTOMI, Margaret J. On concepts and classifications of Musical Instruments. Chicago: The University of Chicago Press, 1990. KARTOMI, Margaret J. The Classification of Musical Instruments: changing trends in research from the late nineteenth century, with special reference to the 1990s. Ethnomusicology, Middletown, v. 45, n. 2, p. 283-314, 2001. Disponível em: http:// www.jstor.org/stable/852676. Acesso em: 12 jun. 2017. KUPPER, Agnaldo. São Paulo 1932: uma explosão em busca de novos rumos. Revista Eletrônica de Educação, Londrina, ano 2, n. 3, ago./dez. 2008. Disponível em: http://web.unifil.br/docs/revista_eletronica/educacao3/Artigo4.pdf. Acesso em: 17 jul. 2017. LLIMONA, Romà Escala I. La clasificación decimal de los instrumentos musicales de Erich von Hornbostel y Curt Sachs. 2012. Vesión revisada y traducida al castellano por Romà Escala i Llimona, Fundación La Fontana – Recursos instrumentos – Clasificación H-S.Disponível em: http://www.fundacionlafontana.org/es/ recursos/documentacion-sobre-instrumentos. Acesso em: 20 ago. 2018. LIBIN, Laurence. Organology. In: SADIE, Stanley (ed.). The new grove dictionary of music and musicians. 2nd ed. New York: Oxford University Press, 2001. v. 18, p. 657-658. MAHILLON, Victor-Charles. Catalogue descriptif & analytique du Musée Instrumental du Conservatoire Royal de Bruxelles. Gand: Typographie C. Annoot-Braeckman, 1880. MANN, Steve. Natural Interfaces for Musical Expression: physiphones and a physics-based organology. In: CONFERENCE ON NEW INTERFACES FOR MUSICAL EXPRESSION, 7., 2007, New York. Proceedings […]. New York: [ACM], 2007. p. 118-123. MATRACAS. In: WIKIMEDIA Commons. [S. l.], 2017. Disponível em: https:// commons.wikimedia.org/wiki/File:Matracas.jpg?uselang=pt-br. Acesso em: 18 jul. 2017. MONTEIRO, Eduardo. Classificação resumida dos instrumentos musicais de acordo com Hornbostel-Sachs. In: BRANDÃO, Dolores Castorino. Representação documentária de instrumentos musicais: contribuição para a organização do Museu O Sicim 429 Instrumental Delgado de Carvalho da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Políticas de Informação e Organização do Conhecimento) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 2013. p. 122-129. MONTAGU, Jeremy. Origins and development of musical instruments. Maryland, USA: Scarecrow Press, 2007. MORAIS, Fernando Luís Barreto de. Livro III do tratado Da Música de Aristídes Quintiliano: introdução, tradução e comentários. 2016. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016. MUSICAL INSTRUMENT MUSEUMS ONLINE – MIMO. Revision of the Hornbostel-Sachs Classification of Musical Instruments by the MIMO Consortium. Londres: MIMO, 2011. Disponível em: http://www.mimointernational.com/documents/Hornbostel%20Sachs.pdf. Acesso em: 23 mar. 2016. MYERS, Arnold. Cataloguing standards for instrument collections. CIMCIM Newsletter, [s. l.], n. 14, p. 14-28, 1989. Disponível em: http://www.euchmi.ed.ac. uk/itnXIVc.html. Acesso em: 26 jun. 2017. PINTO, Tiago de Oliveira. Som e música. Questões de uma Antropologia Sonora. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 221-286, 2001. PIRES FILHO, Jorge Costa. Classificação de instrumentos musicais em configurações monofônicas e polifônicas. 2009. Dissertação (Mestrado em Engenharia Elétrica) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. SACHS, Curt. The history of musical instruments. Mineola, NY: Dover Publication, INC., 2006. TEIXEIRA, José Henrique. Revolução constitucionalista em Jaú. Jaunews, Jáu, 9 jul. 2013. Disponível em: http://www.jaunews.com.br/album/273/revolucaoconstitucionalista-em-jau.htm. Acesso em: 18 jul. 2017. WEB GALLERY OF ART. Dirck van Baburen – Man Playing a Jew’s Harp. [1996]. Disponível em: https://www.wga.hu/frames-e.html?/html/b/baburen/jewsharp. html. Acesso em: 20 ago. 2018. 430 Iconografia musical na América Latina O violão em fontes iconográficas Uma narrativa sobre as suas representações no espaço brasileiro Beatriz Magalhães-Castro 1 Introdução Este trabalho foi elaborado a partir de um interesse sobre a farta iconografia do violão produzida no Brasil e se, de início, com um viés organológico especialmente sobre os séculos XVI ao início do XIX e suas raízes ibero-americanas, este desenvolveu-se rapidamente para o estudo da sua representação iconológica neste mesmo espaço. O processo partiu do estudo sobre a exposição realizada por Mercedes Reis Pequeno, Três séculos de iconografia da música no Brasil (1974)1 para logo centrar-se sobre o violão a partir de orientações de trabalhos de 1 Exposição realizada em 1974 no contexto das ações de Mercedes Reis Pequeno (1921-2015) enquanto chefe da então Seção de Música e Arquivos Sonoros, hoje Divisão de Música e Arquivos Sonoros (Dimas), da Biblioteca Nacional do Brasil, exposição sobre a qual escrevi capítulo para o livro Estudos Luso-Brasileiros em Iconografia Musical. (MAGALHÃESCASTRO, 2015) 431 pós-graduação na Universidade de Brasília (UnB) nos quais um aprofundamento sobre as origens do instrumento no Brasil foi necessário.2 A pesquisa das imagens foi extraída de diversas fontes e, em alguma medida, da minha própria memória e interesses, mas principalmente foram utilizados os bancos de dados do Répertoire International d’Iconographie Musicale (RIdIM internacional) – que possui poucas imagens referentes ao Brasil – e do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil), que possui cerca de 152 imagens com violão catalogadas. O volume total é, contudo, bastante mais amplo e incluiu textos e fontes diversificadas. Portanto, me propus aqui tratar esse conjunto de forma orgânica a partir das observações feitas, contribuindo para a sua discussão. 2 Mudando o olhar historiográfico Leo Treitler (1990, p. 315) uma vez afirmou, Se pudéssemos pensar na história menos como se esta fosse um ponto central que avança varrendo tudo em torno de si e mais de acordo com a tentativa revolucionária de Darwin – ainda não totalmente bem sucedida – de reorientar o foco do historiador das propriedades modais de grupos para a variação real entre coisas reais, o presente não pareceria um tal problema.3 As mudanças dos modelos do pensamento historiográfico pós-moderno, relevantes para a construção de narrativas históricas, tomaram conta de todas as áreas do conhecimento sistemático. Análises pós-estruturalistas não somente reconhecem, mas também almejam a uma ampliação das narrativas históricas por meio da identificação de uma singularidade (contextos) e uma individualidade (grupos e pessoas), assim como dos mecanismos econômicos e sociais que afetam a cultura humana. Ultrapassando as limitações da perspectiva dicotômica entre centro/periferia e global/local, os pontos determinantes de articulação 2 Agradecemos as revisões do arquiteto Daniel Gonçalves Mendes e da alaudista Aria Rita Waengertner Pires, orientanda do Programa de Iniciação Científica (Proic) da UnB. 3 “If we could think of history less as though it were an advancing central point that cleans up all around itself as it goes and more in accordance with Darwin’s revolutionary attempt – not yet fully successful – to reorient the historian’s focus from the modal properties of groups to the actual variation among actual things, the present would not seem such a problem”. 432 Iconografia musical na América Latina dessas narrativas podem se situar em diferentes situações histórico-geográficas, mudando de forma dinâmica focos e equilíbrios presumidos. Essas questões não somente afetaram como também apoiaram o desenvolvimento de narrativas ditas do “sul”, historicamente engajadas como reflexos de um “outro” – o outsider do “norte.” Essas tensões, como primeiro reveladas nas relações colonizador/colonizado, foram discutidas por Aimé Césaire no seu Discours sur le colonialisme de 1955, em sua revisão da teoria Marxista, revertendo a ênfase sobre a “revolução proletária” para a “luta anticolonial” como “o movimento histórico fundamental do período”. (KELLEY, 2000, p. 10) Não abraçar tais perspectivas e processos de pensamento implica na renúncia de se compreender conceitos tais como a hierarquia cultural e o barbarismo europeus, o qual foi somente transcendido com a expansão dos estudos pós-coloniais no próprio pensamento europeu. Essas contribuições únicas foram vitais para consolidar a construção de narrativas históricas e percepções geográficas distintas, como aquelas encontradas em fronteiras culturais não geopolíticas. O debate também expandiu e/ou teve implicações sobre os conceitos de alteridade/identidade e seus processos, dimensionando a percepção do “outro” tanto como entidade necessária e interdependente que entra em jogo na noção fenomenológica do “estar-no-mundo”,4 na qual, o “eu” como ser social é modelado por interações sociais e “todo outro é verdadeiramente outro, mas ninguém é inteiramente outro”,5 como discutido por Emmanuel Lévinas (1980) no conceito de “ética como filosofia primeira”. No caso de narrativas construídas em países que foram submetidos a regimes colonialistas, o outro tem abertamente atravessado a construção de narrativas históricas colocando um debate aparentemente sem fim sobre quem, afinal, é o outro. Tal debate vem pelo desdobramento de uma sucessão de processos de identidade com a mesma questão, mesmo em distintos níveis internos, já que o outro pode ser encontrado na própria hierarquia e estratificação social – criando o outro dentro do outro. Esse processo assume assim uma dialética contraditória, já que o outro passa a se tornar responsável pela construção do eu. Em última análise, essa dinâmica foi responsável pela construção do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade no contexto do movimento modernista da 4 “Being-in-the-world”. 5 “Every other is truly other, but no other is wholly other”. O violão em fontes iconográficas 433 semana de 1922. “Tupi, or not tupi that is the question” era o seu lema principal. Em seus ideais por uma “revolução Caraíba, maior que a revolução Francesa,” ao afirmar que “sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem”, os antropófagos anteciparam o movimento anticolonialista de Césaire e outros, evidenciando as desconfortáveis implicações do discurso e das ações de caráter imperialista. Brasilidade é então definida em termos da sua relação com o solo – “Em comunicação com o solo” –, raízes primais em oposição às “elites vegetais”, aquelas que simplesmente imitavam modelos europeus sem a capacidade crítica que fomenta a mudança. A despeito de se situar “contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra”,6 isso não implicaria em ruptura ou abandono do pensamento crítico ocidental europeu do século XVIII: “O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon [sic] print terre. Montaigne. O homem natural. Rosseau [sic]. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling”. Assim, desta forma, “caminhamos”. (ANDRADE, 1928, p. 3) Foi caminhando que Mário de Andrade promoveu em 1936 uma das maiores missões para desvendar os traços do Brasil, brotando do “solo” as suas práticas autóctones. A partir desse esforço, podemos desde já examinar um desenho de uma Viola de Juazeiro (Figura 1), a qual mesmo não possuindo um interesse iconográfico particular, provê uma referência sobre o foco dessa expedição etnográfica direcionada a revelar tal brasilidade. 6 434 Referência ao ciclo dos grandes descobrimentos portugueses ultramarinos iniciados em 1421, sob o comando do Infante Dom Henrique, filho de D. João I, que, para o reino de Portugal, culminou com a descoberta do Brasil em 1500; o cabo Finisterra é o conhecido acidente geográfico de Sagres, ou seja, um cabo composto de rochas altas, um lugar remoto e de trágica beleza de onde partiram as primeiras expedições portuguesas oceânicas, ou seja, a expansão do homem europeu; na realidade, essas expedições sob o comando do Infante Dom Henrique partiram da cidade de Lagos, localizado aproximadamente a 30 km a leste de Sagres, na região do Algarve. Iconografia musical na América Latina Figura 1 – Viola de Juazeiro (1938) Fonte: Caderneta de Campo da Missão de Pesquisas Folclóricas (CA-5 p. 53). Acervo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP.7 Contudo, como esperamos demonstrar, as inconsistências de tais modelos, imbuídos de um conteúdo ideológico e político, inclusive em reação a exigências internas e externas, podem ser visualizados nas representações iconográficas do violão como um exemplo de construção de alteridade/identidade dentro do discurso histórico-musical brasileiro. 3 Uma vez árabe… A discussão apresentada em Pequim (2012), onde explorei problemas metodológicos em iconografia e organografia como perspectivas de significado em contextos globalizados, incitou questionamentos sobre a construção de narrativas histórico-musicais e os processos identitários no contexto dos estudos 7 Também disponível em Fenske (2011). O violão em fontes iconográficas 435 musicológicos ibero-americanos e suas relações com as culturas árabes. Sem hesitar, John Fryer (2000, p. 1) ao discutir as origens do repente no Brasil, afirma que, O repente luso-brasileiro e as contendas versificadas provençais e catalães compartilham um ancestral comum, aparentemente. O fato que os europeus devem seus versos trovadorescos e esquemas métricos aos árabes da península ibérica ‘não está mais seriamente posto em dúvida.’ Não somente o sentido de forma dos trovadores, mas também as suas temáticas foram emprestados daquela fonte, ‘a principal diferença sendo que aqueles colocam o seu refrão ao final ao invés do começo.’ A própria palavra ‘trovador’ é quase certamente derivada de uma de duas palavras árabes próximas: tarrab (‘menestrel, aquele que afeta os ouvintes com uma execução musical’) ou tarraba (‘executar musicalmente’).8 Assim, a interconectividade moldando tais transferências culturais é revelada em camadas sucessivas de locais e tempo quando o fenômeno é executado em um dado lugar antes de mover-se ao próximo, não podendo ser reduzida a um único fato ou legado matricial. Assim, no caso do Brasil como em qualquer outra cultura, podemos considerar qualquer número de camadas que queiramos ou não estudar, retroagindo nossos estudos tão remotamente ou longinquamente como exigido pelo próprio objeto. Nesse sentido, o exercício do outro se torna uma experiência espelhada infinita, limitada apenas pelo nosso próprio sentido de afirmação, identificação ou rejeição. Tal é evidenciado por Fryer (2000, p. 2), quando considera as divergências entre discursos sobre o impacto das influências árabes no contexto musical português. Muito da música tradicional portuguesa, como aquela da Espanha, mostra alguma influência árabe, apesar do quanto seja ainda uma questão disputada. De acordo com uma autoridade, ‘do ponto de vista musical, os mouros não deixaram quaisquer traços que predominem na nossa música [portuguesa]. A música popular portuguesa não é de nenhuma forma similar à música árabe e não retém qualquer elemento deste, nem mesmo nas raras canções do tipo 8 436 “Luso-Brazilian challenge singing and Provençal and Catalan verse debates share a common ancestor, it seems. That Europe owes troubadour verse and its metrical schemes to the Arabs of the Iberian peninsula is ‘no longer seriously in doubt.’ Not only the troubadours’ sense of form but also their subject matter was borrowed from that source, ‘the chief difference being that they put their refrain at the end instead of the beginning.’ The very word ‘troubadour’ is almost certainly derived from one of two related Arabic words: tarrab (‘minstrel, one who affects listeners with a musical performance’) or tarraba (‘to perform musically’)”. Iconografia musical na América Latina melismático’ [FREITAS, 1984, p. 9]. [...]. Outra autoridade tem um ponto de vista diferente: ‘a música portuguesa [...] frequentemente usa tambores, tamborins e triângulos – um legado, junto com alguns ritmos, do período árabe... A música de Portugal, especialmente a do Sul, foi influenciada pela dominação árabe (embora não tão fundamentalmente como no sul da Espanha)’ [ROBERTS, 1973, p. 81-82].9 (FRYER, 2000, p. 2, grifo nosso) Além do já estabelecido fato histórico sobre a origem do instrumentarium até hoje utilizado no mundo ocidental, esse processo é particularmente exemplificado desde o século XIII nas Cantigas de Santa Maria na assimilação dos instrumentos árabes no contexto ibérico (Figura 2). Figura 2 – Exemplos de guitarra latina, mandora ou guitarra morisca, vihuela de arco, viola da mano, rabel e alaúde. Cantigas de Santa Maria Fonte: Galería de Instrumentos Medievales (2017) e Aquel Trovar ([20--]). 9 “Much of Portugal’s traditional music, like that of Spain, shows a certain Arab influence, though how much is a matter of dispute. According to one authority, ‘from the musical point of view, the Moors left no traces which predominate in our [Portuguese] music. Portuguese popular music is in no way similar to Arab music and retains no kind of element from it, not even in the rare songs of melismatic type’ [FREITAS, 1984, p. 9] [...]. Another authority takes a different view: ‘Portuguese music [...] quite regularly uses drums, tambourines and triangles – a legacy, along with some of the rhythms, of the Arab period... [T]he music of Portugal, especially southern Portugal, was influenced by the Arab domination (though not as fundamentally as southern Spain)’ [ROBERTS, 1973, p. 81-82]”. O violão em fontes iconográficas 437 Decorrendo dos problemas de identificação e contextualização de fontes iconográficas musicais então apresentadas, o instrumento a ser eventualmente designado como um ‘violão’ no Brasil exemplifica uma plasticidade no sentido de uma renovação do seu significado em lócus culturais distintos por meio de transferências a partir de fontes orientais e ocidentais. Ou como diria Treitler, “reorientando o foco do historiador das propriedades modais de grupos para a variação entre coisas reais, para que o presente não pareça tão problemático”.10 4 Uma vez na península ibérica… A historiografia musical brasileira, práticas musicológicas e corpus de trabalho têm sido sujeitos a paradigmas históricos e ideológicos; a sua relação e visão sobre fontes ibéricas tem mais recentemente se desenvolvido devido ao aumento dos programas de pesquisa e a maior disponibilidade de fontes digitais. Nesse sentido, – e evidenciado em projetos muito recentes delineando histórias globais da música, – a iconografia e organologia têm uma função fundamental especialmente na inserção do discurso local no contexto de quadros mais amplos, tanto no nível interno como externo. Ultrapassando os debates regionais – por exemplo, na península ibérica –, nos interessa também entender os caminhos prévios – mesmo os mais remotos – num mundo (mesmo então) globalizado e interconectado. Por outro lado, o influxo de práticas musicais conectadas com ocupações ibéricas e outras ocupações estrangeiras do território brasileiro, demanda escopos analíticos ampliados para compreender a complexidade de tais dinâmicas – uma única matriz (ou o “ponto central que avança varrendo tudo em torno de si” de Treitler) é inviável a partir do momento em que práticas locais assumem usos e conotações adicionais. No caso específico, um foco sobre a vihuela – seu reconhecido ancestral no Brasil, não poderia omitir a sua própria variabilidade em fontes anteriores na medida em que a sua interação com realidades locais modificou a natureza dos seus usos originais. À parte do assunto – algo controverso – sobre a sua origem 10 “reorienting the historian’s focus from the modal properties of groups to the actual variation among actual things, so the present would not seem such a problem”. 438 Iconografia musical na América Latina exata, a disseminação da vihuela, com seu fundo plano e facilidade de uso, disseminou-se sobretudo em toda a Espanha, Itália e Portugal. Cronologicamente, a representação de Marcantonio Raimondi (ca. 1480 – ca. 1530) datado de ca. 1510 de um homem tocando a viola da mano (Figura 3),11 é conhecida como a mais antiga imagem identificável de um tocador de viola. Algumas fontes o consideram como o primeiro mestre da gravura na Itália, ativo desde 1510 em Roma e em contato notadamente com artistas como Rafael e Michelangelo. A representação de Marcantonio, provavelmente sobre um original de Francesco Francia (ca. 1450-1517), é um retrato do poeta italiano Giovanni Filoteo Achillini (1466-1533) de Bolonha, um famoso improvisatori de poemas com acompanhamento instrumental. Uma cópia dessa gravação se encontra na Coleção Rosenwald (1943.3.7347) da National Gallery of Art, em Washington D.C.12 Por outro lado, o Libro de música de vihuela de mano intitulado El Maestro de Luis de Milán (ca. 1500 – ca. 1561) é o primeiro dos sete livros de vihuela produzidos durante o século XVI, desde o de Milán (1536) ao de Daça (1576).13 No seu fólio, vi-verso traz uma gravura com a representação de Orfeu tocando uma vihuela (Figura 4), aclamando-o como o seu inventor: “El grande Orpheo primero inventor, Por quien la vihuela parece en el mundo, Si el fue el primero no fue sin segundo, Pues Dios es de todos de todo hazedor”. O livro é dedicado a D. João III e contêm seis villancicos em português, denotando as interconexões entre Portugal e Espanha, – o primeiro logo a entrar sob domínio espanhol entre 1580 e 1640. 11 A teminologia de Sachs & Hornbostel (1914) diferencia as violas, segundo a qual são classificadas sob os cordófonos compostos (32), tipo alaúde com braço conectado ou esculpido à caixa (321.322), nos quais se inserem igualmente tanto as violas da braccio (e violinos) como as violas da gamba (e violoncelos). 12 Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.10143.html. 13 Essa serie inclui El Maestro (1536) de Luis de Milán, Los seys libros del Delphin (1538) de Luis de Narváez, Tres Libros de Música (1546) de Alonso Mudarra, Silva de sirenas (1547) de Enríquez de Valderrábano, Libro de música de Vihuela (1552) de Diego Pisador, Orphénica Lyra (1554) de Miguel de Fuenllana e El Parnasso (1576) de Estevan Daça. O violão em fontes iconográficas 439 Figura 3 – Marcantonio Raimondi (ca. 1480 – ca. 1530). Giovanni Filoteo Achillini. Gravura Fonte: National Gallery of Art. EUA. Bartsch, no. 469, Rosenwald Collection, 1943.3.7347.14 14 Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.10143.html 440 Iconografia musical na América Latina Figura 4 – Representação de Orfeu tocando vihuela (Milán, 1536, fl. vi-verso) Fonte: Biblioteca Nacional de España. Biblioteca Digital Hispánica.15 Assim, apesar do seu amplo fluxo em Espanha, Portugal e Itália, de acordo com Budasz (2001), somente “três códices em tablatura musical para a viola (guitarra [barroca] de cinco ordens) do início do século XVIII [2 em Lisboa e 1 em Coimbra] é aproximadamente tudo o que resta do repertório português para aquele instrumento até a publicação do livro de Manuel da Paixão Ribeiro 15 Também disponível em Eats lutes and leaves. Lute nuggets. Por la gracia de dios. Ver: http://eatslutes.blogspot.com/2009/11/this-splendid-picture-is-from-el.html. O violão em fontes iconográficas 441 em 1789”.16 Não obstante, Budasz lembra “parte do seu conteúdo parece se ajustar numa zona cinzenta entre a música dita de concerto, de tradição escrita, e a música de tradição oral”.17 (BUDASZ, 2001, p. xii) 5 Uma vez no Brasil… É reconhecido que a vihuela foi primeiro introduzida no contexto das atividades missionárias jesuíticas no Brasil a partir de 1549, na conversão religiosa de povos indígenas. Essa prática envolvia a encenação de inúmeros autos – ou autos de fé, o mais antigo registrado em 1564 – que eram reprisados em diferentes cidades e rearranjados musicalmente para o mesmo texto. Contudo, de acordo com Jerônimo de Nadal, em tratado escrito entre 15461577, a tradição portuguesa Jesuíta não tinha “canto em nossas escolas e casas”. (HOLLER, 2010, p. 151) Segundo Nadal (apud HOLLER, 2010, p. 151), tradições nem eram as mesmas em todas as escolas: “na Espanha o canto Gregoriano não era usado, mas sim o unitonus; em Viena, o canto figurado”. Ainda, segundo Holler (2010, p. 152), um estudo específico sobre a prática musical jesuítica em Portugal ainda não está disponível, uma vez que a documentação arquivística não foi consolidada, contrariamente àquela já publicada no Brasil ou mesmo, por exemplo, na Índia. Apesar dessas limitações, o uso dos Jesuítas da vihuela – também denominada viola em Portugal e no Brasil, assim como o instrumento de cinco ordens – é congruente ao da prática ibérica desse instrumento, seja assimilada à devoção religiosa, assim como em performances privadas. O instrumento foi frequentemente representado nas mãos de anjos (Figuras 5 e 6) cuja música consistia em adaptações da música polifônica contrapontística. 16 “three early-eighteenth-century codices of music in tablature for the viola (five-course guitar) [2 in Lisbon and 1 in Coimbra] are about all that remains from the Portuguese repertory for that instrument up to the publication of Manuel da Paixão Ribeiro’s book in 1789”. 17 “part of their content seems to fit into a gray area between so-called art music, of written transmission, and music of the oral tradition”. 442 Iconografia musical na América Latina Figura 5 – Vihuela baixo Fonte: Juan de Juanes. (Valência, c. 1507-Bocairente, 1579) – detalhe. Original no Convento de Santa Clara, Valência, Espanha. Fonte: Vihuela... ([2008]). Figura 6 – Anjo tocando uma Vihuela (afresco ibérico do século XVI), Anônimo Fonte: Wikimedia Commons. O violão em fontes iconográficas 443 Já em Portugal, destacamos a rara imagem encontrada na Igreja da Misericórdia em Abrantes (Figuras 7 e 8), com a sua detalhada representação de uma viola com 11 cravelhas.18 Figura 7 – Anjo músico. Anônimo (Portugal, século XVI) - Original na Igreja da Misericórdia, Abrantes, Portugal Fonte: Batov (2005). Figura 8 – Detalhe das 11 cravelhas da viola na figura 7 Fonte: Batov (2005). 18 Cabe também destacar, no âmbito organológico, as violas com 11 cravelhas construídas por Belchior Dias em 1581 (com alguns exemplares custodiados pelo Royal College of Music em Londres, com imagens disponíveis em: http://museumcollections.rcm.ac.uk/rcm_collections/ guitar-belchior-dias-lisbon-1581/), de cujo estudo se ocupou Batov (2005, 2017). 444 Iconografia musical na América Latina Contudo, já no século XVII, os seus usos no Brasil se deslocarão desde uma vihuela palaciana ou de conversão Jesuítica para uma viola de cinco ordens como meio para execução de poemas improvisados com acompanhamento instrumental, surgindo como instrumento preferido por figuras trovadorescas como o poeta Gregório de Matos Guerra (1636-1696),19 como aliás já era prefigurado na representação de Achillini do gravador Raimondi (Figura 3). Gregório de Matos tornou-se conhecido pelos seus poemas satíricos, recebendo o apelido de “Boca do Inferno”, posteriormente exilado em Angola em 1694. Proibido de entrar na Bahia e distribuir a sua poesia, morreu em Recife em 1696. Diz-se que antes de morrer solicitou a presença de dois padres católicos para que se posicionassem de cada lado do seu corpo para que morresse entre dois ladrões, como Jesus na sua crucificação.20 Apesar de ter vivido em Portugal entre 1652 a 1679 (dos seus 16 aos 43 anos), nos seus textos, Matos descreve extensivamente a vida musical escutada nas ruas, conventos, casas e bordeis do Brasil do século XVII, ilustrando com vividez danças africanas, e parafraseando e parodiando tonos e romances ibéricos. Tinha ainda um gosto especial por modas profanas que ele considerava como “canções que os ‘chulos’ cantavam” (BUDASZ, 2004, p. 7), também referidas como canções do diabo como relatado por outros autores. 19 Gregório de Matos e Guerra nasceu em Salvador, Bahia, filho de Gregório de Matos (nobre português) e Maria da Guerra. Estudou no Colégio Jesuíta e viajou para Lisboa em 1652, ingressando na Universidade de Coimbra, onde completou sua titulação em cânones em 1661. Lá tornou-se amigo do poeta Tomás Pinto Brandão (1664-1743), casou-se com D. Michaella de Andrade e em 1663 foi designado como Juiz de Fora em Alcácer do Sal. Serviu diversos cargos e funções nomeado pela Corte portuguesa entre 1668 e 1674, mas foi destituído do cargo de procurador. Em 1679, retornou ao Brasil viúvo. Em 1682, D. Pedro II, rei de Portugal, nomeou Gregório de Matos como tesoureiro-mor da Sé, um ano depois de ter tomado ordens menores. Em Portugal, já ganhara a reputação de poeta satírico e improvisador. Foi destituído dos cargos pelo novo arcebispo, frei João da Madre de Deus, por não querer usar batina nem aceitar a imposição das ordens maiores, de forma a estar apto para as funções a que tinha sido incumbido. Casou-se pela segunda vez em 1691 com Maria dos Povos, mas levou uma vida boêmia. Descontente, criticava a igreja, governo e todas as classes sociais baianas (“canalha infernal”), os nobres (“caramurus”). Os seus escritos irreverentes e satíricos e seu comportamento livre acabaram por obrigá-lo a exilar-se em Angola em 1694, onde se diz ter contraído uma doença letal. Muito doente, ele conseguiu retornar ao Brasil no ano seguinte, mas foi proibido de entrar na Bahia e de distribuir a sua poesia. Ao invés, foi para o Recife onde morreu em 1696. Seu irmão mais velho foi o pintor e orador Eusébio de Mattos (1629-1692). (GREGÓRIO..., [2017]) 20 Anedota também referida em Guimarães (2008). O violão em fontes iconográficas 445 Tocando a viola para acompanhar os seus textos, segundo um dos seus biógrafos, Manuel Pereira Rebelo, ele teria usado um instrumento feito a partir de uma cabaça que seria proximamente relacionada – ou poderia até mesmo ser – o banza (Figura 9) – um tipo de viola ainda em uso em algumas partes do Brasil. Budasz (2001, p. 9) “[...] considera a propagação deste repertório no Brasil, como visto na poesia [de Gregório de Matos] e como o Brasil pode ter atuado como um mediador entre África e Portugal no desenvolvimento de parte deste repertório”. Ele reforça a “[...] interação entre práticas populares e da música de concerto, assim como práticas de diferentes grupos sociais e raciais” já que “um número substancial de danças de provável origem africana […] eram comuns no Brasil antes da época de compilação dos [3] códices, o que fortemente sugere uma etapa brasileira no seu desenvolvimento”. (BUDASZ, 2001, p. 9) Figura 9 – Banza, ou Banjar Fonte: Sloane (1707, prancha III, p. 163). No Brasil, a viola foi ao longo do tempo assimilada como um instrumento de acompanhamento, relacionando-a primeiramente aos romances, cantigas, tonos e modos do início dos séculos XVI e XVII e logo aos lundus e modinhas 446 Iconografia musical na América Latina do final dos séculos XVII e XVIII. A sua versatilidade também denota variantes na sua construção, desde um instrumento de seis ordens (como a vihuela), até um instrumento de cinco ordens (guitarra barroca). Esta última originaria as várias violas regionais portuguesas e as violas brasileiras – inclusive a moderna viola caipira –, ilustrada em seis variantes exemplificadas abaixo (Figuras 10 a 15, gentilmente cedidas por Roberto Corrêa). Figura 10 – Viola caipira (imagem completa e detalhes) Fonte: arquivo pessoal de Roberto Corrêa. O violão em fontes iconográficas 447 Figura 11 – Viola Paulista (imagem completa e detalhes) Fonte: arquivo pessoal de Roberto Corrêa. Figura 12 – Viola de Queluz (imagem completa e detalhes) Fonte: arquivo pessoal de Roberto Corrêa. 448 Iconografia musical na América Latina Figura 13 – Viola de Fandango (imagem completa e detalhes, incluindo etapas de fabricação) Fonte: arquivo pessoal de Roberto Corrêa. Figura 14 – Viola de Buriti (imagem completa e detalhes) Fonte: arquivo pessoal de Roberto Corrêa. O violão em fontes iconográficas 449 Figura 15 – Viola de cocho (imagem completa e detalhes) Fonte: arquivo pessoal de Roberto Corrêa. Essas práticas são também corroboradas pela presença de outras Ordens Terceiras, como os Franciscanos e Dominicanos, especialmente no culto de São Gonçalo, na realidade, o Beato Gonçalo de Amarante (Figura 16), já que o mesmo nunca teria sido canonizado, o suposto santo patrono dos violeiros, celebrado nas Festas de São Gonçalo do Amarante em Portugal. Figura 16 – São Gonçalo do Amarante, padroeiro dos violeiros Fonte: São Gonçalo... (2011). 450 Iconografia musical na América Latina 6 Brasil Colônia ao Primeiro Império As primeiras representações da viola no contexto brasileiro surgem a partir do século XVII sobretudo tocadas por músicos negros. Para Budasz (2001), a viola leva uma espécie de vida dupla durante o século XVII, já que Francisco Manuel de Melo (1608-1666), escritor, político e militar português exilado na Bahia entre os anos de 1655 a 1658, afirma em sua Carta de guia de casados (1651) que “[...] sendo um excelente instrumento, era suficiente para que negros e patifes aprendessem a tocá-la, os homens honrados não mais queriam pô-la em seus braços” (MELO, 1992, p. 67 apud BUDASZ, 2001, 166), como retratado na figura 17. Figura 17 –Negra ao violão, padre dançando. Anônimo Fonte: Wikimedia Commons.21 A inclusão de violeiros negros é encontrada no teatro ibérico a partir da segunda metade do século XVI, como no Auto da Natural Invenção de Antônio Ribeiro Chiado, de ca. 1580 e nas Novelas Ejemplares de Miguel de Cervantes, se desenvolvendo durante os séculos XVII e XVIII (Figura 18). 21 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Negra_ao_viol%C3%A3o,_padre_ dan%C3%A7ando.jpg. O violão em fontes iconográficas 451 Figura 18 – Auto da Natural Invenção de Antonio Ribeiro Chiado, ca. 1580 (capa do livro) Fonte: Chiado (1917, p. [109]). Contudo, no Brasil, as práticas musicais dos negros foram extensivas e influentes, infiltrando-se na vida musical, uma vez que eram frequentemente adotadas durante as atividades cotidianas. Podemos identificar uma visão local nas imagens de Carlos Julião (1740-1811), artista considerado português nascido na Itália, que posteriormente passou a integrar o exército português, no qual identificamos uma viola – com fitas coloridas naquela tocada por uma mulher – vista nas mãos de membros de cortejos reais africanos (Figura 19). 452 Iconografia musical na América Latina Figura 19 – Carlos Julião (1740-1811). Coroação do Rei e da Rainha Negra na Festa de Reis (detalhes à direita) Fonte: Biblioteca Nacional do Brasil. Acervo digital.22 O mesmo ocorre nas representações incluídas em Bildern aus dem Menschenleben de Spix e Martius (Figura 20), extraído do Atlas que acompanha seu Reise in Brasilien (1826-1831), resultado das viagens feitas entre 1817 e 1820, que retratam um panorama de cenas abrangendo o Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia. Na Figura 20 (detalhe da figura anterior), que representa uma cena da Festa da Rainha, em Minas Gerais, pode-se identificar uma viola, aparentemente de seis ordens, nas mãos de um músico negro, à esquerda gravura. 22 Disponíveis em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/iconc1_2_8i39. jpg (Coroação do Rei - acima) e http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/ iconc1_2_8i37.jpg (Coroação da Rainha - abaixo). O violão em fontes iconográficas 453 Figura 20 – Oito cenas brasileiras reunidas em Bildern aus dem Menschenleben Fonte: Spix e Martius ([ca. 1830], p. 34).23 Figura 21– Festa da Rainha, in Minas24 Fonte: Spix e Martius ([ca. 1830], p. 34). 23 Também disponível no Acervo digital da Biblioteca Nacional, em: http://objdigital.bn.br/ acervo_digital /div_iconografia/icon1250074/icon1250074_36.jpg. 24 Detalhe centro inferior da Figura 20. 454 Iconografia musical na América Latina Em inícios do século XIX, o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) já demonstra afastamento de representações reconhecíveis da viola, já que vemos um instrumento com formato arredondado ou piriforme, abobadado, com braço alongado (Figuras 22 e 23) (semelhante a um tambur?), agora já nas mãos de indivíduos brancos e abastados, apesar de inseridos em contexto urbano (Rio de Janeiro, 1823) e rural (São Paulo, 1835). Figura 22 – Costumes do Rio de Janeiro (1823) Fonte: Rugendas (1835, pl. 16).25 25 Disponível no site Biblioteca do Senado Federal, em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/ id/227417. Ver também BD RIdIM-Brasil (ID 140), disponível em: ttps://adohm.ufba.br/ dbridimbrasil/catalogacao/visualizar/popup/1/id/140. O violão em fontes iconográficas 455 Figura 23 – Costumes de São Paulo26 Fonte: Rugendas (1835, pl. 17).27 26 18, lâmina 50 (1835). In: Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann & Cie., 1835. 27 Ver também em BD RIdIM-Brasil (ID 141), disponível em: https://adohm.ufba.br/dbridimbrasil/ catalogacao/visualizar/popup/1/id/141. 456 Iconografia musical na América Latina O mesmo ocorre com Jean-Baptiste Debret (1768-1848), o qual, em Les délassements d’un après-diner d’hommes riches (1835, Figura 24), entre as suas inúmeras ilustrações musicais, retrata um tipo similar de instrumento arredondado, abobadado, com braço mais curto (semelhante a um bandolim?), inserido em um grupo de aparentemente mulatos em lazer (‘hommes riches’), quase como antecipação de faunos em tardes lascivas mas aqui representados em ambientes tropicais. Contudo, não será uma viola aqui retratada. Figura 24 – Debret. Les dèlassements d’une aprés diner, 1835 (2e Partie, Pl. 8), litogr. em cores Fonte: Debret (1835).28 Nessas representações do Brasil pós-independência, se discernirmos determinados contextos – rural, semiurbano ou urbano – já não podemos identificar os instrumentos do ponto de vista organológico devido à variabilidade de suas representações. Ou seja, a exatidão dessas representações não corresponde a instrumentos em uso corrente à época. Artistas como Rugendas e Debret, avançando no plano estético na elaboração dessas representações, já calcadas em 28 Também disponível (sem cores) no Acervo digital da Biblioteca Nacional, em: http://objdigital. bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon326377/icon326377_091.jpg. O violão em fontes iconográficas 457 alguns casos em contextos pós-kantianos do idealismo alemão, muitas vezes, não teriam feito seus desenhos no Brasil, mas sim de retorno aos seus países de origem, produzindo imagens seja da memória de algo visto, seja de instrumentos utilizados e situados fora do espaço brasileiro. Essas representações elaboradas pelo outro suscitam questionamentos sobre o espelhamento de transferências culturais a partir de fontes exógenas e, no caso da viola no Brasil, de fontes sejam essas ocidentais ou orientais. Onde nos espelhamos? A partir de qual ou quais pontos? 7 Brasil República ao modernismo Caracterizado pela abolição da escravatura e Proclamação da República (1889), o final do século XIX é marcado por uma revisão do programa nacional influenciado pelo crescente antiestrangeirismo e valorização da cultura francesa, agora revolucionária. Não obstante, o nacionalismo desenvolvendo-se no liberalismo contrário à restauração monárquica, compelem a adoção de novas linguagens e construção de imagens representativas dessas novas realidades. Nesse âmbito, nessas representações indigenistas “os índios idealizados nunca foram tão brancos; assim como o monarca e a cultura brasileira tornavam-se mais e mais tropicais”. (SCHWARCZ, 1998, p. 148) Tal dicotomia entre o real e o imaginado na representação de instrumentos musicais é visível na obra de Almeida Júnior (1850-1899). Com inúmeras participações em salões franceses e influenciado pelo realismo de Courbet na representação de personagens e pessoas da vida cotidiana, identificamos em Descanso da Modelo (1882, Figura 25) um instrumento piriforme, similar a um bandolim italiano, ao invés do instrumento usado em terras brasileiras. 458 Iconografia musical na América Latina Figura 25 – Descanso da modelo (1882), Almeida Júnior Fonte: Wikimedia Commons.29 Contudo, já no célebre Violeiro (1899, Figura 26) e Oscar (s.d., Figura 27), Almeida Junior retrata o instrumento plenamente reconhecível como uma viola, do tipo popular, empunhado pelo caipira como nova personagem da república emergente. Figura 26 – O violeiro (1899), óleo sobre tela, Almeida Júnior Fonte: Wikimedia Commons.30 29 Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Descanso_do_Modelo_ (Almeida_J%C3%BAnior)#/media/File:Jos%C3%A9_ferraz_de_almeida_jr,_riposo_della_ modella,_1882.JPG. Ver também em BD RIdIM-Brasil (ID 8), Disponível em: https://adohm. ufba.br/dbridimbrasil/catalogacao/visualizar/popup/1/id/8. 30 Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/1b/ Almeida_J%C3%BAnior_-_O_ Violeiro_%282%29.jpg. Ver também em e BD RIdIM-Brasil (ID 811), disponível em: https://adohm.ufba.br/dbridimbrasil/catalogacao/visualizar/popup/1/ id/811. O violão em fontes iconográficas 459 Figura 27 – Almeida Júnior. Oscar (s.d.), óleo sobre tela Fonte: Pinterest.31 Cândido Portinari (1903-1962), apesar da excepcionalidade em termos cronológicos em relação à Semana de 1922 desta tela datada de 1924, inicialmente focará pessoas reais num baile popular (Baile na roça, 1924, Figura 28), considerado como a sua primeira tentativa em retratar temática brasileira, num ambiente realista, mas ainda com pinceladas impressionistas. 31 Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/125326802108289334/. 460 Iconografia musical na América Latina Figura 28 – Portinari, Baile na Roça (1924), óleo sobre tela, 97 x 134 cm Fonte: Projeto Portinari Baile na Roça.32 Esse cenário nacionalista parnasiano mudaria definitivamente com o advento do movimento antropófago da Semana de 1922. Nessa caricatura de Belmonte (ou Benedito Bastos Barreto, 1897-1947, Figura 29), para um reclame de divulgação da Semana de 1922, o movimento modernista é retratado como o D. Quixote em São Paulo com os próprios modernistas empunhando cartazes criticando pintores e escultores como Almeida Júnior (“...não pagava o padeiro”) e Bernardelli (“...é um fazedor de moringas”), compositores como Carlos Gomes (“...é um burro”), ou modelos românticos como Chopin (“...era um tocador de berimbau”). Todos esses representariam as correntes tradicionalistas românticas anteriores, parnasianas, simbolistas e academicistas. 32 Ver também em BD RIdIM-Brasil (ID 168), dosponível em: https://adohm.ufba.br/dbridimbrasil/ catalogacao/visualizar/popup/1/id/168. O violão em fontes iconográficas 461 Figura 29 – Belmonte. Caricatura anúncio para a Semana de 1922 Fonte: A semana... (2017). Necessário aqui observar o impulso dado por Lasar Segall (1891-1957) como um dos precursores do modernismo no Brasil, especialmente a exposição realizada em 1913, sobre a qual Oswald (e não Mário!)33 de Andrade relataria em 1944: “Enquanto eu fazia um jornalzinho tumultuário, Segall realizava cronologicamente a primeira exposição de pintura não acadêmica em nosso país”. Ou 33 Ao examinar a referência para atribuição desta frase, a saber o número da Revista Acadêmica dedicado a Lasar Segall, p. 34 (apud BRITO, 1978), constatei que a atribuição é errada e repetida em várias fontes, e deve ser corrigida para Oswald de Andrade. Texto original do número da Revista Acadêmica disponível em: http://icaadocs.mfah.org/icaadocs/THEARCHIVE/FullRecord/ tabid/88/doc/1110322/language/en-US/Default.aspx. 462 Iconografia musical na América Latina seja, teria simbolizado o primeiro ponto de contato no Brasil com as tendências vigentes na Europa. No entanto, em texto publicado na mesma Revista Acadêmica de 1944, na página 10, será Mário de Andrade que afirmará que: “A presença do moço expressionista [Lasar Segall] era por demais prematura para que a arte brasileira, então em plena unanimidade acadêmica, se fecundasse com ela”. Esse processo seria gradual já que segundo o mesmo Oswald de Andrade (1921) estaríamos “atrasados cinquenta anos em cultura, chafurdados ainda em pleno parnasianismo”. Será então no muito citado banquete no palácio do Trianon, em homenagem ao lançamento de As Máscaras de Menotti del Picchia, em 9 de janeiro de 1921, que Oswald de Andrade faz um discurso (BRITO, 1978), cuja “palavra de ordem” é, segundo Brito (BRITO, 1978, p. 184), “Daqui para diante”, como “um agressivo toque de reunir, um chamamento à luta, a declaração de que estão dispostos a aceitarem as horas difíceis e adversas que estão por vir, e, com elas, os martírios fecundos”. Mas resumindo as confrontações entre tradicionalistas e futuristas, Monteiro Lobato, como crítico de arte do jornal Estado de São Paulo, não poupa comentários negativos sobre as novas tendências estéticas em seu célebre A Propósito da Exposição Malfatti. Publicado em 20 de dezembro de 1917, o texto que ficou conhecido como Paranoia e mistificação, em sua republicação de 1919, é considerado como o real catalisador do movimento que culminaria na Semana de 1922. Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas [...]. A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. [...] Embora eles se deem como novos, precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia e a mistificação. [...] Essas considerações são provocadas pela exposição da srª Malfatti onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia. (LOBATO, 1917, p. 4) Em meio a essas tensões, as representações de Lasar Segall (1891-1957) atuariam como ponto referencial e articulador introduzindo estéticas externas no contexto brasileiro intermediadas por um estrangeiro no país. Assim, vemos aqui o processo inverso: as cores brasileiras e seus costumes influenciando a temática do estrangeiro. Há uma inversão do outro já que o estrangeiro encontrará no Brasil um espelho para os seus anseios capaz de lhe revelar uma nova O violão em fontes iconográficas 463 estética ao adotar os usos, luzes, práticas e paisagens locais. Contudo, em dado momento esse outro desaparecerá criando referencial local inseparável de uma nova representação desta identidade. Identificamos 15 representações do violão34 na obra de Segall as quais poderiam ser subdivididas em dois grupos: obras com (12); e sem figuras humanas (3). Contudo, aqui propomos destacar duas vertentes, inclusive ambas iniciando-se em 1924: representação do violão com figura epecíficamente feminina (8); e violão sem figuras humanas (3). As quatro demais obras trazem figuras de diversos gêneros, idades e contextos. Na primeira vertente, obras associando o violão e a figura feminina, exemplificamos três obras: a Tocadora de violão cega (1924, Figura 30), Jovem com violão (1941, Figura 31) e Tocadora de violão num ateliê (1948, Figura 32). Figuras 30, 31 e 32 – Lasar Segall. Tocadora de violão cega (1924 – esq.), Jovem com violão (1941 – centro), e Tocadora de violão num ateliê (1948 – dir.) Fonte: Museu Lasar Segall. Tocadora de violão cega (1924), possivelmente um músico popular, inaugura esse tipo de composição, mas será a assistência de [Dora] Lucy Citti Ferreira (1911-2008), – pintora e desenhista brasileira formada em Paris (1930-1934), 34 O museu foi contatado e o resultado é a identificação de 50 obras com instrumentos musicais (violão 15, acordeom 17, outros instrumentos 18) e oito fotografias (autores diversos) de Dora Lucy Citti Ferreira (1911-2008), a qual serviu como sua modelo para várias dessas obras, Ferreira tocando violão ou acordeom. Desde já agradecemos a colaboração do pesquisador Daniel Rincon Caires, Coordenador do Setor de Pesquisa do Museu Lasar Segall (MLS). Lasar Segall ainda não consta na base de dados do RIdIM-Brasil o qual será prontamente atualizado. 464 Iconografia musical na América Latina sua modelo no período em que foi sua aluna em São Paulo entre 1935 e 1946 –, que produzirá uma clara articulação da figura feminina com o violão como vista nas figuras acima. Na fotografia a seguir (Figura 33), vemos Lucy empunhando um violão, mas a veremos também ao acordeão (Figura 34) o que produzirá não menos que outras 13 obras com Lucy nesse instrumento. Figura 33 – Dora Lucy Citti Ferreira posando em sua casa (1947), autor não identificado. Número de tombo: F. 01950 Fonte: Museu Lasar Segall. O violão em fontes iconográficas 465 Figura 34 – Lasar Segall pintando Lucy, 1940. Foto de Hildegard Rosenthal. 18,6 x 24,9 cm Número de tombo: F.00212 Fonte: Museu Lasar Segall. Na segunda vertente, também iniciada em 1924, exemplificamos com outras três obras: Projeto de cor para decoração do Baile Futurista do Automóvel Clube (1924, Figura 35), Paisagem e natureza morta-Campos do Jordão (1942, Figura 36) e Natureza morta com violão (1944, Figura 37). Figuras 35, 36 e 37 – Lasar Segall. Baile Futurista do Automóvel Clube (1924 – esq.), Paisagem e natureza morta (Campos do Jordão, 1942 - centro) e Natureza morta com violão (ca. 1944) Fonte: Museu Lasar Segall. 466 Iconografia musical na América Latina Será em Tocador de violão (Figura 38), gravura para o livro Poemas Negros (1947) de Jorge Lima (1893-1953),35 que Lasar Segall representará o violão com uma figura masculina expressiva até pelo fato dessa figura se encontrar de costas para quem o visualiza, ocultando o instrumento. Parece-nos ainda denotar abstraimento não só do ponto de vista da atitude do violonista ao ocultar o instrumento, como também da sua superposição sobre um plano subjetivo na contemplação da ação representada (tocar o violão). Figura 38 –Tocador de violão, Lasar Segall36 Fonte: Museu Lasar Segall. Como se poderá observar a seguir, a contribuição de Lasar Segall terá sido primordial para o projeto antropófago e sobretudo dos seus desdobramentos 35 Jorge Lima (1893-1953) é um político, médico, poeta, romancista, biógrafo, ensaísta, tradutor e pintor alagoano, e como parte do dito segundo tempo modernista é autor de obra poética que oscila entre o formalismo, o misticismo, as recordações da infância e a figura do negro. Sua obra mais reconhecida é a dita “epopeia barroco-surrealista” Invenção de Orfeu (1952). Segundo Camilo (2013), participa da consolidação do cânone da poesia afro-americana. 36 Gravura original do livro Poemas Negros, 1947. Litografia a três cores sobre papel. 23 x 19 cm. Número de tombo: MLS 0435 (MLS). O violão em fontes iconográficas 467 na utilização da figura feminina como ventre fértil da brasilidade, associando uma simbologia do feminino a cenas da vida cotidiana. O corpo feminino e suas inúmeras possibilidades narrativas e inscrições sutis se desdobram a partir da ideia do nu como gênero, [...] considerado como forma ideal de arte (Clark 1971), buscando sempre a mimesis do belo, com isso ele é um indicador da ideia dominante da arte e seu papel na sociedade (Mahon 2005:29), ou até os boundaries dela (Nead 2003:7), porque é a representação do corpo possível de ser mostrada dentro da moral regente e de cada sociedade. (BATISTA, 2011) A representação desses instrumentos já não mais teria qualquer preocupação organológica assumindo agora um valor iconológico, numa brasilidade almejada pelos modernistas ao articular no país as tendências mais recentes da pintura internacional – futurismo, dadaísmo, expressionismo, surrealismo e cubismo. 8 Desdobramentos: o nu e o vestido Como idealizador da Semana de 1922, Di Cavalcanti (1897-1976) retrata o violão,37 agora completamente assimilado às práticas musicais urbanas em reuniões de música popular – Carnaval, serestas, serenatas, gafieira, samba etc. Acompanha essas representações a sua apreciação pelas curvas femininas como definidas nas suas mulatas. Em Serenata (1925, Figura 39), vemos tais curvas refletidas na anca da figura feminina no primeiro plano e pela curva superior do violão no segundo plano, tensionado pela inclinação dos rostos de ambas essas figuras, que aparentam possuir um ritmo introspectivo próprio, justaposto às demais figuras que aparentam estar em movimento, em ritmo distinto. 37 Foram identificadas cerca de 20 obras que incluem o violão em sua composição; a BD RIdIMBrasil possui 18 entradas. 468 Iconografia musical na América Latina Figura 39 –Serenata (1925), Di Cavalcanti Fonte: Edi Cavalcanti.38 Já em Moças com violões (1937, Figura 40), vemos uma suavização dos traços apontando para as representações do corpo feminino que se tornaram uma marca identificável na sua obra. Sua produção possui temas de caráter realista em diálogo com a construção de uma identidade nacional, na qual o violão está imerso e retratado como ícone simbólico desse novo contexto cultural. Figura 40 –Moças com violões (1937), Di Cavalcanti Fonte: Moças... (2017)39 38 Ver: BD RIdIM-Brasil (ID 22), em: https://adohm.ufba.br/dbridimbrasil/catalogacao/visualizar/ popup/1/id/22. 39 Ver também em BD RIdIM-Brasil (ID 577), Disponível em: https://adohm.ufba.br/dbridimbrasil/ catalogacao/visualizar/popup/1/id/577. O violão em fontes iconográficas 469 De forma mais explícita, Héctor Julio Páride Bernabó ou Carybé (1911-1997), argentino estabelecido e naturalizado brasileiro, retrata a sua Mulata Grande (1980, Figura 41). Essa figura feminina já se desnuda e se torna uma espécie de Vênus primal brasileira, uma figura maternal parindo uma brasilidade em continuidade às mulatas de Di Cavalcanti. Figura 41 – Carybé. Mulata Grande (1980). Óleo sobre tela e papel. 61 x 45cm Fonte: Barreto (2008). Sobre o nu na pintura, Batista (2011) observa que durante o século XIX o nu nunca foi tão cultivado, enquanto que na vida cotidiana o corpo nunca foi tão zelosamente ocultado, sobretudo o corpo da mulher. Já o nu masculino, com muitos poucos exemplares conhecidos especialmente no espaço brasileiro, ganha tons de virilidade e patriotismo se sobrepondo ao feminino que mantêm os traços idealizados de uma perfeição estética. De acordo com Batista (2011), Peter Brooks chega à conclusão de que a concepção de um nude moderno consiste em um oxymoron (1989, p. 16), ou melhor ainda, contradictio in adiecto, quer dizer, uma figura retórica de uma formulação contraditória. Aqui há a contradição do adjetivo ‘moderno’ que vincula as associações real, contemporâneo, ordinário, individual, breve, a uma forma particular contra o significado do substantivo nude, uma representação de forma ideal, bela e clássica. [...] Eis 470 Iconografia musical na América Latina uma narrativa inscrita num corpo moderno que tem como elo uma controvérsia ideológica sobre o tradicional e o novo que move todo campo da arte, e além deste, outros bens simbólicos da sociedade. Eis agora um nu que conta uma estória moderna... Tais transformações no espaço brasileiro possuem particularidades identificáveis desde o ensino na Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro, no culto à beleza greco-romana e preceitos clássicos da figura humana. Havia ainda falta de modelos especialmente masculinos para as aulas de desenho, sendo esses encontrados em camadas mais baixas da população, muitas vezes negros, desnutridos ou em idade avançada, dificilmente servindo para representações da virilidade clássica. Já os nus femininos, muitas vezes, eram feitos em ateliers particulares, e quando no estrangeiro, segundo Batista (2011), “obrigava o artista a imaginar um corpo brasileiro com um modelo francês, italiano ou de outro país; impondo-se ao artista a necessidade de lembrar e construir uma ‘ficção real do corpo nacional’ a partir da memória”.40 Mas a importância do corpo feminino no imaginário nacional é destacada desde a célebre Moema (1866, Figura 42) de Vitor Meirelles de Lima (1832-1903), a qual segundo Batista (2011), une o indianismo tanto ao romantismo sentimental quanto ao erotismo dentro de uma paisagem tropical. O cadáver monumental num idílio trágico concentra no próprio corpo feminino a busca de uma construção identitária (Migliaccio 2000:42). História e mito caminham lado a lado, nomeiam a indígena mitificada como ‘bom selvagem’, com qual a jovem Nação quer fazer as pazes do seu passado (Schwarcz 1998:147), uma maquiagem da era colonial e novo símbolo do império brasileiro. 40 Este mesmo processo ocorreria com as representações do violão no caso de artistas estrangeiros que após o seu regresso deveriam recriar detalhes dos instrumentos. O violão em fontes iconográficas 471 Figura 42 – Moema (1866), Vitor Meireles. Óleo sobre tela, 129 x 190 cm Fonte: Collections... (2018). Todas essas transformações na representação da figura feminina, e desta quando combinada com as curvas voluptuosas do violão, e ainda quando inseridas numa paisagem tropical, unem-se exibindo algum nível de erotismo simbólico na busca de uma construção identitária que permite contar uma narrativa moderna. Ou nas palavras de Brooks (1989), “gerando uma controvérsia ideológica sobre o tradicional e o novo movendo todo campo da arte, e além deste, outros bens simbólicos da sociedade”. Essas figuras se contrapõem às representações do violão nas mãos de figuras masculinas, os quais são retratados sempre vestidos e em contextos boêmios e populares, quase que de forma impessoal, como no negro (Debret, Spix & Martius, Segall, Portinari) ou brancos abastados (Rugendas). Um exemplo que atinge maior complexidade narrativa, o Oscar (Figura 26) de Almeida Junior se comparado ao seu Derrubador brasileiro (1879, Figura 43), retrata uma antítese do ideal viril do século XIX ao colocá-lo em postura recostada, em repouso do trabalho árduo, o que denota para Batista (2011) um “afastamento do ideal heroico” promovido por “vertente das novas representações da 472 Iconografia musical na América Latina masculinidade desde o século XVII, como ela foi inaugurada com o Hércules do escultor francês Pierre Puget (1620-1694), segundo Herding (2004)”. Recostado, [n]uma transposição da virtude de uma ação heroica-trágica em um carregamento sensual do corpo masculino pelo não fazer. A pose passiva de repouso do derrubador encarna um erotismo lascivo que é reforçado pela vestimenta. O corpo do homem meio vestido realça, através da calça, novos contornos que lançam atenção a seu sexo ocultado. É por causa do vestuário que o nu masculino ganha em experiência da carne e aparece mais vivo, longe de uma idealização clássica. Portanto, o Derrubador brasileiro ocupa o lugar de um corpo moderno e regional trazendo consigo narrativas do interior como exótico e carregadas sensualmente, em contraposição à virtude tradicional heroica. (BATISTA, 2011) Figura 43 – Derrubador brasileiro (1879), Almeida Júnior. Óleo sobre tela. 227x182cm Fonte: Almeida... (2008). O violão em fontes iconográficas 473 Tal complexidade não é encontrada nas representações do masculino pós-semana de 1922. Por exemplo, Cândido Portinari, incorporando o cubismo e o surrealismo ao retratar personagens populares – com cerca de 28 imagens incorporando o violão –,41 concentra-se sobre as principais práticas musicais urbanas contemporâneas como o choro e o samba (Figuras 44 e 45). Figura 44 – Chorinho (1942), Cândido Portinari. Painel a têmpera/tela. 225x300 cm Fonte: Projeto Portinari.42 41 Segundo dados levantados na base RIdIM-Brasil, disponível em: https://adohm.ufba.br/ dbridimbrasil. 42 Disponível em: http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/3754/detalhes. Ver também em e BD RIdIM-Brasil (ID 219), disponível em: https://adohm.ufba.br/dbridimbrasil/catalogacao/ visualizar/popup/1/id/219. 474 Iconografia musical na América Latina Figura 45 – Samba (1956), Cândido Portinari. Integra série Cenas Brasileiras (Revista O Cruzeiro). Óleo sobre tela. 198 x 168 cm Fonte: Projeto Portinari Chorinho.43 Contudo, uma nova narrativa produzida sobre a figura masculina associada ao violão materializa-se na recriação, em 1956, do mito de Orfeu. Transformado em uma “tragédia carioca em três atos”, Orfeu, agora negro, tocando um violão, tenta vencer um conflito contra a morte, dando rosto a uma figura masculina representativa e não mais impessoal. Nos cartazes produzidos à época para a peça de teatro e a seguir o filme, vemos uma espécie de substituição do violão figurativo de Djanira (Figura 46) em um violão abstrato de Carlos Scliar (Figura 47), e, posteriormente, em uma mulher (Eurídice) no cartaz para o filme (Figura 48). Em outra abstração figurativa, vemos a capa do Long Play (LP) de lançamento da trilha sonora pelo selo Odeon, em 1956 (Figura 49), elaborada por Raimundo Nogueira.44 43 Ver também em BD RIdIM-Brasil, (ID 388, Disponível em: https://adohm.ufba.br/dbridimbrasil/ catalogacao/visualizar/popup/1/id/388. 44 Informação extraída da contracapa do LP com notas de Vinícius de Moraes. O violão em fontes iconográficas 475 Figuras 46 e 47 – Cartaz da peça Orfeu Negro (Djanira, 1956 – esq.) e cartaz da peça Orfeu Negro (Carlos Scliar, 1956 – dir.) Fonte: VM Cultura ([200-]). Figuras 48 e 49 – Cartaz do filme Orphée Noir dirigido por Marcel Camus (1959 – esq.) e capa do disco LP, com arte de Raimundo Nogueira (1956 – dir.) Fonte: VM Cultura ([200-]). 476 Iconografia musical na América Latina Segundo o sítio web dedicado a Vinícius de Moraes, Entre 1942 e 1960, portanto, dezoito anos separam Orfeu de sua morada em uma favela carioca para o imaginário mundial. Sua história deu uma nova dimensão internacional sobre o Brasil e sua cultura. A peça de Vinícius de Moraes quebrou tabus, fundou amizades, inaugurou parcerias e iluminou o mundo com a história mítica de seu herói trágico. (VM Cultura ([200-]) O impacto de Orfeu Negro originará uma iconografia relacionando o violão a figuras masculinas não sem, contudo, gerar algum nível de ambiguidade, ou um oximoron, numa oscilação entre tradição e modernidade mas também outra de caráter social ao expressar e ao mesmo tempo enraizar num contexto pós-guerra dos anos 1950, um Brasil apartado das suas realidades sociais severas como o analfabetismo e a fome. Além de filme premiado em festivais internacionais,45 não deixará de estar imbuído de uma polissemia, já que este negro Orfeu foi uma criação de intelectuais brancos abastados, formados e habitantes das zonas urbanas nobres do Rio de Janeiro, como Vinícius de Moraes (um diplomata), Oscar Niemeyer (arquiteto) e Tom Jobim (compositor). A estreia da obra no Teatro Municipal em 25 de setembro de 1956 foi amplamente divulgada nos jornais da época, como publicada no jornal Última Hora (1956), cuja manchete anuncia a obra como “nova etapa da história do teatro brasileiro” (Figura 50), no qual não se deixou de registrar a assistência da elite social e intelectual carioca. Dessa forma, não será somente um Orfeu negro, mas talvez novos Orfeus – mulatos, brancos, negros – que se sucederão nesse movimento, primeiramente com Vinícius de Moraes e Tom Jobim aqui representados nesta emblemática fotografia da década de 1950 (Figura 51). 45 Prêmios recebidos: Cannes Film Festival, Palme d’Or (1959); Academy Awards, Best Foreign Language Film (1960); Golden Globes (USA), Best Foreign Film (1960); BAFTA Awards, nomeado como Best Film from any Source (1961). O violão em fontes iconográficas 477 Figura 50 – “Orfeu da Conceição” – Nova etapa na História do Teatro Brasileiro Fonte:. Instituto Antônio Carlos Jobim.46 Figura 51 – Vinícius de Moraes e Tom Jobim [década de 50] Fonte: Tolentino (2014). 46 Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, [26 set.1956]. 478 Iconografia musical na América Latina O violão, logo integrado pela bossa-nova, se torna o maior símbolo tanto de brasilidade como de intimidade, uma forma particular de falar para e com a alma brasileira. Provoca assim um movimento mais amplo ao incorporar outros Orfeus, agora baianos, como João Gilberto (Figura 52) e logo Dorival Caymmi, como também Baden Powell, João Bosco, e tantos outros que acabaram ressignificando a figura do trovador medieval, o Orfeu original da vihuela de Luis de Milán, atingindo ainda os ditos cantautores nos países hispânicos. Figura 52 – João GIlberto, entre Luiz Roberto e Quartera, de Os Cariocas, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, nos anos 1960, no Rio de Janeiro Fonte: Werneck (2012). Não será assim sem dado grau de contradictio in adiecto, – uma figura retórica de uma formulação contraditória, nessa narrativa construída por e sobre classes em extremos do espectro social. Mesmo assim, enquanto simboliza Orfeu, o violão será utilizado extensivamente, desconstruído, rearranjado, reinterpretado, como o símbolo da voz e poder de Orfeu (Figura 53). O violão em fontes iconográficas 479 Figura 53 – Fotografias de divulgação da produção de Orfeu em 1956 e em 2010 dirigido por Aderbal Freire-Filho, e apresentado em 3 capitais: Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília Fonte: Instituto Moreira Sallese ShowBras. O enraizamento dessa iconografia produzida desde o século XIX ainda perdura em várias reinterpretações, apropriações, montagens, desconstruções e reconstruções, como nas imagens irreverentes abaixo (Figuras 54, 55 e 56). Figura 54 –Chico Violeiro (s.d.), Maurício de Souza Fonte: Vírus da Arte & Cia.47 47 Disponível em: https://i2.wp.com/virusdaarte.net/wp-content/uploads/2015/05/chico-violeiro.jpg. 480 Iconografia musical na América Latina Figura 55 – Montagem sobre Almeida Junior (s.d.), Braz Junior Fonte: Haag (2009). Figura 56 – Amarildo. Ilustração para artigo sobre o Rio de Janeiro e Bossa Nova publicado no Jornal A Gazeta Fonte: Blog do Amarildo.48 48 Disponível em: https://amarildocharge.files.wordpress.com/2008/11/violao-rio-pao-de-acucar-mar.jpg. O violão em fontes iconográficas 481 9 Por último… Apesar da possibilidade de descoberta do outro em nós mesmos, podemos considerar níveis de proximidade e distanciamento deste outro, porque mesmo que o processo criativo seja explorado de forma similar, o observador – o “olhar” – nunca realiza processo idêntico, seja esse espacial ou temporal. Assim, a compreensão sobre o locus é relevante para uma análise que se pretenda crítica. Nesse sentido, as perspectivas inerentes ao artista em relação ao objeto retratado e como essas representações são utilizadas e se tornam significativas, exigem uma “compreensão da gramática profunda” das estruturas sociais brasileiras – como discutido na sociologia dual de Roberto DaMatta (1981, p. 23), na percepção da “dominância relativa de ideologias e idiomas através dos quais certas sociedades representam a si próprias”. Nesse sentido, nossa especificidade seria uma dualidade constitutiva que ora tratará o indivíduo, ora tratará a pessoa. no drama do ‘você sabe com quem está falando?’ somos punidos pela tentativa de fazer cumprir a lei ou pela nossa ideia de que vivemos num universo realmente igualitário. Pois a identidade que surge do conflito é que vai permitir hierarquizar. [...] A moral da história aqui é a seguinte: confie sempre em pessoas e em relações (como nos contos de fadas), nunca em regras gerais ou em leis universais. Sendo assim, tememos (e com justa razão) esbarrar a todo momento com o filho do rei, senão com o próprio rei. (DAMATTA, 1981, p. 167) Nesse contexto, a representação do violão acompanha o desenvolvimento de uma rede de significados e subjetivações entre este outro e nós, na qual o outro se torna nós, e nós nos tornamos o outro. Processo que se torna particularmente complexo em culturas colonizadas e logo descolonizadas, quando a desconstrução de tais processos demanda manutenção e ruptura de tradições. Por esse mesmo motivo, a construção de narrativas historiográficas demandará exercício fino na desconstrução desses significados. Como proposta para enquadramento de estudos futuros, citamos o processo de desmitificação, também utilizado na teoria ator-rede – Actor-Network Theory (ANT) –, e especialmente na ‘sociologia da tradução’, na qual se busca problematizar a fase inicial de um processo de tradução e a criação de uma rede. Para Michel Callon (1984), essa problematização envolve dois elementos: 482 Iconografia musical na América Latina 1. Interdefinição de atores na rede; 2. Definição do programa problema/tópico/ação, referido como um ponto de passagem obrigatório – Obligatory Passage Point (OPP). Um OPP pode ser entendido como o final estreito de um funil, forçando os atores a convergirem sobre um determinado tópico, propósito ou questão, se tornando um elemento necessário para a formação de uma rede e um programa de ação, ao mediar interações entre atores numa rede e definir o seu programa de ação. Pontos de passagem obrigatórios permitem redes locais a configurar espaços de negociação que os permitem um grau de autonomia da rede global de atores envolvidos. Nesse sentido, desde um ponto de vista crítico, à medida em que consideramos o impacto do discurso imagético, no que este retrata um dado espaço geográfico brasileiro, refletindo a sua ocupação demográfica e econômica, a identidade subjetiva decorrente dessa representação cria espaços onde estas subjetividades são negociadas com relativos graus de autonomia da rede global de significados possíveis. Assim, podemos estar fadados a nos tornarmos mestiços, mas não sem profundas características musicais brasileiras, imersa na nossa própria diversidade criativa interna, plasticidade e natureza adaptativa. Referências ALMEIDA Júnior - O Derrubador Brasileiro. In: WIKIMEDIA commons. [S. l.], 2008. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/ File:Almeida_J%C3%BAnior_-_O_Derrubador_ Brasileiro.jpg. Acesso em: 13 maio 2017. ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1942. ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago e Manifesto da poesia pau-brasil. Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. Revista de Antropofagia, São Paulo, ano 1, n. 1, p. 3-4, maio 1928. ANDRADE, Oswald de. Paul Fort príncipe. Jornal do Commercio, São Paulo, 9 jul. 1921. O violão em fontes iconográficas 483 AQUEL TROVAR. Guitarra medieval. [S. l.], [20--]. Disponível em: http://www. aqueltrovar.com/instrumentos/edad-media/guitarra-medieval. Acesso em: 13 maio 2017. BARRETO, José de Jesus Barreto. Gente da Bahia – Carybé. In: JEITO BAIANO. Salvador, 2009. Disponível em: https://jeitobaiano.wordpress.com/2009/05/19/ gente-da-bahia-%E2%80%93-carybe/. Acesso em: 13 maio 2017. BATISTA, Stephanie Dahn. O corpo falante: narrativas e inscrições num corpo imaginário na pintura acadêmica do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/ corpo_academia.htm. Acesso em: 13 maio 2017. BATOV, Alexander. The Vihuela and Guitar Crossroads: looking for evidence. 2017. Disponível em: http://www.vihuelademano.com/vgcrossroads.htm. Acesso em: 13 maio 2017. Acesso em: 13 maio 2017. BATOV, Alexander. The Royal College Dias - guitar or vihuela? 2006. Disponível em: http://www.vihuelademano.com/rcmdias.htm. BIBLIOTECA NACIONAL DE ESPAÑA. Disponível em: http://bdh-rd.bne.es/ viewer.vm?id=0000022795. Acesso em: 13 maio 2017. BOPP, Raul. Vida e morte da antropofagia. Rio de janeiro: J. Olympio, 2006. BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro. Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. BROOKS, Peter. Storied Bodies, or Nana at Last Unveiled. Critical Inquiry, Chicago, v. 16, n. 1, p. 1-32, Autumn 1989. BUDASZ, Rogério. The five-course guitar (viola) in Portugal and Brazil in the late seventeenth and early eighteenth centuries. 2001. Dissertation (PhD in Music History and Literature) – University of Southern California, Los Angeles, 2001. BUDASZ, Rogério. A música no tempo de Gregório de Mattos: música ibérica e afrobrasileira na Bahia dos séculos XVII e XVIII. Curitiba: DeArtes, 2004. CALLON, Michel. Elements of a sociology of translation: Domestication of the Scallops and the Fishermen of St Brieuc Bay. In: LAW, John (ed.). Power, Action and Belief: A New Sociology of Knowledge? London: Routledge, 1984. p. 196-233. CAMILO, Vagner. Jorge de Lima no contexto da poesia negra americana. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 77, p. 299-318, 2013. Disponível em: http://www. 484 Iconografia musical na América Latina scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142013000100021&lng=en &nrm=iso. Acesso em: 23 nov. 2019. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CESAIRE, Aimé. Discours sur le colonialisme. trans. Joan Pickham, trans. New York: Monthly Review Press, 2000. CHIADO, Antonio Ribeiro. Auto da Natural Invenção. Lisboa: Ferreira Editores, 1917. Disponível em: https://archive.org/details/autodanaturalinv00ribe/page/ n123. Acesso em: 13 maio 2017. COLLECTIONS of the Museu de Arte de São Paulo. In: WIKIMEDIA commons. [S. l.], 2018. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Collections_ of_the_Museu_de_Arte_de_ S%C3%A3o_Paulo_(May_2018)_11.jpg#filelinks. Acesso em: 13 maio 2017. DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. DEBRET, Jean-Baptiste. La diner / Les delassemens d´une aprés diner. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. 50,4 x 33,4 cm. Disponível em: http://www. brasilianaiconografica.art.br/obras/18735/la-diner-les-delassemens-dune-apresdiner. Acesso em: 13 maio 2017. DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil ou Séjour d’un artiste français au Brésil: depuis 1816 jusq’en 1831 inclusivement, époques de l’avènement et de l’abdication de S. M. D. Pedro 1er., fondateur de l’Empire brésilien. Tome deuxième. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. EDI CAVALCANTI. Serenata. Disponível em: http://www.dicavalcanti.com.br/ anos20/obras_20/serenata.htm. Acesso em: 13 maio 2017. FENSKE, Elfi Kürten. Mário de Andrade e a construção da cultura brasileira. Templo Cultural Delfos, [s. l.], jun. 2011. Disponível em: http://www.elfikurten.com. br/ 2011/06/mario-de-andrade.html. Acesso em: 13 maio 2017. FREITAS, Frederico de. O fado, canção da cidade de Lisboa; suas origens e evolução. In: COLÓQUIO sobre música popular portuguesa: comunicações e conclusões. [Lisboa]: Instituto Nacional para Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores, 1984. O violão em fontes iconográficas 485 FRYER, John. Rhythms of resistance: the African heritage in Brazil. London: Pluto Press, 2000. GALERÍA DE INSTRUMENTOS MEDIEVALES. Disponível em: https://cantigas. webcindario.com/imagenes/albuminstrumentos/indice.htm. Acesso em: 13 maio 2017. GREGÓRIO de Matos. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. [S. l.], [2017]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Greg%C3%B3rio_de_Matos. Acesso em: 13 maio 2017. GUIMARÃES, Ana. Histórias do boca do inferno. Portal MEC, Brasília, DF, 3 abr. 2008. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/ultimas-mnoticias/225-sistemas1375504326/10232-sp-1041408236. Acesso em: 13 maio 2017. HAAG, Carlos. Saudades do Jeca no século XXI. Revista Pesquisa FAPESP, São Paulo, ed. 164, out. 2009. Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp. br/2009/10/01/ saudades-do-jeca-no-seculo-xxi/. Acesso em: 13 maio 2017. INSTITUTO ANTÔNIO CARLOS JOBIM. Disponível em: http://www.jobim.org/ jobim/handle/2010/8982. Acesso em: 13 maio 2017. INSTITUTO MOREIRA SALLES. Rádio Batuta. Disponível em: http://radiobatuta. com.br/episodios/10-orfeu-sobe-ao-palco/. Acesso em: 13 maio 2017. KELLEY, Robin D. G. A poetics of anticolonialism. In: CESAIRE, Aimé. Discours sur le colonialisme. trans. Joan Pickham, p. 7-28. New York: Monthly Review Press, 2000. LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Tradução José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980. LOBATO. Monteiro. A Propósito da Exposição Malfatti. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 4, 20 dez. 1917. LUCIE-SMITH, Edward. Adam-the male figure in art. East Sussex: Weidenfeld & Nicolson, 1998. MAGALHÃES-CASTRO, Beatriz. Três séculos de iconografia da música no Brasil de Mercedes Reis Pequeno: Visualidade e construção de identidades na prática musical brasileira. In: SOTUYO BLANCO, Pablo (org.). Estudos Luso-Brasileiros em Iconografia Musical. Salvador: Edufba, 2015. p. 11-31. MARTINS, Paula Marinelli. Configuração de Monteiro Lobato na crítica à Anita Malfatti (1930). Revista Vernáculo, Curitiba, n. 36, p. 31-46, 2. sem. 2015. 486 Iconografia musical na América Latina Disponível em: https://revistas.ufpr.br/vernaculo/article/view/36507. Acesso em: 13 maio 2017. MELO, Francisco Manuel de. Carta de guia de casados. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1992. MIGLIACCIO, Luciano. Mostra do redescobrimento: arte do século XIX-19th-Century Art. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2000. MILÁN, Luis de. Libro de música de vihuela de mano intitulado el maestro. Valencia: Francisco Diaz Romano, 1536. MOÇAS com Violões. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2011. Disponível em: http://enciclopedia. itaucultural.org.br/obra4725/mocas-com-violoes. Acesso em: 13 maio 2017. NATIONAL GALLERY OF ART. Disponível em: https://www.nga.gov/collection/ art-object-page.10143.html. Acesso em: 13 maio 2017. PINTEREST. Disponível em: https://br.pinterest.com/ pin/125326802108289334/. Acesso em: 13 maio 2017. POULTON, Diana. S.v. “Vihuela”. In: SADIE, Stanley (ed.). The new grove dictionary of music and musicians. New York: MacMillan, 1980. PROJETO PORTINARI. Chorinho. Disponível em: http://www.portinari.org.br/#/ acervo/obra/3754/detalhes. Acesso em: 13 maio 2017. PROJETO PORTINARI. Baile na roça. Disponível em: http://www.portinari.org. br/#/acervo/obra/2305/detalhes. Acesso em: 13 maio 2017. REVISTA ACADÊMICA. Rio de Janeiro: [s. n.], ano 10, n. 64, jun. 1944. Número de homenagem a Lasar Segall. ROBERTS, John Storm. Black music of two worlds. London: Allen Lane, 1973. RUGENDAS, Johann Moritz. Malerische reise in brasilien. Paris: Engelmann & Cie., 1835. SÃO GONÇALO Padroeiro dos Violeiros. In: BLOG Fãs Programa Terra da Padroeira. [S. l.], 2011. Disponível em: http://fasterradapadroeira.blogspot. com/2011/12/sao-goncalo-padroeiro-dos-violeiros.html. Acesso em: 13 maio 2017. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. São Paulo: Cia das Letras, 1998. O violão em fontes iconográficas 487 (A) SEMANA de Arte Moderna. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: http:// enciclopedia.itaucultural.org.br/obra11223/a-semana-de-arte-moderna. Acesso em: 13 maio 2017. SHOWBRAS. Disponível em: http://www.showbras.com.br/orfeu/orfeu_ ABERTURA.html. Acesso em: 13 maio 2017. SLOANE, Hans. A voyage to the islands of Madeira, Barbados, Nieves, St. Christophers and Jamaica. Londres: B.M., 1707. 2 v. SOTUYO BLANCO, Pablo (org.). Estudos Luso-Brasileiros em Iconografia Musical. Salvador: Edufba, 2015. SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Atlas zur Reise in Brasilien von Dr. v. Spix und Dr. v. Martius. [München: Verf., ca. 1830]. SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Reise in Brasilien auf Befehl Sr. Majestät Maximilian Joseph I. König von Baiern in den Jahren 1817-1820 gemacht und beschrieben. München: M. Lindauer, 1823. v. 1. SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Reise in Brasilien auf Befehl Sr. Majestät Maximilian Joseph I. König von Baiern in den Jahren 1817-1820 gemacht und beschrieben. München: Lentner, 1828. v. 2. SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Reise in Brasilien auf Befehl Sr. Majestät Maximilian Joseph I. König von Baiern in den Jahren 1817-1820 gemacht und beschrieben. München: Fleischer, 1831. v. 3. TABORDA, Márcia. Violão e identidade nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. TOLENTINO, Eustáquio. 945 - Essas duplas fantásticas. Eustáquio Tolentino Espinosa. In: TOLENTINO, Eustáquio. Blog Eustáquio Tolentino Espinosa. Montes Claros, MG, 5 abr. 2014. Disponível em: https://eustaquiotolentinoespinosa.blogspot. com/2014_04_05_archive.html. Acesso em: 13 maio 2017. TREANOR, Brian. Aspects of alterity: Levinas, Marcel, and the contemporary debate. Fordham University Press Series Issue 54 of Fordham perspectives in continental philosophy. New York: Fordham University Press, 2006. TREITLER, Leo. History and Music. New Literary History, Baltimore, v. 21, n. 2, p. 299-319, Winter 1990. 488 Iconografia musical na América Latina VIHUELA-basso JuanDeJuanes. In: Wikimedia Commons. [S. l.], [2008]. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vihuela-basso_ JuanDeJuanes.jpg. Acesso em: 13 maio 2017. VÍRUS DA ARTE & CIA. Disponível em: https://i2.wp.com/virusdaarte.net/ wp-content/uploads/2015/05/chico-violeiro.jpg. Acesso em: 13 maio 2017. VM CULTURA. Orfeu no teatro. Rio de Janeiro, [200-] Disponível em: http://www. viniciusdemoraes.com.br/pt-br/teatro/orfeu-da-conceicao. Acesso em: 13 maio 2017. WERNECK, Paulo. Livro busca decifrar enigma João Gilberto. Folha Ilustrada, São Paulo, 6 jun. 2012. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ ilustrada/2012 /06/1100915-livro-busca-decifrar-enigma-joao-gilberto.shtml. Acesso em: 13 maio 2017. WIKIMEDIA.ORG. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/7/75/Vihuela-angel-G_Iberia_16th.jpg. Acesso em: 13 maio 2017. O violão em fontes iconográficas 489 Sobre os autores / Sobre los autores Egberto Bermúdez Cujar Egberto Bermúdez realizó estudios de musicología e interpretación de música antigua en el Guildhall School of Music y el King’s College de la Universidad de Londres. Actualmente es Profesor titular de la Universidad Nacional de Colombia, docente del Instituto de Investigaciones Estéticas de dicha universidad, del cual fue director durante el período 2009-2014. Ha publicado numerosos libros y artículos sobre temas musicales como: “Los Instrumentos musicales de Colombia (1985), Música Religiosa: Siglos XVI y XVII (1988). Fue el director musical de la colección discográfica titulada: “Música Tradicional y Popular Colombiana”, elaborada por Procultura en 1987, y de la colección de casetes sobre compositores colombianos y latinoamericanos publicada por el Banco de la República en 1989. Ha mantenido una intensa labor como formador y director de jóvenes músicos con los que ha participado en festivales de música como el de Zipacón. Fundó y dirigió el grupo CANTO, especializado en repertorio español y latinoamericano del periodo colonial. En 1992, junto a Juan Luís Restrepo, estableció la Sobre os autores / Sobre los autores 491 Fundación de Música, entidad cuyo objetivo es dar a conocer a todos los públicos los resultados de la investigación sobre el pasado musical colombiano. Fue presidente de la Historical Harp Society desde 1998 hasta el 2001. Desde 2017 es vicepresidente de la Sociedad Internacional de Musicologia – International Musicological Society (IMS). 492 Iconografia musical na América Latina Juan Pablo Gonzalez Director del Instituto de Música de la Universidad Alberto Hurtado SJ de Santiago y Profesor Titular del Instituto de Historia de la Pontificia Universidad Católica de Chile. Obtuvo su Doctorado en Musicología por la Universidad de California, Los Ángeles en 1991. Ha sido pionero en el estudio musicológico de la música popular del siglo XX en Chile y sus esferas de influencia, realizando contribuciones en los ámbitos histórico-social, socio-estético y analítico. También realiza estudios de música de arte del siglo XX considerando la relación entre vanguardias internacionales y lenguajes locales en Chile. Dirige la Compañía Del Salón al Cabaret, con la que realiza conciertos teatrales como parte y resultado de su labor de investigación. Ha contribuido a la formación musicológica en la región creando programas de pregrado y posgrado en distintas universidades chilenas e impartiendo regularmente seminarios de posgrado en Argentina, Colombia, Brasil y México. Junto a sus abundantes monografías publicadas en revistas científicas internacionales es coautor de En busca de la música chilena (Santiago, 2005); de dos volúmenes de Historia social de la música popular en Chile (La Habana 2005, Santiago, 2009) y de Cantus firmus: mito y narrativa de la música chilena de arte del siglo XX (Santiago 2011), y autor de Pensar la música desde América Latina. Problemas e interrogantes (Santiago y Buenos Aires, 2013). Sobre os autores / Sobre los autores 493 Juliana Guerrero Doctora en Historia y Teoría de las Artes, por la Universidad de Buenos Aires. Actualmente se desempeña como Investigadora asistente en el CONICET y es docente en la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Es editora asociada de la revista El oído pensante. Participa en los proyectos de investigación “El análisis estilístico en el rock, el folclore y el tango en la Argentina. Aportes para la historia y la enseñanza terciaria/universitaria de la música popular en el país” (UNLP) y “El saber del archivo. Los documentos referidos a las actividades musicales de la Colección Digital Biblioteca Criolla (Instituto Ibero-Americano de Berlín)” (CONICET). 494 Iconografia musical na América Latina Alfredo Nieves Molina Etnomusicólogo de la Facultad de Música de la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Actualmente dirige el departamento de Comunicación Social y la Educación Continua del Instituto de Investigaciones Antropológicas, UNAM. Ha colaborado como investigador en el proyecto Ritual Sonoro Catedralicio, por parte del CIESAS, Unidad Pacífico, y publicado artículos para el INAH y CIESAS. Participó como organizador del Primer Congreso de Etnomusicología de la UNAM. Fue Jefe del Departamento de Educación Continua de la Facultad de Música, UNAM, responsable del diseño y planeación de cursos, talleres, diplomados y festivales en colaboración con facultades y universidades de México y Brasil. Ha realizado investigación en los centros penitenciarios de la Ciudad de México sobre las prácticas musicales de los internos, música catedralicia novohispana del Siglo XVI, mujeres al piano en el siglo XIX en México y la cultura del rock y heavy metal. Actualmente cursa la maestría en Musicología la Facultad de Música y es miembro investigador del Laboratorio de Iconografía Musical de la Facultad de Música, UNAM. Es uno de los coordinadores del Seminario Permanente de Estudios sobre Heavy Metal por el Instituto de Investigaciones Antropológicas de la UNAM y colaborador del Rock & Metal Encounter de la Universidad de Jaén en su edición 2018. Sobre os autores / Sobre los autores 495 Erika Salas Cassy Erika Salas Cassy nació en la Ciudad de México. Es Licenciada en Etnomusicología, obtuvo la medalla Gabino Barreda al mérito universitario conferida por la UNAM. Realizó el curso de Musicología “Protección y difusión del patrimonio artístico Iberoamericano” Cátedra Robert Stevenson en la Real Academia de Bellas Artes de San Fernando en Madrid. Fue miembro del proyecto de investigación Musicat del Seminario Nacional de Música en la Nueva España y el México Independiente del Instituto de Investigaciones Estéticas, UNAM. Colaboró con el Center of Italian Opera Studies de la University of Chicago en la investigación para el volumen Gioachino Rossini Music for Band. Trabajó para el Apoyo al Desarrollo de Archivos y Bibliotecas de México (ADABI) en el catálogo del Archivo Musical de la Catedral de México. Participó en el proyecto de investigación de Iconografía Musocal Novohispana auspiciado por la UNAM (2011-2014). Realizó sus estudios de maestría en Etnomusicología en el Programa de Maestría y Doctorado en Música de la UNAM, donde actualmente estudia el doctorado en esa misma área. Ha presentado trabajos en congresos nacionales e internacionales y cuenta con diversos artículos publicados. 496 Iconografia musical na América Latina Marcelo Nogueira de Siqueira Bacharel em Arquivologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), especialista em História do Brasil Pós-1930 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em História Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), doutorando em Ciência da Informação pela Universidade de Coimbra, Portugal. Arquivista do Arquivo Nacional do Brasil, membro da Câmara Técnica de documentos audiovisuais, iconográficos, sonoros e musicais do Conselho Nacional de Arquivos (Brasil) e professor assistente do Departamento de Arquivologia da UNIRIO. Atualmente, é investigador do Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, Portugal. Possui diversas publicações nas áreas de arquivologia e história. Participa do grupo de trabalho do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil), no Rio de Janeiro. Sobre os autores / Sobre los autores 497 Thais Fernanda Vicente Rabelo Maciel Professora adjunta na Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Colégio de Aplicação da UFS (CODAP) e doutoranda em Música (Área de concentração: música e cultura) pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob orientação da Prof.ª Dr.ª Edite Rocha. Vem desenvolvendo pesquisas em torno da história da música de Sergipe. É Licenciada em Música pela UFS e possui mestrado em Musicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi vencedora do Prêmio Música nas Nuvens – Comunicação (2017) e do Prêmio do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil), em 2015. Atualmente, também desenvolve atividade de harpista na Orquestra Sinfônica de Sergipe. 498 Iconografia musical na América Latina Belinda Maria de Almeida Neves Artista visual, pesquisadora e arte-educadora. Desde 2012, se dedica ao estudo da Companhia de Jesus nos aspectos históricos, iconográficos e artísticos, com especial dedicação à antiga Igreja do Colégio da Bahia – Catedral Basílica de São Salvador. É doutoranda em Artes Visuais – Linha de História e Teoria da arte – pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sob orientação do Prof. Dr. Luiz Alberto Ribeiro Freire. É mestre em Artes Visuais pela mesma instituição, também sob orientação do Prof. Dr. Luiz Alberto Ribeiro Freire. É especialista em Arteterapia Junguiana pelo Instituto Junguiano da Bahia; especialista em Arte-Educação – Cultura brasileira e linguagens artísticas contemporâneas pela Escola de Belas Artes da UFBA; especialista em Treinamento e Desenvolvimento pela Fundação Universidade Federal do Paraná (FUNPAR) do Instituto de Estudos em Gestão Empresarial (IEGE), em Curitiba (1989); graduação em Comunicação Social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) – São Paulo (1987). A sua produção sobre iconografia musical foi merecedora do 1º lugar no Prêmio do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIMBrasil) 2017 e de Menção Honrosa no Prêmio RIdIM-Brasil 2015. Sobre os autores / Sobre los autores 499 Luciane Viana Barros Páscoa Possui graduação em Artes Plásticas e em Música pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutorado em História Cultural pela Universidade do Porto. Atualmente, é professora adjunta da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), lotada no curso de Música e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes (PPGLA). Ainda nessa instituição, realiza atividade de pesquisa no Laboratório de Musicologia e História Cultural, e lidera o do grupo de pesquisa Investigações sobre memória cultural em artes e literatura (MemoCult), do PPGLA da UEA. É autora do livro Artes Plásticas no Amazonas: o Clube da Madrugada, publicado pela Editora Valer em 2011, e do livro Álvaro Páscoa: o golpe fundo, publicado pela Edua em 2012. Desde 2013, coordena o grupo de trabalho do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil) no Amazonas, junto com Máscio Páscoa, seu marido. 500 Iconografia musical na América Latina Márcio Páscoa Doutor em Ciências Musicais Históricas pela Universidade de Coimbra, fez mestrado em Musicologia no Instituto de Artes da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), mesmo lugar onde se graduou em Instrumentos Antigos. Atualmente, é professor do Curso de Música da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), onde coordena o Laboratório de Musicologia e História Cultural. Dirige a Orquestra Barroca do Amazonas. Autor de diversos livros dos quais se destacam a série Ópera em Manaus e Ópera em Belém. Desde 2013, coordena o grupo de trabalho do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil) no Amazonas, junto com Luciane Páscoa, sua esposa. Sobre os autores / Sobre los autores 501 Isabel Nogueira Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Musicóloga, pianista e cantora, professora do Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora e orientadora do Programa de Pós-Graduação do mestrado e doutorado em Memória Social e Patrimônio Cultural do Instituto de Ciências Humanos (ICH) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Graduada em Piano pela UFPel e doutora em Musicologia pela Universidade Autônoma de Madri, Espanha. Coordena o grupo de pesquisa em Musicologia e Performance da UFRGS e participa do grupo de pesquisa em Práticas Interpretativas da UFRGS e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Membro do grupo de pesquisa em Estudos de Gênero da Sociedade da Sociedad de Etnomusicología (Sibe) e da Transcultural Music Review (TRANS). Membro do Grupo de Estudos em Música e Mídia (Musimid). Tem experiência e publicações na área de música, com ênfase em musicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: iconografia musical; música e gênero; musicologia e performance; música popular; acervos musicais; memória e patrimônio musical do Rio Grande do Sul. Participa do grupo de trabalho do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil), no Rio Grande do Sul. 502 Iconografia musical na América Latina Mary Angela Biason Graduada em Composição e Regência na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), continuou seus estudos de Musicologia em Portugal, é mestre em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Tem-se especializado na organização de acervos de documentos musicais, desenvolvendo trabalhos no Museu da Inconfidência, em Minas Gerais, no Museu Carlos Gomes, em Campinas, como também a catalogação e divulgação do repertório produzido no Brasil nos períodos colonial e imperial, além do repertório tradicional das bandas de música do município de Ouro Preto através de festivais que coordena. Entre os vários trabalhos realizados, destacam-se as publicações de catálogos temáticos e de obras transcritas vocacionadas para o repertório brasileiro dos séculos XVIII e XIX e curadoria de exposições. Além da Musicologia, estudou Museologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e restauração de papéis no Istituto per l’Arte ed il Restauro “Palazzo Spinelli”, em Florença como bolsista da Rotary Foundation. É membro da Câmara Técnica de Paleografia e Diplomática (CTPADI) e da Câmara Técnica de Documentos Audiovisuais, Iconográficos, Sonoros e Musicais (CTDAISM), ambas do do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq). Participa nos grupos de trabalho do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil), em Minas Gerais e em São Paulo. Sobre os autores / Sobre los autores 503 Diósnio Machado Neto Diósnio Machado Neto é professor livre-docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP) e professor do programa de Pós-Graduação em Musicologia da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. É membro do Italian and Ibero American Relationships Study Group (RIIA), sediado no Istituto per lo studio della musica latinoamericana durante il periodo coloniale (IMLA), em Veneza; do Study Group da International Musicological Society (IMS) Early Music in the New Word; e do Núcleo Caravelas do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (Cesem) da Universidade Nova de Lisboa. Recebeu menção honrosa no Prêmio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) em 2009 pela tese Administrando a festa: Música e iluminismo no Brasil colonial. É fundador da Associação Regional para América Latina e Caribe (ARLAC) da IMS e da Associação Brasileira de Musicologia (ABMUS). Coordena o Laboratório de Musicologia (LAMUS). Participa ativamente no Grupo de Trabalho do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil) em São Paulo. 504 Iconografia musical na América Latina Pedro Ivo Araújo Doutor em Música, área de concentração Musicologia, pelo Programa de Pós-Graduação em Música (PPGMUS) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é licenciado em Música pela mesma universidade e bacharel em Sistemas de Informação pelo Centro Universitário Estácio da Bahia (Estácio FIB). Tem experiência em Artes, com ênfase em música, atuando principalmente nos seguintes temas: Musicologia, Arquivologia e Documentação musical, Iconografia Musical e Tecnologias de Informação e Comunicação. Professor de Música e coordenador no Colégio Oficina, também é colaborador do Acervo de Documentação Histórica Musical (AdoHM) da UFBA, participa ativamente do Núcleo de Estudos Musicológicos (NEMUS) da UFBA e dos projetos do Repertório Internacional de Fontes Musicais no Brasil (RISM-Brasil) e do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil), sendo membro da Comissão Mista Estadual do RIdIM-Brasil, na Bahia. Sobre os autores / Sobre los autores 505 Beatriz Magalhães-Castro Primeiro prêmio do Conservatoire National Supérieur de Musique de Paris frequentando ainda as Classes de História da Música e Análise naquele conservatório; mestrado em Música pela Master of Musical Arts (MMA) – The Juilliard School of Music e doutorado em Música pela Doctor of Musical Arts (DMA) – The Juilliard School of Music. Realizou estudos de pós-doutoramento em Musicologia na Universidade Nova de Lisboa como pesquisadora-bolsista da Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal. Prêmios semelhantes foram concedidos pela Bibliothèque Nationale de France – Départament de Musique (Programme Profession Culture, 2007), Fundación Carolina-CSIC-Instituición Milà y Fontanals de Barcelona. Atualmente, conclui monografia resultante da pesquisa como recipiente do Prêmio Bolsa de Pesquisa do Ministério da Cultura / Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, edição 2009-2010, focado sobre a Coleção Teresa Christina Maria e a prática da música instrumental durante os I e II Reinados. É coordenadora do Comitê do Répertoire International de Littérature Musicale (RILM), no Brasil e membro do Comitê do Répertoire International des Sources Musicales (RISM) no Brasil, e presidente da Seção brasileira da Associação Internacional de Bibliotecas de Música, Arquivos e Centros de Documentação Musical (IAML/AIBM), a qual fundou e coordenou desde 2009 até a sua formalização em 2014 – aprovação na Assembleia Geral da IAML, Antuérpia, 2014. Como professora associada III da Universidade de 506 Iconografia musical na América Latina Brasília (UnB), é editora-chefe da revista Música em Contexto e coordenadora do Programa de Pós-Graduação Música em Contexto da UnB, o qual fundou e atuou como primeira coordenadora. Membro da Sociedade Internacional de Musicologia (IMS) e do Comitê Gestor para a constituição da Associação Brasileira de Musicologia (ABMUS). Coordena ações de organização e preservação da obra de Claudio Santoro do Laboratório de Musicologia da UnB. Coordena o grupo de trabalho do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil), no Distrito Federal. Sobre os autores / Sobre los autores 507 Pablo Sotuyo Blanco Docente e pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA) onde também obteve seu doutorado em 2003, é um dos iniciadores de diversos projetos nacionais relacionados à documentação relativa à música, incluindo o estabelecimento do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIMBrasil) do qual é atualmente o presidente do capítulo nordestino do Repertório Internacional de Fontes Musicais no Brasil (RISM-Brasil). Coordena o Acervo de Documentação Histórica Musical (ADoHM) da UFBA e preside a Câmara Técnica de Documentos Audiovisuais, Iconográficos, Sonoros e Musicais (CTDAISM) do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) em representação da UFBA. Ativo compositor e musicólogo, tem publicado amplamente a sua produção científica sobre música e iconografia musical no Brasil e no exterior. Atua na área de música com ênfase em musicologia histórica, teoria e análise musical, e ciência da informação aplicada em documentação musical. 508 Iconografia musical na América Latina