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Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não
mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá
enfim evoluir a um novo nível.
COLEÇÃO HISTÓRIA AGORA
Volume 1
A USINA DA INJUSTIÇA
RICARDO TIEZZI
Volume 2
O DINHEIRO SUJO DA CORRUPÇÃO
RUI MARTINS
Volume 3
CPI DA PIRATARIA
LUIZ ANTONIO DE MEDEIROS
Volume 4
MEMORIAL DO ESCÂNDALO
GERSON CAMAROTTI E BERNARDO DE LA PEÑA
Volume 5
A PRIVATARIA TUCANA
AMAURY RIBEIRO JR.
Volume 6
SANGUESSUGAS DO BRASIL
LÚCIO VAZ
Volume 7
A OUTRA HISTÓRIA DO MENSALÃO
PAULO MOREIRA LEITE
Volume 8
SEGREDOS DO CONCLAVE
GERSON CAMAROTTI
Volume 9
O PRÍNCIPE DA PRIVATARIA
PALMÉRIO DÓRIA
Copyright © 2013 by Rubens Valente
1ª Edição – Janeiro de 2014
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009
Editor e Publisher
Luiz Fernando Emediato
Diretora Editorial
Fernanda Emediato
Produtora Editorial e Gráfica
Priscila Hernandez
Assistente Editorial
Carla Anaya Del Matto
Capa, Projeto Gráfico e Diagramação
Alan Maia
Preparação
Sandra Martha Dolinsky
Revisão
Rinaldo Milesi Taissa
Taissa Antonoff Andrade
Josias A. Andrade
Vinicius Tomazinho
Conversão para epub
Obliq Press
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
(CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Valente, Rubens
Operação banqueiro : as provas secretas do caso Satiagraha. -São Paulo : Geração Editorial, 2013.
ISBN 978-85-8130-209-6
1. Abuso de poder - Brasil 2. Brasil - Política e governo 3.
Corrupção na política - Brasil 4. Reportagens investigativas
I. Título. II. Série.
13-12022
CDD: 070.449320981
Índices para catálogo sistemático
1. Reportagens políticas : Corrupção no governo :
Brasil : Jornalismo 070.449320981
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Sumário
INTRODUÇÃO
UM ASSUNTO DE 500 MIL DÓLARES
O JOGO E O JOGADOR
A BATIDA DO MARTELO
NEBULOSAS CONSPIRAÇÕES
AS SOMBRAS SE MOVEM
O INIMIGO DO SEU INIMIGO
O VOO DO MACUCO
TÓQUIO E CHACAL
O PROCESSO ITALIANO
A CAIXINHA VERMELHA
TIGRES DE PAPEL
CAÇADA AO JAPU
O DILEMA DO JUIZ
AS CONVERSAÇÕES
“PERGUNTARAM QUEM ERA O RÉU”
A VIROSE
UM CASO EXCEPCIONAL
O GOLEIRO DIANTE DO PÊNALTI
AS AMEAÇAS DO GRANDE CREDOR
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
ÍNDICE ONOMÁSTICO
Introdução
Poucas vezes a expressão “sacudir o país” descreveu tão bem a
realidade. De janeiro de 2003 a 8 de julho de 2008, a Polícia Federal
desencadeou 571 operações contra organizações criminosas que atuavam
nos mais diversos setores da vida nacional. Foi como destampar um
caldeirão. Ministros, juízes, senadores, deputados, governadores,
prefeitos, vereadores foram devassados, expostos e denunciados. A
Polícia Federal obteve uma inédita importância política, a ponto de influir
em eleições e derrubar altos funcionários do Executivo federal.
Demorou a ocorrer. Após a Constituição de 1988, que fortaleceu os
poderes do Ministério Público, foram necessários uns quinze anos para
que os primeiros sinais efetivos de mudança chegassem à PF, o que já diz
muito sobre essa corporação, cujo diretor é nomeado livremente pelo
chefe do Executivo e pode escolher também livremente os
superintendentes de cada estado.
A modernização veio principalmente com a injeção de recursos
públicos — não com uma reforma legal (o inquérito policial, por exemplo,
permanece como um dos procedimentos mais anacrônicos do sistema
judicial brasileiro).
Em quatro anos, os gastos da PF saltaram de R$ 2 bilhões para R$
3,53 bilhões. O quadro de servidores cresceu mais de 33%, e o número
de delegados dobrou. O salário de agentes e delegados mais que dobrou,
tornando as carreiras na PF das mais atrativas do serviço público. Um
delegado de classe especial, que recebia R$ 9.281,73 mensais em
dezembro de 2002, passou a receber R$ 19.699,00 em dezembro de
2009.
Atraídas pelo salário, pela carreira, pela glória pública ou
simplesmente pelo idealismo nascido da repulsa ao crime e à corrupção,
levas de jovens se candidataram a um cargo na PF.
Muitos delegados formados no caldo da cultura da ditadura militar,
quando a PF exerceu um papel vergonhoso de fiscal da criação artística,
foram colocados de lado, rapidamente sobrepujados pela nova geração
que se gabava de ser mais profissional e mais honesta.
A polícia ampliou radicalmente o foco de atuação. Deixou de ficar
restrita ao eterno “enxugar o gelo” do combate ao narcotráfico para
passar à linha de frente do combate ao crime do colarinho-branco e às
tramoias nos três poderes.
O governo não pôde reclamar dos investimentos. Quando o escândalo
do mensalão estourou, em junho de 2005, foram as operações da PF que
permitiram ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT seguir falando
que seu governo combatia a corrupção.
O esforço da PF encontrou uma Justiça Federal também em
transformação. No início dos anos 2000, ela adotou uma nova abordagem
sobre os crimes de lavagem de dinheiro e contra o sistema financeiro
nacional, com a criação de varas especializadas nesses temas. Os postos
estratégicos passaram a ser ocupados por juízes que, num movimento
silencioso, estudaram e se atualizaram sobre os intrincados crimes
financeiros. A primeira vara especializada surgiu no Brasil em 2003. Seis
anos depois, vinte e quatro já estavam em atividade.
O resultado, na prática, foi o surgimento de pequenas “células” de
combate ao crime, nas quais delegados, procuradores e juízes podiam
definir mais rapidamente e com maior conhecimento técnico que medidas
precisavam tomar em relação a determinado grupo criminoso.
No andamento de uma investigação, a polícia precisa prestar contas
de suas atividades ao juiz e ao procurador, por meio de relatórios
parciais. Com base neles é que o procurador pede ou não, e o juiz decide
se deve ou não, por exemplo, estender determinadas ações sobre um
investigado. Essa afinidade entre os principais responsáveis pelo caso deu
velocidade aos processos, garantia de melhores provas e rápido
cumprimento das ordens judiciais.
O novo cenário alarmou os críticos da polícia e das varas
especializadas. Falaram em “espetacularização” e em sentimento
justiceiro. Advogados exploraram todos os erros das operações da PF,
numa área em que uma pequena falha é sempre uma grande falha. Estar
preso, ainda que por poucas horas, é uma condição arrasadora, que pode
marcar uma pessoa para sempre.
A controversa estratégia de desencadear prisões em massa ainda na
fase da investigação — a Operação Esporão, por exemplo, prendeu 126
pessoas num único dia, em novembro de 2006, e a Grande Lagos, 106
indivíduos em outubro do mesmo ano —, apenas para que a polícia possa
arrecadar uma possível evidência ou colher um depoimento, dificilmente
deixa de representar uma violência indelével contra um personagem
lateral no caso ou mesmo absolutamente inocente. E ao querer prender
todo mundo, a polícia corre o risco de acabar não prendendo ninguém no
final do processo.
Por cinco anos, contudo, o discurso antipolícia ficou restrito a grupos
de advogados e setores do Judiciário e da imprensa. A PF, o Ministério
Público Federal e o Judiciário seguiram em frente com golpes ao crime
organizado em vários estados.
Até que uma pessoa foi presa, em 8 de julho de 2008.
De todas as pessoas investigadas nas operações da PF até aquela
data, nenhuma se provou tão habilidosa no Judiciário e em páginas de
jornais e revistas, procurando tachar processos judiciais de “privatização
da polícia”, reportagens fundamentadas de “mentiras de desafetos” e uma
acusação verificável de corrupção de “armação da TV Globo”. E
transformando os investigadores em investigados e o juiz, em suspeito”.
Este livro é sobre a Operação Satiagraha e as investigações que
tocaram nos negócios do grupo Opportunity, sediado no Rio de Janeiro.
Narra a trajetória do banco e dos homens e mulheres que o investigaram.
A meu ver, é uma história exemplar de crime e impunidade.
Com históricas ligações com políticos e altos membros do Executivos
e apoiado por um vasto grupo de advogados que estão entre os mais bem
pagos e competentes do país, o banqueiro Daniel Dantas conseguiu o que
parecia impossível. Aproveitou-se de excessos e equívocos do primeiro
comando da Operação Satiagraha e de uma violenta briga interna na PF,
tudo devidamente amplificado e distorcido na imprensa, para obter
estrondosas vitórias no STF (Supremo Tribunal Federal) e no STJ
(Superior Tribunal de Justiça).
Dantas conseguiu no STF dois habeas corpus sucessivos num intervalo de poucos dias, a queda estrepitosa do delegado do caso, a
exoneração do chefe do serviço secreto do Palácio do Planalto, o bloqueio
de toda a investigação, em decisão do STJ — depois conseguiu a revisão e
a paralisia temporária, por longos catorze meses, do processo principal e
de três inquéritos derivados. Por fim, como num passe de mágica obteve
a anulação de todo o caso, novamente pelo STJ — cuja decisão final ainda
cabe ao STF e não foi tomada até a conclusão deste livro
As operações jurídicas de Dantas conseguiram a proeza de redefinir
leis e regras. A cena de Dantas algemado tornou-se o símbolo de um
suposto “Estado policial”. O rol de novidades jurídicas, todas elas
engendradas para tolher e burocratizar as investigações, logo ganhou o
apelido de “Legislação Satiagraha”. Essa potente reação de parte da
imprensa e da cúpula do Judiciário teve o efeito de dividir as operações
da Polícia Federal entre antes e depois da Satiagraha.
Desde 2001, acompanhei quatro grandes investigações que trataram
de negócios de Daniel Valente (nenhum parentesco com o autor) Dantas:
o caso Banestado, a Operação Chacal, a CPI dos Correios e a Operação
Satiagraha. Recolhi, ao longo dos anos, os registros de remessas de
dinheiro localizados no caso Banestado, os relatórios, os grampos
telefônicos e os e-mails interceptados pela Chacal, os arquivos do
mensalão (escândalo que cobri como repórter em Brasília de 2005 a
2006, além de boa parte do julgamento, em 2012), grande parte das
evidências coletadas pela Satiagraha, incluindo o áudio de cerca de 8 mil
ligações telefônicas, e as cópias de diversos processos judiciais e
administrativos.
Construí um acervo com cerca de 62 mil arquivos virtuais,
armazenados em 1.114 pastas, num total superior a trinta gigabytes.
Consultei processos em papel e copiei mais de 3.500 páginas, que
encheram sete caixas de tamanho médio. Também entrevistei cerca de
quarenta pessoas, por telefone, e-mail ou pessoalmente, incluindo várias
fontes que continuarão sob o anonimato. Elas possibilitaram acesso a
documentos que, de outra forma, eu não teria sido capaz de obter. São
quase todos servidores públicos que, corajosamente se arriscaram e
arriscam suas carreiras para proporcionar aos leitores, por meio dos
jornalistas, acesso a informações de interesse público.
Quase tudo de mais relevante que eu pude verificar nessa massa de
documentos é considerado sigiloso. A cultura do segredo invadiu os
processos judiciais no Brasil. Casos de alto interesse público, como
companhias telefônicas sob concessão pública, são hoje escondidos do
contribuinte por um carimbo da burocracia. Um motivo que me levou a
escrever este livro foi justamente levar o conteúdo desses papéis aos
olhos do leitor.
Também pretendi, com o livro, tornar mais didático este assunto, que
é, de longe, o mais intrincado da crônica policial brasileira
contemporânea, com vários personagens em episódios registrados ao
longo de mais de uma década nas áreas jurídica, comercial, policial e
política em pelo menos quatro países (Brasil, Itália, Estados Unidos e
ilhas Cayman).
O caso se mostra tão complexo, que alguns protagonistas dessa
trama se aproveitaram da desinformação dos jornalistas, com notáveis
exceções, para reforçar suas posições e mistificar as acusações que
contra eles apareceram. Devo salientar que tiveram sucesso em várias
ocasiões. O volume de informações incorretas, incompletas ou
deliberadamente mentirosas publicado desde 2008 em diversos meios
sobre o assunto parece evidenciar a estratégia de criação de um estado
de confusão permanente que passa pela imprensa e pelo Congresso e
chega ao Judiciário, sufocando fatos e distorcendo evidências. O autor se
sentirá satisfeito se, com a obra, conseguir lançar alguma luz sobre
determinados eventos.
O livro, escrito ao longo de dois anos e meio no apartamento em que
eu morava em São Paulo e no que passei a viver em Brasília a partir de
maio de 2010, é fruto da apuração que começou no segundo semestre de
2008. Alguns dos personagens eu conheço há mais de uma década. Os
processos e investigações aqui tratados eu pude acompanhar como
repórter da Folha em São Paulo e Brasília e de O Globo em São Paulo,
desde 1999. Em Brasília, acompanhei por nove meses a CPI dos Correios
entre 2005 e 2006, quando pude presenciar o longo depoimento prestado
por Daniel Dantas. Morava e trabalhava em São Paulo quando a PF
deflagrou a Satiagraha, e sobre ela exerci cobertura jornalística diária, ao
longo de semanas.
Procurei, no texto, reduzir ao máximo o recurso do off. Quase todas
as gravações telefônicas e ambientais feitas pela PF e aqui citadas eu
mesmo as ouvi, o que demandou muitas horas de trabalho e atenção.
Quando não foi possível obter os áudios, recorri às transcrições oficiais.
Para facilitar a compreensão dos e-mails, corrigi erros de digitação, de
pontuação e de português e recuperei a grafia de algumas palavras que
foram digitadas erroneamente, como é comum em diálogos virtuais, mas
jamais, obviamente, alterei palavra que mudasse o sentido do que foi
escrito nos e-mails.
A narrativa a seguir não é, nem poderia ser, o registro absoluto dos
fatos. Ela é apenas o resultado do que pude compreender com base na
análise dos documentos oficiais, provas e testemunhos, e o mais perto
que cheguei do que entendo ter ocorrido. Até onde me foi possível saber,
foi assim que as coisas se passaram.
Um assunto de 500 mil dólares
No início de junho de 2008, o delegado da Polícia Federal Marcos Lino
Ribeiro, lotado no aeroporto internacional de Guarulhos, na Grande São
Paulo, recebeu um estranho telefonema. O professor universitário Hugo
Sérgio Chicaroni queria o número do celular do delegado federal
Protógenes Pinheiro de Queiroz. Precisava muito falar com ele. Ribeiro
havia conhecido Chicaroni por volta de 2003, quando trataram da ideia
de um curso sobre finanças que a Universidade de São Paulo poderia
oferecer a policiais. Desde então, eles se falaram apenas ocasionalmente
de modo que o delegado desconfiou da chamada. Ele mentiu, disse que
não tinha o número. Após desligar, imediatamente alertou o colega.
“Liguei para o Protógenes e falei: ‘Tem essa pessoa e está lhe
procurando’.”1
Protógenes e Chicaroni haviam se conhecido dez anos antes, nos
corredores da PF em São Paulo. O professor dizia ser membro da
“inteligência do GSI”, o Gabinete de Segurança Institucional da
Presidência da República. Ele chegou a levar Protógenes para uma
palestra sobre crimes financeiros. Disse ainda que trabalhava numa
empresa de consultoria de “assuntos estratégicos” denominada Sagres.
Mas, quando Protógenes recebeu os primeiros contatos de Chicaroni
em 2008, reuniu sua equipe de confiança na PF para dizer que iria
receber “alguma proposta indecente”.
No dia 10 de junho, Protógenes e Chicaroni começaram as conversas,
primeiro ao telefone e depois numa pizzaria em Brasília. Chicaroni
indagou se o delegado tinha informações sobre uma operação da PF e do
Ministério Público Federal em andamento, noticiada pela imprensa no
final de abril, mas ainda não deflagrada, contra executivos do banco
Opportunity, pertencente ao banqueiro baiano radicado no Rio de Janeiro
Daniel Valente Dantas. Protógenes disse que sim, mas que o caso estava
nas mãos do delegado federal Victor Hugo Rodrigues Alves Ferreira, de
trinta e três anos, deslocado de Ribeirão Preto para São Paulo. Era uma
desinformação — na verdade, Protógenes seguia coordenando a
operação, embora com o auxílio de Victor Hugo.
A isca foi jogada, e a resposta não tardou. Às 20h26 do dia seguinte,
Victor Hugo recebeu em seu celular um telefonema de Humberto Braz,
um homem ligado ao Opportunity, que pedia uma reunião. O delegado
respondeu que poderiam conversar dali a alguns dias. Em seguida,
enviou um e-mail para a delegada Karina Murakami Souza, outra colega
sua na operação. Pediu que ela protocolasse na 6ª Vara da Justiça
Federal paulistana um pedido para realizar gravações ambientais e
interceptar os telefones que ele mesmo usava.
“É bastante provável que a quadrilha já tenha descoberto também
que eu passei a integrar a equipe de trabalho do caso e que a ‘reunião’
tenha como propósito alguma tentativa de ‘acerto’.”2
No dia seguinte, o juiz federal Fausto De Sanctis autorizou a
chamada ação controlada, prevista na Lei 9.034/95. Consiste no
retardamento de uma medida policial, “desde que mantida sob
observação e acompanhamento”, para que seja deflagrada no momento
“mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de
informações”.
Depois, De Sanctis indagou a Protógenes o motivo pelo qual não
solicitou uma ação controlada desde o primeiro contato de Chicaroni.
Protógenes respondeu que naquele momento a medida poderia ter sido
um tiro n’água, pois, até então, “não tinha certeza de que o acusado
Hugo Chicaroni tivesse contato direto com os acusados Humberto Braz e
Daniel Dantas”.3
Protógenes, Victor Hugo e Chicaroni combinaram uma reunião numa
churrascaria típica uruguaia localizada no bairro paulistano de Santa
Cecília, a El Tranvía. O local era frequentado por policiais federais desde
os tempos em que a sede da PF ficava na rua Antônio de Godoy, no
Centro. No teto da sala principal, há um arranjo que mistura folhas de
parreira reais e de plástico. Os galhos se cruzam de tal forma, que não dá
para separar, numa primeira olhada, o real do irreal. Nas reuniões que
ocorreram ali entre os dias 18 e 19 de junho de 2008, os delegados
também cruzaram várias vezes a fronteira que separa a mentira da
verdade. Eles se apresentaram como dois policiais corruptos que
poderiam ajudar o Opportunity.
Os encontros foram todos documentados por Victor Hugo com
autorização judicial, em quase oito horas de gravações. Já coberto pela
ação controlada, tudo que ele falasse ao celular também seria
interceptado. Ele levou dois equipamentos de gravação: o celular e um
gravador digital.
No dia 18 de junho, os três se encontraram no bar do restaurante.
Pediram uma cerveja uruguaia Norteña. Chicaroni discorreu sobre a cena
política de São Paulo, citou vários políticos com os quais teria alguma
relação e sugeriu ser alguém bem informado sobre os bastidores da
política. Ele procurava impressionar os policiais.
Chicaroni disse que trabalhava num instituto chamado Sagres, de
Brasília, formado por profissionais de áreas diversas que haviam deixado
o governo.
“Nós pinçamos uma pessoa de cada órgão. No Sagres temos um
assessor especial do Ministério da Defesa, temos um assessor especial do
GSI, tem assessor especial da Abin [Agência Brasileira de Inteligência].
Tem gente do Banco Central, pessoal de inteligência da Receita Federal.
Tem 140 pessoas.”4
Chicaroni disse que a equipe se formou depois que o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT-SP), logo após tomar posse em 2003, extinguiu a
SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos), ligada ao Palácio do Planalto.
Ela foi transformada em núcleo — anos depois, voltou a ser secretaria.
Chicaroni disse que a equipe da SAE, na qual se incluiu, “pediu para ir
embora”, mas teria recebido um pedido do influente ministro da Casa
Civil, José Dirceu (PT-SP).
“Aí, nosso amigo José Dirceu pediu para a gente não sair”, prosseguiu
Chicaroni. “Mas eu também não estava a fim de ficar”, jactou-se. De
qualquer forma, e contraditoriamente, Chicaroni disse que “ficou por lá”,
mas só no papel, pois não aparecia no órgão. Depois, o governo nomeou
como chefe do núcleo um militar que trouxe “um pessoal da inteligência
do Exército”. Eram doze, mas “não deu certo”. Foi aí que o grupo
resolveu criar o Sagres “para fazer a gestão”, ou seja, prestar consultoria
sobre a estratégia de gestão de órgãos públicos.
Em 2010, o Instituto Sagres Política e Gestão Estratégica Aplicadas
anunciava como “parceiros ou clientes”, além de empresas, a Fundação
Getúlio Vargas, o Sebrae, a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de
São Paulo, o Ministério Público de Goiás e a Universidade de Brasília,
entre outros.5
Depois de tantos rodeios, Chicaroni entrou no assunto principal:
“E o que nós vamos fazer sobre esse pepino do Victor?”
“Eu, se pudesse, me livrava...”, brincou Victor Hugo.
Chicaroni explicou quem era Humberto Braz e qual o objetivo dos
telefonemas para o delegado.
“O Humberto, que está te ligando, marcou o jantar para amanhã, é
um tremendo cara. Gente muito boa. O cara é dez, é dez. Ele era
financeiro da Odebrecht. Veio para arrumar a casa. Ele não é conhecido,
ninguém conhece. Nada. Senão, eu também não deixaria ele sentar
contigo.”
Chicaroni descrevia Braz como alguém que não colocaria os policiais
em maus lençóis. Ele estava em Belo Horizonte (MG), mas no dia
seguinte viria a São Paulo para jantar com Victor Hugo.
“Não, ninguém conhece, ninguém sabe quem é ele. E é assim: ele
não está atuando dentro do banco, ele fica mais fora de tudo. E é uma
pessoa ótima. Ele veio para arrumar a casa.”
O professor disse que Braz era profissional, em contraponto à própria
gestão do Opportunity.
“É uma empresa de família, cada um faz o que quer, eles cagam para
todo lado porque o cara é forte pra cacete e incomoda muita gente. Se
você for pegar um empresário neste país que anda direitinho, esquece
que não vai achar. Se andar, também quebra.”
Chicaroni descreveu o alcance do poder de Braz:
“É um cara bacana. Tem autonomia, assumiu a direção agora. Tem
falado muito comigo, eu já estive com ele várias vezes.”
Victor Hugo procurou se mostrar menos desconfiado:
— Pô, você falando assim, até fico [inaudível]. Porque atende a
todo mundo, né, quando... Até o Queiroz disse que não o
conhecia pessoalmente.
— Até o Queiroz achou que você devia jantar sozinho com
ele. Eu falei “Queiroz, veja bem, eu acabo sendo a segurança de
ambos os lados. Sou amigo, pô” — defendeu Chicaroni.
— É porque eu estava até meio inseguro, o Queiroz falou que
conhecia você, tal. Você que tinha ligado, até por isso que atendi.
Na peça ensaiada pelos policiais, um fazia o papel de inseguro, o
outro era o profissional que conhecia os dois lados da moeda.
Protógenes voltou à questão da “autonomia”, ou seja, até quanto
Braz poderia oferecer em propina. Pela primeira vez, Chicaroni falou
expressamente em dinheiro:
— O Queiroz me disse o seguinte: “O cara tem autonomia, tem
poder de decisão?” [Eu respondo] Tem, tem. É óbvio que... Ele é
o diretor, não é um dos donos da empresa, mas ele tem uma
autonomia xis. [...] Aí, conversando e tal, eu perguntei a ele:
“Vem cá, me diz uma coisa: qual é a disponibilidade que você tem
para cuidar dessa questão? Você tem poder de decisão?”. Ele
falou: “Tenho. É óbvio que eu não tenho o limite da empresa,
sim, mas eu tenho”. Eu falei: “ Pô, seu limite está onde?”. Ele
falou: “Eu tenho 500 mil dólares para tratar desse assunto”.
— Quinhentos mil? — espantou-se Victor Hugo.
— É, 500 mil dólares — confirmou Chicaroni.
— Isso hoje, hein — acrescentou Protógenes, demonstrando
animação. No papel de “policiais corruptos”, eles já pensavam em
jogar o valor para cima.
— Não, ele tem. Na hora. O patrão chegou para ele, e ele
disse “500 mil dólares para cuidar desse assunto” — disse
Chicaroni.
O crime de corrupção ativa (art. 333 do Código Penal) estabelece que
a mera promessa ou oferta de “vantagem indevida” a funcionário público
já configura crime. A rigor, os delegados podiam ter dado voz de prisão a
Chicaroni ali mesmo. Mas eles queriam avançar nas conversas e
documentar melhor a oferta, se possível chegar a Braz, um homem
próximo de Dantas.
E, com tanto dinheiro em jogo, Chicaroni também não perderia a
chance de tirar uma lasca:
— Ele tem 500 mil dólares para tratar desse caso. Eu não falei
com ele ainda quanto aos honorários meus. Mas é claro que não
vou trabalhar de graça para esses caras, não. Lógico, né.
— São 500 mil fora os honorários? — perguntou Victor Hugo.
Um bom corrupto não perderia a chance de esclarecer esse ponto,
em benefício do novo amigo Chicaroni.
— Eu vou cobrar 100 mil, 100 mil dólares, por aí.
Diante de tão grandes revelações, Victor Hugo advertiu Protógenes,
conspirador:
“Fica entre nós essa conversa, hein, Queiroz. Entre nós, hein.”
Chicaroni pareceu incomodado com a observação. Se o policial
também desconfiava dele, o negócio poderia ruir, junto com seus
honorários. E adeus US$ 100 mil.
“Deixa eu te explicar uma coisa. Eu tenho vinte e cinco anos de
governo. Eu tenho uma história de confiabilidade num monte de gente
que manda nessa porra desse país.”
Documentada a oferta, Victor Hugo queria averiguar as intenções de
Dantas.
— Agora, eu preciso saber se pode acontecer mesmo, quem ele
quer livrar, só isso. Ou se ele está querendo livrar todo mundo.
— A questão dele é com o Daniel, o filho e parece que a irmã,
né, que é sócia dele. Esse é o interesse dele. O filho é funcionário
da empresa, é sócio da empresa, o [inaudível] é braço direito do
Daniel. O interesse dele é esse. Ele não falou em mais ninguém
— respondeu Chicaroni.
Esse ponto da conversa foi bastante atacado posteriormente pela
defesa do Opportunity, que afirmou que Dantas não tinha um filho, mas
uma filha. Pode ter sido apenas uma confusão de Chicaroni ou uma falsa
informação jogada para saber até onde os policiais realmente sabiam da
vida de Dantas. De qualquer forma, a afirmação não partiu dos policiais,
mas de Chicaroni.
Victor Hugo respondeu sobre a proposta de “tirar” pessoas da
apuração:
“Se houver um trabalho realmente em andamento, nem estou
falando que há, mas eu posso garantir que, se houver, só preciso saber
quem ele quer que tire. Porque abafar tudo não tem jeito.”
Aquela tarde ainda guardava uma surpresa. Chicaroni informou que
só o encontro anterior que ele conseguiu manter com Protógenes, em
Brasília, já iria render um pagamento aos policiais.
“Olha, pela conversa de Brasília, me deu 50 mil reais. É campeão,
pô”, comemorou Chicaroni. Ele comentou achar bom “termos uma
posição”. Ele já falava no plural, como se fizesse parte de um time.
Protógenes deu corda:
“A posição de atender a quem é que está com a investigação. [...]
Agora, evidentemente, precisa ter uma coisa antecipada. Já serve até
para quebrar o gelo, né. Quebra o gelo. Entendeu o que estou falando?”
Chicaroni entendeu, pois orientou Victor Hugo a dizer a Braz:
“Tem que chegar a ele: ‘Companheiro, jantamos, caramba, e não sei
o quê’. [...] ‘Não dá para antecipar pelo menos 100 mil dólares?’ É só
depositar, que ele liga pro Rio e manda vir para cá. Como, não sei. Manda
trazer de carro, sei lá eu.”
Ou seja, era só Victor Hugo pedir, que seria corrompido. A conversa
derivou para reclamações que Protógenes fez sobre as movimentações
dos advogados do Opportunity junto à direção da PF. Protógenes
comentou que “o Supremo ligou” e indagou:
“Por falar em Supremo, dá para saber [inaudível] a posição do
Daniel? Dizem que ele está preocupado é com a polícia.”
Dantas havia impetrado um habeas corpus no STF seis dias antes do
encontro.
— Ah, não, não. Em princípio, ele se preocupa com o hoje. Com
hoje. Lá para cima, o que vai acontecer lá para trás, ele não está
nem aí.
— Está tudo controlado — pontificou Protógenes.
— Resolve. Lógico. Ele resolve. STJ, STF, resolve. O cara tem
um trânsito político ferrado6 — proclamou Chicaroni.
Mais à frente, com decisões que beneficiaram Dantas no STF, essa
afirmação foi lembrada com redobrado interesse.
“No TRF [Tribunal Regional Federal] ele ainda perturba, dependendo
de onde cair”, continuou Chicaroni.
Nesse momento, Victor Hugo cometeu uma falha. Como estava se
fazendo passar por um policial corrupto, ele não poderia ter dito o que
acabou dizendo:
“Mas tem gente boa no STF e no STJ, não tem?”
Na cabeça de um policial que estava se vendendo, juízes
incorruptíveis e severos não deveriam nunca ser uma “gente boa”, mas
uma “gente má”. Se Chicaroni percebeu a contradição, não deu sinal.
Caso ele estivesse com seu faro apurado, teria cancelado todas as futuras
reuniões. Teria ido para casa e esquecido Victor Hugo, Protógenes e Braz.
Mas ele não fez nada disso:
“Muita, muita”, limitou-se a concordar o professor.
Para mudar de assunto, Protógenes indagou se Dantas também
chegaria a São Paulo no dia seguinte, junto com Braz.
— Tem a reunião na quinta-feira. Se for para decidir alguma
coisa dentro dessa alçada... — disse Protógenes.
— Não, se for dentro desse contexto, está decidido com o
Humberto. Essa parte. Você está dizendo essa parte? — indagou
Chicaroni.
— Porque tem limite, como você falou — respondeu
Protógenes. (Ele queria saber se Braz iria consultar pessoalmente
Dantas, em São Paulo, sobre aumentar o valor da propina.)
— Acima desse limite, ele tem que falar com o Daniel —
aduziu Victor Hugo.7
— É, é — concordou Chicaroni.
— Demora quanto tempo para decidir? — indagou Victor
Hugo.
— [Braz] Pega um avião, vai lá e fala com o homem. Porque
ele não vai falar por telefone — explicou o professor.
Victor Hugo enfrentou problemas no gravador do celular. Toda vez
que alguém lhe telefonava, a gravação era interrompida, o que ocorreu
pelo menos três vezes durante a conversa. A bateria também estava
acabando. Pouco antes de ir embora, ele pediu licença para ir ao
banheiro, onde trocou o celular por um gravador digital oculto no paletó
e testou: “Retomando a gravação”.
Após pagar a conta e deixar o restaurante, todos seguiram no carro
de Victor Hugo em direção ao apartamento de Chicaroni, no bairro de
Moema. Com as janelas do automóvel fechadas, a qualidade do áudio
beirou a perfeição. Segundo Protógenes, Chicaroni também havia lhe
prometido um cargo em comissão no governo e “uma viagem a Dubai”. O
professor confirmou, mas disse que essas mordomias ainda não estavam
garantidas.
Em Moema, o professor orientou Victor Hugo a entrar pela garagem
do subsolo do seu prédio e convidou-os a subir, mas os policiais pediram
para ficar no carro. O professor disse que ia pegar o dinheiro e já voltava.
Chicaroni novamente explicou:
— Porque ocorreu o seguinte, não sei se o Queiroz te falou. Nós
estávamos começando a iniciativa lá em Brasília, não sei o quê, e
falamos de algumas questões especiais que a gente teria que
falar com você, coisa desse tipo, aí o Protógenes falou: “Porra, só
o fato de a gente estar conversando aqui, esse troço já tem que
valer alguma coisa”.
— Não — corrigiu Protógenes. — Você que falou isso para
mim.
Protógenes tinha que esclarecer esse ponto, pois quem ouvisse a
gravação poderia achar que ele havia induzido a propina, o que disse não
ter feito. De fato, Chicaroni fez a correção:
— Nós cansamos de sair em Brasília para tomar chope e falar de
tudo. Agora, ali nós saímos para trabalhar. Aí eu falei isso para
ele [Protógenes]: “Porra, só o fato de a gente estar fazendo
alguma coisa”.
— Isso — acalmou-se Protógenes.
— Cheguei lá, ele falou: “Olha, trouxe isso aqui para você,
por causa daquela conversa de Brasília, tal”. Então ele me trouxe
R$ 50 mil.
Os policiais ficaram no carro, enquanto Chicaroni subiu para seu
apartamento. Victor Hugo foi para o banheiro da garagem, onde se
certificou de que o gravador estava funcionando e deixou registrado:
“Banheiro. Aguardando a entrega”.
No carro, enquanto esperava, Victor Hugo combinou com Protógenes:
“Saindo daqui, vamos direto pro [juiz] Fausto”. O delegado queria
informar imediatamente a De Sanctis, no prédio da Justiça Federal, tudo
o que se passara. Pela primeira vez em mais de três horas, eles puderam
relaxar.
“Ficou lindo, né?”, perguntou Protógenes, dando uma risada.
“Meu, o melhor de tudo, nós não tivemos iniciativa de nada. Toda a
iniciativa foi dele, você entendeu?”, concordou Victor Hugo. “O finalzinho
da conversa no restaurante, o celular não pegou, porque estava sem
bateria. Então, agora eu estou com o gravador, na lapela.”
Passados treze minutos, Chicaroni reapareceu, carregando uma
maleta de laptop. A gravação documentou a entrega do dinheiro.
— Tá na mão — disse Chicaroni.
— Então está certo, não vamos nem conferir — disse Victor
Hugo.
— Eu não conferi. Ele me entregou num saco de
supermercado. Eu só pus dentro de outra sacola e botei... Eu
tenho essa extra do meu laptop, então... — disse o professor.
— Quantos pacotes tem? — indagou Victor Hugo.
— São... cada um de cinco. São cinquenta, dá dez pacotes —
contabilizou Chicaroni.
Eles se despediram.
Os policiais seguiram direto para a sede da PF, onde o dinheiro foi
contado, fotografado e apreendido. Havia dez pacotes contendo cem
cédulas de R$ 50,00 cada um, acondicionados em sacolas plásticas da
farmácia Drogasil, guardadas numa pasta preta, de náilon, com os dizeres
KA Solution.8
Victor Hugo desabafou:
“Como estão as coisas, né, puta que o pariu!”
O jogo e o jogador
“Ninguém vai se apoderar do que é nosso. Não estão reunidos neste aposento o
poder político da Bahia, a administração da Bahia, a justiça da Bahia, o jornalismo
da Bahia? Não está aqui a maioria das terras, dos bens, dos rebanhos da Bahia?
Nem mesmo o coronel Moreira César pode mudar isso. Acabar conosco seria acabar
com a Bahia, meus senhores.”
Barão de Canabrava, em A guerra do fim do mundo (1982), de
Mario Vargas Llosa, personagem fictício que remete ao Barão de
Jeremoabo, trisavô de Daniel Dantas, Cícero Dantas Martins.
O amplo sobrado erguido em 1894 num engenho de cana-de-açúcar na
zona rural de Itapicuru, a 227 quilômetros de Salvador, resiste em pé
como o símbolo do poder que a família Dantas exerceu por várias décadas
sobre uma população de sessenta e uma fazendas no sertão da Bahia. No
Solar de Camuciatá, nasceram e cresceram gerações da família. De pai
para filho, os Dantas dominaram onze municípios no sertão no nordeste
baiano, uma hegemonia que em 1939 impressionou o historiador e
folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986). “Os Dantas baianos
nascem políticos como os pássaros voam e os peixes nadam.”9
O fazendeiro Cícero Dantas Martins, nascido em 1838, foi o fundador
do casarão, onde viveu por muitos anos. Designado barão de Jeremoabo
em 1880 por ordem do imperador D. Pedro II, Cícero se tornou um
homem de grandes posses no final do século. Adquiriu dezessete
fazendas só em Itapicuru. Mantinha outras doze em Bom Jesus, município
que depois foi rebatizado justamente como Cícero Dantas.
O poder político de Cícero sofreu um abalo a partir de 1874, com as
andanças do beato Antônio Conselheiro (1830-1897). A pregação
arregimentou lavradores por todo o sertão, esvaziando propriedades da
região. Em pé de guerra, os velhos “coronéis” pediram ao Exército o fim
do arraial de Belo Monte. Cícero tinha verdadeiro ódio pelo Conselheiro,
do que são prova algumas das cerca de 3 mil cartas deixadas pelo barão
no Solar de Camuciatá. No auge do conflito, em agosto de 1897, o barão
lembrou, em carta enviada a um compadre, ter sido um dos primeiros a
advertir sobre a ameaça. Disse ter sido criticado injustamente quando
pediu um reforço de cem praças do Exército para perseguir o beato.
“Antônio Conselheiro está provando ter tido grandioso auxílio, pois
não lhe falta armamento moderno, munições, víveres, e povo [...] Há
quatro ou cinco anos era eu tido por sanguinário, malvado, rancoroso
pelo fato de me esforçar para dar-se caça ao bandido, enquanto era
tempo, e hoje...”10
A rivalidade entre o barão e o Conselheiro é citada pelo escritor
Euclides da Cunha no clássico Os sertões apenas numa nota de rodapé.
Mas ganhou contornos épicos em A guerra do fim do mundo, de Mario
Vargas Llosa, romance inspirado na obra de Euclides. Llosa, que nos anos
1980 fez pesquisas no casarão de Camuciatá acompanhado do historiador
baiano José Calazans, transformou Cícero, rebatizado de “barão de
Canabrava”, numa figura-chave no conflito, responsável por aglutinar “as
forças da Bahia” contra o Conselheiro.
No século XX, os Dantas mantiveram seu prestígio político, atuando
em vários setores da vida baiana. Um dos netos do barão, o promotor de
Justiça João da Costa Pinto Dantas Júnior, foi deputado estadual (19211923), deputado federal constituinte (1946-1962) e membro da sede
estadual do Cade (Conselho de Defesa Econômica) durante a ditadura
militar (1964-1970). Dos nove filhos do deputado, três tiveram alguma
atividade política. João Carlos Tourinho Dantas foi deputado estadual e
federal e secretário de Estado de Justiça na gestão do governador biônico
Roberto Santos. O procurador estadual da Fazenda José Augusto
Tourinho Dantas, o Gute, foi chefe da Casa Civil do governador Antônio
Carlos Magalhães, o ACM, também durante a ditadura.
Em 14 de abril de 1945, o avô de Daniel, João Júnior, fundou o Instituto
Genealógico da Bahia, do qual se tornou “benemérito e presidente
perpétuo”. Em 1967, a edição de número 15 da Revista do Instituto
dedicou mais de quarenta páginas à trajetória da família Dantas — deve
ter sido a primeira publicação a citar o nome de Daniel. Em uma linha,
ele é anunciado como o primeiro filho do empresário Luiz Raymundo
Tourinho Dantas, o “seu” Mundico, um dos filhos de João Júnior que não
seguiu a carreira política.
Trineto de Cícero, Daniel Valente Dantas nasceu em Salvador, na
Bahia, num domingo festivo de 1954, data das eleições diretas e gerais
de 3 de outubro em todo o país, mas num dos anos mais traumáticos da
história da República — em agosto, o presidente Getúlio Vargas havia se
matado no Palácio do Catete. Naquele fim de semana com previsão de sol
na Bahia, além da vigorosa campanha eleitoral que opunha Pedro Calmon
e Antônio Balbino, os jornais de Salvador destacavam os preparativos
para a visita (“não comunicada anteriormente”, como reclamou A Tarde)
da miss Brasil e quase miss Universo, Martha Rocha.
A vida de uma família de posses como a dos Dantas era marcada por
coquetéis, jantares e almoços nos clubes mais tradicionais e exclusivos da
elite da cidade, como o Bahiano, a Associação Atlética e o Yatch Club.
“Era uma sociedade fechada. As famílias ricas todas se conheciam, os
Dantas, os Valente. Era uma casta.”11
Desde o trisavô de Dantas, não há registros que puderam ser
alcançados pelo autor, em trabalhos de história baiana ou na memória
dos parentes, de algum episódio especialmente traumático para a família,
como uma morte violenta por motivação política. A vida dos Dantas teria
sido tão repetitiva que chegou a desanimar uma historiadora que foi
estudá-la. “Todos os seus descendentes tiveram uma trajetória de forte
vínculo entre prestígio social e inserção política, tornando-se quase
monótono recuperar suas biografias.”12
A mãe de Daniel, Nícia Maria, também provém de uma família
abastada na Bahia, dona da firma têxtil Companhia Valença Industrial.
Dos dezessete aos vinte anos de idade, Nícia viveu uma curiosa “vida
dupla”, ao usar um pseudônimo para escrever crônicas para o jornal O
Estado da Bahia. Nessas crônicas juvenis, Nícia registra pacientemente,
nome a nome, os integrantes da elite baiana que estavam em
determinada festa, casamento ou recepção. Numa delas, menciona o
então deputado federal João da Costa Pinto Dantas Júnior, pai de seu
futuro marido. A Salvador da jovem Nícia é um longo e alegre desfile nos
salões da elite, apenas quebrado pela morte de uma amiga ou um
parente. Nos raros momentos de tristeza, Nícia se volta, então, para a
contemplação do mar e do céu — não há espaço, em seus textos, para
qualquer tipo de descrição sobre economia, política ou o modo de viver do
baiano que não frequentasse seu círculo social.
Os 243 textos de Nícia foram depois reunidos no livro Crônicas de
Maria Patrícia, impresso em 1980 pela Gráfica do Senado, em Brasília. O
prefácio foi assinado pelo ex-governador baiano Luiz Viana Filho (19081990), então presidente do Senado, apoiado pela ditadura do general
João Figueiredo. Nícia avisou que abria mão dos lucros do livro em prol
de uma entidade beneficente. A família de Dantas aparece de novo
frequentando os salões de Salvador nas memórias do empresário da noite
Ricardo Amaral. Na década de 1970, os Dantas costumavam receber
Amaral, que ia à cidade “três ou quatro vezes ao ano, em temporadas
longas”, depois que lá fundou, no hotel Othon, uma filial de seu clube
privado Hippopotamus. Amaral se relacionava com dois tios e os pais de
Dantas, além de “gozar de certa intimidade” com o então governador
ACM.13
O pai de Dantas, Luiz Raymundo, o Mundico, tocava a empresa têxtil
de Valença e a LR Turismo, que organizava passeios de escunas. João
Falcão, falecido em 2011, ex-banqueiro, empresário e dono do Jornal da
Bahia — que sofreu graves sanções do então governador ACM, para quem
trabalhava à época um irmão de Mundico, no cargo de procurador-geral
do Estado —, recordou-se do pai de Dantas como alguém cortês e bem
relacionado com o poder político.
Ele [Mundico] não enriqueceu. Era de uma classe muito boa. A
família era rica, mas não muito rica. Tinha terras, mas tenho a
impressão de que já não eram tão valorizadas. Os Dantas sempre
foram uma família de classe média alta, todos formados, com
estudos. Agora, sempre com cargos no governo, simpáticos ou
ligados ao governo. Isso sim. Eram oportunistas nesse sentido.14
Daniel Dantas estudou desde cedo em alguns dos melhores colégios
de Salvador. À época do vestibular, optou pelo concorrido curso de
engenharia civil da Politécnica da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
A lista de aprovados saiu em 21 de janeiro de 1973 no Jornal da Bahia. O
curso previa cinco anos de estudos, mas alguns alunos conseguiam
completá-lo em quatro e meio. A formatura dos 110 alunos de 1978 foi
dividida em dois dias, 18 e 19 de agosto. Houve uma missa na igreja de
Conceição da Praia, uma colação de grau “com solenidade” no Instituto
Central de Educação Isaías Alves e uma colação de grau “sem solenidade”
no auditório da Politécnica — vinte e seis empresas ajudaram nos gastos,
incluindo o Banco Econômico, que depois seria ajudado por Dantas.15
Dantas deixou entre os colegas uma imagem de aluno eficiente. Três
disseram que ele nunca levava cadernos e livros para as aulas e que
pegava as lições muito rápido. Politicamente, contudo, Dantas passava
despercebido. Antônio Carlos Souza Vilar, que se formou no mesmo ano
de Dantas, disse não se lembrar de nenhuma atividade do ex-colega no
centro acadêmico. A força da ditadura continua sendo uma explicação.
“Os líderes estudantis foram todos apagados. Não dava para botar a
cabeça de fora.”
Os alunos mais pobres precisavam de uma carona para frequentar o
curso, pois as salas de aula eram distantes umas das outras. Dantas tinha
carro. Manoel Rodrigues Brochado passou no vestibular em 1973 e se
formou com Dantas em 1978. “Começamos e terminamos juntos, mas eu
não era amigo dele. Ele era um estudante muito bom, mas não era um
CDF. Parecia mais um bon vivant. Ele chegava sem livro, acho que até
sem caneta. Parecia que não sabia direito nem quando eram as aulas.
Mas sempre tirava ‘S’ [nota mais alta]. Dentro dos grupos, havia os
subgrupos. Ele se dava mais com alunos de outras famílias ricas, como a
dele.”
Os ex-colegas dizem que Dantas não costumava ir aos bares mais
frequentados pelos estudantes nem participava de excursões organizadas
pela turma, como a que passou vinte e sete dias em Buenos Aires.
Disse Artur Watt Filho:
Ele sempre foi uma pessoa inteligente, popular e querida. Mas
não entre os que vinham de nível econômico inferior ao dele. O
sangue dele é sangue nobre. Sou seu admirador. Tinha gente que
queria subir, mas não fazia nada na vida para isso. Gente que
não queria porra nenhuma. Houve uma greve brava em 1974, eu
não entrei, ele não entrou. O pessoal do centro acadêmico era
todo comunista.
Formado, Dantas viajou para o Rio. Lá, deslumbrou-se com o
professor Mario Henrique Simonsen, então diretor da Escola de PósGraduação em Economia (EPGE) da Fundação Getúlio Vargas e sócio do
banco Bozano Simonsen. A trajetória de Simonsen guarda uma grande
contradição: admirador de ópera e música clássica, ferrenho defensor do
livre mercado, normalmente descrito como “gênio” pela imprensa, por
outro lado serviu, por longos anos, ao Estado autoritário militar, que
censurou parte da imprensa e obras de arte e comandou a economia com
mão de ferro. Simonsen foi conselheiro econômico dos generais Castello
Branco e Geisel, presidente do Mobral (1970-1974) e ministro da
Fazenda (1974-1979) e do Planejamento (1979). Ele funcionou como
articulador e executor do pensamento econômico do regime militar.
“Mario era da elite carioca, a elite dos grandes escritórios de
advocacia e de consultoria, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e da
Fundação Getúlio Vargas. Era o homem do establishment intelectual,
acadêmico e burocrático que governou este país durante muito tempo.”16
Durante a ditadura, Simonsen apoiou sem contrariedade, como
informam as atas das reuniões do CSN (Conselho de Segurança
Nacional), diversas medidas persecutórias propostas por Geisel e
assessores contra opositores do regime. Simonsen integrou o CSN por
mais de cinco anos, ao lado de generais e ministros civis. Sigilosas por
mais de três décadas, guardadas no Palácio do Planalto, as atas foram
finalmente trazidas a público em 2008. Lá, estão as assinaturas de
Simonsen concordando com cassação de mandatos e suspensão de
direitos políticos de pelo menos nove deputados federais, um estadual e
dois vereadores da oposição, que haviam feito críticas à ditadura, além de
três do governista Arena.17
Em junho de 1977, o ministro apoiou a cassação do mandato do
deputado José Alencar Furtado (MDB) e a suspensão de seus direitos
políticos por dez anos. O “crime” do deputado foi ter dito num programa
de tevê: “Voltemos as costas para o Brasil da censura postal ou
discriminatória, da repressão irracional ou desvairada, das punições sem
defesa, das prisões arbitrárias, da escuta telefônica e da delação que
avilta”.
Em 1º de abril de 1976, Simonsen apoiou a cassação do líder do MDB
no Rio Lysâneas Maciel. Dias antes, o deputado havia discursado na
Câmara: “Estamos nos acostumando com o desaparecimento de
brasileiros, sua tortura, sua morte presumida; homens que não se
conformaram com a injustiça e colocaram seu talento e sua vida a serviço
de seus compatriotas”.
Dantas tornou-se aluno da FGV em 1979, no mesmo ano em que
Simonsen deixou o governo militar e voltou a dar aulas. Esse passado tão
recente não impedia que Dantas e vários de seus colegas adorassem
Simonsen. Ele é um ídolo para Dantas. No depoimento de trinta e cinco
minutos que concedeu ao projeto de história oral do centro de
documentação da FGV, Dantas derramou elogios ao professor, ainda que
tenha incluído a controversa informação de ter exercido influência sobre
o planejamento das aulas do próprio mestre:
“Participei do primeiro curso que ele deu, e foi amor à primeira vista:
do que ele quisesse dar aula eu participava. [...] Acabamos
desenvolvendo uma relação que fez que eu pudesse sugerir a aula que eu
queria que ele desse, e ele dava.”18
É fácil intuir o impacto de Simonsen sobre a formação de Dantas. O
aluno havia chegado ao Rio com apenas vinte e quatro anos de idade.
Começou a fazer economia na FGV e também planejava fazer um MBA
em administração na Suíça, mas, antes, “passou no Rio”, como disse, e
por lá mesmo ficou.
Se “todo indivíduo projeta a si mesmo nas outras pessoas”, como
disse Dantas, foi em Simonsen que o futuro banqueiro procurou seu
reflexo. “Ele era um oráculo, um professor, um amigo, um orientador.
Ninguém, com exceção do meu pai, me influenciou tanto na vida.”19
Simonsen foi o presidente da banca examinadora da tese de
doutorado de Dantas, “Indexação”, que recebeu nota dez em 11 de
agosto de 1982.
Dantas chegou a montar uma revista em parceria com Simonsen, a
Simposium, junto com Moysés Glat e John Harris. Eles fizeram uma maladireta que chegou a 2 mil assinantes, mas o negócio mofou. A derradeira
edição teve apenas dois exemplares.
No período em que esteve na academia, Dantas também estreitou
laços com outro professor, Rudiger Dornbusch, do MIT, em Cambridge
(EUA), que passara a dar aulas na FGV do Rio a convite de Simonsen. Os
estudos de Dornbusch, graduado em Genebra e Ph.D. na Universidade de
Chicago, ajudaram a fundar as bases do moderno estudo da
macroeconomia. Dantas estudou no MIT entre 1982 e 1983.
Dornbusch impulsionou a carreira de Dantas em novembro de 1989,
ao incluí-lo em um seminário que se tornaria o símbolo do liberalismo
econômico preconizado pelos EUA para os países em desenvolvimento.
Era o “Consenso de Washington”, marco do amplo plano de privatizações
de empresas estatais indicado aos países da América Latina. Eles
venderiam grande parte de seus ativos em áreas estratégicas da
economia, incluindo as empresas telefônicas no Brasil. O organizador do
seminário foi o professor inglês John Williamson. Nos anos 1980, ele era
o mais ativo membro do IEI (Instituto de Economia Internacional),
sediado nos EUA, cujos vínculos com banqueiros são expressos na
introdução de um livro produzido pelo instituto em 1986:
O estudo foi solicitado pelos próprios bancos em meados de 1984,
por meio da Associação dos Banqueiros para o Comércio Exterior.
Os autores foram assistidos por um grupo formado por
renomados especialistas de várias diferentes comunidades
envolvidas. O grupo inclui representantes de bancos americanos
nacionais e regionais, e, em menor proporção, de bancos não
americanos.20
Um dos banqueiros mais ativos do IEI foi David Rockefeller, do clã
fundador do Chase Manhattan Bank. Rockefeller tornou-se porta-voz do
sistema financeiro americano, foi consultor de Henry Kissinger e
participou de conversas com Fidel Castro. Também manteve estreitas
ligações com diversos homens-chave da CIA, o serviço secreto americano.
Em 1989, no ano do “Consenso”, Rockefeller integrava o conselho de
diretores do IEI. Outro desses conselheiros era ninguém menos que Mario
Henrique Simonsen.
O IEI atuava em sintonia com conglomerados financeiros para
formular políticas “apropriadas” para os governos de países em
desenvolvimento, principalmente os da América Latina, que à época
enfrentavam problemas para quitar as dívidas com o FMI.
À reunião do “Consenso” compareceram observadores do FMI, do
Banco Mundial e do BID, que verificavam a disposição dos países
endividados em seguir o receituário neoliberal. E checavam se poderiam
continuar financiando esses países.
Ao reunir nomes para o evento, Williamson pediu uma dica ao
professor Dornbusch, que era casado com a economista brasileira Eliana
Cardoso e dava aulas na Universidade de Tufts, em Boston. Eliana e
Dantas foram então convidados a produzir e apresentar um paper na
reunião. Eliana assim descreveu a parceria com o baiano:
O seminário era uma atividade acadêmica que interessava aos
policymakers, porque os estudos e as discussões tinham
implicações para o desenvolvimento econômico [...] Eu conhecia
o Daniel antes de acertarmos a elaboração do texto. Ele havia
sido aluno de meu ex-marido, o professor Rudi Dornbusch, na
FGV. Rudi o convidara para visitar o MIT em programa de pósdoutorado. Daniel foi aluno brilhante do Simonsen. Rudi tinha
ambos em alta conta. Rudi sugeriu ao John Williamson que
convidasse o Daniel para ser coautor do trabalho, porque John
queria um autor de uma universidade americana (como eu)
trabalhando com um economista no Brasil (como o Daniel).
Daniel sempre foi extremamente correto, um colaborador
inteligente e responsável. Só tenho coisas positivas a dizer sobre
ele, embora eu tenha perdido o contato com ele desde 1994.21
Eliana, que foi para o Banco Mundial, trabalhou no Brasil entre 1994
e 1996, no cargo de secretária de Assuntos Internacionais do então
ministro da Fazenda, Pedro Malan, no governo de Fernando Henrique
Cardoso (PSDB).
O texto de Eliana e Dantas, intitulado “Brasil depois de 1982: ajuste
ou acomodação?”, ocupou vinte e cinco das 445 páginas do livro editado
por Williamson que se tornou a ‘certidão de nascimento’ do Consenso. O
paper destaca os problemas que o Brasil, apontado como um dos três
maiores devedores do FMI, ao lado da Argentina e do México, enfrentava
para conseguir o equilíbrio das finanças internas. Ao falar sobre
privatização, os autores criticaram a gestão das estatais e desaprovaram
a baixa velocidade do processo de venda das companhias. O diagnóstico
foi cáustico.
Centenas de empresas públicas foram criadas no Brasil entre as
décadas de 1960 e 1980, ultrapassando o número de trezentas.
De acordo com a Secretaria de Controle das Empresas Estatais,
62% das empresas estatais são empreendimentos produtivos, e
os 38% restantes são órgãos administrativos e universidades.
Essas companhias têm sido criticadas por desperdiçarem dinheiro
por conta da capacidade inadequada de gestão e os excessivos
custos trabalhistas, objetivos contraditórios e obscuros, e seu
privilegiado acesso a capital, subsídios e proteção. Até agora,
porém, a privatização no Brasil tem avançado lentamente. Desde
1980, apenas dezessete empresas pertencentes ao Estado foram
privatizadas.22
Eliana e Dantas apontaram para as privatizações como parte da
solução do problema brasileiro. “O equilíbrio orçamentário demanda
grandes cortes nos subsídios e a consolidação do débito doméstico. Isso
poderia ser conseguido por meio de privatizações, com o produto usado
para pagar dívidas, e por um alongamento forçado [das dívidas].”
O Consenso apontou dez linhas mestras para os países endividados,
entre as quais a privatização das estatais.
As propostas do Consenso logo foram replicadas pelo empresariado
brasileiro. Um documento de 1990 da Fiesp, a federação dos industriais
de São Paulo, “sugere a adoção de agenda de reformas virtualmente
idêntica à consolidada em Washington”.23
Ao participar com seu texto do “nascimento” do Consenso, Daniel
Dantas colaborou, ainda que lateralmente, na formulação de políticas que
ele mesmo ajudaria a aplicar no Brasil. Passou de comentarista a jogador,
em um jogo cujas regras ele próprio de alguma forma ajudou a criar.
O grupo de Williamson tinha uma espécie de dublê no Brasil. Em 1988,
meses antes da reunião do Consenso, um grupo de economistas formou
um “Fórum Nacional”, cujo objetivo era apontar “ideias para a
modernização do Brasil”. O fórum era coordenado por João Paulo dos Reis
Velloso, também ex-ministro da ditadura, amigo de Simonsen e
igualmente participante das mesmas reuniões persecutórias do CSN nos
anos 1970, sob o governo de Geisel.
O fórum realizou um seminário com cerca de sessenta economistas e
quinze sociólogos e cientistas políticos na sede do BNDES, no Rio, em
novembro de 1988. Depois, procurou o empresariado de São Paulo e do
Rio entre março e abril de 1989 e, em maio, reuniu-se com cerca de
cinquenta senadores e deputados no Congresso. Embora não fosse o
tema central, a privatização aparecia com força no discurso de Velloso.
Para uma parte dos “conglomerados estatais (Eletrobras, Petrobras etc.)”,
o ex-ministro defendia um controle rígido dos gastos. Para a outra parte
das estatais, que não entrassem no conceito do “Estado-empresário”,
Velloso defendia a venda imediata de ações em bolsas de valores. Velloso
apontou as áreas que não precisavam ser vendidas: “A sugestão é limitála [a proibição] à energia elétrica, petróleo, comunicação e
transporte”.24 Como se viu depois, todas as áreas passaram por
profundos processos de privatização ou de quebra do monopólio.
Dantas também reproduzia amplamente esses argumentos em
público. Em maio de 1988, afirmou, em texto publicado na Folha:
O liberalismo econômico é a única solução para sairmos do
impasse em que nos encontramos [...] A confusão é grande e
decerto o liberalismo é a saída mais rápida e eficaz para esta
situação, especialmente porque não exige coordenação. O
Governo deveria se engajar em um amplo programa de
privatização. Deveríamos começar pela privatização do próprio
setor privado: fim das cotas, monopólios e subsídios.
No pé biográfico desse texto, Dantas é identificado como economista
e “doutor pelo MIT”, dos EUA (os dados geralmente são enviados pelos
autores dos textos; neste caso, não foi possível saber a origem). Mas a
informação contradiz o currículo coletado pelos pesquisadores do CPDOC
em 2002, quando ocorreu a publicação do livro em homenagem a
Simonsen. Ali, Dantas informa ter feito “pós-doutorado” no MIT e
doutorado na FGV.
De fato, Dantas não é “doutor pelo MIT”, mas, sim, pela FGV. No
paper do “Consenso”, Dantas é identificado apenas como “professor da
FGV”, nada falando sobre o MIT. Quando o Opportunity fechou uma
proposta formal de consórcio com o Citibank, em 1997, a resumida
biografia de Dantas também silenciou sobre o suposto doutorado pelo
MIT. Ouvida para este livro, a assessoria do Opportunity afirmou:
“Parcela considerável da imprensa especializou-se em publicar
informações incorretas sobre Daniel Dantas [...] Completou o mestrado e
o doutorado em apenas dois anos, na própria FGV. Fez pós-doutorado no
Instituto Tecnológico de Massachusetts [...] Daniel foi professor visitante
do MIT.”
A tese de Dantas na escola carioca transformou-se num livro,
publicado em 1987 e financiado pela Icatu Empreendimentos — na qual
Dantas era diretor-executivo. No prefácio, Dantas sente-se preparado
para dar um “puxão de orelha” em Milton Friedman (1912-2006), um dos
maiores teóricos do liberalismo econômico.
Friedman, num artigo publicado em 1974, recomendou a
indexação como meio de facilitar o combate à inflação. Sua linha
de raciocínio baseava-se em dois argumentos: o primeiro, de
consistência lógica discutível; o segundo, embora absolutamente
consistente, pecava por ser válido apenas em condições
particulares.
Friedman havia recebido o Prêmio Nobel de Economia dois anos após
ter escrito o mesmo artigo atacado pelo recém-formado Dantas.
A despeito de arroubos intelectuais como aquele, Dantas continuava
um anônimo fora da FGV e do mercado financeiro do Rio. Isso mudou
radicalmente depois de uma capa da revista VIP Exame, da editora Abril,
de março de 1989, que anunciou ao mundo um novo “Guardião de
Fortunas”. A capa trouxe Dantas, aos trinta e quatro anos, com os braços
cruzados, as mangas da camisa dobradas e a gravata jogada sobre o
ombro. A reportagem intitulada “O Rei e o Regente” era extremamente
elogiosa a Dantas e incluía uma bajulação de Simonsen (“ele sempre foi
um azougue”). O texto descreve Dantas como alguém “despojado”, cuja
vestimenta teria sido, uma vez, comparada à de um “garçom”. Também
registra sua péssima opinião sobre a cidade de Nova Iorque.
“Ela tem de sobra duas coisas que eu detesto: yuppies e muita gente
diferente misturada.”
Para ele, haveria no planeta apenas duas cidades “dignas de uma
nota dez com louvor”, Londres e Boston.
O texto narra uma suposta hiperatividade de Dantas, que ficaria
sempre em pé enquanto lia “relatórios, livros de economia e publicações
especializadas americanas”, de modo a “equacionar suas habilidades em
arquitetar transações complexas”. Para se movimentar melhor “nessas
literais marchas intelectuais”, Dantas teria retirado os móveis da sala de
seu apartamento, no Rio.
A suposta mania de trabalhar em pé aparece no relato de outras
pessoas ligadas a ele, como seu fiel defensor no Senado, o ex-senador
Heráclito Fortes (DEM-PI).
“Um dia, eu perdi a calma e falei para ele: ‘Para, Daniel, senta aí,
porra, você parece o Sputnik’.”25
Dantas foi ouvido aqui e ali pela imprensa para comentar determinada
medida econômica do governo Sarney. Isso mudou no final de dezembro
de 1989. Fernando Collor, ex-governador de Alagoas, havia sido eleito
presidente numa das disputas mais duras da história do país e estava
montando a equipe de governo que deveria tomar posse em março de
1990.
Em 30 de dezembro, reportagem do jornalista da Folha Alcides
Ferreira anunciou que Collor havia feito pelo menos duas reuniões com
economistas “para estudar programas de combate à inflação”. Collor se
reuniu com Simonsen, com o vice-presidente do Unibanco André Lara
Resende e com o “presidente do Icatu, Daniel Dantas”. Dantas é uma
fonte importante da reportagem. Ele explicou a Ferreira que Collor quis
saber “como foram resolvidos”, em outros países, “problemas
semelhantes aos brasileiros, como inflação e déficit público”. Dantas teve
“uma surpresa agradável” com Collor.
“Ele fez perguntas corretas e deu julgamentos rápidos.”
O trio havia sido levado a Collor pelo empresário Olavo Egydio
Monteiro de Carvalho, do Grupo Monteiro Aranha, um grande investidor
do Rio. Olavo contou, anos mais tarde, que Collor tinha um plano que
parecia astuto, no qual Dantas teria papel de certo relevo:
Mario Henrique se animou com aquilo e procurou colaborar,
participar: encaminhou-me o Daniel Dantas e o André Lara
Resende, e eu os levei para conversar com Collor, para que eles
pudessem desenvolver o programa do tão falado Projeto Brasil.
Eu achava que o ministro da Fazenda ia ser o Daniel Dantas, mas
um dia o Collor me ligou e disse: “Olavo, vamos ter no começo
um trabalho muito duro, muito impopular, muito desagradável, e
vou usar a Zélia nessa primeira fase. Depois que estivermos com
a casa mais ou menos arrumada, vou chamar ou o André ou o
Daniel, para continuar a segunda etapa do Projeto Brasil”.26
Entre as medidas “desagradáveis” previstas no Plano Collor estava o
confisco da poupança acima de determinado valor de todos os brasileiros.
Além de inócuo no combate à inflação, o confisco foi uma catástrofe para
a credibilidade e imagem de Collor.
No início de 1990, as reuniões entre Dantas e Collor continuaram. A
mais conhecida, da qual participou Zélia, ocorreu em 4 de janeiro na
embaixada brasileira na Itália. Dantas contou à imprensa que Collor lhe
havia encomendado um estudo sobre os efeitos da hiperinflação “e das
políticas de estabilização econômica sobre os salários”. À noite, Collor foi
à ópera com Zélia, mas sem Dantas. No retorno ao Brasil, Dantas
escapou da imprensa: “Avisado, ao desembarcar, de que estava sendo
esperado pelos repórteres, Dantas escondeu-se atrás de uma das escadas
rolantes, usou o elevador privativo da Receita Federal e saiu pelo setor
de embarque do Aeroporto Internacional do Rio”.27
Dantas estava tendo acesso direto a informações estratégicas, o que
poderia gerar um conflito ético. O Icatu operava fortemente comprando e
vendendo títulos da dívida pública, por exemplo, ou ações ordinárias de
empresas estatais. Em entrevista que concedeu em Roma, por telefone,
ele afirmou: “Não entramos em consideração sobre um plano de
estabilização, até porque participo do setor privado, não poderia
conhecer, antes dos outros, medidas em detalhes”.
Tempos depois, descobriu-se que o próprio Simonsen havia retirado o
dinheiro de uma conta bancária sua, o equivalente a US$ 20 mil, dias
antes do confisco. Questionado por um jornalista se recebera “informação
privilegiada”,
Simonsen
reagiu,
irônico:
“Eu
tive
formação
privilegiada”.28
Mas os rumores sobre algumas propostas feitas por Dantas a Collor
vieram a público, com repercussão negativa: “Causou preocupação no
meio empresarial a informação vazada dos encontros entre Collor e [...]
Daniel Dantas, de que as sugestões apresentadas pelo discípulo do exministro Simonsen levariam o país a uma profunda recessão devido aos
cortes de gastos públicos propostos”.29
Dias depois, Dantas revelou suas sugestões. Elas incluíam “demissão
de funcionários improdutivos, medidas para elevar a produtividade das
empresas estatais e corte de todos os desperdícios e gastos” — um
resumo simples de boa parte do Consenso de Washington. Dantas fez à
imprensa algumas projeções preocupantes. Afirmou que as medidas a
serem tomadas por Collor certamente causariam recessão, crise que seria
“maior na medida em que for mais demorada a monetização da economia
e a efetiva redução do déficit público”. Ele afirmou, segundo a imprensa,
que a recessão era inevitável e que deveria haver desemprego nos
setores “financeiro, estatal, oligopolizados ou que sobrevivem pelo
excesso de protecionismo”.
Seu discurso descrevia um cenário apocalíptico. E as soluções que
apresentava sempre passavam por uma imensa tesoura nos gastos
públicos, o que gerou pelo menos uma piada involuntária, como quando
sugeriu a venda do prédio da embaixada brasileira em Roma, cujo valor
ele estimou em US$ 150 milhões. O resultado, disse ele, seria revertido
para “eliminar despesas e aumentar a arrecadação” da União.30 A
ingenuidade da proposta matou-a no nascimento.
Em sua biografia autorizada, a ex-ministra da Economia Zélia
Cardoso de Mello mencionou outra proposta radical de Dantas. Ele teria
sugerido a Collor “dar o calote na nossa dívida interna”. Em resposta,
disse a ex-ministra, Collor provocou Dantas: “O senhor assinaria
embaixo?”. Zélia não deixou registrada a resposta de Dantas.31
Anos depois, Dantas disse que nunca propôs qualquer “confisco”, mas
apenas “procedimento e disciplina” para o Estado brasileiro “arrecadar
mais do que gasta”. “Collor queria uma coisa mais mágica, com efeitos
mais imediatos. Numa reunião, o Mario Henrique disse que não aceitaria
nenhum cargo no governo. Eu fiquei quieto. Não podia falar o mesmo,
porque não tinha sido convidado para nada”, disse Dantas à revista IstoÉ
Dinheiro em agosto de 2001.
Dantas seguiu tendo ampla cobertura jornalística, a primeira extensa
de sua vida. Por alguns dias, a imprensa o citou como provável ministro
da Fazenda ou presidente do Banco Central, cercando-o de adjetivos
como “notável” e “brilhante”. No dia 21 de janeiro, vieram a público os
detalhes do plano escrito pelo grupo de Dantas, Simonsen e Lara Resende
e apresentado a Collor. Previa um ambicioso programa de privatizações,
ainda mais agudo que o feito pelo grupo de Zélia. Mas o nome de Dantas
para o ministério foi descartado em meados do mês, quando fontes
ligadas a Collor apontaram para a confirmação de Zélia.
As constantes entrevistas e esclarecimentos que Dantas concedeu ao
longo daqueles dias, contudo, não tocaram numa parte fundamental das
reuniões com Collor. O próprio ex-presidente só a revelou treze anos
depois, quando apresentou à revista IstoÉ Dinheiro um trecho do livro
que estava escrevendo (e que permanecia inédito até setembro de
2013).32 Collor contou que a decisão pelo confisco da poupança se
consolidou, em sua cabeça, após uma reunião entre ele, Simonsen,
Dantas e Resende, na segunda quinzena de janeiro de 1990. Collor
convidou os três para “um encontro reservado”, em Brasília, na casa de
um amigo. Eles discutiram assuntos caros ao grupo, como “formas de
privatizar estatais, de fazer caixa e de levantar recursos para enfrentar
um déficit de 9% do PIB”.
Collor, então, teria se voltado para Dantas para saber a expectativa
do mercado financeiro sobre o seu governo. “[Dantas] respondeu: ‘Olha,
presidente, nós estamos preparados para tudo. Cada um desenha seus
cenários possíveis dentro da conjuntura atual porque nós, do mercado,
queremos sempre ganhar do governo. Nosso jogo consiste em nos
anteciparmos para não sermos pegos de surpresa’.”
Segundo o relato de Collor, Resende se dirigiu a Simonsen, para
comentar que o problema era a liquidez. “Tem que dar uma congelada
nisso”, teria dito Resende, no que foi acompanhado por Simonsen. Collor
disse então que Dantas reagiu e apontou o dedo para Resende: “Você
está maluco? No lugar dele, faria uma coisa dessas? Você sabe que isso é
politicamente inviável. Não me venha dar bom-dia com o chapéu alheio!”,
esbravejou. Collor saiu do encontro para uma reunião com Zélia, a quem
disse que iria partir para o congelamento dos ativos financeiros.
O relato de Collor isenta Dantas da decisão sobre o Plano Collor.
Contudo, ao omitir o diálogo da imprensa, se de fato ocorreu, Dantas
ficou a salvo da enorme repercussão negativa que o confisco enfrentou
depois. Por um ponto de vista, foi fiel ao sigilo que as medidas
impunham. Por outro, tratou de deixar o público longe de uma
informação vital e, ao mesmo tempo, cuidou de tirar seu nome da
encrenca.
No final das contas, Dantas contou com a sorte: o Plano Collor
tornou-se um desastre.
Ausente do governo, Dantas também saiu do foco do noticiário, com
exceção de alguns comentários sobre as medidas econômicas. Até
ressurgir de forma não exatamente positiva. Na edição de 27 de maio de
1992, a revista Veja circulou com uma capa histórica, “Pedro Collor Conta
Tudo”, que deu origem à onda de denúncias que levaram ao
impeachment do presidente. Na página 82, contudo, uma pequena e
surpreendente reportagem, sem qualquer conexão com o escândalo
Collor, passou praticamente despercebida. O jornalista Arnaldo Cesar
revelou uma violenta ação nos bastidores políticos para tentar derrubar o
então presidente do BNDES e coordenador do Programa Nacional de
Privatização, Eduardo Marco Modiano.
A manobra, segundo a revista, era liderada por Dantas, com apoio do
secretário de Assuntos Estratégicos, Eliezer Batista. A revista Veja contou
que Modiano foi, ironicamente, o responsável pelos seus próprios
problemas, pois se reuniu com Dantas para pedir conselhos sobre o
programa das privatizações e acabou relatando os entraves que vinha
enfrentando para executá-lo. Dantas teria então usado as informações
para atacar Modiano nos bastidores, manobra abortada após uma
intervenção de Collor. Na reportagem, Dantas aparece dizendo: “É
preciso privatizar a privatização”. O assunto não mais voltou à imprensa,
já inteiramente ocupada com a crise no Palácio do Planalto.
A antiga devoção de Dantas por Simonsen foi muitas vezes
recompensada. Nos anos 1980, Simonsen indicou Dantas ao então
presidente do Bradesco, Antônio Carlos de Almeida Braga, o Braguinha,
para a vice-presidência de Investimento da Bradesco Seguros. Pouco
depois, Braguinha decidiu se aposentar, foi viver em Portugal, mas antes
deixou cerca de US$ 50 milhões para os filhos e ex-mulher. Para
administrar o dinheiro, Braguinha criou um banco, o Icatu, e escolheu
Dantas como gestor da fortuna dos herdeiros. A parceria acabou em
1993, após um desentendimento sobre os ganhos de Dantas, segundo a
imprensa relatou à época. “Foi pior que briga de boate. Teve de tudo”,
revelou, em 1994, à revista Veja um operador do mercado financeiro. À
época, Braguinha lamentou publicamente: “Fiquei muito decepcionado
com esse rapaz”.33
O “rei” se desencantou com o “regente”.
Treze anos mais tarde, uma jornalista que entrevistou Dantas
apresentou uma versão diferente da registrada pela imprensa à época.
Agora Dantas era apresentado quase como uma vítima do Icatu. Teria
sido acuado pelos herdeiros. “O mal-estar veio da resistência de Dantas a
reduzir sua participação na sociedade, para que fossem aumentados os
ganhos dos demais executivos. Os irmãos [Braga] deram um prazo para
que Dantas revisse a política de remuneração. Ele protelou a questão
indefinidamente.”34
Mas aquela foi apenas a primeira de uma série de brigas entre sócios
e parceiros que marcariam a trajetória de Dantas — uma simples
trovoada, perto da tempestade que iria desabar. Ao sair do conflituoso
Icatu, Dantas decidiu erguer seu próprio negócio. Em 1980, Dantas havia
sido consultor de uma distribuidora de valores mobiliários que pertencia a
Dório Ferman, outro ex-aluno da FGV. Eles abriram um novo banco. Por
um infortúnio, corrigido no dia seguinte, ele foi anunciado como “Bando
Opportunity” na coluna social de Joyce Pascowitch na Folha, em 1994.
Ferman iria constar, nos registros do Banco Central, como proprietário e
diretor-presidente do Opportunity, mas todo o mercado e a imprensa
entenderam que era “o banco de Dantas”. Apesar de tudo o que a palavra
sugere, como ter uma rede de agências, talões de cheque e milhares de
correntistas, o banco na realidade tinha poucos correntistas, uma sede,
uma filial e só. Atuava pouco como banco comercial, focando sua
atividade na gestão de recursos pertencentes a terceiros. Era tudo o que
Dantas precisava para sua jogada mais ousada. Ele estava prestes a
reeditar, no mundo das telecomunicações no Brasil moderno, o domínio
que sua família havia exercido na zona rural da Bahia mais de um século
antes.
A batida do martelo
“Nós, realmente, eu, o André [Lara Resende], tínhamos uma preferência pessoal
pelo consórcio do Opportunity em relação à Telemar.”
Depoimento do ex-ministro das Comunicações Luiz Carlos
Mendonça de Barros no Senado Federal, em 19 de novembro de
1998.
Ex-aluno do influente Simonsen, quase ministro de Collor, partícipe
ainda que lateral do Consenso de Washington, Daniel Dantas se tornou,
no início da década de 1990, uma privilegiada testemunha dos planos do
governo federal para as privatizações das empresas estatais no Brasil,
considerada a maior competição da história do capitalismo brasileiro. Para
surfar na onda, bastava a Dantas pegar a boa prancha dos grandes
conglomerados financeiros internacionais que queriam fincar seus
investimentos na América Latina em negócios sólidos, empresas donas de
bens palpáveis (como postes, fios e torres), que tinham dezenas de
milhões de clientes. Ao mesmo tempo, os grupos estrangeiros
procuravam contar com a força, o dinheiro e a generosidade do Estado
brasileiro. Para isso precisavam encontrar brasileiros politicamente bem
relacionados.
Nos anos 1980, Dantas tinha dado muitos passos em seus
entendimentos com políticos, estreitando contatos que logo se revelariam
excelentes para seus negócios. Novamente Simonsen veio apoiá-lo. O
professor era muito ligado ao senador ACM, que por sua vez havia
estudado, quando criança, com o pai de Dantas e havia contratado para o
seu governo da Bahia um tio do banqueiro, José Augusto, no influente
cargo de procurador-geral do Estado.
Por volta de 1985, ACM e outros apoiadores da ditadura passaram a
organizar um novo partido político, o PFL (Partido da Frente Liberal), com
o objetivo de sepultar a má fama da Arena e do PDS, que haviam dado
amplo suporte aos governos militares. Um dos primeiros convidados a se
filiar foi Mario Simonsen, a quem ACM chamava de “anjo da guarda da
política econômica”.35
ACM o adorava: “Quantas vezes fui, como muitos outros, ao seu
modesto, porém moderníssimo, gabinete de trabalho, na praia de
Botafogo, para ouvir conselhos e compreender melhor os graves
problemas econômicos do país”.
Outro ex-ministro da Fazenda dos militares, Delfim Netto chegou a
mencionar uma filiação partidária do próprio Dantas ao PFL:
Acho que o Mario foi levado para o PFL porque o PFL começou a
dizer que era um partido liberal, que tinha alguma expectativa de
poder, e ele estava interessado no programa liberal do partido.
Fez como outros que se filiaram, como o Daniel Dantas, mas não
creio que nenhum deles tivesse ambição política. Podiam ser
grandes assessores.36
Francisco Dornelles (PFL), ministro da Fazenda em 1985, disse que
Simonsen era conselheiro do partido. Ele detalhou à FGV:
Ele [Simonsen] disse que não queria disputar eleição, mas que,
se eu entrasse no PFL, ele entraria também. Algum tempo depois
entrou e ficou como um grande conselheiro, principalmente da
presidência. Tinha um relacionamento muito bom com o Marco
Maciel e com o Antônio Carlos Magalhães. E ajudava muito: todas
as vezes que o partido precisava de um documento, ele
elaborava. Participava das reuniões do PFL, dando conselhos e
opiniões sobre assuntos de natureza econômica.
Anos depois, ACM negou ter contratado Dantas como seu assessor,
mas revelou ter tentado atraí-lo para seu governo.
Tínhamos um amigo comum, o inesquecível professor Simonsen,
que me dizia tratar-se o Daniel do melhor economista que ele
conhecia e do seu melhor aluno. Procurei ver se levava para a
Bahia o sr. Daniel Dantas, por intermédio do sr. Mario Henrique,
para ser presidente do Banco do Estado. Não consegui. Ele já
estava entrosado em negócios particulares. Um dos seus tios foi
meu fraternal amigo, dr. José Augusto Tourinho Dantas,
procurador-geral do Estado, excelente jurista e homem a quem
dediquei muita amizade, uma amizade que prossegue com a sua
família. O seu pai foi meu colega de escola primária. Não tinha
intimidade com a sua família, embora tivesse muito respeito pelos
seus pais. Daniel foi para os negócios, e eu tinha uma queixa
muito grande que sempre externei a ele: apesar de ter tido um
grande êxito na sua vida [...] nunca levou para a Bahia uma
indústria, um empreendimento, algo dessa importância. Isso fazia
que eu não tivesse maior afeto por Daniel Dantas. Entretanto,
não posso negar tratar-se de um dos homens mais brilhantes do
país, como economista e como homem de negócios. Se os seus
negócios são regulares ou não, não tenho autoridade para dizê-
lo.37
O que ACM não explicou é que Dantas colaborava com o PFL na
análise de propostas econômicas desde o início dos anos 1990. Assim, de
modo indireto, colaborou também na discussão do plano econômico do
próprio governo FHC, pois o PSDB e o PFL firmaram a aliança vitoriosa
das eleições de 1994.
As ligações de Dantas com o PFL são confirmadas por uma fonte
oficial: o serviço secreto do Palácio do Planalto no governo Itamar Franco
(1992-1994), chamado de SSI (Subsecretaria de Inteligência), sucessora
do SNI. Quando os arquivos sigilosos do órgão foram finalmente abertos
à consulta, em junho de 2012, no Arquivo Nacional de Brasília, foi
possível localizar um relatório que liga Dantas à “Comissão Nacional de
Estudos e Programas” do PFL.
Os arapongas escreveram:
O PFL criou em 7 de fevereiro de 1994, no Rio de Janeiro, a
CNEP-PFL, formada por empresários e economistas. Tal comissão
apresentará trabalhos na reunião dos governadores do partido,
dia 27 de fevereiro de 1994, em Pernambuco, e sugestões para o
programa da legenda a ser exibido em 10 de março de 1994,
cujos principais pontos serão a economia de mercado, a
privatização, a segurança pública e a ação social do Estado. [...]
Por ocasião do lançamento da comissão, foi cogitado o nome do
governador da Bahia, ACM, para candidato do partido à
Presidência da República. O documento afirma que Dantas era
membro da Comissão ao lado do publicitário Mauro Salles
(secretário), dos economistas Nilton Molina e Paulo Guedes, dos
empresários Tomás Pompeu Magalhães e Paulo Rabello de Castro
e do executivo da Companhia Siderúrgica Nacional Roberto
Procópio Lima Neto.
Um integrante da família de ACM, que pediu anonimato, também
disse que Dantas integrava o mesmo grupo de estudos liderado por
Simonsen pró-PFL:
Ele ajudava, sim, nas discussões internas do partido. A
colaboração é clara, à época do Collor, no caso do banco
Econômico, no governo do PSDB. Eram sempre ouvidos. Quando
o partido queria, procurava Simonsen, Daniel Dantas e outros
sobre temas selecionados anteriormente. O Daniel conversava
com a cúpula do partido. A mãe de Daniel é muito amiga da viúva
do senador [ACM].38
Nos anos 1990, Dantas deu palestras sobre economia para altos
políticos do PFL, dentre os quais o ex-senador Heráclito Fortes (DEM-PI):
“Lembro-me de duas ou três. Participei de uma, no Recife. Ele dava aulas
sobre a situação econômica do país”.39
Apesar do convite de ACM para ser presidente de um banco na Bahia,
apesar dos conselhos econômicos que ele e Simonsen davam ao PFL e
apesar das ligações afetivas das duas famílias, Dantas procurou
desmentir sua proximidade com ACM, ao depor à CPI das Interceptações
Telefônicas, em abril de 2009.
Havia [após a posse de Lula, em 2003] muita distorção na
imprensa criando a imagem de que eu tinha alguma coisa contra
o PT, que eu era antagônico ao PT, que eu tinha ligações com o
PSDB — que nunca tive. À época do governo Fernando Henrique,
diziam que eu tinha ligações com o senador Antônio Carlos
Magalhães.
A sugestão de que não tinha “ligações” com ACM é ligeiramente
diferente do depoimento que ele próprio havia prestado à Comissão de
Constituição, Cidadania e Justiça (CCJ) do Senado em junho de 2006. Na
presença de ACM, ele admitiu ter trabalhado como consultor do PFL,
partido comandado pelo cacique político da Bahia, muito embora tenha
negado a filiação partidária referida por Delfim.
“Em determinado momento, fui convidado a ser consultor econômico
do PFL, do qual não sou filiado, e foi uma passagem curta. Foi um convite
que foi feito ao Paulo Guedes, ao Paulo Rabello de Castro e a mim.
Participou-se de algumas reuniões, depois, não.”
ACM costumava comentar com parentes que tinha duas reclamações
frequentes sobre Dantas: que o banqueiro não havia levado muitos
investimentos para a Bahia e que não deveria ter deixado de morar em
Salvador.
Dantas procurou melhorar essa percepção em 1999, no ano seguinte
à morte do filho de ACM, o deputado federal Luís Eduardo Magalhães. O
banqueiro se tornou membro do conselho de administração da recémcriada Fundação Luís Eduardo Magalhães, que tocou projetos de formação
de administradores públicos em parceria com o PNUD e o governo baiano.
Ocupou a função entre 1999 e 2006. Outros conselheiros eram David
Zylberstejn, ex-genro de FHC, e empresários da OAS.
Dantas pode não ter ajudado a Bahia tanto quanto queria ACM, mas
ajudou alguns baianos. Como o publicitário Nizan Guanaes, um dos
principais marqueteiros das campanhas eleitorais do PSDB. Quem revelou
o apoio foi Sérgio Valente, sócio da agência de publicidade DM9DDB, em
entrevista concedida em setembro de 2004 a Enio Martins e disponível na
internet.40 Dantas ajudou Nizan a obter empréstimo no Icatu, com o
qual Nizan montou uma agência de publicidade em São Paulo.
O publicitário relatou que Nizan, “por meio de Daniel”, de “quem era
muito amigo também”, conseguiu marcar uma reunião com Kátia Almeida
Braga (filha de Braguinha), do Grupo Icatu. Nizan saiu da reunião com
R$ 1 milhão:
“Com esse ‘milhão’, ele comprou a parte do Duda [Mendonça]. Trouxe
a agência para São Paulo para disputar o mercado. E aquele milhão foi
confiscado pelo plano Collor. E como é que se monta uma agência em São
Paulo em 1989 sem aquele milhão?”41
Os préstimos de Dantas ao PFL ficaram evidentes no começo do
governo FHC, em 1995, em um episódio que atingiu o coração financeiro
e político da Bahia. O Banco Central anunciou a intervenção no Banco
Econômico, cujo dono, Ângelo Calmon de Sá, mantinha uma antiga
amizade com ACM. Havia sido o presidente do Banco do Brasil de 1974 a
1977, na ditadura Geisel, portanto subordinado ao então ministro Mario
Henrique Simonsen, o mestre de Dantas.
O Econômico, sexto maior banco do país, contava com 1 milhão de
depositantes, 9 mil e 500 funcionários e 70 mil pequenos acionistas, além
de manter cinquenta e nove empresas diversas, de fazendas a
petroquímicas. No final de 1994, os saques em espécie se acentuaram.
Dois dias antes da intervenção, a insuficiência de caixa atingiu R$ 2,9
bilhões.42
O poder político baiano entrou em campo. ACM e Luís Eduardo, então
presidente da Câmara, pediram ao governo FHC que a intervenção fosse
convertida em Raet (Regime de Administração Especial Temporária), o
que permitiria uma sobrevida ao Econômico. Dantas disse ter participado
do esforço a convite do então ministro da Fazenda, Pedro Malan.
“Malan foi que me pediu, por achar que eu tinha boa relação com o
senador Antônio Carlos Magalhães, que pudesse ir até lá para dar
algumas explicações em relação à sua visão do Estado, das circunstâncias
do banco”, disse ao Congresso, anos depois.
A explicação diverge da de Fernando Henrique Cardoso. Quem lhe
apresentou Dantas foi a família ACM, com a promessa de uma solução
mágica para o Econômico:
Eu não conhecia o Daniel Dantas. Ele tinha a fama de ser um
rapaz economista, brilhante, o que de fato era. Quem me
apresentou a ele, pediu que eu falasse com ele, foi o Luís
Eduardo Magalhães, por causa do Banco Econômico. Nós
estávamos em processo de liquidação, e a Bahia não queria que
se liquidasse. Então o Luís disse: “O Daniel Dantas, que é um
economista que eu conheço e tal e coisa, tem umas propostas
melhores”. Foi o Luís Eduardo que me trouxe o Dantas.43
FHC disse ter recebido Dantas uma vez no Palácio da Alvorada e
“uma ou duas vezes” no Palácio do Planalto.
Calmon de Sá também relacionou ACM à ação de Dantas, mas
acrescentou que o próprio Dantas estava interessado. “O trabalho de
Daniel não foi remunerado. [Foi indicado] por Antônio Carlos e também
por iniciativa dele [Dantas].”44
A proposta de Dantas era vender 51% das ações que Calmon de Sá
detinha no banco, cujo rombo oscilava entre R$ 3 bilhões e R$ 4,2
bilhões, por simbólico R$ 1,00 para o Baneb, o banco do governo da
Bahia. Era uma mera manobra contábil, com o objetivo de permitir a
reabertura das agências e acesso às linhas de redescontos do BC. Uma
caravana de políticos, liderada por ACM, foi a FHC entregar a proposta.
Mas ela foi engavetada para sempre. Gustavo Loyola, presidente do BC,
teria dito a Dantas:
“Esta é uma solução porca, porquíssima, mas parece ter sido a única
proposta que conseguiram encontrar.”45
Para FHC, a proposta ameaçava as finanças da União.
Era uma solução que o governo, o Tesouro, ia incorrer em risco.
Todos eles pediam isso. O pessoal da Bahia queria tudo, menos
que fechassem o banco. Então não foi aceita a sugestão porque
não era compatível com o que o BC, à época, acreditava que era
o melhor caminho. Não deu certo. Isso criou um desgaste
enorme, o pessoal da Bahia ficou zangado.
Dantas chamou sua proposta de “expropriação”. Depois, reconheceu:
“O que me pediram foi para tentar conseguir uma solução técnica para
viabilizar um desejo político”.46
Apesar do desfecho adverso, Calmon de Sá aprovou o papel de
Dantas. “Não foi maior porque o BC deu para trás.”
Um ano depois, uma comissão de inquérito do BC apontou várias
irregularidades no banco, dentre as quais:
a) concessão de empréstimos a firmas constituídas dias antes das
operações por ex-funcionários do Grupo Econômico e/ou por
pessoas do relacionamento do sr. Ângelo Calmon de Sá; b) a
concessão de financiamentos a empresas do próprio Grupo
Econômico; c) a concessão de financiamentos com encargos de
90% da TR, ou seja, muito abaixo dos praticados pelo mercado;
d) a remessa ilegal de divisas.47
Passada a turbulência do Econômico, e seu desfecho nada heroico,
Dantas voltou ao seu banco. Desde a fundação, o Opportunity se dedicava
a uma área ainda pouco conhecida no Brasil, o chamado private equity.
Funciona como uma espécie de administradora de recursos que investe
em empresas sem ações listadas em bolsas de valores. Os gestores
desses fundos passam a ter papel ativo na administração das empresas
adquiridas, podendo indicar nomes para o controle das companhias. Os
cotistas nomeiam um gestor, uma espécie de “síndico” para gerir o
patrimônio, o que implica alta dose de confiança nessa figura. Se a
confiança é quebrada, os cotistas podem denunciá-lo por “quebra do
dever fiduciário”.
A intenção dos investimentos feitos pelos fundos é aumentar os
lucros das empresas e sua capacidade de endividamento. E depois elas
normalmente são vendidas, no chamado “desinvestimento”. O lucro é
distribuído entre os cotistas. Os fundos trabalham com geração de valor,
oferecendo assessoria técnica e financeira para as empresas.
Um importante ator na área de private equity no Brasil era a GP, com
três sócios, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira.
No final dos anos 1990, a GP atuava em mais de oitenta projetos. O êxito
foi imenso. Em 2011, Lemann apareceu na lista da revista Forbes como o
segundo brasileiro mais rico, com US$ 11,5 bilhões, e o 48º bilionário do
mundo.
Diversamente da GP, Dantas queria fincar os pés na muito anunciada
privatização das estatais. Enquanto Lemann buscou a iniciativa privada, o
negócio de Dantas era o setor público. Cinco anos antes, Collor havia
instituído o Plano Nacional de Desestatização, iniciado com o leilão da
Usiminas, de Ipatinga (MG). Mesmo enredado nas denúncias de corrupção
que acabaram por derrubá-lo, Collor conseguiu vender dezoito das
sessenta e oito empresas previstas no PND. O presidente seguinte,
Itamar Franco, reduziu o ritmo.
FHC retomou com prioridade uma das principais premissas da política
do FMI e do Banco Mundial para “ajustar as finanças” dos países da
América Latina, como diziam Dantas e Eliana no Consenso. Portos,
empresas elétricas, siderúrgicas, telefônicas e petroquímicas, ferrovias,
bancos, não ficaria pedra sobre pedra, com raras exceções. O mercado
entrou em atividade febril, numa busca por parcerias estratégicas para
arrematar o patrimônio construído ao longo de décadas pela União e
pelos estados. O governo, que via nas privatizações uma forma de
modernizar as empresas e destravar nós do crescimento, anunciou
amplas fontes de créditos a juros camaradas. Até dezembro de 1998, a
União e os governos estaduais venderam quarenta e oito grandes
estatais.
Dantas, o entusiasta número um das privatizações, jamais perderia a
oportunidade — nome do seu banco, em inglês. Sua visão era radical, e
ele sempre fazia questão de externá-la. Quando lhe indagaram se o
governo deveria vender o Banco do Brasil e a Petrobras, afirmou: “Acho
que deve e vai. Se o governo tem necessidade de recursos e tem
prioridades mais importantes para a aplicação do dinheiro, deve vender.
Qual é o sentido de despender energia administrativa e recursos naquilo
que não é prioritário?”.48
Para participar dos leilões, Dantas tomou uma medida estratégica que
se revelaria de grande utilidade na criação de seus consórcios para a
disputa dos leilões. Trouxe para o Opportunity duas pessoas que haviam
ocupado cargos de relevo nas estratégias dos dois últimos governos,
Pérsio Arida e Elena Landau. Estudante na oposição à ditadura militar,
preso e torturado em 1970, Arida ajudou no Plano Cruzado em 1986. No
ano seguinte, tornou-se diretor-executivo de private equity do Brasil
Warrant S.A., um braço da família de banqueiros Moreira Salles. Entre
setembro de 1993 e janeiro de 1995, Arida presidiu o BNDES, que teve
papel fundamental nas privatizações, ao conceder linhas especiais de
crédito. Na prática, o BNDES era o responsável pela execução do
programa. No governo Itamar, Arida foi um dos economistas que
trabalharam para formatar o exitoso Plano Real (1994). No governo FHC,
presidiu o BC no primeiro semestre de 1995, de onde saiu direto para
uma sociedade com o Opportunity. Ali, passou a ser apresentado como
“parceiro sênior” e responsável pela área de investimentos. A economista
Elena Landau também deixou o cargo de coordenadora do programa de
desestatização do BNDES para se tornar consultora do Opportunity.
Antes, atuou entre setembro de 1996 e outubro de 1997 na gerência do
banco de investimentos Bearn Sterns. Essa transição do público para o
privado despertou objeções na imprensa e no Congresso, que tiveram
pouco eco, pois legalmente nada os impedia de trabalhar para Dantas.
Arida e o banqueiro se tornaram sócios.
Depois, o banco reconheceu por escrito o importante papel de Elena
para o sucesso do banco nas privatizações: “Enorme e importantíssima foi
a atuação de Elena Landau, contribuindo para a conquista das
importantes posição [sic] participação do banco Opportunity”.49
Em julho de 1995, Dantas estreou na primeira venda de uma estatal
de energia elétrica, a Escelsa (Espírito Santo Centrais Elétricas). O grupo
de Dantas entrou com US$ 34 milhões para uma concessão de trinta
anos. No final de 1996, o Opportunity ajudou a comprar, com US$ 2,7
milhões, uma empresa de operação de serviço de pagers, a Paging
Network do Brasil, que tinha então 47 mil assinantes. Teve como
coinvestidores duas empresas norte-americanas e a TVA, do grupo de
comunicações Abril, que edita a revista Veja.50 Esse negócio não
prosperou.
Na mesma época, Dantas aproximou-se dos maiores fundos de
pensão de funcionários de estatais e começou a “manejar certos
investimentos desses fundos”. 51 Tal como havia feito com o Icatu, o
papel básico de Dantas era fazer render dinheiro. Desde 1993, o
Opportunity também operava dinheiro de aplicadores estrangeiros. Os
recursos investidos sob controle do banco passaram de US$ 70 milhões,
em dezembro de 1993, para US$ 3,8 bilhões em dezembro de 1997.
Os fundos de pensão de petroleiros, bancários, eletricitários de
empresas públicas, dentre outros, sofrem interferência do Executivo.
Embora os fundos sejam sociedades civis fechadas de previdência
complementar, seus dirigentes são escolhidos parte pelo comando das
estatais, às quais eles estão vinculados, e parte pelos servidores. Em
última análise, é o governo que nomeia os presidentes dos fundos. As
estatais são obrigadas a entrar com dinheiro caso os fundos de pensão
enfrentem problemas financeiros, o que torna simbiótica a relação entre
as estatais e os fundos. Colossos da economia brasileira, os fundos de
pensão são vistos como fonte inesgotável de recursos para os interesses
estratégicos do governo. O maior deles, a Previ, dos funcionários do
Banco do Brasil, tinha a seu dispor, em 1998, uma carteira de
investimentos de R$ 21,41 bilhões. Vinculavam-se à Previ 117.588
bancários, entre aposentados, pensionistas e ativos.
Em agosto de 1996, o Opportunity apresentou aos fundos de pensão
pela primeira vez a ideia de uma longa parceria com vistas à aquisição de
estatais. O novo método previa uma junção dos fundos de pensão com
outros fundos nacionais e estrangeiros, tudo sob o controle efetivo do
Opportunity. Pela legislação em vigor, os fundos de pensão tinham
restrições sobre a condução administrativa das empresas futuramente
privatizadas, não podiam deter mais do que 25% do capital votante.
Também havia restrições sobre a gestão administrativa das empresas. O
espírito da lei era impedir que os fundos de pensão instalassem um novo
monopólio semelhante àquele que estava sendo desmontado. Por isso, e
instados a colocar de pé a política privatizante do governo FHC, os fundos
de pensão concordaram com a solução que dava grandes poderes ao
Opportunity.
Em maio de 1997, Dantas viveu sua primeira grande vitória na onda
das privatizações, aliado aos fundos e a um consórcio liderado pelo
empresário Benjamin Steinbruch, da CSN (Companhia Siderúrgica
Nacional), e o BNDESPar. E foi uma operação já sob as marcas da
suspeita e da polêmica. O grupo arrematou a maior empresa de
mineração do país, a Vale do Rio Doce, por US$ 3,3 bilhões, relativos a
41,7% das ações com direito a voto até então em poder da União. Mas os
críticos do processo denunciaram que o valor não levou em conta o
potencial das jazidas ainda não exploradas. Mais de cem ações judiciais
foram protocoladas em todo o país para impedir ou anular a venda, sem
sucesso. Em 2010, o valor da empresa foi estimado em US$ 196 bilhões.
Dois anos depois, quando prestava depoimento no Senado, o então
ministro das Comunicações Luiz Carlos Mendonça de Barros fez uma
revelação que, estranhamente, passou em branco entre os
parlamentares. Reconheceu que ele e Ricardo Sérgio de Oliveira
manobraram para “procurar criar, como criamos” o consórcio que acabou
arrematando a Vale do Rio Doce. Ricardo Sérgio era o diretor da área
internacional do Banco do Brasil, por indicação dos ministros José Serra
(Saúde) e Clóvis Carvalho (Casa Civil), após uma experiência, nos anos
1980, como executivo do Citibank.52
A primeira relação, quanto à privatização, em que eu trabalhei
junto com Ricardo Sérgio, quando eu era presidente do BNDES,
foi no caso da Vale do Rio Doce. A Vale foi uma privatização
também bastante complexa, também algumas semanas antes do
leilão praticamente todos os consórcios, por várias razões, se
desmontaram, ficamos apenas com o consórcio da Votorantim, da
Anglo American e mais outras empresas, e exatamente eu e
Ricardo Sérgio tivemos a responsabilidade de procurar criar,
como criamos, uma segunda alternativa, que foi baseada na CSN,
no Bradesco e em fundos de pensão, e o Ricardo Sérgio é quem,
por ser diretor da área corporativa, foi o encarregado pela
diretoria do banco de coordenar esse trabalho. Talvez aí tenha
sido, foi a primeira, ou única, vez que esse trabalho de levantar
um consórcio, criar um segundo consórcio, acabou sendo exitoso,
porque esse consórcio acabou ganhando.53
Ricardo Sérgio e Barros representaram o governo FHC na montagem
do consórcio. Pelo lado dos empresários, teve papel relevante Dantas,
como ele reconheceu, em depoimento protocolado anos depois na Justiça
de Nova Iorque.
Mas Mendonça de Barros não disse ao Senado tudo sobre a
privatização da Vale. Dado essencial ele revelaria só dois anos mais
tarde, quando contou à Veja que, em 1998, Steinbruch lhe disse, num
encontro na casa do ex-ministro, em São Paulo, “que ele teria se
comprometido com um pagamento de uma comissão para que o consórcio
da Vale, que ele liderou, fosse organizado”. Teria mencionado o nome de
Ricardo Sérgio. Steinbruch teria falado algo em torno de 15 milhões, se
dólares ou se reais, Barros já não lembrava.
O ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza também disse à
revista ter ouvido as mesmas reclamações de Steinbruch. À revista
Oliveira rebateu: “É mentira grosseira e leviana”. As investigações não
resultaram em condenação judicial de Ricardo Sérgio, que sempre negou
a história.
Em maio de 1997, Dantas viveu sua segunda vitória, no leilão da
Cemig (Centrais Elétricas de Minas Gerais). O Opportunity, por meio de
um fundo que ele lançou e gerenciou, se associou aos fundos de pensão
Petros (petroleiros) e Sistel (telefônicos), entre outros, e ao consórcio
Southern Electric, liderado pela empresa norte-americana homônima.
Ajudou a arrematar, por US$ 1,13 bilhão, cerca de 33% do capital
votante da Cemig. Elena Landau ajudou na formatação do consórcio e foi
a representante do Opportunity no conselho administrativo da Cemig
entre 1997 e 2000.
Dantas e seus investidores continuaram colecionando estatais.
Comprou parte da Opportrans (operação do Metrô do Rio) e do maior
terminal de contêineres da América Latina, o Tecon-1 do Porto de Santos,
por meio da empresa Santos Brasil. O banco fechou o ano com US$ 339
milhões investidos em nove companhias.
Mas a prioridade de Dantas era as telecomunicações. Comandado pelo
homem forte do governo, Sérgio Motta, ex-coordenador de campanhas
eleitorais de FHC e ministro das Comunicações, o programa era o mais
ambicioso da gestão FHC. Em novembro de 1995, Motta e FHC lançaram
oficialmente, no auditório do Itamaraty, o Programa de Reforma
Estrutural do Setor de Telecomunicações. A medida foi precedida pela
quebra, em votações no Congresso, do monopólio estatal das
comunicações.
Dantas estava de olho no dinheiro do exterior. Em 1996, ele fez as
primeiras negociações para atrair um parceiro precioso, o Citibank de
Nova Iorque. O banco atuava em mais de 300 companhias no sistema de
private equity no mundo e tinha a intenção de entrar no Brasil por uma
razão especial. Detinha uma fortuna em títulos emitidos pelo governo
brasileiro em substituição à parte da dívida brasileira e queria utilizá-los
no processo de privatização. Os títulos eram parte do Plano Brady,
lançado no final dos anos 1980, ao qual o Brasil se juntou em 1994, para
reestruturação das dívidas dos países. Em 1987, quando o então
presidente José Sarney declarou a moratória da dívida externa brasileira,
o Citibank era o maior credor privado do Brasil, com US$ 4,6 bilhões. O
então presidente do Comitê de Restruturação das dívidas dos países com
o banco, William Rhodes, também foi um interlocutor privilegiado dos
credores com o Brasil, ao presidir reuniões do Comitê Assessor dos
Bancos Credores nos EUA.
A negociação da dívida do Brasil com base no Plano Brady foi
concluída em 1994. Dois anos depois, na gestão FHC, o objetivo do Citi
era trocar os bradies — por meio de um fundo montado e controlado pelo
banco no paraíso fiscal das ilhas Cayman — pelas ações das empresas
estatais que seriam privatizadas no Brasil. Essa estratégia aparece
detalhada numa carta de “tratamento confidencial” de 14 de março de
1996, assinada pelo conselheiro-geral do Citicorp/Citibank, Carl Howard.
Sob o título “Fundo de Privatização e Infraestrutura Brasileiras”, a carta
comunica ao agente regulador americano, a OCC, que o banco pretendia
utilizar US$ 1 bilhão do total de US$ 3,3 bilhões em títulos relativos ao
Brasil — a participação do Citi nas telecomunicações no Brasil acabou
sendo de aproximadamente US$ 700 milhões. O fundo então denominado
“BIP” seria instituído pelo banco nas ilhas Cayman, mas administrado por
alguém residente no Brasil. Um nome que o Citi ainda não revelava.
“Profissionais de investimento com larga experiência no Brasil vão
aconselhar o BIP a respeito desses investimentos e vão implementar os
objetivos globais da companhia. Esses indivíduos ainda estão sendo
identificados.”54
O “indivíduo” brasileiro seria Dantas. Ele tinha vínculos com o
Citibank de novo graças ao seu mentor, Simonsen, que era nada menos
que membro do Conselho de Administração do Citigroup. O professor
abriu a Dantas muitas portas. Em 1996, por exemplo, eles jantaram no
Rio, por mais de quatro horas, com o ex-secretário de Defesa dos EUA
Henry Kissinger.
Simonsen pôs Dantas cara a cara com o principal nome do Citigroup.
[Simonsen] me convidou para ajudá-lo a fazer uma apresentação
para o John Reed, o então chairman do Citigroup, sobre o
endividamento do Brasil. Chamou-me à sala dele e disse que a
melhor forma de organizar as explicações seria num quadronegro. Foi para a sala de aula e pôs o John Reed sentado em uma
carteira. Ficou no quadro-negro e eu permaneci no outro lado
para ajudá-lo a explicar o desenvolvimento das equações. E o
John Reed ficou lá como um aluno, prestando muita atenção.55
Na mesma linha do que havia feito com Arida e Landau, Dantas
convidou para sua equipe no Opportunity uma pessoa intimamente ligada
aos planos do Citibank. O americano Robert E. Wilson foi, entre 1993 e
1996, o vice-presidente de Investimento de Capitais dos banco, com
trinta projetos na América Latina. Wilson havia desempenhado papelchave no sistema bolado pelo Citibank para o uso dos bradies, como ele
contou à Justiça de Nova Iorque, em 2008: “Eu propus um programa pelo
qual o Citibank poderia trocar uma parte de seus brady bonds brasileiros
para capitalizar um fundo de privatização do Brasil. O chairman do
Citibank aprovou essa proposta”.
O plano ajustado entre Opportunity, Citibank e fundos de pensão
previa a criação de três fundos paralelos. Haveria o Fundo Nacional,
registrado na CVM (Comissão de Valores Mobiliários) brasileira e
constituído com recursos dos fundos de pensão, um Fundo Estrangeiro,
formado majoritariamente por um sócio estrangeiro, o Citibank, e, por
último, o Opportunity Fund, criado pelos Dantas nas ilhas Cayman. As
três
“entidades”
fariam
em
conjunto
os
investimentos
e
“desinvestimentos”. No topo da gestão dos três fundos, mediante uma
taxa de administração, estaria o Opportunity. Os acordos de acionistas
também permitiram ao banco indicar os principais dirigentes e
conselheiros das empresas que seriam adquiridas. Mas tudo isso, é claro,
não significava uma carta branca para cometer irregularidades.
Dantas criou o Opportunity Fund no início da década de 1990 nas
ilhas Cayman. Era
uma companhia de investimentos com ativos que excedem US$
900 milhões. Está organizado em uma gama variada de
subfundos, cada um com objetivo de investimento distinto,
oferecendo a seus investidores opções que variam desde a renda
fixa tradicional norte-americana a investimentos agressivos no
Brasil.56
O fundo tinha “quase mil participantes, mais de trinta subfundos e
investimento mínimo de US$ 50 mil para a maioria dos subfundos”.
O atendimento a clientes e a escrituração são efetuados por UBS
(Cayman Islands) Ltd., no domicílio do Opportunity Fund. As
decisões de investimentos são realizadas pelo Opportunity Asset
Management Ltda., responsável ainda pela execução das ordens
de compra e venda dos ativos componentes da carteira do fundo.
Uma vez, ao descrever seu fundo, Dantas alegou que simplesmente
não sabia quem era o dono final do próprio dinheiro que o banco
manobrava:
“O Opportunity Fund é um fundo constituído internacionalmente e ele
capta recursos internacionais para investir no Brasil [...] O nosso papel é
só administrar os fundos. Nós não temos o conhecimento de quem é o
beneficiário final desses recursos.”
Para as conversas com Dantas, o Citibank designou a americana Mary
Lynn Putney, membro do Comitê de Investimentos do banco, nos EUA.
Ela havia atuado no CVC, como era identificada a área de private equity
do Citi, na Europa e na Rússia. Entre junho de 1996 e junho de 2004, foi
a diretora administrativa do CVC Internacional.
Em 1997, Dantas viajou com frequência aos EUA para se encontrar
com Mary. Também levou Mary e outro alto executivo do CVC, William
Comfort, para uma reunião com o presidente FHC no Palácio do Planalto.
Dez anos depois, numa gravação telefônica interceptada pela PF, Dantas
disse que a reunião meramente “ajudou a persuadir o governo a
estimular” o sistema de private equity no Brasil.57
Quando deu esse telefonema, em 2008, Dantas já estava em guerra
com o Citibank e, por isso, poderia querer minimizar o papel dos norteamericanos. Mas, em 2005, Dantas tinha dado mais detalhes, associando
a reunião com FHC à abertura de créditos no BNDES e de parcerias com
os fundos de pensão, o que de fato ocorreu:
Fomos ao governo brasileiro, inicialmente ao presidente Fernando
Henrique Cardoso, e pedimos e sugerimos, se fosse possível, criar
uma linha e uma estrutura que pudessem apoiar esse tipo de
iniciativa [private equity] [...] O governo, à época, achou que
seria interessante, e o BNDES criou uma linha para apoiar esse
tipo de iniciativa, e algumas outras vieram atrás. Nós
precisávamos também captar recursos institucionais; abordamos
o único mercado institucional que existia no Brasil naquele
momento, que eram os fundos de pensão. Depois de muito
trabalho, conseguimos captar desses fundos um valor que era
bastante inferior ao que traríamos de fora, mas que fechava a
equação.58
Um ano depois, ao depor no Congresso, Dantas deu explicação bem
mais genérica. “Eu tive meu primeiro contato com o presidente Fernando
Henrique Cardoso, já eleito presidente da República, numa reunião que
solicitei para reclamar das pressões que sofremos na compra da CRT
[empresa telefônica do Rio Grande do Sul].”
FHC disse que a reunião com Dantas e o Citi foi mais que uma
“apresentação de projetos”.
“Eu recebi dezenas, centenas de investidores. Uma vez, ele veio com
o Citi [...] Uma coisa protocolar. Em geral é para dizer: ‘Ah, o Brasil está
muito bem, vamos investir mais’. É isso. Eles nunca vêm para perguntar
objetivamente sobre alguma coisa.”59
As conversas entre governo e empresários jamais ficaram só nisso.
Entre 1997 e 1998, por exemplo, atendendo a um pedido que, segundo a
r e v i st a Veja, partiu do então ministro Mendonça de Barros, os
empresários interessados em participar do leilão das empresas telefônicas
foram instados a custear e divulgar peças publicitárias no rádio e na tevê
em apoio ao programa de venda das empresas telefônicas. O trabalho
teria sido encomendado pelo ministro a Dantas. O banqueiro estimulou
uma ONG, a Associação Brasil 2000, em nome de um empresário amigo
do setor de construção civil do Rio. A ONG arrecadou R$ 2,12 milhões
entre dez empresários.60
O pacto Citibank-Opportunity foi selado no dia 30 de dezembro de
1997, sete meses antes do leilão das empresas telefônicas. O arranjo
tornou Dantas o responsável pela gestão do Fundo Estrangeiro no Brasil,
denominado CVC/Opportunity, que manejaria cerca de US$ 700 milhões
e investiria no Brasil por meio de uma “empresa-veículo” sediada no
Brasil. Nos dias anteriores ao leilão, também a TI (Telecom Italia) se
associou a Dantas na disputa pela BrT (Brasil Telecom), então chamada
Tele Centro Sul e responsável pela telefonia no Centro-Oeste. Mas o
consórcio ainda não estava formatado.
Era ainda necessária a entrada efetiva dos fundos de pensão, que
iriam adquirir as cotas do Fundo Nacional. O parceiro essencial era a
Previ. Esse acordo foi fechado apenas dois dias antes do leilão. Além
disso, também foi às vésperas do leilão que o Banco do Brasil emitiu uma
carta de fiança para o consórcio — muito embora o grupo já tivesse uma
carta semelhante, do próprio Citi. Os bastidores dessas negociações, as
quais se encerraram tão em cima da hora, só vieram a público mais de
dois meses depois do leilão, e por meio de um crime: uma série de
telefonemas gravados ilegalmente por aparelhos acoplados à linha
telefônica da sede do BNDES, no Rio. Foi um dos maiores escândalos dos
oito anos da era FHC — e Dantas esteve no olho do furacão.
A história surgiu em novembro de 1998, na coluna do jornalista Elio
Gaspari na Folha e O Globo e numa reportagem da revista Época. Na
semana seguinte, as revistas Veja e CartaCapital trouxeram informações
mais detalhadas e incendiárias, que levaram à queda do então ministro
das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, e do presidente do
BNDES, André Lara Resende. Meses depois, a Folha fez uma histórica
edição com seis páginas de transcrições das principais conversas contidas
em quarenta e seis fitas.61 A pessoa que entregou as gravações nunca
foi revelada. Elas permitiram verificar que as figuras de proa do governo
FHC na área das privatizações fizeram pressão para beneficiar o grupo de
Dantas na maior privatização da história brasileira. Duas conversas com a
voz de Dantas foram interceptadas. O nome do Opportunity foi citado
vinte três vezes, e o de Dantas, dez. O homem do Opportunity que mais
operou junto ao governo, Pérsio Arida, teve quatro conversas
grampeadas e foi citado onze vezes.
Às vésperas da disputa, que ocorreu no Rio em julho de 1998, o exministro Mendonça de Barros explicou ao seu irmão, José Roberto, que o
governo tinha poderes para derrubar e construir os consórcios
considerados mais fracos, ou “borocoxôs”, pois as promessas de
financiamento pelo BNDES e as cartas de fiança estavam todas nas mãos
do governo. Uma das conversas gravadas expõe a orientação de Barros
para que a Previ fechasse o acordo com Dantas. Bilachi procurou acalmá-
lo: “Olha, da nossa parte aqui, ministro, nós soltamos a luz branca e já
estamos chamando o Daniel [Dantas] para ver se a gente fecha tudo”.
Após aquiescer, Barros colocou Pérsio Arida na linha para falar com
Bilachi. Na hora mais dramática do fechamento dos consórcios, o sócio de
Dantas despachava ao lado do ministro das Comunicações. Arida
ponderou: “Só tem uma coisa que me preocupa, que é a ‘contragarantia’
de vocês à fiança bancária, porque o Banco do Brasil aparentemente não
está disposto a dar fiança para a [disputa da] Telemar. Eu tenho a fiança
do Citi, mas preciso da assinatura da ‘contragarantia’”.
Quando a polêmica estourou, Dantas disse, e até hoje diz, que a
carta de fiança do BB era desnecessária, mas naquela ligação Arida
demonstrou o quanto o consórcio dependia do BB. Arida devolveu o
telefone para Barros. Citando o presidente, o ministro advertiu:
— Jair, sabe o que é? Nós estamos aqui, eu, o André, o Pérsio e o
Pio, mas estamos muito preocupados com a montagem que o
Ricardo [Sérgio] está fazendo do outro lado, porque está faltando
dinheiro do outro lado, e a gente está sabendo que uma das
alternativas é depois fundir as empresas com a holding, e aí fica
um negócio... Não fica limpo, né, Jair? E a minha primeira
preocupação, o presidente já ligou de novo, é que a gente ponha
em pé esse negócio da Telemar, porque, senão, o que
aparentemente vai ser um puta sucesso pode ficar um negócio
meio amargo, se não for uma coisa importante como a Telemar,
né?
— Ministro, nós estamos concentrando forças nesse aqui, como
dissemos — respondeu Bilachi.
— Tudo bem, mas o importante para nós é que montem com o
Pérsio, evidentemente chegando a um acordo, e em tudo que
precisar aqui nós ajudamos, entende? Agora, vocês precisam se
entender.
Ele pregou textualmente que a Previ devia se associar a Dantas, o
que de fato ocorreu naquele mesmo dia.
O empresário Carlos Jereissati, irmão do então senador do Ceará
Tasso Jereissati (PSDB), tinha boas relações com Ricardo Sérgio de
Oliveira e com o seu indicado na Previ, o então diretor de investimentos
do fundo de pensão, João Bosco Madeiro da Costa. Jereissati, do Grupo La
Fonte, e a construtora Andrade Gutierrez haviam articulado o consórcio
adversário do Opportunity na disputa pela parte mais suculenta das
telecomunicações fixas, a Tele Norte Leste. Em 1994, Jereissati
contribuiu com “cerca de R$ 700 mil” para a campanha de Serra ao
Senado. Parte desse dinheiro, ou R$ 95 mil, foi doada “por intermédio do
economista Ricardo Sérgio” e declarada à Justiça Eleitoral, segundo
Jereissati reconheceu ao jornalista Fernando Rodrigues.62
Sabedor da ligação entre Ricardo Sérgio e Jereissati, Mendonça de
Barros achava que o diretor do BB fazia corpo mole em relação ao
consórcio do Opportunity, na hora de emitir a carta de fiança. No último
momento, porém, eles se acertaram. Ricardo Sérgio ligou para Barros e
explicou a situação:
Escuta, falei com o Daniel. Ele vai daqui a pouco lá para a Previ.
Então, a história é a seguinte: os outros têm, o grupo dele tem
Telefónica e vão “bidar” [dar lance no leilão]. Os fundos vêm com
o Opportunity e vão “bidar” e devem ganhar [...] Se por acaso
perderem, os fundos serão convidados num “momento dois” pelos
outros.
Mais tarde, os dois voltaram a se falar. Barros cobrou ostensivamente
a carta de fiança para o Opportunity. Ricardo Sérgio respondeu: “O
Daniel [Dantas] conversou comigo... Ele falou: ‘Eu tenho para a Stet
[Telecom Italia], pro Citibank e pros fundos’. Então eu dei [cartas] para
Embratel e dei R$ 874 milhões para a...”.
O ministro interrompeu: “Está perfeito”. Ricardo então advertiu, em
frase que ficou famosa: “Nós estamos indo no nosso limite de
irresponsabilidade... [risos] Eu dei uns três bi de fiança aqui hoje”.
Num dos grampos mais comentados, Lara Resende procurou o próprio
presidente da República para saber se podia usar seu nome para forçar a
Previ a atender às necessidades do Opportunity. “Então, o que nós
precisaríamos é o seguinte: com o grupo do Opportunity, nós até
poderíamos turbiná-lo, via BNDESPar. Mas o ideal é que a Previ entre
com eles lá”, explicou Resende. “Com o Opportunity?”, quis saber FHC.
“Com o Opportunity e os italianos.” O presidente concordou: “Certo”.
Na noite que antecedeu o leilão, Resende também telefonou para
Arida. Eles tiveram uma enigmática conversa. Resende disse que, antes
do leilão, queria se encontrar com Arida. “Eu quero falar com você antes,
tá? Para saber o que você tem... Para sentir o pulso. Porque, se precisar,
nós vamos ter que detonar a bomba atômica.” A maior parte da imprensa
considerou que a “bomba atômica” era FHC, pois a expressão já havia
aparecido, em outra conversa, associada claramente ao nome do
presidente.
A parceria deslanchou. Ao Congresso Dantas afirmou que o Citibank
aportou no “Fundo Estrangeiro” US$ 700 milhões, os fundos de pensão,
R$ 560 milhões, e o Opportunity Fund, US$ 200 milhões “ou talvez um
pouco mais”. No “Fundo Nacional”, os fundos de pensão entraram com R$
485 milhões, na seguinte proporção: a Previ (Banco do Brasil), com R$
150 milhões (26,92%), a Funcef (Caixa Econômica), R$ 110 milhões, e
dez fundos de pensão menores, com R$ 225 milhões. O BNDES entrou
com mais R$ 40 milhões.
O Opportunity também obteve a carta de fiança do BB, protocolada
na Bolsa do Rio poucas horas antes do prazo final.
O governo colocou à venda o direito de exploração de todo o sistema
Telebras, com vinte e sete operadores estaduais de telefonia fixa, oito de
celular e uma operadora de longa distância. A rede fixa foi dividida em
três grandes lotes: a Telesp (São Paulo), a TCS (Tele Centro Sul), que
englobava Centro-Oeste e Sul do país mais o Acre, e a TNL (Tele Norte
Leste), também conhecida como Telemar, responsável pelo Sudeste, com
exceção de São Paulo, mais Nordeste e Norte.
A expectativa do mercado e do governo era que os espanhóis da
Telefónica iriam dar um bom lance e vencer o leilão da TCS, por uma
razão: os espanhóis já haviam adquirido a CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações), em sociedade com o grupo gaúcho de
comunicação RBS, e o esperado era que comprassem as linhas dos
estados mais próximos, como Santa Catarina e Paraná, ambos da área da
TCS. Pelas regras instituídas pelo governo, caso os espanhóis
comprassem outra área, que não a TCS, eles teriam que vender a CRT.
Era, então, um raciocínio lógico prever a vitória da Telefónica na TCS.
O consórcio de Dantas investiu as melhores fichas na disputa pela
TNL, que abrangia dezesseis estados e era fonte certa de lucro. Para que
tudo isso desse certo, contava com a vitória dos espanhóis na TCS. A
Telesp ficaria, por esse prognóstico, nas mãos do consórcio formado por
Organizações Globo, Telecom Italia e Bradesco.
À véspera do leilão, Mendonça de Barros telefonou a FHC para dizer
que o leilão iria transcorrer da seguinte forma: “A não ser que haja
alguma novidade, quer dizer, no fundo é o que a gente já sabia: os
espanhóis ficam com o Sul; a [Telecom] Italia [associada] com O Globo,
com São Paulo; e o Opportunity, com os italianos e com os fundos na
Telemar”.
Mas a novidade veio.
No dia do leilão, todos os consórcios deveriam entregar ao mesmo
tempo os envelopes com as propostas para todos os lotes. Quando um
consórcio vencia uma área, suas propostas para as áreas seguintes eram
destruídas num picotador de papel, de modo a impedir que um mesmo
grupo dominasse duas ou três áreas. Os envelopes foram abertos na
seguinte ordem: Embratel, Telesp, TCS e TNL. Para espanto geral, os
espanhóis apresentaram lance de R$ 5,78 bilhões para a Telesp,
superando o consórcio dos italianos em R$ 1,8 bilhão. Assim, a Telefónica
não podia mais disputar a TCS, o bloco seguinte do leilão. O resultado foi
que a TCS acabou arrematada quase que por acaso pelo consórcio de
Dantas, com um pequeno ágio de 6% e uma oferta de R$ 2,07 bilhões, o
que também tirou o grupo de Dantas do lote mais cobiçado, a TNL. O
consórcio “patinho feio” da disputa, do grupo dos empresários Jereissati e
Sérgio Andrade, tão combatido por uma parte do governo, acabou
levando a TNL com um ágio irrisório de 1%, ao preço de R$ 3,43 bilhões.
Por ironia, a derrota do Opportunity na TNL pode ter livrado o
governo de uma crise ainda mais séria, pois deu ao governo uma defesa,
repetida à exaustão: a “prova” de que não interferiu no leilão foi que o
Opportunity perdeu. Contudo, a oposição no Congresso, parte da
imprensa e o Ministério Público Federal não concordaram que essa
explicação pudesse justificar toda a operação levada a cabo para
beneficiar o consórcio de Dantas.
O governo tentou se safar do problema. Em novembro de 1998,
Mendonça de Barros foi prestar esclarecimentos ao plenário do Senado.
Ele disse que a União amealhou “mais de R$ 22 bilhões”. Negou ter
privilegiado algum grupo e disse que as gravações foram editadas.
Porém, reconheceu que havia atuado para contornar dificuldades que a
Previ havia apresentado na última hora sobre o consórcio de Dantas:
Se apenas um consórcio se apresentasse, nós teríamos,
evidentemente, a empresa vendida pelo preço mínimo.
Procuramos, por meio de discussões com os três grupos
envolvidos nesse consórcio, contornar as dificuldades que a Previ
colocava [...] Conseguimos, antes do leilão, que esses pontos
administrativos que ameaçavam a formação desse consórcio
fossem superados. E o consórcio de novo passou a existir.
Barros admitiu ter procurado Ricardo Sérgio após uma manifestação
do banco de Dantas. “No final da tarde, o Opportunity comunicou ao
BNDES que não estava conseguindo a carta de fiança do Citibank
exatamente porque a Previ não se propunha a assinar o documento de
consórcio oficialmente formado, e isso era uma das exigências do
Citibank.”
O ministro também deixou bem claro que torcia por Dantas.
Nós, realmente, eu, o André, tínhamos uma preferência pessoal
pelo consórcio do Opportunity em relação à Telemar. Por uma
simples razão: nós tínhamos acompanhado a formação do
consórcio Telemar desde o começo [...] Sabíamos que era
formado por empresas importantes, mas empresas que não
tinham nenhuma experiência no setor de telecomunicação e, pior
ainda, empresas que nunca tinham trabalhado juntas.
Mendonça de Barros pediu demissão do cargo dias depois.
O Ministério Público Federal iniciou uma investigação, mas “bateu
cabeça”. Em Brasília, o procurador Luiz Francisco de Souza abriu um
procedimento, enquanto os procuradores no Rio Rogério Soares do
Nascimento, Daniel Sarmento e Flávio Paixão de Moura Júnior abriram
outro. Luiz Francisco queria discutir as privatizações como um todo,
enquanto o grupo do Rio tinha por foco apenas o leilão das empresas
telefônicas.
Em seis anos na função, Nascimento já havia investigado dois bancos,
Nacional e Marka, e uma lista de beneficiados por uma “caixinha” do jogo
do bicho. O maior problema na sua nova apuração era a impossibilidade
de usar os grampos, por serem produtos de um crime. Outro entrave
esteve no Banco do Brasil. Os procuradores tiveram de ir à Justiça, com
medidas cautelares, para ter acesso aos documentos.
Ao longo da apuração, Nascimento notou três estranhos movimentos.
Primeiro, apareceu um homem que se dizia enviado de um jornal da
comunidade brasileira em Miami (EUA). Uma rápida checagem
demonstrou que o jornal não existia, e o homem nunca mais apareceu.
Outra pessoa se disse advogado do Opportunity e irmão de uma
desembargadora federal. Pediu e obteve cópias dos depoimentos, pois o
inquérito era público. Mas os procuradores descobriram, depois, que a
pessoa não era advogada e ninguém a conhecia no escritório que
defendia Dantas. Depois, apareceu outro advogado, agora dizendo ser
parente de um desembargador do Tribunal de Justiça. Dessa vez, saiu de
mãos vazias.
Os procuradores passaram a tomar o depoimento das principais
pessoas citadas nas fitas, com exceção do presidente FHC, coberto pelo
foro privilegiado no STF. No final de 1998, Dantas compareceu ao
gabinete de Nascimento, no 11º andar da rua Nilo Peçanha. Ali já haviam
estado Jereissati, Pérsio Arida, Mendonça de Barros e Lara Resende.
“Daniel Dantas foi o mais frio de todos. Não transpareceu estar
intimidado, não confortável, mas muito seguro o tempo todo. Ele foi
lacônico, seguro e pouco informativo. Falava o mínimo possível”, disse o
procurador doze anos depois.63
Mas o banqueiro teve um problema. O procurador percebeu que
Dantas tinha dois números de CPF. O advogado que o acompanhava,
Sérgio Bermudes, disse que não havia ilegalidade. “Só é ilegal tirar outro
CPF com o propósito de fraude”, defendeu o advogado.64
Anos depois, Dantas alegou ter se confundido: “Eu morava em
Salvador até os vinte ou dezenove anos de idade. E, para abrir uma
conta bancária, eu tirei um CPF. Quando fui morar no Rio e comecei a
trabalhar, não lembrei que tinha o outro e tirei um outro CPF. Nunca usei
o CPF anterior”.65
No depoimento, Dantas alegou que a carta de fiança do Banco do
Brasil não era essencial para o consórcio, embora as conversas
telefônicas e o depoimento de Mendonça de Barros indicassem o
contrário. O banqueiro afirmou que “o Citibank de fato também concedeu
fiança; o Opportunity preferiu usar a carta concedida pelo Banco do
Brasil, e isso em razão da importância que a instituição tem para o país”.
Ricardo Sérgio também disse ao procurador que “não houve nenhum
favorecimento” e que concedeu cartas de fiança a outros consórcios. Jair
Bilachi reconheceu que o negócio com o Opportunity foi fechado poucos
dias antes do leilão:
A Previ já tinha a intenção de participar do processo associada ao
Opportunity pelo menos três meses antes do leilão [...] a Previ
apenas fechou o negócio com o Opportunity no dia 27 de julho,
antevéspera do leilão [...] porque este [o banco] terminou
cedendo e os interesses da Previ acabaram prevalecendo, o que
tornava esta proposta melhor do que a melhor proposta do outro
consórcio.66
As explicações nunca convenceram o procurador Nascimento:
Houve um favorecimento, mesmo que tenha sido um
favorecimento desastrado. Havia muitos atores, e ninguém tinha
como exercer o controle sobre os atores. Mas isso não
descaracteriza a ação do governo. O governo exerceu pressão
sobre os fundos, o que foi indispensável para viabilizar
economicamente o consórcio do Opportunity. Lara Resende e Pio
Borges atuaram explicitamente para o lado do Opportunity. O
processo de privatização supõe igualdade de condições entre
todos os agentes. O governo tem que ser impessoal. Era tudo
produto de certa promiscuidade entre o público e o privado.
Ficamos convencidos de que só deu errado por uma mera
casualidade.67
Um dos principais itens da apuração foi o depoimento prestado por
Mendonça de Barros no Senado. Ele simplesmente corroborou a essência
do conteúdo das fitas ilegais. Os procuradores ajuizaram ação por atos de
improbidade administrativa em junho de 1999, listando catorze pessoas e
empresas, incluindo o Opportunity. Os procuradores afirmaram que nem
mesmo as “boas intenções” alegadas por Mendonça de Barros poderiam
justificar o desrespeito à lei. Eles abordaram a declaração do ex-ministro
de que os italianos haviam lhe confidenciado, após o leilão, que a
proposta do consórcio do Opportunity seria R$ 1 bilhão superior à do
consórcio Telemar. Supondo que sim (nunca se soube ao certo, pois o
papel com a proposta foi triturado no leilão), os fundos de pensão
poderiam colaborar com, no máximo, R$ 1,1 bilhão, segundo a lei. Se
esse dinheiro não houvesse sido aportado, o lance do grupo de Dantas
ficaria em R$ 3,32 bilhões. Como a proposta vencedora foi de R$ 3,4
bilhões, os procuradores concluíram que os fundos de pensão eram o fiel
da balança da disputa.
O que aconteceria se a Previ tivesse decidido participar do
consórcio Telemar em vez do consórcio do Opportunity? Muito
provavelmente, seriam apresentadas duas propostas no leilão da
Tele Norte Leste, mas com valores invertidos: o do consórcio
formado pelo Opportunity próximo ao lance mínimo, e o do seu
adversário com um ágio bastante expressivo.68
A ação foi acolhida pela Justiça, mas o mérito não foi julgado até o
fechamento deste livro. Como se tornaria frequente nos processos
referentes ao Opportunity, uma série de recursos e argumentos jurídicos
fez o caso percorrer doze longos anos nos escaninhos da burocracia
judiciária sem nenhuma decisão sobre a simples dúvida: houve ou não
interferência ilegal do governo no leilão das empresas telefônicas?
O ex-presidente FHC continua defendendo a iniciativa do governo de
“se meter” na formação dos consórcios.
O que foi que o Luiz Carlos tentou explicar ao Senado e acho
que não convenceu? “O governo precisa que haja mais gente
[disputando].” Tem que valorizar o patrimônio. “Ah, não tem que
se meter.” Como não vai se meter? Se não se meter, vai vender
pelo mais baixo. Você tem que suscitar mais para defender o
interesse público.
Os líderes do PSDB sempre se referem a decisões do TRF e do TCU
(Tribunal de Contas da União) que atestaram a ausência de dano ao
erário por ocasião do leilão. Nenhum tucano foi condenado por suposta
irregularidade no leilão.
O caso, porém, teima em voltar ao noticiário de tempos em tempos,
vagando na história do PSDB como seu pior fantasma.
Três anos após o leilão, a revista Veja revelou que o senador ACM iria
denunciar uma suposta propina de R$ 90 milhões na disputa. Após ouvir
“dois interlocutores” de ACM, a revista afirmou que o Carlos Jereissati
confidenciou “a dois amigos” que Ricardo Sérgio cobrou uma “comissão
de 3,4% para ajudar na formação do consórcio Telemar”, dinheiro que
“deveria ser pago em três parcelas, mas só uma prestação foi depositada.
O trato acabou desfeito assim que veio a público o grampo telefônico no
BNDES”.69
A reportagem apontou que o homem do Opportunity soube dos
pagamentos: “Daniel Dantas descobriu a existência da propina ao se
associar ao consórcio Telemar”. A empresa fundada pelo consórcio de
Dantas para gerir a TCS, BrT (Brasil Telecom) e a Telemar teve alguns
negócios em comum a partir de 1998. Na edição seguinte, a revista Veja
voltou ao assunto. ACM disse que tinha a seu favor “uma prova
testemunhal”, cujo nome não revelou. A reportagem deu uma pista: “O
banqueiro Daniel Dantas, dono do Opportunity, que teria descoberto o
‘por fora’ quando se associou à Telemar, recolheu-se ao silêncio. ‘Não
confirmo nem desminto’, mandou dizer”.
Ricardo Sérgio afirmou, à época, em nota, que seu patrimônio era
“fruto de uma vida inteira de trabalho honrado”. Disse que não haveria
lógica no pagamento de propina, pois o grupo de Jereissati venceu a
disputa “num lance de sorte”. Jereissati também relatou à imprensa ter
ficado “perplexo” com a denúncia de ACM.
Depois que a poeira do caso BNDES assentou, Dantas voltou-se para
a administração das empresas que ficaram sob seu controle: BrT (receita
líquida de R$ 4,5 bilhões em 2000), Telemig Celular e Amazônia Celular
(R$ 1,1 bilhão), Sanepar (R$ 655 milhões), Metrô do Rio (R$ 110
milhões) e a empresa Santos Brasil (R$ 103 milhões), administradora do
maior terminal de contêineres do Porto de Santos.
Menos de dois anos depois, o Opportunity começou a enfrentar os
primeiros sérios problemas com três de seus principais parceiros: a
Telecom Italia, sócia na BrT, a canadense TIW, sócia na Telemig Celular,
e os fundos de pensão, sócios nas três empresas telefônicas. Depois que
estouraram o mensalão e a Operação Satiagraha, em 2005 e 2008, o
Opportunity passou a afirmar que foi perseguido pelo PT, mas essa teoria
precisa desconsiderar que as primeiras brigas ocorreram anos antes da
posse de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência, em 2003, e numa
época em que os fundos ainda eram todos presididos por indicados do
governo do PSDB. A poderosa Previ, por exemplo, era gerida por Luiz
Tarquínio Ferro, homem de confiança do Palácio do Planalto.
Parte dos dirigentes dos fundos era, de fato, ligada ao PT. Na
diretoria de investimentos da Previ, estava o jornalista Sérgio Rosa,
aliado do petista Luiz Gushiken. Mas o fato é que não foi em um governo
petista, mas em pleno segundo mandato do governo tucano de FHC, em
julho de 2000, que os fundos Previ, Petros e Telos e a TIW foram pela
primeira vez à Justiça contra o Opportunity.
Os canadenses, representados pelo executivo Bruno Ducharme,
tinham 48% das ações da Telemig com direito a voto, mas diziam que o
Opportunity havia promovido uma manobra societária que os prejudicou.
O Opportunity e os fundos haviam criado uma empresa, a Newtel, sob a
alegação de unir os sócios brasileiros e, em seguida, assinar um acordo
com a TIW pelo qual a canadense conseguiria manter papel ativo no bloco
de controle da companhia telefônica. Mas, quando a Newtel foi criada,
ficando com 51% das ações com direito a voto, a TIW passou a dizer que
o Opportunity não tinha usado de boa-fé na negociação. A TIW ou foi
enganada ou teve uma compreensão muito errada das complexas
relações societárias montadas pelo Opportunity. Os fundos de pensão se
uniram à TIW na reclamação — poucos anos depois, desgastada por
batalhas judiciais, os canadenses deixaram a companhia telefônica.
Dantas arquitetou um movimento que, aparentemente, passou
despercebido pelos canadenses [...] Até hoje não se consegue
explicar por que os fundos haviam concordado em criar uma nova
empresa, a Newtel, e ceder o controle para o Opportunity. Os
executivos da Previ e da Petros envolvidos nessa negociação
foram desligados.70
No início de 2000, o Opportunity passou a bater de frente com a TI
(Telecom Italia). Um dos focos do conflito era a CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações), que antes do leilão de 1998 pertencia à
Telefónica da Espanha. Pela nova lei que regulava o setor, a Telefónica
deveria se desfazer da CRT, e o comprador natural era a BrT. Mas os
italianos, os fundos de pensão e Dantas, parceiros no consórcio, passaram
a divergir sobre o valor da compra. O Opportunity dizia que a CRT não
valia mais do que US$ 500 milhões, mas a TI aceitava pagar US$ 850
milhões. O governo deu um ultimato para a solução do problema, e a
venda acabou fechada por cerca de US$ 800 milhões. O Opportunity dizia
ter sofrido “pressões” e “ameaças” para selar o negócio. Os fundos de
pensão reagiram às suspeitas, cerrando fileiras com a TI. A Petros
revelou então que a primeira avaliação sobre o preço da CRT foi feita
pela empresa de consultoria Salomon Smith Barney, contratada da BrT (à
época ainda TCS), que atribuiu um valor entre US$ 1,05 bilhão e US$ 1,3
bilhão. O relatório foi apresentado ao conselho de administração da TCS
em janeiro de 2000, sem que os três representantes do Opportunity no
órgão apresentassem objeção, segundo os italianos e os fundos.
“É ingênuo pensar que algo pudesse ser feito sem a plena
concordância do Opportunity, que controlava o Conselho de
Administração da TCS (e controla o da Brasil Telecom) com mão de
ferro.”71
O Opportunity disse à época que a primeira saída oferecida pela
Salomon era distinta da solução final, pois envolvia uma troca de ações
com a Telefónica, o que acabaria por resultar num custo de US$ 428
milhões para a BrT, bem abaixo do preço final.
Dantas também levou o assunto CRT ao primeiro escalão do governo
FHC. Ele contratou como seu consultor o jornalista Mauro Salles, dono da
agência de publicidade e relações públicas Publicis, que nos anos 1960 foi
diretor de jornalismo da Rede Globo. Ele enviou uma “carta pessoal” ao
presidente FHC, na qual contou ter participado de um almoço com o
então ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, Dantas e seu braço
direito, Carlos Rodenburg, com o objetivo de “uma busca de sintonia”
acerca da compra da CRT, mas as coisas não saíram como planejado.
Segundo Salles, o ministro afirmou que o banco havia tido uma
interpretação equivocada dos “posicionamentos do presidente” FHC.
Contudo, a carta de Salles deixa entrever o que estava por trás da
suposta indignação do Opportunity em relação ao valor da CRT: “Preciso
de uma palavra sua para dissipar as dúvidas levantadas pelo ministro
Pimenta. E para que se refaça o meu ânimo na luta contra a extorsão de
vincular o crédito do BNDES, a que a BrT tem direito desde a
privatização, a outra operação totalmente diversa como é a compra da
CRT”.
O crédito do BNDES era o real motivo do atrito Dantas-italianos. No
momento da carta, a Techold, acionista indireta da BrT, esperava obter
um aval da Telecom Italia para emitir debêntures em operação com
empréstimo do BNDES de cerca de R$ 700 milhões, parte dos quais seria
usada para pagar a terceira parcela do leilão da TCS. Desde 1998, as
empresas que participaram das privatizações se valiam dessa linha de
crédito do BNDES. Os italianos, contudo, não concordavam com as
garantias ofertadas ao BNDES, que incluíam as ações da parte italiana na
companhia telefônica.
O subtexto já havia sido detectado pelos observadores mais atentos,
como o jornalista Felipe Patury, então na Folha: “A referência [do
Opportunity sobre o BNDES] é dura e mostra que toda a discussão sobre
a compra da CRT que povoou os jornais por seis meses era vazia. A
Telecom Italia também está certa de que a discussão sobre preço tinha
como objetivo pressioná-la a dar o aval”.72
Salles exerceu uma pressão direta e ameaçadora sobre o governo, e
de uma forma muito pouco ortodoxa. Relatou ao governo ter levado a
informação sobre “pressões” para a compra da CRT a “uma elevada
autoridade do Planalto”, de nome não revelado — FHC negou ter sido ele
o destinatário. Entregou a cópia de uma carta redigida por Dantas, papel
que “pudesse, se necessário, ser usado como prova das pressões e dos
constrangimentos verificados”. O original foi assinado e guardado num
escritório de advogados de Nova Iorque. Dez cópias foram colocadas em
envelopes separados, em nome de “pessoas de inconteste idoneidade,
entre as quais estavam autoridades do governo”. Os envelopes, contudo,
não foram enviados, mas sim armazenados num outro envelope, que
permaneceu lacrado e em poder de Salles. Caso “houvesse um sinal”, ele
abriria o envelope e enviaria os dez envelopes pelo correio.73 Isso não
chegou a ocorrer, segundo Salles, porque o Opportunity conseguiu os
recursos necessários para quitar a dívida.
A autorização dos italianos só foi concedida após a intervenção de
ministros e integrantes do BNDES.
Quando foi depor no Congresso em 2005, Dantas reconheceu o
BNDES como pano de fundo no “caso CRT”, mas sempre se colocando
como o alvo de uma chantagem: “O crédito para o pagamento das
parcelas do BNDES, que estava sendo condicionado pela Telecom Italia,
só seria liberado se a aquisição da CRT acontecesse, e o BNDES não
liberava o crédito. O crédito foi liberado nove dias depois da compra da
CRT”.74
As desavenças entre Dantas e italianos só foram piorando ao longo
dos anos. Em 2000, a TI adquiriu licenças para operar uma empresa de
telefonia celular, a TIM, na área de influência da BrT. Em 2004, um até
aqui inédito relatório do Citigroup — o parceiro americano de Dantas, que
acompanhava o caso com apreensão, mas geralmente dando apoio ao
brasileiro — descreve a escalada de conflitos que incluíram “táticas
clandestinas”. O memorando diz que a BrT também tinha seus planos
para a telefonia celular. Em 2002, TI e BrT pareciam ter selado as pazes,
mas houve um novo movimento da BrT, diz o relatório:
Poucos meses após o fechamento desse novo acordo, a BrT
adquiriu frequências para celulares nesta região e procurou o
órgão regulador brasileiro para obter as licenças [...] A TI
percebeu isso como um movimento muito hostil por parte da
BrT/Opportunity e as tensões entre os campos tiveram uma
escalada significativa. Todas as partes envolvidas na disputa
começaram a adotar uma série de táticas muito agressivas, às
vezes até mesmo clandestinas.75
A última palavra ganhará mais sentido adiante.
O Citi citou como exemplo uma “intensa campanha” desencadeada
em setores da imprensa brasileira para denunciar supostas
irregularidades dos italianos na aquisição da CRT.
A campanha culminou em outubro de 2003 com a requisição para
dar início a uma comissão de investigação no Parlamento da Itália
para apurar o assunto. Nós fomos informados de que o Forza
Italia (o partido político no poder na Itália, fundado por
Berlusconi, atual primeiro-ministro), supostamente acionado por
Dantas, submeteu pedidos ao parlamento italiano requisitando a
abertura de uma comissão de investigação para o assunto.
Várias outras decisões dos controladores da BrT desgostavam os
fundos de pensão. A BrT, Telemig, Amazônia Celular e Opportunity, por
exemplo, criaram o Consórcio Voa, liderado pelo banco. De 1999 a 2005,
o Voa recebeu aportes de R$ 66 milhões.76 E adquiriu, em leasing, um
avião turboélice e dois jatinhos, avaliados em R$ 31 milhões. Os fundos
de pensão começaram a desconfiar que os aviões fossem usados para
transportar políticos, como indicavam notas divulgadas pela imprensa.
Isso não pôde ser comprovado porque os responsáveis pelo consórcio,
quando consultados pelo Congresso, alegaram que não guardavam as
listas dos passageiros dos 2.260 pousos e decolagens.
Outra desconfiança foi direcionada à empresa que organizava viagens
e hospedagem para funcionários da BrT, a Kontik Franstur. Descobriu-se
que a empresa tinha como diretora uma das três irmãs de Dantas,
Mônica, e que “parte das viagens atendia aos sócios do Opportunity:
Daniel Dantas, Carlos Rodenburg e Arthur Carvalho, bem como viagens
da família Dantas”. 77 A empresa recebeu R$ 14 milhões da BrT entre
2005 e 2006.
Por fim, os fundos lamentaram os gastos de R$ 1,9 milhão, entre
aluguéis e taxas de condomínio, com um escritório de representação da
BrT no Edifício Plaza Iguatemi, na avenida Faria Lima, em São Paulo.
Segundo os fundos, na verdade ali sempre funcionou um escritório do
Opportunity.
“Trata-se de um dos mais escabrosos casos de desvio de recursos da
companhia em benefício de pessoas ligadas ao Opportunity.”78
As brigas de Dantas com os fundos de pensão e os italianos eram,
portanto, muito anteriores à chegada de Lula à Presidência. Isso não
impediu que, anos depois, Dantas imprimisse a sua versão de ser uma
“vítima” do governo do PT, quase um perseguido político. Essa linha de
defesa se vale dos tropeços que Dantas sofreu a partir do primeiro
mandado do presidente Lula, em 2003. Ele recebeu a chegada do PT ao
poder carregado de desconfiança.
Nebulosas conspirações
“Eu não vejo nenhuma razão de impedir o contato dele [um executivo da Telecom
Italia] com Daniel [Dantas]. Pois, acima de tudo, ele é o dono do Brasil e o
problema que precisa ser resolvido é brasileiro.”
Carta do investidor Naji Nahas a executivo da Telecom Italia,
apreendida pela Operação Satiagraha.
Em 22 de novembro de 2002, na transição entre os governos FHC e
Lula, os classificados de O Estado de Minas, de Belo Horizonte (MG),
estamparam quatro anúncios ininteligíveis, uma sopa de números e
letras. Os únicos pontos que podiam ser compreendidos eram a inscrição
PGP Personal Security, um programa de criptografia que pode ser
adquirido na internet, e as palavras: “Telecomunicações”, “Secretaria”,
“Fundos de Pensão” e “Crédito Especial”. Os avisos cifrados voltaram a
aparecer nos classificados de dezembro de 2002 e fevereiro e março de
2003, com os títulos de “Empresário”, “Parecer”, “Sobrepreço”,
“Destituição”, “Conselho” e “Causa”.
Os leitores mineiros já deviam ter esquecido a esquisitice quando,
quatro anos depois, Daniel Dantas revelou ter sido o responsável pelos
anúncios. E o fez durante uma ameaça pública ao governo Lula. Em
entrevista a uma jornalista de sua confiança, Janaína Leite — que em
2010 se tornaria assessora de imprensa do Opportunity —, Dantas disse
que em 2002 “chegou aos seus ouvidos” a informação de que o PT havia
feito um acordo com a Telemar, pelo qual ela seria favorecida pelo novo
governo. “Como precaução”, Dantas mandou criptografar e fazer publicar
os anúncios no jornal mineiro. “Mas o que essas notas codificadas
revelam?”, quis saber a jornalista.
“Só falarei, e em juízo, se os fatos de lá forem confirmados. Em
linhas gerais, é um plano para a tomada da Brasil Telecom e da Telemig
que envolvia, inclusive, a nomeação de certas pessoas para o governo”,
respondeu Dantas, cercando de mistério sua teoria persecutória.79
Nunca se soube o que os anúncios, de fato, diziam. Mas o que se
extrai do episódio é o clima com que o Opportunity recebeu a chegada do
PT ao poder. Um espírito dominado por suspeitas de conspirações para a
“tomada” de suas companhias. Afinal de contas, os militantes do PT que
ocupavam cargos de diretoria nos fundos de pensão à época das
primeiras batalhas com o Opportunity eram agora, sob Lula, os
presidentes desses fundos. Por outro lado, os fundos tinham razões mais
do que suficientes para desconfiar de Dantas, tendo em vista todas as
disputas judiciais e as acusações de quebra do dever fiduciário.
Em maio de 2003, Dantas recebeu convite do então poderoso
ministro da Casa Civil, José Dirceu, para visitá-lo em Brasília. Foi a
primeira vez que ele pisou no Palácio do Planalto no governo Lula.
Dantas via-se na urgência de obter apoio para convencer o governo a,
segundo ele, não interferir nas disputas que travava com os fundos de
pensão. Conforme Dantas reconheceu em depoimento ao Congresso, sua
imagem estava vinculada ao PFL do senador ACM. Como ele pretendia se
mostrar palatável ao petismo, o convite de Dirceu chegou em bom
momento.
A conversa durou pouco menos de uma hora. Não se sabe de registro
oficial — se existe, nunca veio à tona.80 Em 2005, no discurso que fez
durante a sessão que cassou seu mandato na Câmara dos Deputados,
Dirceu narrou genericamente, sem falar em Opportunity:
Recebi centenas de empresários — Febraban, CNI e Fiesp, quase
todas as empresas do setor petroquímico, de petróleo, de
siderurgia deste país —, porque o presidente [Lula] me delegou
essa função. Tenho recebido apoio de todos eles neste momento
de minha vida, porque jamais tratei de algo que não pudesse
tratar publicamente.
Restou conhecida, assim, a versão de Dantas, tantas vezes difundida,
mas de difícil comprovação. Ele disse que Dirceu foi “muito educado”, mas
sugeriu que ele procurasse fazer um acordo com os fundos de pensão,
sob a alegação de que eles “detinham participação societária nessas
companhias, mas não detinham o controle”. Dantas teria então afirmado
que isso “foi exatamente o que nós contratamos”, ou seja, que o
Opportunity apenas seguia os acordos firmados em 1998. Teria dito não
que não estava disposto a transferir aos fundos a gestão das companhias
telefônicas e que o consórcio recebeu a BrT com R$ 200 milhões em
caixa, que agora estava com R$ 2 bilhões.
“Eu não estava entendendo qual era o problema. Ele [Dirceu] voltou
e me disse: ‘Os fundos de pensão estão reclamando que não mandam’. Eu
digo: ‘É bem provável que seja por isso que nós estamos conseguindo
obter esse resultado [financeiro]’.”81
Para tentar um acordo de paz, Dirceu teria orientado Dantas a
procurar o então presidente do Banco do Brasil, Cassio Casseb. O
governo não poderia ter escolhido pior interlocutor. Casseb havia
trabalhado por quatro anos no conselho da BrT por indicação,
justamente, dos italianos na TI, com quem o Opportunity travava disputa
desde o ano 2000. Havia saído da BrT em setembro de 2002 e passado a
presidir o BB logo depois, em janeiro de 2003.
Casseb não tinha nenhum motivo para ser receptivo a Dantas. No
conselho, ele acompanhou de perto as denúncias, as notícias de imprensa
e as acusações do Opportunity contra executivos da TI, e vice-versa. “Era
um conselho muito tumultuado”, ele disse anos depois.
A reunião entre Dantas e Casseb, na presidência do BB, em Brasília,
também não foi registrada em vídeo ou áudio. Sempre que possível,
Dantas relatou-a na condição de vítima.
Nós fomos pressionados pelo presidente do Banco do Brasil para,
por exemplo, abrir mão de todos os nossos direitos nos contratos
[...] dizendo que falava em nome do governo. Eu até fiz um
memorando ao Citibank, naquela época, e ele teve uma reunião
comigo, aonde [sic] disse que o governo queria que todos os
direitos que nos pertenciam nos acordos aos nossos fundos
fossem cancelados, que era uma posição de governo.82
Após a reunião, Dantas enviou um e-mail a Mary Lynn Putney, a
executiva do Citibank responsável por acompanhar a parceria dos
americanos com Dantas.
Minha conversa com Casseb foi muito estranha [...] Ele disse que
quer desfazer os acordos de acionistas que nós temos com os
fundos de pensão e que vincularam os votos deles. Eu disse que o
fim dos acordos de acionistas iria implicar que os fundos não
tivessem representação nas companhias, porque nossas
obrigações estariam encerradas. Ele me disse que isso não foi o
que mencionou, que nossas obrigações continuariam e a deles
deixaria de existir. Eu entendi o que ele queria. Eu perguntei se
havia algo a ser obtido, em troca, ele disse que não. Ele me
perguntou diretamente se eu faria isso ou não, eu lhe disse que
precisava consultar nossos investidores.83
Ele disse que entendia que a decisão estava acima de mim, e
que ele estava falando em nome do governo. Eu disse que eu
precisava de uma aprovação. “Isso é o que você está dizendo”,
ele emendou. “Sim, isso é o que eu estou dizendo”, respondi. Eu
lhe perguntei se os fundos não estavam interessados em vender.
Ele disse: “Não a um preço justo”. Eu perguntei se eu poderia
tomar notas do que ele exatamente disse. Ele disse: “Não, você
sabe isso mais do que eu”.
No final do e-mail, Dantas envolveu seus principais adversários num
amplo e maquiavélico plano:
Eu suspeito que eles vão transferir o controle da direção para a
Telecom Italia, que depois poderia dividi-lo com a Telemar para
as operações com celular, como eu já informei você sobre a
minha suspeita a respeito dessa articulação, em outro e-mail.
Todo o encontro não durou mais do que dez minutos. P.S.: Hoje
fui informado pela Alcatel e NEC de que Carlos Jereissati lhes
disse que ele tomaria o controle da Brasil Telecom.
Cinco dias depois, Mary Lynn enviou uma carta a Casseb para
comentar as inquietantes notícias trazidas por Dantas. Mas aceitou
começar uma conversa, indicando para esse fim um advogado de Nova
Iorque. Ao fazer isso, por um lado Mary esvaziou o papel de Dantas como
homem do Citibank no trato com o governo. Por outro, concordou com a
posição de Dantas e advertiu Casseb: “Nossa política de investimentos
nos obriga a defender a continuidade e a efetividade do controle
administrativo dos negócios mencionados, assim como a holding dessas
companhias”.
Em 2003, quando houve a reunião entre Dantas e Casseb, o
investidor Naji Nahas era o homem contratado pelos italianos da TI para
tentar chegar a um acordo com Dantas. Dantas também lhe enviou uma
carta. Ele considerava que o governo armava algo contra ele, e qualquer
boato, ainda que passado por um contratado seu, isto é, um personagem
obviamente parcial, era imediatamente levado a sério.
Um de nossos advogados nos relatou que você lhe informou
contar a Telecom Italia com o apoio do governo (José Dirceu e
Anatel) para garantir o retorno desta ao acordo de acionistas
consolidado da Solpart. Diante disso, fica desnecessário o item 1
da agenda que sugeri, às páginas 4 e 5, de minha carta de 18 de
agosto. Por favor, desconsidere o item 1 da nossa proposta de
agenda.
Dantas se referia a uma proposta de calendário de diálogo com
Nahas.
O libanês respondeu no mesmo dia:
Recebi com muita surpresa sua nota de hoje. Nenhum advogado
honesto pode ter lhe relatado coisa alguma pela simples, boa e
suficiente razão de eu jamais ter dito a quem quer que seja que a
Telecom Italia contaria com o apoio do governo (José Dirceu e
Anatel), porque, até onde eu sei, a Telecom Italia não conta com
o apoio de ninguém, salvo de seus executivos e advogados, nem
tem qualquer expectativa de que autoridades venham a interferir
nessas questões. Vou desconsiderar a nota recebida.
Dantas respondeu: “Sempre buscamos trabalhar com colaboradores
honestos. As informações desse nosso advogado sempre foram
procedentes”. De qualquer forma, escreveu Dantas, “por prudência e por
medida de segurança”, ele voltou atrás e manteve os termos da primeira
proposta de agenda. No final, o Opportunity e os italianos entraram em
acordo.
Nahas parecia estar acostumado com esses arroubos de Dantas, a
julgar pelo que escreveu a Marco Provera, então presidente da TI: “[Eu]
precisava construir uma relação de confiança entre você e Daniel, que é
um paranoico que tem o complexo da perseguição, no entanto, um
pragmático e muito competente e que gosta de ganhar dinheiro (apesar
do fato de que ele quase não o usa)”.84
Após a reunião com Casseb, Dantas voltou a falar com Dirceu.
Novamente, tornou-se pública apenas a versão do banqueiro: “Expliquei
para ele o que tinha acontecido, e ele me disse que concordava que o
governo não tinha que tomar partido nessa disputa e que, se porventura
eu detectasse que o governo estava intervindo a favor de outro, eu teria
a liberdade de lhe comunicar”.
Só anos depois Casseb apresentou sua versão sobre a reunião com
Dantas. Em 2009, ele prestava depoimento à Justiça Federal paulista, na
condição de vítima de espionagem, quando a procuradora da República
Anamara Osório lhe indagou o que foi tratado naquele encontro. Casseb
afirmou:
Quando o [petista] Sérgio Rosa foi para a Previ e estava numa
decisão deles, da Previ e dos fundos, de ir procurar seus direitos
na Justiça, de ir para uma confrontação maior porque eles
achavam que as coisas não estavam indo por um bom caminho,
eu perguntei ao Sérgio se nós não devíamos perguntar a ele
[Dantas] primeiro, um acordo, tentar por bem resolver a questão.
E aí ele concordou, eu chamei o Daniel, sugeri: “Escuta, você não
quer sentar com os fundos e tentar um acordo, tentar esquecer o
passado, criar uma nova governança, devolver a gestão pros
fundos e tentar resolver essa questão de uma vez?”. E ele
respondeu que aquilo não cabia a ele, que na verdade ele
administrava em nome do Citibank e que iria falar com o
Citibank.85
Depois Casseb recebeu uma carta na qual o Citibank dizia que “a
administração devia continuar da forma que era”.
A versão de Casseb confirma parte central do relato de Dantas: o BB
pediu ao banqueiro que devolvesse “a gestão para os fundos”, como disse
Casseb. Era, no mínimo, uma pressão do banco, que foi devidamente
potencializada por Dantas. Mas a versão do ex-presidente também
expressa uma tentativa de pacificação da qual Dantas se esquivou,
alegando ser apenas um representante do Citi.
Ao escolher Casseb como interlocutor de Dantas, o governo Lula
pareceu desfraldar a bandeira branca para Dantas. Mal podia imaginar
que Casseb era nada menos que um dos alvos preferenciais de uma vasta
operação de espionagem desencadeada por uma empresa norteamericana a mando da Brasil Telecom controlada por Dantas. Trata-se da
mais ampla investigação privada já tornada pública no Brasil. Um
movimento dos mais temerários nas disputas societárias de Dantas.
As sombras se movem
“É como o general de Napoleão, que disse: ‘Se eu fosse você, não atacava por aqui,
pois é muito perigoso’. ‘Tudo bem, se eu fosse você também não atacava’,
respondeu Napoleão. E atacou e ganhou.”
Dantas, em entrevista a O Globo em 27 de fevereiro de 1994,
sobre os dez anos do Plano Cruzado.
A DIP (Diretoria de Inteligência Policial) da Polícia Federal, ligada ao
gabinete do diretor-geral, em Brasília, é o cérebro da poderosa máquina
de coleta e análise de informações que a PF montou ao longo de uma
década. Em 2008, 450 policiais eram vinculados aos objetivos da DIP,
incluindo 200 agentes espalhados em núcleos regionais em todos os
estados, os NIPs. Esses policiais produzem diariamente relatórios de
inteligência que alimentam o Sisdoc, talvez o mais impressionante banco
de dados sigilosos em atividade no país, com mais de 80 mil relatórios
sobre todos os aspectos da vida nacional, de uma licitação fraudada à
análise de uma escuta telefônica.
Por volta de 2002, a DIP passou a receber informações de que a
empresa de investigação privada Kroll Associates, fundada nos EUA em
1972 pelo advogado de Nova Iorque Jules B. Kroll, remunerava policiais
federais e outros servidores de áreas sensíveis do governo brasileiro,
como a Receita Federal e o Banco Central, em troca do vazamento de
informações cobertas por sigilo. Uma das tarefas da DIP era justamente
montar operações para “neutralizar ações de grupos ou organizações
tendentes a prejudicar o departamento da Polícia Federal”, numa
atividade chamada de “contrainteligência”.
Em trinta e sete anos, a Kroll realizou diversas investigações para
empresas e órgãos públicos brasileiros e estrangeiros. Ela dizia contratar
“promotores
aposentados,
contadores,
jornalistas
investigativos,
acadêmicos e pesquisadores especializados”, que são denominados
internamente pela Kroll como “subcontratados”. Por operar essa rede de
inteligência, “passou a ser descrita como uma ‘CIA privada’.”86
A questão que começou a ser discutida na PF era o dano causado por
esses terceirizados. Uma coisa é desenvolver, por meios próprios, ações
investigativas que recuperem recursos públicos ou levem maus
servidores ao banco dos réus. Outra, bem diferente, é enfiar garras no
Estado e dele extrair dados para seus contratos particulares.
A primeira pista concreta surgiu no decorrer da Operação Anaconda,
deflagrada em 2003. A PF recebeu informe de que o delegado aposentado
da PF de Maceió Jorge Luiz Bezerra da Silva trabalhava para a Kroll e
passou a averiguar se o aposentado, “a serviço da empresa Kroll,
oferecera ganhos de R$ 5 mil mensais a [dois] policiais federais no intuito
de que fornecessem informações privilegiadas”.87
Em abril de 2002, o juiz da 4ª Vara Federal de Maceió (AL),
Sebastião José Vasques de Moraes, autorizou a interceptação dos
telefones do ex-delegado. O agente Elizon Pacheco confirmou à PF o
assédio de Bezerra, ocorrido em dezembro de 2001. Mas disse que nada
recebeu nem atendeu aos pedidos do ex-delegado. O aposentado teria lhe
dito que a “Crow” (sic) era uma “empresa especializada em elaboração de
dossiês, fazendo levantamento da vida de pessoas ligadas à atividade
política ou pública, para posterior negociação com adversários”.88
Bezerra foi preso durante a Anaconda e condenado pelo TRF da 3ª
Região a três anos de reclusão — foi solto em julho de 2005, em
livramento condicional.
Desde de então, a PF prestou mais atenção na Kroll e nas estranhas
movimentações de seus “subcontratados”.
Um dos clientes da Kroll era a BrT, então controlada pelo Opportunity
de Dantas. No ano de 2002, a empresa de telefonia pagou R$ 737 mil ao
escritório da empresa no Brasil. Em 2003, desembolsou mais R$ 1,9
milhão para as filiais da Kroll em Milão, na Itália, São Paulo e Rio.
Era o início do Projeto Tóquio, codinome de uma ampla investigação
desencadeada pela Kroll contra os desafetos do Opportunity e da BrT.
O acerto foi feito entre Richard Bastin, diretor do escritório da Kroll
em Milão, na Itália, e Carla Cico, presidente da BrT indicada por Dantas.
A escolha dela para o cargo, anunciada em 2001, surpreendeu o
mercado. Carla chegou ao Brasil como uma alta executiva da TI (Telecom
Italia) e ajudou na montagem do consórcio que arrematou a BrT em
leilão. Aos quarenta e um anos, Carla ganhava cerca de US$ 120 mil
anuais na TI. No novo cargo, ela iria receber, apenas em 2001, US$ 1,7
milhão em “salários, bônus e benefícios”, além de um lote de ações “no
valor de US$ 5 milhões”.89
Em dezembro de 2002, Bastin escreveu de forma “particular e
confidencial” para Carla: “Agradecemos seu telefonema e sua autorização
para prosseguirmos com o projeto, ao qual demos o nome de ‘Tóquio’, por
motivos de segurança”.90
Bastin apontou um prazo inicial de cinco semanas para a primeira
etapa (o projeto compreendeu pelo menos dez fases, com custos sempre
crescentes). Carla aprovou a proposta, e Bastin enviou uma segunda
carta no mesmo dia: “Agradecemos suas instruções sobre este assunto.
Temos o prazer de confirmar que prestaremos os serviços detalhados em
nossa carta-proposta datada de 20 de dezembro de 2002”.
Além do contrato com a BrT, a Kroll também tratou de negócios com
o próprio Opportunity, como indica um e-mail datado de 29 de abril de
2002. Vander Giordano, um diretor da Kroll no Brasil, enviou mensagem
para uma subcontratada da empresa: “Conversei há pouco com a sra.
Maria Amália [Coutrim], do Opportunity, e ela me assegurou que já foi
aprovado o pagamento. Alegou que a demora se dá em função do repasse
que fizeram a uma empresa do grupo, que irá desembolsar o valor para o
pagamento”.91 Mais tarde, o Opportunity afirmou que “nunca” contratou
a Kroll.
Um episódio em novembro de 2000 revelou que a Kroll tinha como
alvo altos executivos da TI (Telecom Italia). Três detetives particulares
foram detidos no Rio de Janeiro enquanto espionavam o então presidente
mundial da TI, Roberto Colannino, um desafeto de Dantas, e o expresidente do BNDES Andréa Calabi, indicado pelos italianos para compor
o conselho da BrT. Numa trapalhada antológica, os arapongas seguiram
de carro a pessoa errada, o então presidente do Banco Central Armínio
Fraga. Ele e Calabi são calvos e usavam cavanhaque. O trio detido disse à
PF trabalhar para uma firma do Paraná subcontratada da Kroll. À época, o
diretor da Kroll em São Paulo, Eduardo Sampaio, declarou “desconhecer o
assunto”.
Naquele mesmo ano, Dantas havia se reunido com Sampaio. Quem
revelou o fato foi o próprio banqueiro:
Houve outro contato possivelmente no ano 2000, com Eduardo
Sampaio, que realizou uma entrevista com o interrogado
[Dantas] a fim de saber questões atinentes ao citado leilão da
Telebras e aquisição da Companhia Rio-grandense de
Telecomunicações (CRT). A Kroll, nesse contato, havia sido
contratada pela Brasil Telecom.92
Em 2004, no auge do Projeto Tóquio, os valores pagos pela BrT à
Kroll foram de R$ 11,4 milhões à filial da Kroll em Milão e R$ 4,1 milhões
à filial de Nova Iorque. Entre 2002 e 2005, a BrT depositou R$ 26,79
milhões nas contas da Kroll, dentro e fora do Brasil.
Tratou-se do mais bem documentado caso de espionagem empresarial
já revelado no país. Os investigadores privados se valeram de
documentos cobertos por sigilo bancário, registros de cartão de crédito,
dados de imposto de renda e filmagens. Seus “alvos” eram todos
desafetos ou adversários de Dantas.
Entre 2003 e 2004, Carla Cico disparou inúmeros e-mails para os
responsáveis pelo Projeto na Kroll. Anos depois, cerca de trinta dessas
mensagens foram copiadas e entregues pela Kroll à Justiça dos EUA. Elas
documentam os pedidos variados e incessantes da executiva indicada
pelo Opportunity para comandar a BrT. Em 4 de junho de 2003, Carla
enviou “uma lista de nomes de pessoas que vocês [Kroll] deveriam
checar”: o investidor Naji Nahas, os empresários Carlos Jereissati e
Sérgio Andrade, da Telemar, o investidor Carlos Alberto Sicupira e
Calabi.
Em outubro do mesmo ano, Carla orientou que a Kroll procurasse a
ex-mulher de Carlos Jereissati. “CJ teve um divórcio amargo, e nós
achamos que sua esposa pode ser uma importante fonte de informações.
Talvez seu rapaz aqui pudesse tentar uma aproximação com ela e ver o
que pode descobrir (claro, sem deixar que ela saiba que nós estamos por
trás).”
Não há evidências de que a ideia tenha se concretizado. Nos e-mails,
Carla menciona diversas vezes Daniel Dantas, quase sempre pelas iniciais
“DD”, e informa que ele também está engajado na procura por fontes,
principalmente “uma da Espanha”.
No final de 2003, Carla queria utilizar os achados da Kroll numa
operação subterrânea para usar órgãos de imprensa com notícias em
benefício dos pontos de vista da BrT/Opportunity. Menciona dois artigos
que estavam sendo publicados por um jornal italiano.
Eu acho que é hora de nós começarmos a disseminar nossa
informação “privilegiada”. Vou discutir essa ideia com DD amanhã
e na próxima terça-feira, dependendo de qual seja a estratégia,
vamos entrar em acordo sobre a forma de implementá-la.
Outro alvo importante da Kroll chamava-se Luís Roberto Demarco
Almeida. Eis um nome que o grupo Opportunity jamais se esqueceria de
incluir na espionagem.
O inimigo do seu inimigo
“Ele não me deixa em paz há dez anos, exatamente porque não se conforma com o
fato de que eu, muito jovem, saí do Opportunity. Disse a ele as razões pelas quais
eu saí do Opportunity. Porque eu não aceitava o pagamento de propina. Disse a ele
pessoalmente, e aí ele entrou com uma ação. Segundo me foi relatado por gente
conhecida dele, ele entrou para me dar uma lição de moral.”
Depoimento gravado em vídeo de Luís Roberto Demarco Almeida
em audiência da 5ª Vara Federal Criminal de São Paulo, nos autos
da Operação Chacal, em 1º de dezembro de 2009.
“O Demarco trabalhou conosco durante um ano. E, no fim do ano, ele foi demitido
na época pelo meu ex-sócio Pérsio Arida por suspeitas de envolvimentos ilegais. E
a partir daí passou a trabalhar com adversários nossos na tentativa de nos
prejudicar e criar vantagens para os adversários, e profissionalmente, quer dizer,
cobrando por isso.”
Depoimento de Dantas à CPI dos Grampos em 16 de abril de 2009.
A empresa de Demarco e a filial do banco Opportunity em São Paulo
funcionam na mesma avenida Brigadeiro Faria Lima, separadas por
apenas 800 metros, o que se vence numa caminhada de uns dez
minutos. Mas a distância real é oceânica. Ao longo de uma década de
rivalidade, alimentada por acusações e recriminações espalhadas pela
imprensa e aliados de lado a lado, Demarco e Dantas protagonizaram um
duelo que deixou sequelas por toda parte. Se há alguma disputa entre
ex-sócios que se pode denominar de “guerra”, esta é a maior. Em alguns
raros momentos, houve tentativas de pacificação, sempre inúteis. Por
diversos eventos paralelos, como as descobertas de inquéritos e
investigações privadas, suas posições se tornaram irreconciliáveis. As
torres do número 1.478 e do número 2.227 da Faria Lima continuaram
jogando por mais de dez anos um xadrez longo e silencioso — e de
consequências arrasadoras para a credibilidade de Dantas.
Demarco nasceu em São Paulo em 1962 e foi criado em Assis, no
interior paulista. Seus pais são professores universitários — a mãe, de
geografia; e o pai, de letras. Formou-se em engenharia química na USP.
Após trabalhar na Johnson & Johnson, assumiu um posto de direção na
Ivix, um braço da multinacional IBM. Foi então procurado pelo executivo
e caçador de talentos Guilherme Dale, que depois o apresentou a Carlos
Alberto Sicupira, um dos três sócios da GP Investimentos.
Demarco trocou a IBM pela GP em janeiro de 1997. Passou a
trabalhar com outras nove pessoas nas mesmas tarefas: fazer valer a
fortuna investida pelos fundos nas empresas e obter novos parceiros. Em
junho de 1997, contudo, ficou contrariado com uma demissão que lhe
pareceu injusta. A isso se somou uma simples casualidade que pôs
Demarco no caminho de Daniel Dantas. Demarco namorava uma
decoradora que trabalhava em um projeto para um apartamento nos
Jardins de um casal bastante conhecido em Brasília: Pérsio Arida e Elena
Landau. Os dois casais começaram a se falar, quando Demarco ouviu pela
primeira vez o nome de Dantas.
Um dos objetivos de Demarco na GP era implantar o conceito de
futebol-empresa. Demarco é fanático por futebol e pelo time do São
Paulo. Arida convidou Demarco a trabalhar no Opportunity. Ele detalhou
a proposta: bônus inicial de US$ 1 milhão mais a participação em 3,5%
das cotas da empresa CVC Opportunity, criada para gerir os recursos do
banco Citibank durante as privatizações no Brasil. (Os termos do convite,
conforme aqui apresentados, foram depois várias vezes contestados pelo
Opportunity, mas a Justiça das ilhas Cayman os reconheceu como
autênticos.)
Arida sugeriu um drinque com Dantas. O trio se encontrou por volta
de agosto de 1997 no apartamento de Arida, que falou das cifras
altíssimas mantidas pelos fundos Opportunity e queria saber se Demarco
“comprava a ideia” de trocar a GP pelo Opportunity. Depois Demarco
aceitou o convite, pelo qual passaria a receber cerca de US$ 300 mil
anuais, além de um bônus inicial de US$ 1 milhão. Ele se tornou sócio do
CVC ao lado de Dantas, Arida e Robert Wilson, o ex-funcionário do
Citibank. Demarco acertou sua entrada no Opportunity e passou a
trabalhar em outubro de 1997 no 7º andar do prédio espelhado na frente
do shopping Iguatemi, a sede do banco em São Paulo.
Duas semanas depois, Demarco procurou Arida para dizer que ainda
não havia recebido o bônus. Foi a primeira de uma série de
desconfianças. Arida procurou a direção do Opportunity, que explicou
querer um sinal de confiança de Demarco nos negócios, sugerindo que
ele recebesse US$ 500 mil de imediato, mas investisse a outra metade
em ações no Opportunity Fund. Demarco aceitou. Embora morasse no
Brasil, ele passou a ser um cotista de um fundo sediado nas ilhas
Cayman. Depois ele diria não saber àquela época que, pelas regras do
BC, o Fund não poderia abrigar brasileiros residentes no Brasil.
Nos anos 1990, o Banco Central havia autorizado a entrada no Brasil
de capitais mantidos em fundos estrangeiros para a compra das empresas
estatais brasileiras, desde que os brasileiros detentores das cotas não
residissem no Brasil. A intenção era dupla: evitar um desequilíbrio de
condições nos leilões (os fundos em paraísos fiscais gozavam de menor
carga tributária do que os fundos brasileiros) e estimular a vinda de
capital estrangeiro para o Brasil.
Daniel Dantas sabia que o Fund estava impedido de abrigar esses
brasileiros, conforme ele expressamente declarou, em 2005: “Existe uma
disposição aqui no Brasil de que residentes no país não podem aplicar nos
fundos que investem no Brasil. Nós cumprimos todas as regras nesse
sentido, e existe no nosso prospecto uma vedação, e qualquer aplicador
tem que declarar que ele não é residente no Brasil”.93
Uma das tarefas de Demarco no Opportunity foi estimular a ideia do
futebol-empresa. Outra função que lhe foi delegada: deveria se
aproximar de Verônica Serra, a filha do então ministro do Planejamento,
José Serra (PSDB-SP). O Opportunity queria saber se Verônica estava
interessada em ser parceira de negócios com o banco na área de
informática ou internet e pediu que Demarco, que tinha experiência no
tema, fosse sondá-la. Durante um ano, Demarco se fez presente,
telefonando e conversando com Verônica, que tinha uma sala de negócios
na rua Tabapuã, no Itaim Bibi. Mas as conversas não prosperaram até a
saída de Demarco do Opportunity, em fevereiro de 1999.
Em setembro de 2002, uma nota na revista IstoÉ Dinheiro anunciou
que a filha de Serra, então candidato à Presidência, havia sido “sócia” da
irmã de Dantas, Verônica, entre 2000 e maio de 2002. A revista dizia
que elas “fundaram juntas” uma empresa de internet, a Decidir.com, com
sede em Miami (EUA). Em 2008, a informação voltou a circular na
imprensa. A filha de Serra, o qual à época era governador de São Paulo,
soltou uma nota explicativa. Ela disse que a Decidir foi um investimento
feito pelo Citibank, pelo Opportunity e pelo fundo IRR (International Real
Returns), para o qual ela trabalhou entre 1998 e 2001. Afirmou que o
IRR a indicou como seu representante no conselho diretor da Decidir, e
não como sócia. Por sua vez, a irmã de Dantas foi indicada pelo
Opportunity. As duas Verônicas dividiram o mesmo conselho, mas a filha
de Serra disse que nunca conheceu a irmã de Dantas “nem
pessoalmente, nem de vista, nem por telefone, nem por e-mail”,
conforme a nota que divulgou.
A Decidir atuava como uma espécie de “Serasa particular”, ou seja,
fornecia aos seus clientes dados sobre a saúde financeira de pessoas e
empresas. Em janeiro de 2001, o então repórter da Folha Wladimir
Gramacho localizou dezoito deputados federais com cheques sem fundos.
Ele escreveu ter se baseado no site da Decidir.com, que permitia a
consulta aos dados sobre os cheques, “o que é irregular, segundo as
regras do BC”. A empresa disse que houve “uma falha” e bloqueou o
acesso no dia seguinte.
No Opportunity, Demarco só se encontrava com Dantas quando havia
reuniões gerais no Rio, quase sempre às segundas-feiras. Às vezes,
Dantas parava a reunião e passava a contemplar, da janela, a Baía da
Guanabara. Demarco considerava aquilo um desrespeito. Mas foi só o
aperitivo para o grande choque, em junho de 1998, que levou Demarco a
sair do banco. Ao longo dos anos, muitas versões circularam sobre o
motivo. Onze anos depois, na frente da juíza federal do caso Kroll,
prestando depoimento na condição de alvo de espionagem, Demarco deu
a sua versão sobre o episódio:
A primeira desavença, e por que eu saí do Opportunity? Porque
um dia um funcionário, que era meu colega em São Paulo [...]
chega e diz que foi cobrado dele uma propina em uma
privatização do governo do Paraná, na Sanepar [...] e ele, na
frente lá do secretário, havia recebido essa requisição de
pagamento de US$ 800 mil, que seria um terço do Opportunity,
um terço de cada um dos outros dois componentes desse
consórcio. E eu fiquei estarrecido com aquilo. Eu até declarei isso
na minha ação trabalhista há oito anos [...] O Opportunity estava
presente nessa ação trabalhista, portanto, não é uma ilação,
porque eu realmente ouvi esse fato. E eu disse ao Dantas que
queria sair porque não topava esse negócio de propina.94
A Sanepar, companhia de água e esgoto do Paraná, foi criada em
1963 e parcialmente vendida nos anos 1990 ao consórcio formado pelo
Opportunity, Vivendi, Andrade Gutierrez e Copel. Em resposta a
Demarco, o banqueiro disse que não sabia de nada daquilo, negou
qualquer irregularidade e o encaminhou para resolver o assunto com
Arida, num sinal de desprestígio de Demarco. O banco sempre negou
qualquer irregularidade relacionada à Sanepar. Para Demarco, a
“denúncia” teve “um efeito psicológico” adverso em Dantas.
Anos depois, Dantas também deu sua versão sobre a saída de
Demarco: “[Demarco] foi desligado pelo então meu sócio Pérsio Arida por
dúvidas em relação ao seu comportamento. Eu não conheço qual é a
profissão do sr. Demarco. Depois que o sr. Demarco deixou de trabalhar
conosco, eu não tenho tido mais contato e não sei a que atividade o sr.
Demarco tem se dedicado”.95
Arida, procurado para este livro, respondeu por e-mail: “Saí do
Opportunity logo no início de 1999, há mais de dez anos [...] Não me
sinto à vontade para conversar”.
No final de 1998, Demarco recebeu em casa a cópia de um novo
contrato social com alterações na direção do CVC Opportunity Equity, do
qual era sócio e diretor desde dezembro de 1997. Elas representaram, na
prática, a exclusão de Demarco da companhia. Ele procurou Arida para
cobrar os 3,5% das ações a que teria direito. Arida fez uma
teleconferência entre ele, Demarco e Dantas. A conversa resultou numa
discussão exaltada.
Em fevereiro de 1999, o departamento pessoal do Opportunity
comunicou a Demarco que “decidiu revogar seu contrato de trabalho”,
sem aviso prévio, citando amparo na lei trabalhista. Atrás, foi anotado:
“sem justa causa”.96 Demarco trabalhou dezesseis meses no banco.
Em abril, Demarco tentou resgatar US$ 400 mil de suas ações no
Opportunity Fund, mas não conseguiu. Em 28 de maio, tentou resgatar
todo o meio milhão de dólares, novamente sem sucesso.97 Demarco foi
então informado pelo Opportunity de que parte do acordo que havia
firmado em 30 de dezembro de 1997, incluindo o anexo que o havia
tornado diretor do CVC Opportunity, não fora validada conforme as
regras próprias. Em 18 de junho, os advogados de Demarco avisaram ao
banco, por carta, que houve uma “quebra de confiança mútua” e que
iriam iniciar uma demanda judicial, caso o cliente não recebesse os US$
500 mil.
Antecipando-se a essa ação, em junho de 1999 o CVC Opportunity
abriu um processo na Justiça das ilhas Cayman e conseguiu bloquear os
ativos reclamados por Demarco. A ordem de bloqueio foi baseada num
affidavit, um testemunho juramentado, assinado um dia antes pela irmã
de Dantas, Verônica. Ela afirmou que Demarco “nunca fora” o dono das
ações e que tinha sido registrado como investidor por um mero “erro”.
Segundo ela, havia um plano inicial de que Demarco teria “uma conta
virtual”, mas isso acabou ultrapassado por acordos verbais que teriam
ocorrido posteriormente entre Demarco, Dantas e Arida.
A atitude do Opportunity revelou-se um tiro no pé por vários
motivos. O primeiro e mais imediato estourou nas páginas de O Globo de
agosto de 2000. A reportagem informava que Demarco havia
apresentado, nas ilhas Cayman, documentos que indicavam a existência
de acionistas brasileiros no Opportunity Fund residentes no Brasil. O
principal era ele próprio, Demarco, pois morava em São Paulo. O
banqueiro estava de novo na berlinda.
Todo o processo nas ilhas Cayman, incluindo recursos, se arrastou
por sete anos. O Opportunity alegou que os acordos para a contratação
de Demarco foram verbais e que os ganhos futuros dele seriam pagos de
acordo com uma fórmula matemática que envolvia o desempenho do
fundo e do profissional. Demarco apresentou anotações que resumiam as
conversas que teve com Arida.
Durante uma semana, Dantas e Demarco sentaram-se frente a frente
na sala de audiências nas ilhas Cayman. O Jornal do Brasil, nas mãos do
empresário Nelson Tanure, um aliado dos interesses da canadense TIW,
entrou com tudo na cobertura sobre o caso. Contratou um fotógrafo
freelancer, David Wolfe, que fotografou Dantas numa correria por cerca
de duas quadras nas ilhas Cayman. O banqueiro aparece nas fotos
cobrindo o rosto com uma pasta de documentos.
Em maio de 2002, o juiz das ilhas Cayman Kellock J. decidiu:
Para mim, parece altamente improvável que um contrato tão
complexo como o alegado pelo reclamante [Opportunity] possa
ter sido feito oralmente. Ainda mais porque o reclamante é uma
sofisticada firma de negócios que possui um departamento
interno de assuntos jurídicos.
O juiz comparou os dados trazidos aos autos por Dantas, Verônica e
Demarco e concluiu:
Tanto o Opportunity quanto a CVC/Brasil pagaram a Demarco
algum dinheiro por meio de dividendos ou bônus; nem Dantas
nem sua irmã parecem se lembrar dos detalhes da fórmula como
uma importante parte da história deles [...] A incapacidade de
Dantas e de sua irmã de providenciar uma explicação coerente de
como deveria funcionar a fórmula contribuiu para minha
conclusão de que o contrato oral no qual o reclamante
[Opportunity] se baseia nunca foi feito. Isso também me leva à
conclusão de que as evidências fornecidas por Dantas e sua irmã
foram fabricadas e falsas.
Um dos principais elementos analisados pelo juiz foi o depoimento de
um funcionário da filial do banco ABN-Amro nas ilhas Cayman, cujo
nome, Victor Vicioso, parece extraído de uma história em quadrinhos. O
seu depoimento juramentado lançou luzes sobre a organização das
subscrições das cotas do Fund, aos cuidados do ABN. A subscrição é uma
espécie de direito de compra de ações. Desde que a briga nas ilhas
Cayman apareceu nos jornais brasileiros, passou a circular uma suposta
lista de investidores no Opportunity Fund. Eram brasileiros residentes no
Brasil, e, caso a lista fosse verdadeira, seria mais uma evidência da
irregularidade. Boa parte das supostas contas dessa lista tinha algo em
comum: o número 368. No depoimento, Vicioso revelou que Verônica
tinha autorização para assinar por cotistas identificados com esse
número. O juiz Kellock indagou:
— Como você poderia saber disso?
— O controle 368, para mim, significa isso. Sua assinatura
[de Verônica] não está apenas nesta conta. Eu quero dizer que
ela é autorizada a assinar outras contas, especialmente as 368
que estão sob controle e administração dela, seja lá como você
poderia chamar isso.98
O advogado de Demarco indagou se isso não seria “irregular”, Vicioso
respondeu:
— Não para o Opportunity.
— Por que você disse que isso não era incomum para o
Opportunity? — inquiriu o juiz.
— Porque há várias contas 368 sobre as quais Verônica está
autorizada a assinar.
— As contas estão em nome de outros, que não Verônica e
Opportunity? — insistiu o juiz.
— Exato.
Nas ilhas Cayman, o Opportunity procurou colocar em dúvida a
idoneidade dos documentos apresentados por Demarco que poderiam
comprovar que ele era dono das ações no Fund. Contratou peritos para
desmentir os papéis. Mas, em sua decisão, Kellock usou palavras duras
para descrever o que ele viu no processo.
Eu entendo que a declaração de Verônica Dantas no sentido de
que ela colocou o nome de Demarco no formulário como
subscritor com o objetivo de “separar o investimento” é
simplesmente uma mentira [...] A meu juízo, Verônica e Daniel
Dantas criaram falsos documentos pela modificação de
formulários de investimento de modo a fazer parecer que a
requisição de investimentos iniciada por Demarco foi uma
instrução emanada pelo OAM [Opportunity Asset Management].
Kellock mandou o Opportunity pagar a parte de Demarco e os custos
com os advogados. O Opportunity recorreu da decisão à Corte de
Apelações das Ilhas Cayman, que decidiu, em março de 2004, anular a
decisão do juiz e realizar um novo julgamento. O Opportunity
basicamente colocou em xeque a isenção de Kellock — mesmo recurso
que seria empregado no Brasil contra magistrados que deram decisões
contrárias ao banco. A corte criticou o juiz pelo emprego das palavras
“fabricadas e falsas”, consideradas exageradas.
Demarco recorreu em Londres ao Privy Council, um tribunal de
recursos de processos em trâmite nos países sob influência da Coroa
britânica. Reunido em 2006, o conselho, formado por quatro lordes e
uma baronesa, surpreendeu-se com o tamanho da briga: “O litígio tem
sido fortemente contestado em todas as fases e envolveu denúncias (por
e contra ambos os lados) de falsificação, roubo de documentos, má-fé e
desrespeito ao tribunal”. Os juízes, por fim, decidiram pela restauração
da decisão original de Kellock. Foi a mais importante vitória judicial de
Demarco contra Dantas.
Outra consequência da ação nas ilhas Cayman foi um acordo fechado
entre o Citibank e Demarco em novembro de 2004. Segundo a revista
CartaCapital, Demarco “aceitou alterar duas liminares que impediam o
Citibank de negociar suas participações no CVC e de afastar o grupo de
Dantas da gestão desse fundo [...] Especula-se, ao contrário das notícias
veiculadas, que o Citi teria virado sócio do empresário, dono de uma
pontocom”.99 Anos mais tarde, o Opportunity espalhou que a empresa de
Demarco recebeu entre R$ 7 milhões e R$ 20 milhões pelo acordo com o
Citibank — o empresário não revelou publicamente os valores do negócio.
Em 1999, o Opportunity havia aberto a causa nas ilhas Cayman com
o alegado objetivo de “preservar” o CVC Opportunity, mas o resultado foi
diametralmente oposto. O processo colocou em evidência as suspeitas
sobre o Fund. A partir daí, não era mais uma simples “briga entre sócios”,
mas a origem de dúvidas sobre a legalidade das privatizações no Brasil.
A CVM iniciou uma apuração em 2001, mas com um objetivo tímido:
apenas verificar se as ações do Fund foram ou não oferecidas a
brasileiros residentes no Brasil. Ou seja, se elas foram ofertadas, não se
existiam. Em 29 abril de 2003, o presidente da comissão de inquérito na
CVM, Luis Mariano de Carvalho, o gerente/membro Raymundo Aleixo
Filho, o inspetor/membro Anilton Soares e o procurador/membro José de
Araújo Barbosa Júnior emitiram o relatório final, que apontou:
A existência e disponibilidade de material de divulgação dos
subfundos no escritório de São Paulo e a autorização tácita dada
pela administração do Opportunity para que os funcionários do
escritório prestassem informações acerca [do] valor das cotas e
d a performance dos fundos aos interessados, sem restrição
mesmo à sua identificação, reforçam a inferência de que o banco
Opportunity e seus funcionários atuaram nas fases de oferta e
subscrição de cotas de subfundos, destinadas exclusivamente a
não residentes no país, sem que a instituição tivesse autorização
da CVM para fazê-lo.
O relatório da comissão de inquérito “atribuiu responsabilidades” ao
banco ABN Amro Real, ao Opportunity, Dório Ferman e Verônica Dantas.
Por outro lado, concluiu não haver “elementos suficientes” para qualquer
responsabilização de Daniel Dantas, Pérsio Arida e o próprio Demarco.
A conclusão do inquérito veio em 2004, quando a CVM aplicou uma
pena individual de multa de R$ 100 mil contra o Opportunity Asset
Management, Verônica e Ferman, devido ao “esforço na colocação pública
no Brasil de cotas de subfundos” do Fund vedados a residentes e
domiciliados no Brasil.
Na contestação, o Opportunity pediu a nulidade e o arquivamento do
inquérito. apresentou ainda um laudo encomendado pelos investigados
no qual se questiona a lisura de planilhas de investimentos apresentadas
no processo. Alegou montagem nos papéis. O advogado de Demarco disse
que os papéis não foram apresentados por seu cliente, mas por
funcionários do Opportunity, e que a mesma alegação já havia sido
atacada na decisão anterior da CVM. Contudo, com base principalmente
no argumento da perícia, o banco conseguiu uma decisão favorável no
Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional do Ministério da
Fazenda, o chamado “Conselhinho”.
Entretanto, se ainda havia alguma dúvida sobre se Demarco foi ou
não cotista do Fund, ela se dissipou em 2008, quando ocorreu a segunda
fase da Operação Satiagraha. Ouvida pela PF, Rosângela Browne, que
trabalhou no Opportunity entre 1996 e 1998, disse que Pérsio Arida lhe
pediu, em outubro de 1997, que enviasse a Demarco “documentos
relativos ao referido Fundo [Fund]”, dentre os quais um acordo de
subscrição. A polícia mostrou o documento que Demarco assinou, e ela o
reconheceu como o mesmo que ajudara a redigir. Rosângela contou ainda
que, no escritório do Opportunity em São Paulo, havia folhetos e
prospectos do Fund, “os quais poderiam ser encaminhados aos clientes
caso eles solicitassem”. Uma ex-colega de trabalho de Rosângela,
Terezinha Aparecida Marques Esteves, deu um depoimento ainda mais
claro. Quando lhe indagaram se acompanhou os “investimentos de
Demarco no Opportunity Fund”, Terezinha disse que sim, que preparava
as planilhas com valores das cotas. “Portanto, a depoente confirma que
Demarco possuía cotas no Opportunity Fund.” 100 Nessa fase da
Satiagraha, a PF indiciou quarenta e dois brasileiros que mantinham
contas no Fund. Em agosto de 2010, também indiciou Pérsio Arida.
Depois que a briga das ilhas Cayman foi parar na imprensa, Demarco
foi apresentado ao ex-deputado federal Luiz Gushiken (SP), um dos
principais nomes do PT. Ele esteve na casa de Demarco por volta de 2000
e ouviu toda a história. Gushiken levou Demarco a Sérgio Rosa, um
diretor da Previ ligado ao PT que já estava às turras com o banqueiro. As
supostas irregularidades nas ilhas Cayman poderiam ter efeitos negativos
no consórcio e seriam usadas como argumento pelos fundos de pensão
nas brigas com Dantas. Gushiken teria dito que a história deveria ir para
os jornais.
O PT também se interessou pelos serviços oferecidos pelas empresas
de Demarco. Quando o partido lançou uma loja virtual, para venda de
camisetas e bugigangas do partido, utilizou um programa de computador
fornecido pela empresa de Demarco. “Não tenho ligação com nenhum
partido político, não possuo ONG nem ‘Lojinha do PT’. Uma de minhas
empresas é fornecedora de software de comércio eletrônico, utilizado por
inúmeros clientes, avaliado em 2002 também pelo PSDB e pelo PFL”,
escreveu Demarco em artigo na internet em 2008. Esse serviço foi,
depois, explorado pelo Opportunity como prova de uma “ligação” entre
Demarco e o PT.
Demarco foi atacado em outra frente. Em abril de 2001, a muito lida
coluna do jornalista Ricardo Boechat no jornal O Globo trouxe uma nota
que, se verdadeira, seria devastadora para o desafeto do banqueiro. Sob
o título “Caso de Polícia”, a coluna afirmou que Demarco “tem um grande
problema doméstico”:
Sua ex-mulher, a executiva Maria Regina Yazbek, entrou na
Justiça de São Paulo pedindo a reintegração de posse do [carro]
BMW Z3, que lhe foi tomado depois de uma separação litigiosa. O
carro era um presente de aniversário. Demarco espancou a exmulher, que ficou internada seis dias no Hospital Albert Einstein.
Se os leitores ficaram perplexos com a nota, podem ter passado ao
espanto com a de 6 de maio, sob o título “Baixo Nível”. A segunda
descredenciou a primeira.
É pesado o jogo contra Luís Roberto Demarco, antigo sócio do
banqueiro Daniel Dantas e hoje seu adversário em várias ações
judiciais. Semana passada, vários jornais receberam notícias
inexatas sobre o processo de divórcio do empresário, tentando
atingi-lo moralmente. A manobra foi conduzida junto às redações
por uma assessoria de imprensa a soldo do Banco Opportunity, do
qual Dantas é proprietário.
A nota saiu porque Demarco foi reclamar com Boechat. O jornalista,
então, tomou uma medida radical: abriu o off — quando o jornalista
revela quem é a fonte que lhe passou uma informação sob compromisso
de sigilo. Segundo Boechat, os dados “inexatos” haviam sido entregues
ao jornal por gente do Opportunity. Demarco sempre negou ter agredido
a ex-mulher.
A separação do casal teve outra consequência surpreendente. No
auge da disputa com Dantas nas ilhas Cayman, Demarco desconfiou do
comportamento de José Galego Jr., que era diretor de tecnologia de uma
de suas empresas, a InternetCo, e prestou queixa à polícia. No dia 25 de
maio de 2001, policiais civis encontraram nas gavetas de Galego Jr.
diversas xerocópias de e-mails enviados e/ou recebidos por
Demarco, envelopes em branco com o timbre da InternetCo, bem
como um telefone celular pelo qual, depois de periciado, restou
comprovado o envio de mensagem de texto em que Denys
informa a José Galego a combinação da senha pessoal da vítima
[Demarco].101
Denys Rodrigues era secretário de Galego. Após baixar um programa
na internet, Rodrigues gastou alguns dias até obter a senha de e-mail
para repassá-la a Galego, segundo a polícia. Galego copiou mensagens,
enviou material a Regina Yazbek e guardou cópias nas suas gavetas. A
Polícia Civil detectou um e-mail trocado em 27 de abril de 2001 entre
Regina e uma funcionária do Opportunity.
Em maio de 2002, o promotor de Justiça Renato Eugênio de Freitas
Peres reviu uma decisão anterior, na qual o Ministério Público apontara
indícios de ilegalidade, e tomou um caminho desfavorável a Demarco. Ele
considerou que “não há prova de furto” dos e-mails e que “não há prova
documental de um suposto furto”. O promotor escreveu ainda que a
alegação de Demarco “pode ser capitulada como devassa, mas não como
‘cortar o caminho da correspondência entre o remetente e o
destinatário’”.
Demarco recorreu. Em 2009, a promotora de Justiça Alexandra Milaré
Toledo Santos apontou que Regina e mais duas pessoas “interceptaram
comunicações de informática, sem qualquer autorização judicial e com
objetivos não autorizados em lei”.
“Movida por interesses pessoais e profissionais, Maria Regina, que
mantinha laços de amizade com Daniel Valente Dantas, solicitou a José
Galego Jr., diretor de tecnologia da empresa do ofendido [Demarco] [...]
que interceptasse os e-mails enviados e recebidos por Luiz Roberto.”102
Meses depois, contudo, a Justiça mandou arquivar o caso sem julgar
o mérito da acusação. O juiz Luiz Raphael Valdez concluiu que a possível
punibilidade dos réus estava prescrita. Haviam se passado nada menos
que sete anos entre a queixa-crime à polícia e a denúncia do Ministério
Público. Regina Yazbek sempre negou à Justiça qualquer participação nas
irregularidades e nunca foi condenada por essa suspeita.
Em 2001, os advogados do Opportunity aproveitaram-se de pelo
menos um documento oriundo da caixa de correio eletrônico de Demarco,
a cópia de um acordo extraoficial pelo qual Demarco passava a utilizar,
nas ilhas Cayman, os mesmos advogados da empresa canadense TIW,
que havia entrado na Justiça contra o fundo CVC para pedir o bloqueio de
US$ 390 milhões. Os advogados da TIW e de Demarco juntaram forças
contra o inimigo comum. O Opportunity tratou essa aliança como algo
espúrio que precisava ser denunciado à corte das ilhas Cayman. Dantas
também anexou cópia desse acordo a uma queixa-crime que protocolou
contra Demarco e Bruno Ducharme, executivo da TIW, na 6ª Promotoria
de Investigações Penais do Ministério Público do Rio.
Demarco e a TIW reagiram, e a Justiça das ilhas Cayman concluiu
que a defesa de Dantas não poderia usar o papel. Essa decisão levou
Dantas a enviar, em 2002, uma retratação formal ao gabinete do então
procurador-geral de Justiça, José Muiños Piñeiro, na qual reconhece que
a cópia do acordo foi subtraída de Demarco. A palavra “furtada” foi usada
pelo próprio Dantas, que, contudo, não apontou o autor do crime. Ele
escreveu:
Na ocasião em que protocolei a queixa-crime com o documento
da TIW anexado, a Grande Corte das Ilhas Cayman havia
proibido, por meio de ordem datada de 30 de outubro de 2001, a
utilização do documento exceto para uso em caso específico na
Cayman [...] A Grande Corte das Ilhas Cayman ordenou-me que
escrevesse para os senhores para explicar que a Corte concluiu
que o documento da TIW era um documento confidencial furtado
do sr. Demarco, e que evidencia em seu conteúdo nada além do
que um acordo para o compartilhamento dos serviços dos
advogados para a representação das partes Demarco/TIW em
processos perante a Grande Corte das Ilhas Cayman.
Para fazer a denúncia contra Demarco e Ducharme no Ministério
Público, o banqueiro se referiu a uma reunião ocorrida em 1º de maio de
2001 no hotel Sheraton, da qual participaram Dantas, Nelson Tanure, um
controvertido executivo cuja principal especialidade era assumir
empresas financeiramente quebradas, recuperá-las e, se possível, vendêlas — ele administrava à época o Jornal do Brasil e a Gazeta Mercantil —
e Paulo Marinho, um consultor que havia trabalhado por um ano e meio
com Dantas, mas passou a colaborar com Tanure. Na reunião, Tanure e
Marinho falaram em nome dos interesses do grupo canadense TIW.
Dantas procurou o Ministério Público para dizer que o teor da
conversa lhe pareceu ameaçador, como uma extorsão, pois fora orientado
a fechar logo um acordo com a TIW. A promotora Ana Lúcia Mello abriu
uma investigação preliminar, mas concluiu, meses depois, que não houve
crime e pediu o arquivamento dos autos. Com isso, Marinho investiu
contra Dantas, pedindo que ele fosse investigado por falsa denúncia. A
Promotoria abriu um inquérito e denunciou o banqueiro pelo artigo 339
do Código Penal, que prevê a denunciação caluniosa:
“Tratava-se de reunião de negócios empresariais, a qual o
denunciado [Dantas], em razão de seus inúmeros interesses negociais,
transformou em fatos criminosos.”
Em novembro de 2004, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça
do Rio acolheu o pedido de Dantas para trancar a ação penal. Os
desembargadores concluíram pela “falta de justa causa consubstanciada
na atipicidade do fato narrado na denúncia”.
Apenas um mês depois da reunião no hotel, Tanure e Marinho
sofreram um duro golpe nas páginas da revista Veja. A revista trouxe o
conteúdo de conversas gravadas em uma interceptação realizada no
telefone de Marinho. Os diálogos demonstraram o esforço empreendido
por Tanure e Marinho para bombardear as posições de Dantas.
— Eu atuei ao lado dele em seus piores momentos neste um ano
e meio [...] Como ele é muito talentoso e preparado, Nelson, a
gente não pode perder isso de vista. Ele pensa pra caralho [...] E
não tem outro prazer a não ser trabalhar — disse Marinho.
— Mas estou convencido de que temos de levá-lo à loucura —
refletiu Tanure. — Eu quero tentar produzir algo para darmos
uma sucessão de feridas nele. E o seu papel é importante para
dizer: “É só um começo, acabe com isso no começo, vai ser um
erro, Frank Sinatra”.
O grampo também atingiu o jornalista Ricardo Boechat. Pelo telefone,
ele aparece combinando com Marinho o texto de uma nota publicada em
sua coluna que depois foi utilizada pela TIW numa ação judicial contra o
Opportunity. A revelação da conversa provocou a saída de Boechat das
Organizações Globo.
Anos depois, Marinho contou ter sido procurado pela revista Veja
antes da publicação da reportagem. Depois de falar com a jornalista, ele
seguiu direto para a sede do Opportunity, no Rio, onde disse ter se
encontrado com Dantas para obter explicações.
“Daniel Dantas esclareceu ter conhecimento da existência das fitas e
do seu conteúdo, argumentando, entretanto, que havia contratado a
empresa Kroll para investigar os italianos.”103
Ou seja, Dantas teria dito que seu alvo era a Telecom Italia, não a
TIW. Mas negou ter encomendado o grampo.
O pedido de interceptação no telefone de Marinho ocorreu em
circunstâncias nebulosas num inquérito policial sem qualquer relação com
ele. Uma equipe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia
Civil de Duque de Caxias (RJ) investigava um grupo ligado ao
narcotraficante Luiz Fernando da Costa, o Beira-Mar, e recebeu a dica de
“uma denunciante” sobre um número de telefone. A Justiça autorizou o
grampo. O chefe da investigação, Ricardo Dominguez Pereira, e o policial
Luis Antonio Duarte chegaram a levantar a hipótese de que havia um
segundo grampo, este ilegal, operando ao mesmo tempo que o oficial,
mas não surgiu prova disso. Pereira afirmou várias vezes que Marinho
nada tinha a ver com a investigação nem era suspeito de nada. Resta o
mistério de como as gravações chegaram ao conhecimento de Dantas,
segundo Marinho, e da revista Veja.
Não bastasse tudo isso, o Opportunity começou a se preocupar com
outro problema, um rumoroso e gigantesco caso de evasão de divisas.
O voo do macuco
“Foi o trabalho de uma equipe amotinada, feito sob surdina e na marra.”
Delegado José Castilho, em entrevista ao autor, sobre a equipe da
PF que investigou o banco Banestado e detectou remessas para o
Opportunity Fund, nas ilhas Cayman.
As forças-tarefas da Polícia Federal e do Ministério Público Federal,
que mais tarde seriam conhecidas como “operações”, existiam no Brasil
desde os anos 1980, inspiradas no modelo americano das task forces do
FBI. Mas eram raras e mal estruturadas. Na prática, tratava-se de um
amontoado de servidores deslocados de órgãos diversos, trabalhando
pontualmente para consumar determinada investigação. Em Foz do
Iguaçu (PR), uma força-tarefa entrou em funcionamento no primeiro
trimestre de 1999, com pessoal do Ministério Público, da PF e da Receita
Federal, sob a coordenação da Procuradoria da República de Cascavel
(PR).
O objetivo era aprofundar as descobertas da CPI dos Precatórios, que
funcionou no Congresso entre 1993 e 1994. Ao rastrear cheques emitidos
por corretoras de valores que tiveram lucros em desacordo com a lei, os
parlamentares descobriram que quase todo o dinheiro tinha como destino
final as agências bancárias de Foz e contas de não residentes no Brasil. A
conta desse tipo era conhecida como CC-5, por ter sido criada pela Carta
Circular nº 5 do BC. Ela funcionava como uma conta normal, com a
diferença de que só podia ser aberta por pessoa física ou jurídica
residente no exterior.
A CPI apontou que as contas CC-5 estavam sendo usadas para evasão
de dinheiro. O esquema funcionava assim: um doleiro, brasileiro ou
paraguaio, contratava um “laranja” para que abrisse a conta CC-5 no
Brasil. Em seguida, o doleiro transferia o dinheiro para a conta bancária
de uma casa de câmbio, no Paraguai, transferia novamente para outra
conta no exterior e encerrava a primeira. Algumas contas registraram R$
350 milhões num único mês. Estimou-se um total de US$ 30 bilhões
entre 1996 e 2002, a maior evasão da história do país.
O procurador da República Celso Tres obteve em 1999 a quebra
judicial de todas as contas CC-5, o que levou o Ministério Público a
montar a força-tarefa.
Um ano depois, o caso ainda estava cercado de dúvidas: qual o
destino de todo aquele dinheiro e quem, afinal, eram os donos?
A força-tarefa pediu ao INC (Instituto Nacional de Criminalística) da
PF, em Brasília, a ajuda de um perito especializado em contabilidade.
Renato Rodrigues Barbosa, de trinta anos de idade e apenas dois de PF,
seguiu para Foz pouco antes do nascimento do seu filho — só veria o
bebê meses depois.
Renato nunca tinha saído do Distrito Federal. Nascido em Sobradinho
em setembro de 1969, Renato começou a trabalhar aos dezenove anos,
como auxiliar administrativo de uma microempresa. À noite, estudava
ciências contábeis no Ceub de Brasília, onde se formou em 1993. Passou
a dar aulas de contabilidade em escolas públicas de ensino médio.
Também atuava como consultor tributário e fiscal para a IOB, uma
revista que prestava atendimento direto aos contadores. O assinante da
revista ganhava a liberdade de telefonar para o IOB e pedir ajuda para
tirar suas dúvidas. Entre 1994 e 1997, Renato passou várias tardes ao
telefone, resolvendo os problemas contábeis mais improváveis de clientes
mais díspares, de bancos a igrejas. O fato de ter lidado diariamente com
problemas reais que precisavam ser resolvidos em curto espaço de tempo
ajudaria muito no futuro de Renato.
Em 1996, Renato foi trabalhar na contabilidade de uma empreiteira,
a TCO, que depois foi tragada pela crise na construção civil deflagrada
pela quebra da empreiteira Encol. O aprendizado de Renato na
empreiteira, contudo, foi inesquecível. A contabilidade de uma
empreiteira é das mais problemáticas, pois precisa calcular tudo, de um
prego na parede a um piso de azulejo. “É muita informação para
trabalhar, do pequeno ao grande. Numa investigação policial, é a mesma
coisa.”
Em 1998, Renato passou no concurso para perito da PF. Estudou com
cerca de 600 colegas na Academia Nacional de Polícia, mas o governo
demorou dois anos e meio para convocá-los. A criminalística envolve
catorze atividades diferentes, de engenharia a medicina, o que torna o
perito uma espécie de clínico geral. Aprende a averiguar o local em que
uma bomba foi detonada e a localizar o foco de um incêndio. Estuda
documentos e grafias. Mas, ao pisar pela primeira vez no INC, no final de
1999, Renato já sabia o que gostaria de ser: um perito criminal contábil.
Renato desembarcou no aeroporto de Foz em fevereiro de 2000 e foi
direto para a sede do Ministério Público, onde funcionava a força-tarefa,
na esquina das avenidas Independência com Brasil. O prédio tinha
rachaduras, e os policiais diziam que ele estava afundando. Ali Renato
tinha a tarefa de render outro perito, Eurico Monteiro Montenegro, que
mais tarde voltaria para desempenhar um papel relevante na
investigação.
Em seu novo local de trabalho, uma sala apertada cujo calor intenso
só era amenizado por um ventilador, Renato encontrou uma cena
desoladora: quatro policiais digitando em computador dados extraídos de
centenas de páginas de extratos bancários em cerca de 350 inquéritos
empilhados, tomando cada centímetro das paredes. Só um dos inquéritos
tinha 950 volumes.
E quase tudo se resumia a perseguir apenas doleiros e “laranjas”.
Mas quem, afinal, era o dono daquelas fortunas?
Ministério Público e PF batiam cabeça. Os procuradores queriam que
o inquérito andasse “para a frente”, ou seja, para as contas no exterior
que haviam recebido os recursos remetidos do Brasil, enquanto os
policiais trabalhavam “para trás”, intimando e interrogando quem havia
enviado o dinheiro para fora. Para trás a PF só iria achar “laranjas” e
doleiros. A Receita multava “laranjas”, a polícia indiciava “laranjas”.
Quando Renato chegou, encontrou cem laudos sobre tais “laranjas”. Ele
começou a achar aquilo um desperdício terrível de tempo e dinheiro. Fez
um, dois, três laudos nos mesmos moldes, até que se cansou. Passou a
reunir e consolidar todos os dados num arquivo do programa Access, o
que era uma novidade na época. Renato queria encontrar padrões de
comportamento, identificar as principais contas e procurar quebrar o
sigilo de pessoas ou empresas que tivessem algum relacionamento da
conta do “laranja” para a frente, como queriam os procuradores.
Meses depois, a PF substituiu seu representante na força-tarefa,
enviando a Foz um delegado igualmente novato, nascido em Salvador, na
Bahia, e radicado no Rio de Janeiro, com o nome incomum de
Protógenes, que logo foi chamado pelos colegas apenas pelo sobrenome,
Queiroz.
Renato sugeriu que a PF pressionasse diretamente os bancos, para
que informassem todas as contas abastecidas pelos “laranjas”. Protógenes
comprou a ideia. A PF passou a fazer pedidos cada vez mais detalhados,
esticando a corda. Após algumas semanas, Protógenes entregou a Renato
três cadernos que registravam a contabilidade do banco Araucária, cujos
diretores eram ligados ao então senador Jorge Bornhausen, de Santa
Catarina, um dos líderes do PFL. O irmão do ex-senador, Paulo, havia
sido diretor do banco até 1996. Os Bornhausen, depois, alegaram ter
deixado a sociedade antes das autorizações do BC para operar as contas
CC-5. Protógenes insistiu com Renato: “Quem está por trás disso aqui é o
Bornhausen. Quero fechar esse tamborete”.
Com o caso mais robusto, a equipe resolveu batizá-lo de Operação
Macuco, uma ave arisca encontrada na região, cuja captura requer certa
perícia. Às vezes, o caçador fica horas à espreita, quase sempre
camuflado numa plataforma montada nos galhos de uma árvore.
Renato morava em um quarto do hotel Savariz, no centro da cidade,
alugado por R$ 600 mensais. Ali ficou por mais de oito meses sem voltar
a Brasília. Num domingo, de folga, foi procurado em seu quarto pelo
delegado federal Paulo Guedes, o Patolino, que trabalhava na área de
inteligência da diretoria de entorpecentes de Brasília e tinha ganhado
certa fama na instituição por ter prendido o ex-general paraguaio Lino
Oviedo. Ele carregava uma mala de escuta telefônica e disse estar
fazendo o monitoramento de um investigado. Contudo, um dos áudios
captados, dos mais importantes, estava com problemas. Sendo Renato
um perito, Patolino achou que ele podia ajudar. Minutos depois, Renato
destravou o arquivo, mas nem quis ouvi-lo. Patolino vibrou.
Uma semana depois, Renato chegou para trabalhar na delegacia da
PF em Foz e encontrou vários policiais algemados. Era o trabalho de
Patolino que desencadeara a Operação Cobra, uma das investigações, até
hoje, que mais atingiram a própria corporação. Vinte e sete policiais
foram presos pela PF, o que representou quase dois terços de toda a
delegacia de Foz. Policiais rodoviários também foram presos em massa —
outro grupo chegou a cercar a delegacia da PF para tentar a soltura dos
colegas.
Protógenes começou a indiciar vários gerentes e funcionários dos bancos,
até que foi transferido para São Paulo, para a delegacia de crimes
financeiros. De lá, telefonou para Renato para dizer que “tinha fechado
mesmo o Araucária”. O relatório de Renato apontou que o banco nunca
teve capacidade para operar tanto dinheiro. Era, na prática, um mero
retransmissor de fundos. “O Queiroz nunca parava, a gente nunca
conseguia conversar direito. Os próprios policiais queimavam muito o
Queiroz. O fato é que só foi depois do trabalho dele que o BC decretou a
intervenção no Araucária”, lembra o perito.
Com a notícia de que gerentes estavam sendo indiciados pela PF, o
BC resolveu enviar dois servidores à região para saber o que estava
acontecendo. Eles se reuniram com os peritos e um procurador da
República. Decidiu-se que os peritos da PF poderiam ter acesso facilitado
à sede do Araucária, em Curitiba. A liquidação do Araucária foi
determinada pelo BC no dia 27 de março de 2001. Dois dias depois,
Renato estava em frente à sede do banco, um prédio envidraçado em
Curitiba. Um homem barbudo, abatido, com olheiras e roupa toda
amassada veio recebê-lo. Renato demorou um pouco a perceber que se
tratava de Luiz Alberto Dalcanale, um dos principais executivos do
Araucária. Até 1995, segundo os dados do Ministério Público, um dos
acionistas controladores do banco era Paulo Bornhausen, irmão do
senador Jorge Bornhausen, um dos principais líderes do PFL no país.
Dalcanale era cunhado de Paulo. Do início ao fim do escândalo, Dalcanale
disse que era uma vítima do Banco Central e que o Araucária não
cometeu irregularidades. Renato se despediu de Dalcanale e entrou no
banco.
Uma de suas primeiras atitudes no prédio foi procurar um funcionário
do banco cuja função e identidade ainda não podem ser reveladas. O
perito disse que o rapaz seria preso, pois havia “maquiado” as contas. A
manobra detectada pelo perito consistia numa anotação, no campo
destinado à conversão de moeda, da expressão “depósito da tesouraria”,
em vez de “contrato de câmbio”. Assim, quem fez a anotação não queria
revelar um dado que conectaria os registros às remessas de dinheiro para
o exterior. Renato percebeu que era um momento único de estar frente a
frente com uma testemunha importante, num banco sob intervenção e
longe dos advogados que poderiam quebrar a iniciativa do bancário.
Mesmo sem ter qualquer poder para isto, ele blefou, ao sugerir um
acordo: se o funcionário dissesse para onde o dinheiro iria, o perito
poderia ajudá-lo.
O bancário fez então a revelação que foi a chave de toda a
investigação. Até então, o BC dizia à PF que o caminho do dinheiro
acabava no Paraguai, e ponto-final. Não queria nem discutir numa
segunda etapa da transação. O processo de camuflagem de capitais no
exterior passa por várias etapas e contas bancárias, como as cascas de
cebola, que precisam ser removidas até se chegar ao destino final do
dinheiro. Há operações com nove, doze camadas. Até então, a polícia
continuava na primeira camada. O perito queria chegar logo ao centro da
cebola.
Após exigir confidencialidade, o bancário saiu da sala e retornou com
um papel que tinha um número, 555-5, e um saldo, US$ 25 milhões. Era
a conta do banco Araucária na agência do banco Banestado em Nova
Iorque (EUA). Os peritos nunca imaginaram que o dinheiro que saía para
o Paraguai chegava a uma conta nos Estados Unidos (em breve, saberiam
que a conta do Araucária era apenas uma, de 137, todas alimentadas
após o mesmo trajeto).
Renato indagou à fonte como o dinheiro chegava a Nova Iorque. O
bancário respondeu que havia um sistema de internet para isso, cuja
senha era guardada por uma mulher da mesa de câmbio, e que toda
operação de compra e venda era gravada pelo banco.
Com essa dica, os policiais encontraram centenas de horas de
gravação na mesa de câmbio, que registravam todas as ordens de
remessas para Nova Iorque de contas controladas por doleiros brasileiros.
Os peritos ficaram por uma semana com acesso livre ao banco, revirando
papéis e gravações.
Gente do BC então ligou para Renato para saber o que estava
ocorrendo, já que o banco Itaú, o novo controlador do banco Banestado,
manifestara preocupações sobre o Araucária. Meia hora depois, Renato
estava ao telefone com um diretor da área internacional do Itaú. O
bancário quis continuar a conversa pessoalmente. Saiu de São Paulo por
volta do meio-dia e, quatro horas depois, estava a sós com Renato, em
Curitiba. Renato começou logo pelo essencial, dizendo que “todo o
dinheiro” seguia para a agência do Banestado de Nova Iorque.
O diretor do Itaú, que não demonstrou surpresa com essa
informação, pediu apenas que o banco não fosse envolvido no escândalo,
pois tinha adquirido o Banestado depois das irregularidades e não tinha
nada a ver com aquilo. De fato, o Banestado, fundado e gerido pelo
governo do Paraná, havia sido privatizado em outubro de 2000. O Itaú o
comprou, em leilão, por R$ 1,6 bilhão. E as irregularidades no Banestado,
de fato, haviam ocorrido entre 1996 e outubro de 2000. O Itaú estava
livre daquilo tudo. Renato topou o acordo. Novamente ele agia à margem
do delegado do caso, dando garantias que poderia não ter condições ou
autoridade para cumprir no futuro. Mas ele entendia que as chances que
se apresentavam deviam ser agarradas, pois podiam ser as últimas, antes
que uma armada de advogados interviesse com seus infinitos e poderosos
recursos judiciais.
Os peritos passaram a se dedicar à produção de um laudo que
convencesse a Justiça a determinar a quebra do sigilo e a busca e
apreensão de todos os documentos relacionados à conta nº 555 do
Araucária, mantida na agência do Banestado dos EUA. A ordem foi
assinada pelo juiz da 2ª Vara Federal Criminal de Foz, Fábio Hassen
Ismael. Era datada de 19 de setembro de 2001, oito dias após os
atentados suicidas do grupo terrorista Al Qaeda. Quando Renato, Eurico e
Castilho desembarcaram em Nova Iorque em janeiro de 2002, ainda
deram uma olhada nos escombros do World Trade Center.
A viagem aos EUA foi discutida pelos peritos, quatros juízes federais e
dois procuradores da República, já com a colaboração de um delegado da
PF que teve papel preponderante nos acontecimentos. Tratava-se de José
Castilho Neto, cuja carreira na PF teve um destino que guarda
semelhanças com o que iria ocorrer com Protógenes, sete anos mais
tarde. Castilho fora deslocado de Araçatuba (SP) para Foz por indicação
da corregedoria de São Paulo.
Aos dezesseis anos, Castilho passou sete meses em estudos na região
de Michigan (EUA), onde aprimorou a língua e conheceu o modo de vida
americano. Para convencer juízes e promotores de Nova Iorque a
colaborarem ainda mais, Castilho havia orientado os peritos a produzirem
um laudo específico sobre movimentações suspeitas de pessoas de origem
islâmica do Brasil para o exterior. A base de trabalho dos policiais seria o
consulado do Brasil em Nova Iorque.
Contudo, os policiais consideravam que o cônsul local era muito
ligado ao PSDB. Decidiram agir com extrema discrição. Nesse meiotempo, o Itaú havia designado um escritório de advocacia em Nova
Iorque para acompanhar os policiais. Como a agência do Banestado,
àquela altura, já havia sido desativada, o advogado levou os policiais à
sala alugada pelo Itaú para abrigar os arquivos do banco.
Quando o advogado abriu a porta, Renato se disse perplexo: só então
entendeu que a equipe teria acesso direto não apenas à conta do
Araucária, mas às de todos os clientes da agência, incluindo os papéis de
abertura das cotas e as transferências de e para outros bancos, conta por
conta. Já na primeira olhada nos papéis, Renato compreendeu que
doleiros brasileiros haviam aberto empresas offshore em paraísos fiscais
para que pudessem abrir contas no Banestado nos EUA. Nada disso era
conhecido no Brasil. A equipe separou 137 correntistas que detinham
cerca de 90% da movimentação total dos mil correntistas da agência.
Os policiais trabalhavam até dez horas diárias, lendo os documentos
e fazendo anotações. Em pouco tempo, a história ficou mais sólida. E o
quadro que veio à tona era surpreendente. Doleiros das principais cidades
brasileiras haviam construído uma engenhosa máquina de evasão de
divisas conhecida como “dólar-cabo”, cujo funcionamento era baseado na
confiança. No Brasil, um político ou um empresário que recebia dinheiro
de propina ou de “caixa dois”, fora da contabilidade oficial, precisava
“esquentar” a origem do dinheiro para, então, poder usá-lo legalmente. A
mala com esse dinheiro era entregue no Brasil ao doleiro de confiança.
Com um comando eletrônico, desde o Brasil, o doleiro mandava a agência
do Banestado de Nova Iorque liberar o mesmo valor, descontada uma
“taxa de administração” pela operação, de uma conta bancária sob seu
controle na agência do Banestado para outro banco no exterior. E mais
outro e outro, até o destino final, que seria uma conta finalmente sob o
controle direto do político ou do empresário. Ao mesmo tempo, para tapar
o buraco da conta nos EUA, o doleiro recebia o dinheiro por meio de
contas bancárias abertas em nome dos “laranjas”.
Os policiais trabalharam sem parar no que se tornaria um laudo já
clássico na perícia criminalística brasileira, o nº 675, composto de 20 mil
páginas. Pela primeira vez na história, um grupo de peritos devassava in
loco uma agência bancária inteira no exterior.
De volta ao Brasil, a equipe continuou desbastando as 137 principais
contas do Banestado. Os peritos as batizaram de “contas-ônibus”, porque
apenas “carregavam” dinheiro para outros.
“Nós vimos que o Banestado era uma conta de passagem. Vimos o
dinheiro indo para Luxemburgo, Cayman, Estados Unidos. O dinheiro só
passava na conta de Nova Iorque e ia embora, às vezes no mesmo dia.”
Para ordenar, desde o Brasil, as remessas para fora dos EUA, os doleiros
enviavam mensagens cifradas à agência americana. Havia uma tabela
que codificava e outra que decodificava os valores e números das contas.
As ordens nunca tinham assinaturas, apenas números. A quebra do
“código dos doleiros” rendeu um trabalho à parte.
A equipe então bateu os olhos no que acreditou ser o primeiro “peixe
grande”, o senador Jorge Bornhausen, que aparecia como destinatário de
recursos enviados por doleiros ao exterior. No dia 1º de abril de 1996,
uma conta aberta no Banco do Brasil de Nova Iorque com titularidade
atribuída a Bornhausen apareceu recebendo US$ 16 mil de uma firma
offshore de doleiros chamada Sunfox.104 O nome do irmão de
Bornhausen, Paulo Konder, também aparecia em mais cinco transações,
no valor total de US$ 42 mil. Os irmãos depois negaram quaisquer
irregularidades e nunca chegaram a ser processados ou condenados pelos
depósitos.
Os peritos combinaram que o assunto ficaria entre eles, por
enquanto. Quando percebeu ter tocado em altas autoridades, Renato
apressou seu trabalho. Ele queria acabar o laudo inteiro e, só então,
enviá-lo ao delegado Castilho, e nada poderia vazar antes disso. Renato
queria prender os doleiros e levá-los a uma confissão. Ele tinha uma
bomba nas mãos e queria se livrar dela o mais rápido possível.
“Foi aí que a minha vida virou uma tragédia.”
Numa tarde, um delegado da direção-geral da PF em Brasília
telefonou para Renato para dizer que já estava sabendo que haviam
“pegado o Bornhausen no exterior”. Renato desconversou, não negou
nem confirmou, disse que não estava por dentro de todos os achados da
perícia. Ele decidira não dizer nada a ninguém enquanto não acabasse o
laudo. O delegado pareceu acreditar na história. A rigor, Renato devia
explicações ao seu chefe, no INC, e não à direção da PF. Uma semana
depois, contudo, a informação de que a operação deparara com o nome
do senador surgiu em notas na imprensa. Aquilo enfureceu a direção da
PF. Um delegado foi a Foz para conversar com Renato. Naquele
momento, todas as principais revistas semanais já traziam a mesma
informação sobre o senador. O PFL, que estava brigando com o PSDB,
considerou as notas uma retaliação da PF. A Operação Lunus, que havia
apreendido dinheiro numa empresa da família do ex-presidente José
Sarney e reduzido a pó a candidatura da pefelista Roseana Sarney à
Presidência da República, havia ocorrido poucos meses antes. Em
retaliação, Bornhausen e o PFL passaram a travar a pauta de votações no
Congresso. Portanto, Renato estava agora metido numa grande briga
pelo poder. Ele estava encurralado e pressionado pela própria PF, que
devia estar sendo pressionada pelo governo. Alguém queria uma cabeça
para saciar a sede de vingança dos aliados do governo.
Renato passou a ser severamente cobrado para que entregasse o
laudo e, ao mesmo tempo, prestasse contas de inúmeras e detalhadas
despesas de sua viagem a Nova Iorque, o que transformou sua vida num
inferno de telefonemas, relatórios e ofícios.
A tábua de salvação de Renato não veio de sua polícia, aquela
carreira que ele escolheu, mas do Ministério Público Federal. Nos anos
1990, Renato havia sido contemporâneo, na faculdade Ceub, do então
líder estudantil Luiz Francisco de Souza, que havia liderado um pequeno
motim na faculdade. Anos depois, Luiz Francisco se tornou procurador da
República.
Ao saber do caso Banestado, um grupo de procuradores se mobilizou:
Celso Tres, Luiz Francisco, Valquíria Quixadá, Guilherme Schelb e
Alexandre Camanho. Mas a ação dos procuradores não impediu o pior.
Numa tarde, Castilho foi acionado pelo telefone para comparecer a uma
reunião com seu superior, em Brasília. Castilho foi animado, acreditando
que a cúpula da PF daria sequência ao caso Banestado. Da sala do chefe,
contudo, ele foi levado à presença do diretor-geral, de quem ouviu as
piores notícias.
“Ele me disse: ‘Castilho, você está há muito tempo nesse caso, já
trabalhou demais nisso. É melhor dar um tempo e voltar para sua
delegacia de origem’. Eu protestei, dizendo que estava apenas
começando, mas nem quiseram saber. Esta foi a minha primeira queda.”
A PF transferiu Castilho de volta para Araçatuba (SP) e o retirou do
caso. O policial que havia comandado a maior investigação da história
brasileira sobre lavagem de capitais em território estrangeiro passou a
presidir inquéritos sobre uso de moeda falsa e crimes ambientais, a 522
quilômetros de São Paulo.
A equipe da Macuco quebrara várias barreiras. Nunca uma equipe de
peritos havia feito diligência no exterior para investigar, em primeira
mão, um crime financeiro internacional. Mas os peritos não seriam
poupados. Um dia, Renato recebeu um telefonema para que
comparecesse à sala do seu chefe no INC. Ali, ouviu que seria removido
para a superintendência da PF no Distrito Federal. Só depois Renato
soube que um amigo seu no INC havia gravado uma conversa sua, às
escondidas, na qual o perito, em tom de desabafo, culpava os chefes do
INC pela pasmaceira que tomara conta da investigação.
Assim, a direção-geral da PF operou uma intervenção branca na
investigação — nos mesmos moldes do que mais tarde, já sob o governo
petista, faria na Operação Satiagraha.
A Operação Macuco estava ferida de morte, fazendo jus ao próprio
nome. Da família dos tinamídeos, o macuco se assemelha a uma codorna.
Ele prefere o chão, e seus voos são sempre curtos.
Renato tomou um choque de realidade que abalou suas crenças na PF. Os
contribuintes não lhe pagavam justamente para aquilo, ir atrás dos
delitos? Ele não havia acusado Bornhausen de nada, pois o trabalho
pericial não pode ser confundido com uma acusação. O investigador
obtém e analisa as provas, cabe ao Ministério Público decidir se denuncia
ou não os investigados, e cabe ao juiz decidir se eles merecem ou não ser
condenados. O réu pode contestar tudo isso nas várias instâncias do
Judiciário. É um sistema simples, cristalino, que o perito havia estudado
inúmeras vezes na Academia de Polícia. Polícia investiga, procurador
denuncia, juiz julga. Mas por que parar uma investigação no meio do
caminho?
Para uma denúncia mais acurada e uma sentença mais justa, Renato
obteve em Nova Iorque toneladas de documentos que precisavam ser
mais bem mapeados. Em vez de uma promoção ou um elogio, em 2002
Renato foi transferido para a superintendência da PF no Distrito Federal
para realizar um trabalho memorável. Vestido com um macacão azul sujo
de graxa, sua nova tarefa consistia em deitar embaixo de um carro,
ônibus ou caminhão parado no estacionamento dos fundos da
superintendência, limpar e fotografar um número que ali deveria estar
grafado em baixo-relevo. Por coincidência, o superintendente do DF à
época era o delegado Euclides, o mesmo que havia obtido os primeiros
resultados na investigação sobre as contas CC-5 em Foz. Ele recebeu
Renato de braços abertos, preservando-lhe o cargo e o salário, mas não
conseguiu fazer nada sobre o foco de seu trabalho. Após dedicar dois
anos inteiros na apuração de crimes financeiros, o perito contábil Renato
agora deveria conferir possíveis adulterações em chassis de veículos
apreendidos pela polícia.
O laudo sobre as contas do Banestado de Nova Iorque acabou
concluído por outro perito, que dois meses depois também seria
transferido da função, e dois outros peritos “interventores”. O inquérito
foi assinado por um delegado do Rio Grande do Sul, já que Castilho havia
sido transferido para São Paulo. Houve um período de desavenças entre
os integrantes da antiga equipe, cada um culpando o outro pelos
vazamentos que foram usados como justificativa para a PF implodir a
investigação.
Renato ficou oito meses na “geladeira”. Mas, então, decidiu que o caso
Banestado não acabaria daquele jeito. Ele queria ir atrás das outras
“cascas da cebola”. Já sabia que o dinheiro saía do Brasil e chegava a
Nova Iorque, tudo controlado por doleiros brasileiros. Mas a pergunta
essencial, a que realmente importava, continuava em aberto: quem eram
os donos verdadeiros daquela montanha de dinheiro?
Eu achava, antes do afastamento do caso, que, naturalmente,
dali iríamos para a Suíça e outros países e descobriríamos tudo.
Se o dinheiro fosse para a China, eu iria para a China. Era um boi
que eu segurava pelo rabo. Mas não. Eu estava arruinado com
aquilo e estava puto, porque tinha estado realmente resolvendo
um grande caso de corrupção. Mas, em Foz, ninguém estava
fazendo mais nada.
Renato pegou o telefone e ligou para o procurador Luiz Francisco. O
perito havia lido alguma coisa na imprensa sobre livros de contabilidade
apreendidos na sede do grupo OK, do senador Luiz Estevão (DF), e queria
saber se podia ajudar. O procurador disse que sim, que estava tendo
dificuldades.
O delegado Castilho também mexia seus pauzinhos. Era outro que
não cederia tão facilmente, para desespero de seus superiores em
Brasília. Ele também ligou para o procurador. Disse Castilho:
Eu sabia que o Luiz Francisco havia investigado o Daniel Dantas e
o grupo Opportunity e lhe contei que tínhamos identificado
transações para o Opportunity Fund que passavam pelo sistema
clandestino dos doleiros. Aí eu perguntei ao Luiz Francisco: “Será
que você não consegue me colocar de novo no caso? Ficou tudo
pelo meio do caminho, está errado”. Ele estava muito interessado
no Opportunity.
Anos depois, Luiz Francisco confirmou essa estratégia:
Eu só entrei no caso Banestado porque queria chegar ao Daniel
Dantas. Fiquei sabendo por um colega procurador que a polícia
havia achado as remessas para Cayman. Liguei para o delegado
Castilho e pedi que ele me enviasse os dados. Ele disse que não
podia enviar, pois seria punido. Então, oficiei formalmente.105
Nos anos 1980, Luiz Francisco estudou num colégio de jesuítas e
atuou numa CEB (Comunidade Eclesial de Base), da ala esquerda da
Igreja Católica, em Cascavel (PR). Ele ia às casas das famílias pobres,
“pegava um texto bíblico, debatia os problemas”. “O noviciado da gente
era bem esquerda!”106
Em 1996, aos quarenta e um anos e lotado em Brasília, tornou-se o
mais polêmico e ativo procurador da República do país. Ele dirigiu todas
as suas energias para investigar irregularidades no governo FHC, em
especial a privatização de estatais, recebida como a aplicação mais
efetiva do neoliberalismo, a qual, portanto, devia ser duramente
combatida como se fosse uma obra demoníaca.
O [ex-senador] Luiz Estevão eu processei várias vezes [...] E
depois processei uns vinte ministros, processei o Fernando
Henrique, processei o filho do Fernando Henrique duas vezes,
ajudei a descobrir umas coisas da filha do Fernando Henrique,
que depois saíram na imprensa. Pedi uma auditoria fiscal também
contra a filha do Fernando Henrique, e [por aí] vai. Processei o
Ricardo Sérgio e uma porção de outros caras. Processei o [exministro da Fazenda Pedro] Malan, processei os presidentes do
Banco Central — foram várias vezes — e a diretoria do Banco do
Brasil também umas doze vezes.107
Luiz Francisco combateu as privatizações do sistema Telebras desde o
leilão. Chamou de “crime” a venda da mineradora Vale, da qual
participou o Opportunity. Assim que os primeiros leilões foram
anunciados, Luiz Francisco tentou impedi-los, mas nunca conseguiu, pois
o TCU disse que todos os leilões haviam sido legais.
Luiz Francisco achava que o Opportunity havia feito depósitos para
membros do governo FHC. Como o fundo nas ilhas Cayman era gerido
pelas regras daquele país, um paraíso fiscal que protege os investidores
ao extremo, os nomes dos cotistas não eram conhecidos da CVM do
Brasil. Ele queria encontrar no caso Banestado alguma remessa para o
Opportunity Fund relacionada a um tucano. A partir disso, pretendia
obter judicialmente a ilegalidade de todo o leilão das companhias
telefônicas.
No final de 2002, a imprensa anunciou que o novo diretor-geral da PF
seria o delegado aposentado Paulo Lacerda, então assessor de gabinete
do senador Romeu Tuma (PFL). Lacerda era uma indicação do ministro
Márcio Thomaz Bastos, que havia advogado no caso PC, um inquérito
presidido por Lacerda.
Após a posse de Lacerda, o primeiro delegado que havia investigado o
caso Banestado com Renato em Foz, Euclides Rodrigues da Silva Filho,
chamou o perito à sua sala. Esse discreto delegado estendeu a mão para
a investigação. Contou a Renato que Lacerda estava pedindo “o fato mais
relevante em andamento” da PF em cada estado. Euclides queria retomar
o caso Banestado e pediu que o perito se reunisse com Lacerda.
Às 8 horas do dia seguinte, Renato, em seu melhor terno, foi até o 9º
andar do prédio da PF em Brasília, cujas vidraças escuras lhe renderam o
apelido de “Máscara Negra”. Na sala estavam Lacerda e um homem que
Renato não reconheceu. Renato abriu seu notebook e exibiu alguns
achados. Contou sobre os trabalhos interrompidos em Nova Iorque.
Lacerda, um especialista em crimes financeiros, que na década de 1990
havia achado remessas para bancos de Foz em nome de contas de
“fantasmas”, achou que se tratava de um ótimo caso. Disse que iriam
tocar o caso “por Brasília”. Renato sorriu, aliviado, sentiu sair um peso de
seus ombros. Até que o terceiro homem interveio. Ele acusou Renato de
ser “indisciplinado” e afirmou que o caso estava sob os cuidados de um
delegado do Rio Grande do Sul.
Renato se sentiu humilhado. Só depois soube que o assessor havia
recebido uma gravação em que Renato reclamava de seus superiores.
Renato concluiu que o assessor havia sido “envenenado” por um detrator
seu no INC. O corporativismo da PF não aceitaria supostas indisciplinas
nem mesmo no governo de um ex-líder grevista como Lula. Ao encerrar o
encontro, Lacerda disse apenas que depois discutiria o caso. Mas nunca
mais o diretor-geral esteve reunido com o principal perito do caso
Banestado para discutir a gigantesca evasão de pelo menos US$ 30
bilhões.
Mas o Ministério Público reagiu. Luiz Francisco e dez procuradores
encaminharam uma carta ao Ministério da Justiça exigindo o retorno de
policiais a Nova Iorque. Lacerda cedeu e mandou avisar Renato.
Viajariam o perito, Castilho, Eurico e outros policiais. A equipe teria,
segundo as ordens atribuídas a Lacerda, catorze dias para resolver o
caso. Luiz Francisco orientou: “Vocês tragam todas as contas do exterior.
Nós vamos montar uma CPI aqui no Brasil. Avisem à família que vocês
não vão voltar nos próximos dois meses. Nós vamos pegar o esquema das
teles”.
Pela primeira vez, Renato ouviu do próprio Luiz Francisco que seu
interesse sobre o caso estava associado à privatização do sistema
Telebras. A CPI do Banestado de fato foi instalada, após uma reportagem
do jornalista Amaury Ribeiro Jr. na revista IstoÉ — autor, anos depois, de
Privataria Tucana (Geração Editorial).
“O Luiz estava de olho no banco Opportunity. Ele já sabia do
Opportunity e achava que os US$ 30 bilhões eram dinheiro das
privatizações. Ele queria que nós fôssemos às ilhas Cayman, esse era o
alvo. O Luiz queria reverter o processo das privatizações, me falou isso
várias vezes depois”, disse Renato.
Os policiais passaram dois períodos em Nova Iorque, remexendo as
contas bancárias com apoio da Promotoria local. Mas o trabalho
novamente passou a ter problemas no Brasil. Como Lacerda tinha dado o
prazo máximo de catorze dias, a PF não engoliu que o trabalho houvesse
se estendido por mais duas semanas.
Lacerda não recebeu mais a equipe em seu gabinete. Os federais
resolveram entregar a Luiz Francisco duas malas enormes, cada uma com
cerca de cinquenta quilos, com os principais documentos. Não havia mais
nenhum clima na PF para a sequência da investigação. A operação
acabou assim, de forma quase clandestina, e sem qualquer
reconhecimento da cúpula da PF.
A saída era lutar por uma CPI no Congresso Nacional. Luiz Francisco
e a imprensa fizeram carga. O procurador manteve reuniões com a
senadora Ideli Salvatti, do PT de Santa Catarina. Foi o “caso”
Bornhausen, um expressivo cacique político da oposição ao governo Lula
no estado da senadora, que a aproximou do procurador. Mas Luiz
Francisco ficou decepcionado com a conversa: a CPI sairia, mas não do
jeito nem com a força que os investigadores imaginaram. A bancada do
PT não estava tão empolgada com a investigação. Os peritos foram
arrastados a depoimentos. Renato, desgastado na PF, encontrou uma
guarida segura na Procuradoria da República do Distrito Federal, para a
qual foi cedido como assessor a pedido dos procuradores que novamente
atuaram em seu favor.
A CPI também acabou melancolicamente, sem relatório final, e com
dois textos, um do PSDB e outro do PT. O dos tucanos, assinado pelo
senador Antero Paes (MT), mencionava irregularidades de um empresário
de Santo André (SP) muito ligado ao PT local, Ronan Maria Pinto, além de
remessas em nome de Antonio Cipriani, cujo advogado era Roberto
Teixeira, compadre do presidente Lula. Para quem soubesse ler, ali
estavam as explicações para a falta de ação da bancada petista.
Em 2003, Renato, que não havia visto o filho nascer em fevereiro de
2000, pois fora deslocado às pressas para Foz, encerrou seu casamento,
já desgastado pelas ausências e pressões que sofreu.
Os frutos do caso Banestado, contudo, continuaram rendendo centenas
de processos. Alguns documentos foram apreciados com grande
entusiasmo por Luiz Francisco. Eles confirmaram que pelo menos US$ 19
milhões saíram do Brasil por meio de “laranjas” e doleiros, passaram pelo
Banestado e pelo banco MTB em Nova Iorque e, por fim, foram
redirecionados para contas bancárias em nome de um fundo sediado nas
ilhas Cayman. Era o Opportunity Fund, o alvo principal do procurador.
Luiz Francisco começou a cozinhar uma ação civil pública contra
Daniel Dantas, sua irmã Verônica e o fundo. Procurava, entre os cotistas,
tucanos que tinham trabalhado no leilão das companhias telefônicas. Os
primeiros nomes já haviam sido divulgados pela imprensa, que se baseou
numa lista apócrifa vazada na internet. Na lista havia uma cotista de
nome autoexplicativo, a Elandau Trading. Ao lado do nome da empresa,
havia anotada uma aplicação de US$ 85 mil.108
Os dados atribuídos à Elandau, contudo, não significavam corrupção,
já que o casal Elena Landau e Pérsio Arida estava trabalhando ou havia
trabalhado para o Opportunity, como todo o mercado já sabia, e era mais
provável que aqueles valores fossem aplicações legais. Elena nunca foi
acusada de manter os depósitos ilegalmente. Mas, para o procurador,
naquele momento o indício bastava para encaminhar uma investigação
maior.
O Opportunity sempre alegou que não tinha responsabilidade sobre o
modo pelo qual seus clientes enviavam os recursos ao exterior, se com
ajuda de doleiros ou pelo canal oficial do Banco Central.
Em setembro de 2004, o procurador Luiz Francisco fechou a ação
sobre as remessas ao Fund. Ele queria dissolver o fundo e quebrar seu
sigilo. Com o objetivo de divulgar a denúncia, o procurador enviou uma
cópia do documento por e-mail a um jornalista de sua confiança, Claudio
Julio Tognolli, do site Consultor Jurídico. Ao verificar as propriedades do
arquivo, o jornalista percebeu que ele havia sido gerado num computador
do advogado de Demarco, Marcelo Elias. O procurador negou ter usado
texto oriundo de Elias, mas reconheceu ter recebido o advogado algumas
vezes em seu gabinete. Isso bastou para se lançar dúvidas sobre a ação
do procurador.
Parte da receita do site Consultor Jurídico vinha de escritórios de
advocacia. Revelou-se depois que o dono do site, Márcio Chaer, chegou a
enviar uma proposta de trabalho para Humberto Braz, importante aliado
de Daniel Dantas, segundo a qual faria assessoria de imprensa e
divulgaria no site matérias de interesse do setor telefônico. Mas o negócio
não foi fechado, segundo Chaer. Ele se defendeu na internet dizendo que
era uma proposta padrão, enviada a inúmeros clientes, incluindo outros
bancos, e citou o interesse público da notícia sobre as suspeitas em torno
da origem da denúncia protocolada por Luiz Francisco.
De qualquer forma, os contatos entre Demarco e Luiz Francisco
fizeram acender a luz vermelha no grupo Opportunity. Uma pedra no
sapato que a Kroll Associates precisava extrair. A investigação privada
contratada pela Brasil Telecom seguia a pleno vapor.
Tóquio e Chacal
“Nosso alvo é um cara muito estrategista. Extremamente estrategista.”
Delegado federal Carlos Eduardo Pellegrini, sobre Daniel Dantas,
em fita gravada na sede da PF de São Paulo.
Entre 15 e 16 de dezembro de 2003, Carla Cico, a executiva da Brasil
Telecom e pessoa de confiança de Daniel Dantas, reuniu-se com os
investigadores contratados da Kroll no hotel Ipanema Tower, no Rio. O
encontro apontou três eixos fundamentais nas investigações da Kroll: as
negociações entre a TI e as Organizações Globo, as brigas judiciais nas
ilhas Cayman com Demarco e a canadense TIW e, por fim, o caso da CRT
gaúcha. A Globo havia feito um acordo milionário com os italianos, em
torno de um portal na internet, e Carla queria obter evidência de alguma
irregularidade. “Para onde o dinheiro foi e como eles o distribuíram
durante a operação da Globo.com: quem era o ‘padrinho’ da operação?”,
indagou Carla em e-mail.
O trecho sobre as ilhas Cayman é especialmente revelador. O
Opportunity havia amargado algumas decisões desfavoráveis proferidas
pelo “juiz Kellog”, ou Kellock. Na lista dos “próximos passos”, Carla
sugeriu à Kroll localizar um ex-executivo da TIW no Brasil. Um
funcionário da Kroll, segundo escreveu Carla, recomendou a contratação
de um “RP”, ou relações-públicas, nas ilhas Cayman, cujo objetivo era
desacreditar Kellock. Anos depois, outros dois juízes brasileiros que
incomodaram o Opportunity também sofreram ataques públicos e
judiciais, que buscaram desqualificá-los ou pichá-los como pouco isentos.
Nas ilhas Cayman, Kellock foi o alvo. O banco dizia que o juiz tinha
ligações com um advogado que defendia a TIW.
“Esse trabalho de RP será disseminar [a história de] como uma firma
advocatícia do Canadá influenciou a Corte nas ilhas Cayman”, escreveu
Carla. Naquele momento, a defesa do Opportunity nas ilhas Cayman
alegava que o juiz era “parcial”. Em novembro, Carla explicou em e-mail
à Kroll que um advogado do Opportunity nas ilhas passara a ser
investigado por ter contratado um “detetive particular” para investigar o
juiz.
Em março de 2004, o caso Cayman voltou à pauta, numa reunião
realizada por telefone entre Carla, uma advogada do Opportunity,
Danielle Silbergleid, e alguém identificado como CAC, possivelmente
Charles Carr, da Kroll. Em e-mail que resumiu a conversa, Carla pontuou
que a Kroll deveria produzir um relatório “focado em encontrar as
conexões entre TI, TIW, Fundos de Pensão, Demarco, Tanuri [Tanure]”.
Mas não só isso, o grupo de comando do Projeto Tóquio queria ainda
mais, queria destruir seus oponentes:
“Já existem algumas evidências dessas conexões, mas CAC [Charles
Carr] com razão disse, e DS [Silbergleid] concordou, que essas evidências
são apenas circunstanciais e que nós queremos encontrar alguma coisa
‘pesada’ ou, como colocou CAC, tentar fazer um ‘assassinato de
reputação’.”
O objetivo era imprimir uma nódoa pública na vida dos adversários.
No jogo pesado que marcou o submundo dessas empresas de
telecomunicações entre 2002 e 2004, valia quase tudo.
Cinco meses depois da teleconferência, quando o juiz Kellock estava
tendo que se explicar nos jornais e na Justiça das ilhas Cayman, o banco
havia obtido uma vitória na corte local de apelação. Por e-mail, Carla
mandou congratulações a Charles Carr, da Kroll, em nome de Dantas.
“Ilhas Cayman: Como eu já lhe disse, DD pediu que lhe
encaminhasse seu agradecimento pelo trabalho feito até agora. Ele disse
que seu envolvimento foi decisivo para o julgamento favorável que ele
venceu na semana passada. Congratulações.”
No tema da CRT, Carla informou que estava “compreendido que
houve um pagamento para o governo, muito provavelmente feito pela
Telefónica. Assim, é preciso confirmar a chamada ‘Conexão Espanhola’
(incluindo Fernando Henrique Cardoso/rei Juan Carlos)”.
Carla indicou outro nome a ser verificado, um espanhol que morava
no Brasil, “Gregorio Marin Presioto [Preciado], muito bem conectado à
Iberdrola”, empresa espanhola que havia participado de consórcios que
adquiriram empresas estatais durante os leilões. Segundo Carla,
“Presioto” “foi a pessoa que ajudou [José] Serra quando ele estava
exilado no Chile”. Espanhol naturalizado brasileiro, Preciado era casado
com Vicencia Talan Marin, prima-irmã, por parte de mãe, de José Serra, e
ajudou em campanhas eleitorais do PSDB em São Paulo. Chegou a ser
conselheiro do então banco estatal Banespa. Preciado já tinha sido alvo
de reportagens dois anos antes. A Folha revelou que ele foi beneficiado
num negócio acertado no Banco do Brasil por suposta influência do exdiretor Ricardo Sérgio de Oliveira.
O leque de pessoas e empresas investigadas no Projeto Tóquio era
tão amplo que se torna difícil entender como conseguiu ficar sob segredo
por mais de um ano.
A Kroll então cometeu um erro brutal. No mínimo, subestimou a
capacidade da PF e a visão negativa que suas atividades produziam na
polícia. Só isso explica o que decidiu fazer no primeiro trimestre de 2004.
Estava em andamento, na 5ª Vara Federal de São Paulo, um inquérito
policial para apurar negócios da Parmalat, a empresa de compra e venda
de leite fundada na Itália nos anos 1970. Ex-presidente da TIM, o braço
de celulares da TI, o italiano Gianni Grisendi presidiu a Parmalat até
2000 e, ao sair, montou a Tecnosistemi, responsável pela instalação das
antenas da TIM no Brasil. A tarefa da Kroll era identificar ligações entre a
Tecnosistemi e a TI. Era uma tentativa inteligente de arrastar a
companhia telefônica italiana para o centro do escândalo da Parmalat, um
dos maiores da história recente da Itália. Seria um ótimo “assassinato de
reputação”.
Eduardo Sampaio, diretor da Kroll paulistana, procurou o delegado
que presidia o inquérito do caso, Elpídio Nogueira, para conversar sobre a
investigação. A Kroll marcou o encontro por meio de um funcionário,
Thiago Carvalho Santos, que era filho da funcionária da PF paulistana
Judite de Oliveira Dias, lotada no protocolo. Ela disse que a Kroll estava
interessada em “traçar metas de colaboração” na investigação e, por isso,
“não viu nenhum mal” em marcar a reunião.109 O delegado Elpídio
esteve no encontro, mas imediatamente comunicou a seus superiores o
que se passava. A PF entrou em alerta e se preparou para documentar o
próximo passo da Kroll.
Logo em seguida, um subcontratado da Kroll, o português Tiago Nuno
Verdial, passou a procurar por telefone uma das principais testemunhas
do caso brasileiro, Adelson Pugliese, motorista que trabalhou para a
presidência da Parmalat no Brasil entre 1979 e 1993.
Assim, quando Verdial e Pugliese entraram no quarto nº 151 do Hotel
Novotel, em São Paulo, às 13h45 do dia 6 de março de 2004, havia,
perto do abajur, uma câmera de vídeo e um microfone instalados pela PF.
Vestindo uma camisa polo, para fora da calça, com listras azuis e
brancas, Verdial entrou no quarto e abriu a cortina, enquanto Pugliese,
carregando uma maleta 007 e vestindo uma camisa de mangas
compridas, se sentou à frente de uma pequena mesa. Pugliese mostrou a
Verdial alguns documentos sobre a Parmalat, que o português passou a
ler. Logo começaram a discutir as bases de uma parceria. Pugliese sabia
do monitoramento em vídeo e havia aceitado colaborar com a polícia. Ele
começou:
“Essa pessoa, esse Bill, da Inglaterra, não é isso? Que traz aí as
informações que você está tentando juntar isso, para que ele tenha
alguma coisa. Então, estou à disposição. Você pode contar para mim o
que é, vou pesar, aí eu digo se é cabível ou não é cabível.”
Bill era o apelido de William Peter Goodall, contratado do escritório
da Kroll em Londres. Verdial se encorajou:
“O Bill e eu trabalhamos para um grande credor da Parmalat, e
especificamente nossas pesquisas é [sic] muito em cima do Gianni
Grisendi.”
Verdial descreveu: “O Bill se chama Bill Goodall, é lá de Londres, ele
meio que coordena essas ações que a gente tem aqui”.
De repente, Verdial parou de falar e mexeu na mala de Pugliese:
“Acho que você não está gravando nada aqui”. Para mostrar que não,
Pugliese abriu a pasta e retirou os papéis que carregava. A câmera, na
verdade, estava localizada na bancada, a cerca de três ou quatro metros
à esquerda de Verdial. O português quis saber se havia gravação porque
iria dizer algo importante, como disse:
Eu tenho capacidade, junto com o Bill, de ir a fundo nas
pesquisas. Quando eu digo fundo é área fiscal, telefônica. Só não
consigo o sigilo no digital. Não tenho a capacidade de um hacker
de entrar num... Adoraria entrar no e-mail do GG [Grisendi]. Isso
a gente ainda não consegue. A parte bancária, fiscal, telefônica,
fixa ou móvel, a gente tem como pesquisar e a gente já está no
meio dessas pesquisas. E no meio disso tudo surgiu AP [Pugliese].
“Nossa, pode ser a cereja no bolo.”
A transcrição oficial da PF entendeu “a gente já está” como
“enxertar”, mas isso não alterou o sentido geral do que Verdial dizia: os
limites da Kroll eram elásticos, só parando numa caixa de correio
eletrônico. Verdial também mencionou a Pugliese algo sobre
“colaboração, ou de ajuda financeira propriamente dita”.
Verdial fez outra inconfidência. “A gente vai fazer uma reunião lá
com o pessoal da Federal.”
A informação assustou Pugliese: “Você está trabalhando com o
pessoal da Federal?”. Verdial dizia a uma testemunha-chave de um caso
investigado pela PF conversava, ao mesmo tempo, com a própria PF.
Verdial se deu conta do erro e logo procurou acalmar Pugliese.
“Não, eu não trabalho com a Federal. Eu vou fazer uma reunião com
eles para pedir uma colaboração, pedir uma ajuda. Trocar figurinhas.”
Mais adiante, ele detalhou: “Eu vou lá pedir para eles jogarem o CPF e o
CNPJ no computador e ver o que aparece”. Os dados sobre os cidadãos
estavam ao alcance de um investigador particular com interesse em
grandes disputas comerciais. Ele contou que já tinha “o IR”, ou seja, a
declaração do imposto de renda, de um assessor de Grisendi, Atílio
Ortolani.
Verdial continuou sondando Pugliese até chegar ao ponto
fundamental da conversa: “Quando eu falei em colaboração, ou ajuda
financeira propriamente dita, quer dizer, é uma coisa que, como eu já
disse, pode ser feita, mas tem que ser feita com critério”.
Conforme explicou Verdial, como as informações seriam levadas a um
“litígio na Europa”, numa corte judicial, elas “não podem ser
simplesmente compradas ou adquiridas assim”. A saída, disse o
português, era simular os pagamentos.
Então, o que a gente vai fazer: um contratinho, como se fosse
uma prestação de serviços, esse tipo de coisa. A gente inventa
alguma coisa. “O AP [Pugliese] prestou serviço na área de
consultoria fiscal, tributária, ou empresarial ou automobilística ou
alimentar”, ou o que for, entendeu? Isso é uma coisa que a gente
faz com calma.
A PF não precisava ouvir mais nada depois disso. A gravação no hotel
determinou o nascimento da Operação Chacal. O delegado Elpídio
continuou tocando o caso Parmalat, enquanto o delegado Élzio Vicente da
Silva, lotado na DIP, foi presidir a nova operação. Passou-se à
interceptação telefônica, com ordem judicial, das conversas de Verdial. O
primeiro grampo data de março de 2004, e a voz de Bill Goodall apareceu
dois dias depois. A dupla estava agora interessada em encontrar podres
de Carmelo Furci, alto executivo da TI em assuntos internacionais.
Nascido em 1953 em Dinami, Furci, ex-gerente de estratégia do Banco
Mundial em Washington, foi o presidente da Telecom Italia no Brasil
quando ocorreu o episódio da venda da CRT.
Desde 2001, Furci vinha sendo bombardeado pelos controladores da
BrT. A empresa abriu uma ação ordinária de cobrança contra o italiano na
22ª Vara Cível do Rio. Em julho daquele ano, numa entrevista à revista
IstoÉ Dinheiro, Carla Cico atacou:
Logo depois que assumimos a companhia, a Telecom Italia
mandou para cá uma força-tarefa de uns trinta e cinco homens,
para conhecer a empresa por dentro. Nenhum deles sabia nada
de telecomunicações. Quem encabeçava essa força-tarefa?
Carmelo Furci, claro. Daquela equipe ninguém tinha qualificação
para trabalhar aqui. Carmelo chegou a indicar um diretor de
marketing que não tinha experiência na área. Eu e o próprio
Carmelo, numa decisão conjunta, decidimos afastá-lo. Quem tem
esqueletos no armário é ele, não eu.
Carla comparava biografias.
Carmelo Furci é uma pessoa modesta demais para atrapalhar a
minha vida. Ele não tem experiência como negociador, tampouco
em telecomunicações. Eu já fechei negócios na China, na Índia e
em outros países [...] O problema é que ele fez insinuações
contra mim e agora eu quero saber como responde às questões
que estou levantando.
Bill e Verdial aparentemente haviam se aproximado de uma exsecretária do italiano, mas ela pouco ajudou, afora o desejo de vingança
por ter sido demitida. Bill estava desapontado com os resultados
alcançados. Ele falava em português atrapalhado:
Realmente estou começando pensar que, porra, não tem nada
a ver com esse cara, entendéu? O cliéntchi está com raiva dele
por causa do papel que ele serviu no processo de valoramento, de
valorizar o CRT [...] Mas, então, ele levou o papel dele, entendéu,
como pessoa de TIM, para foder o BrT. Mas isso não faz dele um
crime não, um criminoso.
Verdial desabafou:
— Que filho da puta. É, esse cara não é um qualquer, não é um
gerentezinho de merda. Provavelmente alguém está fazendo por
ele, não põe a mão em lugar nenhum, tem quem faça por ele.
— Mas, veja bem, você tem razão se ele tenha feito alguma
coisa, entendéu? Mas realmente não existe indicação [de] que ele
fez alguma coisa de errado — ponderou Bill.
— Na CRT ele fez, sim, Bill.
— Na CRT, ele, como um funcionário da TI [Telecom Italia],
fez o que foi mandado ele [fazer] pela TI, entendéu? Ele fodeu o
DD. Isso não disputa. Mas, fora disso, de seu papel, de seu carga,
naquele assunto de preço de CRT, que realmente é uma coisa
comercial, não tem nenhuma indicação de que ele está, ou foi,
envolvido em nenhum ato criminoso — disse Bill.
O inglês estava sendo coerente com as provas que pôde averiguar.
— A Polícia Federal não acredita em lavagem de dinheiro saindo
de CRT, eles que têm a papelada, tudo. Eles têm muito mais
informação do que a gente sobre isso. Os papéis que eles têm
indicam que não houve, entendéu?
— É foda. Estou preocupado com o cliente, com o futuro do
cliente — insistiu Verdial.
— Ela tem que entender que, se não existe, a gente não pode
criar — disse o inglês.
O homem da Kroll estava dizendo que investigar os italianos pelo
caso CRT era um tiro n’água, ainda que Carla insistisse em mantê-lo na
mira.
“Mas eu falei com ela, na primeira vez que falei com ela. Veja bem,
eu tenho confiança de que a gente vai poder provar se aconteceu ou se
não aconteceu. Mas pode não ter acontecido.”
O teor da conversa foi malcompreendido pela PF, que estava tendo
acesso pela primeira vez àqueles nomes codificados e intrincados
episódios. O analista da PF misturou as bolas e deixou passar o essencial.
Não compreendeu, por exemplo, que o “DD” citado era ninguém menos
que Daniel Dantas, o principal adversário dos italianos, o qual se dizia o
principal prejudicado pela venda da CRT, a Companhia Rio-grandense de
Telecomunicações. Como Bill falou em inglês, o analista entendeu que
seria “GG”, traduzido por “Gianni Grisendi” (a pronúncia de “DD”, em
inglês, é “di-di”, enquanto “GG” é “dji-dji”).
O policial descreveu o diálogo:
Pelas palavras de Bill e Tiago, parece haver duas ou mais linhas
de investigação que serviriam a mais de um cliente, tendo em
vista a referência de Bill a um “cliente final” (termo usado em
outra conversa) que é chamado por ambos de “CF”, e temos
referências sobre “CC1” ou ainda “CC”, não identificados. Carece
de maiores elementos para definir quem é, ou quem são os
clientes que estão pagando por este trabalho, mas já se pode ter
uma boa mostra de como a Kroll, por meio de seus homens, vem
agindo e como está montando uma verdadeira rede de
colaboradores e informantes, corrompendo, comprando ou
recrutando até mesmo funcionários públicos em posições
estratégicas.
O “CF” citado não significava “cliente final”, mas Carmelo Furci.
A Kroll desencadeou duas operações contra os adversários do
Opportunity e da BrT. O Projeto Cumberland era focado na Parmalat,
enquanto o Projeto Tóquio investigava a TIM e a TI, o ministro Luiz
Gushiken, o então presidente do Banco do Brasil, Cassio Casseb, e os
empresários Tanure e Demarco.
Omer Erginsoy era o responsável geral pelo caso Cumberland, como
revelou o diretor da Kroll em São Paulo, Eduardo Gomide. “O caso
Cumberland é bastante confidencial. Omer é o gerente geral do caso [...]
Dada a sensibilidade do caso, e por solicitação de Omer, a [investigadora
da Kroll] Júlia deverá pedir informações para alguns subcontratados. O
caso exige mais rapidez.”110
Em março de 2004, Bill e Verdial falaram ao telefone sobre as
prioridades no caso Tóquio. É um dos diálogos mais reveladores da
Chacal, pois liga o nome de Dantas diretamente à ação da Kroll. Bill
telefonou para Verdial para checar se ele havia recebido, por e-mail, um
relatório que descrevia a divisão dos “alvos” entre Verdial e a funcionária
da Kroll Júlia Marinho Leitão da Cunha. Verdial respondeu:
“Só [fizemos] uma pequena alteração, Demarco com Júlia e não para
mim [...] E eu fico com funds overview. Quer dizer, mas sempre ter um
overlaping entre uma coisa e outra.”
Mais adiante, Bill quis saber se eles estavam “felizes” com o trabalho
e se tinham alguma dúvida.
“Eu tinha algumas dúvidas sobre as razões que levaram a essa fase 2
[Projeto Tóquio], mas, depois da nossa conversa de hoje de manhã, já
estou mais tranquilo”, disse Verdial.
Bill achou necessário ser bastante claro:
É o seguinte: é muito simples. É o mesmo assunto que o
primeiro, no final das contas, parte disso tudo, no fundo, no
fundo, fase 1, fase 2, seja lá o que seja, acaba numa coisa: a
gente quer conseguir evidências de que a companhia T [Telecom
Italia] está ou esteja em atos nefários como corrupção, no Brasil.
O assunto é esse. Essas pessoas foram escolhidas em conjunction,
em conjunção com o cliéntchi, como pessoas que... Fica até um
pouco de desconcordo entre nós, sobre quem é e quem não é
significante, entendéu? Então ficaram tudos incluídos. Por
exemplo, o CC [Carla Cico] não acha que NN [Naji Nahas] seja
significante. Mas o DD [Daniel Dantas] acha. É coisa de opinião.
Então, juntamos os dois. Tem outras pessoas que ela acha
importante e que ele não acha. Colocamos tudos eles. Tudos
aqueles nomes lá são nomes que foi decidido entre ele, ela, Omer
e eu. E foi tudo assim. Temos que chegar o ponto, no futuro, de
poder
investigar
qualquer
ato,
fato,
assim, behavior
[comportamento] nefário entre essas pessoas e nossa companhia
T. Mas, antes disso, a gente tem que começar bem no começo, no
base, no base. A gente tem que conseguir endereços, CPR [CPF],
números de telefone, conseguir essas coisas para, depois, fazer
coisas em cima disso. Tem que construir o base para depois
provar em cima.
Bill alertou os investigadores sobre didatismo e clareza na hora de
escrever os relatórios, pois os documentos iriam circular por várias
pessoas em diferentes países.
Tem que assumir que todo mundo que está lendo ou é burro ou
nunca ouviu falar nesse cara. Para colocar tudo que é básico. Pô,
eu não sei quase nada sobre Demarco. Omer sabe um pouco
mais, mas também nem tanto. O Charles não sabe nada [...]
Nessa altura, é muito simples. O que vai ficar interessante é no
depois. Eu quero chegar no depois mais rápido.
Bill disse que a própria Kroll no Brasil já tinha informações que “vão
ser úteis”. Um dos diretores da empresa no Brasil, Eduardo Gomide, iria
mandar dados de “dez anos atrás” sobre o empresário Nelson Tanure. Em
inglês, Verdial acrescentou: “Eles têm também informações sobre
Demarco, mas, honestamente, não estou contando com isso”. Bill disse
que também não contava com o apoio da Kroll no Brasil. “No dia a dia a
gente recebe [ajuda], mas, nos assuntos importantes, a ajuda ou não
chega nunca ou chega muito atrasada.”
Aparentemente a Kroll brasileira temia que os contatos feitos por
Verdial e Bill expusessem a companhia. Quando Verdial tentou agendar
uma reunião na sede da Kroll, em São Paulo, com João Murra, excontador da Tecnosistemi, a contrariedade foi expressa por Vander
Giordano, outro diretor da Kroll no Brasil.
Tiago, nossa política de segurança, e você conhece bem, até
porque, no caso Souza, as reuniões sempre ocorreram fora da
empresa, tem sido delineada no sentido de isentar nossa
estrutura operacional deste tipo de situação. Como não temos
contrato de confidencialidade ou qualquer outra situação mais
ampla com este sub [Murra], não gostaria de nos expor
demais.111
Outro alvo da Kroll era Rubens Glasberg, responsável pelo site
especializado em telecomunicações “Teletime”. Incomodado com
reportagens críticas sobre seus negócios, o Opportunity abriu ações
judiciais contra o jornalista. No primeiro processo, de maio de 1999,
Opportunity e Elena Landau pediram indenização de R$ 3 milhões, quase
todo o faturamento anual do site.
“Eles queriam me quebrar, mas nós ganhamos a ação em todas as
instâncias.”112
Enquanto o processo corria, Glasberg recebeu a visita de um homem
de confiança de Dantas.
O Carlos Rodenburg queria estabelecer um diálogo, queria que o
site divulgasse notícias de interesse do Opportunity. Eu disse que
nós divulgávamos notícias de todos os lados, desde que tivessem
consistência, pois checávamos as informações. Eu também sugeri
que retirassem o processo sem pé nem cabeça. Ele disse que não
poderia voltar atrás. Aí eu disse: “Mas não me venha aqui plantar
notícias”. O Rodenburg ficou espantado.113
Em outubro de 2003, Glasberg foi visitado por um americano que se
identificou como “John Leonard” — o cartão de visitas foi depois entregue
por Glasberg à PF —, um “consultor na área de telecomunicações” que
queria obter informações sobre o setor. Ao final da conversa, quis fazer
uma assinatura anual do serviço noticioso Teletime News. Em abril do
ano seguinte, a assinatura foi transferida para o nome de Tiago Verdial.
Só quando estourou a Chacal foi que Glasberg entendeu quem era
“Leonard”.114
A PF obteve ordem judicial para interceptar os e-mails dos principais
investigadores que atuavam para a Kroll. Em maio, Carla enviou
mensagem a Charles Carr, da Kroll de Londres. Ela repassou as
conclusões de uma reunião mantida no dia anterior entre “B”, ou Bill
Goodall, e “DD”, ou Dantas, iniciais em letras minúsculas.
dd pediu a b. que se encontre com CF. Esse cara parece ter
informações muito úteis, incluindo interessantes documentos, e
dd acha que b. poderia estar apto a tentar extrair mais disso dele.
Parece que o cara está muito assustado com a TI. TI usou a
Tecnosistemi para passar dinheiro para políticos aqui no Brasil,
incluindo alguns governos locais (Ribeirão Preto é um). Eu sugeri
incluir Santoandre [Santo André] também. É o lugar onde um
cara muito próximo do atual governo foi assassinado meses atrás.
DD gostaria que essa informação fosse passada para a imprensa.
Eu sugeri que isso fosse feito com a imprensa internacional, e a
ideia é que você me ajude a concluir como fazer isso.
Mais adiante, Carla falou de outro foco das investigações, o Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro, onde o Opportunity e a BrT estavam às
voltas com processos judiciais contra a TI.
dd gostaria que b. estivesse mais a par sobre como o sistema
funciona e quem está envolvido. Considerando que isso agora é
um escândalo público, b. poderia ser apropriado para fazer
aproximações. A ideia é fazer que o presidente do tribunal saiba
que nós sabemos (a mesma técnica que foi usada nas ilhas
Cayman).
A “técnica” das ilhas Cayman fora aquela de enlamear a imagem do
juiz Kellock.
As coisas caminhavam assim para a polícia, com grandes e detalhadas
descobertas sobre os planos da Kroll, quando, em abril, a equipe que
investigava a Parmalat viveu um estranho episódio. Um quarto do flat
Poeta Drummond, na rua da Consolação, nos Jardins, usado pela PF como
“base de inteligência” foi invadido por dez homens da própria PF. Eles
alegaram ter ido checar a denúncia de que ali funcionava uma central
telefônica do PCC, um grupo criminoso que comanda presídios e mata
policiais nas ruas.
“Tentaram jogar polícia contra polícia, e só por sorte aquilo não
terminou em tragédia”, disse o ex-diretor-geral da PF Paulo Lacerda,
anos mais tarde.115
A invasão representou o maior golpe ao andamento da Chacal. O
dano foi detectado pelos investigadores dias depois, graças à outra escuta
telefônica. Verdial ligou para a mãe:
Bom, mãe, estou com a PF atrás de mim de novo [...] A Júlia me
ligou de São Paulo, histérica, e falou: “Português, apaga tudo que
tiver no seu e-mail, apaga tudo, não usa mais celular, não usa
mais nada” [...] Eu fiquei preocupado, encontrei o Bill meia hora
depois, ele estava no hotel dele e me explicou que a Júlia tem um
contato na PF — ela não quis falar quem é, teima em não
entregar a fonte dela.
Segundo Verdial, a invasão ao flat quase acabou em tiroteio:
Chegou outra equipe dos “nossos amigos” e tiveram [sic] uma
pancadaria entre eles, violentíssima. Só não saiu tiro porque
nêgo resolveu resolver [sic] na mão mesmo e não ir para tiro.
Deixaram as armas em cima da mesa e saíram literalmente na
porrada, bem feia, entre os agentes [...] Teve uma pequena
guerra lá dentro. Isso foi na sexta-feira. Na segunda-feira, esse
contato da Júlia recebeu um ofício, um pedido, enviado para a
Justiça, no qual os “nossos amigos” pediam para o juiz a quebra
do sigilo digital de Tiago Verdial, o e-mail.
Verdial fez um panorama otimista do estágio das suas investigações.
Disse que fechara “todos os links da Cumberland com Tóquio” e contou
que estavam achando “muitos podres” do PT. Segundo ele, a Kroll havia
até ajudado a divulgar uma notícia contra os italianos. A matéria havia
saído na capa da revista IstoÉ Dinheiro. Assinada pelo jornalista Leonardo
Attuch, revelava supostas irregularidades encontradas numa agenda
atribuída a Stefano, filho de Calisto Tanzi, o fundador da Parmalat. A
matéria, de quebra, também atacava Gianni Grisendi. Verdial ficou
orgulhoso: “A gente já sabe que a Cumberland é acionista oculta do
Tóquio. Isso saiu na IstoÉ Dinheiro desta semana, uma matéria todinha
feita pela gente, não sei o quê, saiu na capa da IstoÉ Dinheiro, não sei se
você viu, ‘O Diário Secreto de Stefano Tanzi’”.
No entanto, ele se disse muito preocupado e anunciou que não iria
mais usar o telefone celular. Semanas depois, tomou uma atitude
desconcertante: correu justamente para os braços dos italianos da TI,
que não estavam, de modo algum, alheios aos movimentos da Kroll.
No primeiro trimestre de 2004, a segurança interna da TI foi
advertida sobre atividades de investigações da Kroll a respeito de seus
executivos. Um relatório que circulou no primeiro escalão da TI
descreveu iniciativas de Dantas e de Carla Cico.
Dantas e Cico (que trabalhou para a TI) têm usado vários
métodos não convencionais na disputa com a TI e seu presidente,
Marco Tronchetti Provera. As atividades da Telecom Italia no
Brasil têm sido afetadas por uma série de incidentes que —
embora não possam ser diretamente atribuídos a Dantas e seu
círculo — têm sido usados para prolongar um ambiente de
desconfiança mútua. Isso incluiu: a plantação, em diversas
ocasiões, de escutas e outros dispositivos do gênero nos
escritórios da Telecom Italia na América Latina; a publicação de
uma série de artigos difamatórios procurando traçar paralelos
com a Parmalat, criticando Telecom Italia, e várias empresas
locais; a vigilância de executivos da Telecom Italia. Acreditamos
que a agência investigativa Kroll foi contratada em 2002 para
averiguar a questão CRT e desde março deste ano [2004] o
escritório da Kroll na Itália tem compilado uma série de dossiês
sobre o grupo e a família do sr. Tronchetti Provera.116
Não há prova de que Dantas, Cico e o Opportunity tenham
determinado a instalação de escutas nos italianos. Com exceção disso, o
aviso interno da TI estava correto. A TI sabia do contrato da BrT com a
Kroll desde, pelo menos, dezembro de 2002. Já existiam diversos
pagamentos da BrT à Kroll, mas o Projeto Tóquio ganharia esse nome por
volta de 20 de dezembro de 2002.117 Essa informação de grande peso
estratégico chegou à companhia italiana por fontes que ela mantinha na
Sisde, braço do serviço de inteligência do governo italiano.
Na TI, a área responsável por impedir iniciativas como a
desencadeada pela BrT era a diretoria de Segurança, dirigida por Giuliano
Tavaroli, que foi o responsável pelo setor de Segurança da Pirelli entre
1999 e 2003 e, daí em diante, por setor semelhante na TI. Quando a
Pirelli assumiu o controle da TI, no final de 2001, boa parte dos quadros
da indústria de pneus foi absorvida pela TI.
Com base na dica da fonte da Sisde, Tavaroli procurou um antigo
contato na Kroll de Milão, Richard Bastin, então chefe do escritório local,
aquele mesmo que havia acertado o Projeto Tóquio com Carla Cico, para
fazer uma sondagem. Como quem não queria nada, Tavaroli lhe
perguntou se não estava disposto a trabalhar numa investigação sobre a
BrT. Imediatamente Bastin disse que não, pois haveria um conflito de
interesses — assim, confirmou que a Kroll investigava a TI. Meses mais
tarde, Bastin deixou a Kroll e foi contratado pela TI.118
A TI havia criado uma empresa específica para a América Latina,
denominada Latam, que abrangia Chile, Peru, Argentina, a TIM no Brasil,
Venezuela e Bolívia. O responsável pela segurança na Latam desde 2003
era Angelo Jannone, um tenente-coronel carabinieri aposentado que
morava em Milão. Seu cargo era subordinado a Giuliano Tavaroli. Antes
do caso Kroll, ele havia apurado denúncias de fraude telefônica e de
roubo de computadores.
Em 3 de julho de 2004, quando Jannone chegou ao Brasil, por ordem
de Paolo Dal Pino, então presidente da Latam, Tiago Verdial já estava em
maus lençóis. Ele havia descoberto que seu e-mail fora interceptado pela
PF. O português resolveu se encontrar com Jannone no hotel Caesar
Park, no Rio. Aparentemente, sem que Verdial soubesse, Jannone gravou
a conversa.
Verdial disse que estava cansado de trabalhar na Kroll e procurava
outro emprego. Contou ter trabalhado para a Kroll em alguns casos entre
outubro de 2000 e junho de 2002 e, nesse meio-tempo, gerenciou um
projeto de seis meses para a Telemar, em 2001. Estudava economia em
São Paulo e pretendia obter um emprego “de longo prazo”. Jannone abriu
uma possibilidade, mas antes quis saber mais detalhes sobre as
atividades de Verdial contra a TI. Verdial começou falando das ligações do
Opportunity com a Kroll:
— Voltando ao caso Brasil Telecom: quando teve uma cobertura
de um problema político [incompreensível] porque a Kroll do
Brasil sempre trabalhou para o Opportunity. E neste caso
específico DD contatou...119
— DD é Daniel Dantas? — quis saber Jannone.
— Sim. DD contatou com Londres pela primeira vez; todo o
mundo sabe disso. Ele ouviu rumores de que em junho do ano
passado, 2003... ele ouviu rumores, fofocas, [de] que a Kroll no
Brasil teve uma reunião com o sr. Bonera e com o sr. Mario César
Andrade — prosseguiu Verdial, fazendo referência a Marco
Bonera, ex-diretor de segurança da TIM na América Latina.
— E DD ficou muito preocupado com isso. [...] Porque ele e a
Kroll Brasil sempre trabalharam... [incompreensível] E essa foi a
razão que o levou a contratar diretamente a Kroll no Reino Unido
[...] Isso aconteceu em junho e desde outubro, novembro — disse
Verdial.
Jannone procurou se mostrar como alguém confiável. Sugeriu levar
Verdial a um depoimento formal na PF. Em troca, poderia dar proteção a
ele junto “à alta cúpula da Polícia Federal”. Após alguns rodeios, Jannone
voltou ao papel de Dantas na investigação.
— DD e Carla Cico sabem que a Kroll gerencia [incompreensível]
também? Eles sabem tudo? Sim ou não? — quis saber Jannone.
— Sim — respondeu Verdial.
— Você obteria listas, contas telefônicas... Você está apto
também para grampear telefone, interceptar e-mails?
— Não.
— Não? Então, a única atividade ilegal é obter contas
telefônicas? Internas da TIM ou interna de outras operadoras?
Você entendeu? — indagou Jannone.
— De todas as operadoras — explicou Verdial.
Depois do encontro, Jannone entregou à PF uma cópia da gravação.
Desde então, várias teorias circularam sobre a real intenção de
Verdial.120 Parte dos observadores confia na versão que ele apresentou
a Jannone — de que estava inseguro e queria um emprego na TI; outra
diz que tudo era uma tentativa de infiltrá-lo na área de segurança da TI.
Como é comum no submundo da “comunidade de informações”, um
agente se apresenta ao inimigo como alguém “arrependido”, que quer
colaborar, mas seu único propósito é obter mais dados confiáveis apenas
para subsidiar seu cliente original. Outra teoria conspiratória diz que
Verdial já estava com os italianos, infiltrado na Kroll, desde o começo do
Projeto Cumberland. A última tese esbarra num problema de lógica: se
Verdial era um agente duplo, por que teria sido gravado e “entregue” à
PF pelos próprios italianos? Ao agir assim, os italianos corriam o risco de
alimentar a exata suspeita de que ele era um infiltrado seu na Kroll
desde o começo. Havia outras formas de Verdial dizer à PF tudo o que
estava dizendo, sem nenhuma necessidade de dizê-lo justamente a um
dos principais nomes da segurança da TI. Ao expor a conversa entre
Verdial e Jannone, a TI estaria gerando muito mais problemas que o
necessário, alimentando dúvidas sobre a legitimidade da Chacal. Foi
exatamente o que ocorreu.
Em petição assinada por Dantas, Cico e BrT, seus advogados
alegaram, na Itália, que a conversa foi “fantasiosa”. O advogado de
Dantas, Nélio Machado, acusou Jannone de ter se “gabado de ter controle
sobre as autoridades policiais no Brasil”. Anos mais tarde, Dantas sugeriu
que Verdial era contratado pelos italianos:
Não, eu nunca tive ligações com o Tiago Verdial. Depois, tomei
conhecimento de que ele teria sido pago pela Telecom Italia.
Então, a sensação que eu tenho, o sentimento é de que, na
verdade, produziram essa testemunha a soldo. Ao que consta,
nos depoimentos na Procuradoria de Milão dizem que ele estava
pago pela Telecom Italia. Eu não sei se não foi um fato
plantado.121
Mesmo “não sabendo”, Dantas plantava a dúvida, em estratégia
característica de sugerir grandes conspirações sobre as quais não
apresenta provas, desviando a atenção do interessado para tal ou qual
investigação sigilosa em outro país onde, assim, existiriam tais
evidências. Nunca se comprovou que os italianos tenham remunerado
Verdial para “entregar” a Kroll à TI.
Além da gravação da conversa, Jannone encaminhou à PF, fingindo
ter recebido de um suposto anônimo, um CD que lhe custaria muitas
explicações. O CD trazia uma série de relatórios sobre os projetos
Cumberland e Tóquio. O gesto revelou-se um tiro no pé. Obtido por meio
de invasão aos computadores da Kroll, o CD seria usado como prova de
irregularidades do grupo de segurança da TI.
O CD também foi muito atacado pela defesa de Dantas e por
jornalistas como prova de uma “contaminação” do inquérito da Chacal por
“interesses privados” — a mesma teoria apareceria depois, nos ataques à
Satiagraha. Entretanto, o CD pouco acrescentou à montanha de
evidências que a PF já havia obtido por meio judicial. A PF já havia
interceptado, com ordem judicial, inúmeros relatórios semelhantes aos
apresentados por Jannone. O delegado Élzio Vicente da Silva disse à
Justiça que o CD era apenas um reforço à prova. “Embora desconhecida a
origem, esse material guarda criteriosa correlação com relatórios
produzidos pela organização criminosa e interceptados por determinação
do juízo.”
Na verdade, a PF já estava bem armada para dar o bote final. Em
meados de 2004, a PF estava prestes a colocar na rua uma operação de
grande envergadura, logo no momento em que os planos do grupo
Opportunity incluíam obter um aliado na família do próprio presidente da
República.
O processo italiano
“Dantas disse que nós precisamos continuar a exercer pressão jurídica sobre o
mérito da investigação e, se possível, aumentar e esticar o máximo possível.”
Notas de conferência telefônica realizada em 2 de outubro de
2005 entre Dantas e executivos da Kroll.
O Opportunity começou o ano de 2004 ainda mantendo todas as
principais posições na cadeia de comando das companhias telefônicas BrT,
Amazônia Celular e Telemig Celular. Mas as conversas entre Dantas e o
governo Lula eram tensas e cercadas de desconfiança. No “mapa de
guerra” do banco, a prioridade número um continuava a ser uma
aproximação com o governo petista.
Dantas tomou diversas providências nesse sentido. Contratou, por
meio da BrT, advogados que frequentavam o círculo dos dirigentes
petistas, como Antônio Carlos de Almeida Castro, amigo de José Dirceu e
defensor de figurões em Brasília, e Roberto Teixeira, compadre do
presidente Lula. Quase todas as contratações tinham como motivo oficial
o trabalho advocatício no caso Chacal-Kroll. Castro recebeu R$ 8,3
milhões. O escritório de Teixeira, R$ 1 milhão.
Outro passo foi bastante ousado, os planos de aquisição de parte da
empresa de um filho do presidente Lula, Fábio Luis, o Lulinha, então
denominada G4, que depois se chamaria Gamecorp. Na versão de Carla
Cico, a iniciativa partiu em julho de 2004 da firma de consultoria
Trevisan Associados, pertencente a um amigo de Lula, Antoninho Marmo
Trevisan, membro da Comissão de Ética Pública do Planalto.122 A
executiva pediu à BrT a elaboração de uma “carta de interesse”, mas o
negócio não foi fechado porque a companhia telefônica não julgou
“interessante a oportunidade”.
“Eu me lembro de ter falado o seguinte: ‘Olha, não importa que o
sócio da empresa possa ser também filho do presidente Lula, mas o fato é
que, se a Brasil Telecom não tem interesse comercial, a Brasil Telecom
não vai continuar as negociações’.”
Em depoimento ao Congresso, Dantas confirmou as tratativas e citou
uma viagem internacional.
A Brasil Telecom, de fato, negociou com o filho do presidente Lula
o assunto em relação à Gamecorp, e ontem fui informado pela
Brasil Telecom de que teriam tido uma viagem ao Japão, mas
essa viagem, quem pagou a passagem dos filhos [sic] do
presidente Lula foi o próprio filho do presidente Lula, não foi a
Brasil Telecom. Os administradores da Brasil Telecom me
disseram que pagaram algumas refeições, que o convidaram para
alguns almoços. Ou almoço ou jantares, não me lembro dos dois.
Mas basicamente isso.123
O que Carla Cico e Dantas não informaram, e isso também não lhes
perguntaram, consta de documento produzido pela auditoria realizada na
BrT em 2005 pelos novos controladores da companhia, os fundos de
pensão: houve diversos pagamentos da BrT para a empresa de Lulinha. A
auditoria “confidencial” teve por objetivo “avaliar contratações das
empresas dos filhos de Jacó Bittar e outras relações desse com a BT”.124
Bittar, ex-presidente do sindicato dos petroleiros de Paulínia (SP) e
cofundador do PT, é amigo e compadre de Lula, quem ele conhece desde
1978. Entre 1997 e 1999, Lulinha trabalhou em Campinas para uma
empresa dos filhos de Bittar, a M7 Produções, de Fernando e Kalil, que
atuou em campanhas eleitorais de candidatos do PT. Em 2003, com Lula
na Presidência, Jacó foi escolhido representante da Petros, o fundo de
pensão da Petrobras, no conselho de administração da empresa
controladora da BrT, a Solpart.
Os dois filhos de Bittar e Lulinha firmaram uma sociedade, a G4
Entretenimento, que detinha a licença para divulgar os programas do G4,
canal de games nos EUA. Ao mesmo tempo, outra empresa, a Espaço
Digital, de Leonardo Badra Eid, passou a trabalhar com a BrT. Em 2004, a
G4 e a Espaço Digital formaram uma holding, a BR4, que depois receberia
o nome de Gamecorp.
A auditoria revelou que a BrT assinou três contratos com a Espaço
Digital, em agosto de 2003 e março e agosto de 2004, num pagamento
total de R$ 1,5 milhão. Dois dos contratos tinham por objetivo a
aquisição do direito de transmissão do programa G4 TV na internet e
“patrocínio deste programa na transmissão realizada pela rede
Bandeirantes”. Assinados em nome da “Espaço Digital”, os contratos
dizem respeito diretamente ao programa G4, o mesmo G4 referido por
Carla Cico à CPI dos Correios como o nome então utilizado pela
Gamecorp nas tratativas com a BrT.
A auditoria entrevistou Bruno Sena, diretor da empresa BrTurbo, um
braço da BrT, e colheu dele informações reveladoras que não haviam se
tornado públicas até aqui:
“Segundo Bruno Sena: a decisão da contratação veio ‘de cima para
baixo’. Yon Moreira da Silva Junior (antigo VP da BT) foi o responsável
pela negociação. O fornecedor foi uma indicação decorrente de interesses
políticos (‘manter boas relações com o governo’).”
Os auditores também ouviram de Sena explicações sobre a natureza
pouco comum dos contratos. Eles concluíram que dois fatos “fogem das
características” da BrT e “podem caracterizar favorecimento”. O primeiro,
“várias antecipações de pagamento”. O segundo, uma viagem paga pela
BrTurbo ao Japão para “três ou quatro sócios da Espaço Digital” junto
com Yon Moreira e outro diretor da empresa em 2004. Nesse mesmo
período, Carla aprovou a viagem de três funcionários para Tóquio. Por
fim, Bruno disse que uma nota fiscal de R$ 125 mil se referia a “serviço
que nunca foi feito”, pois era “para a própria Espaço Digital pagar a
viagem dos três ou quatro sócios”.
A auditoria fez outra descoberta: “Jacó Bittar é conselheiro da Petros
e amigo de Lula. De acordo com dados de viagens da BT, Jacó Bittar
viajou para Cuba em setembro de 2003, custeado pela BT; o motivo
descrito para a viagem é Etecsa (Empresa de Telefonia de Cuba)”.
Apesar desses pagamentos e do relacionamento cada vez mais
estreito entre Lulinha e a BrT, a Gamecorp acabou fechando o milionário
negócio com outra companhia telefônica. Em janeiro de 2005, a Telemar
pagou à Gamecorp R$ 2,5 milhões para a compra de 35% das ações da
empresa, mais R$ 2,5 milhões a título de exclusividade do conteúdo
produzido e outros R$ 200 mil pelos acervos da G4 e da Espaço Digital.
Então, com vinte e nove anos e formado em biologia, Lulinha nunca
havia exercido cargo de relevo em qualquer grande empresa conhecida. A
G4 havia sido aberta com um capital social de meros R$ 100 mil. Embora
a Telemar seja uma empresa privada, o negócio gerou uma discussão
sobre conflito de interesses, pois a empresa de telefonia depende de uma
concessão pública e tem como sócios fundos de pensão das estatais e o
banco estatal BNDES. Além disso, é fiscalizada pela Anatel, agência
federal. Um dos sócios da Telemar, a Andrade Gutierrez, havia despejado
mais de R$ 6,5 milhões em doações à campanha presidencial de Lula.
Quando indagaram sobre o negócio, Lula disse achá-lo “normal”.
O fato é que a BrT perdeu a corrida. À época, a Folha revelou o valor
da oferta da BrT aos sócios da Gamercop: R$ 6,5 milhões por 25,86% do
capital da empresa.125
Há várias versões, nem sempre excludentes, sobre os motivos que
levaram a BrT não ter fechado o negócio. Fala-se na demora em resolver
dúvidas jurídicas e numa intervenção direta de Lula, alarmado com as
implicações políticas do negócio. Luís Demarco também ficou sabendo da
minuta que o Opportunity elaborava e procurou Trevisan para adverti-lo
de que o negócio “poderia derrubar o presidente”, pois seria um sinal de
que Dantas queria se aproximar de Lula por meio do filho. Não se sabe se
tal recado foi repassado a Lula.
Anos depois, Dantas deu sua versão sobre a fracassada tentativa. Ele
reconheceu, ainda que de forma tortuosa, dizendo e desdizendo ao
mesmo tempo, um vínculo entre as conversas com a Gamecorp e
expectativas da BrT em relação ao governo Lula.
Os executivos da Brasil Telecom tinham uma visão ingênua de
que nós éramos, assim, muito “americanos” e não saíamos para
jantar com o pessoal, não fazíamos hang around [enturmar-se], e
que tinha que ser um pouco mais suave [...] E cada um tentava
tomar uma iniciativa que, na opinião dele, pudesse consertar o
que estava sendo visto como problema. E que não era a minha
opinião [...] O que me foi descrito depois é que esta empresa
[Gamecorp] detinha contratos muito interessantes, com a Sony,
não sei o quê [...] Pode até ser que tenha tido uma segunda
intenção, porque o filho do presidente era sócio da empresa. Se
por ventura tivesse segunda intenção, qual era? Esclarecer para o
presidente que o que era dito a nosso respeito era falso. Aquilo
que estava justificando a iniciativa do Estado contra nós não era
verdadeiro. Essa tentativa houve. A BrT tinha o interesse, como
estou dizendo [...] É uma tentativa de mostrar a verdade.126
Dantas alegou que apenas reagia a uma situação criada pelo governo,
que o estaria “atrapalhando”:
“Todo cidadão tem o direito de agir, limitado apenas pela lei. Se eu
estou sendo perseguido, eliminar a perseguição não é crime. Tirar a
desvantagem não é vantagem. A vantagem é da lei para cima, e não de
baixo até a lei.”
A história das tratativas entre Lulinha e uma “empresa de telefonia”
havia sido referida em março de 2005 numa reportagem da revista
CartaCapital (a informação foi ampliada em julho daquele ano pela Veja e
O Globo, agora revelando o nome da BrT). A revista do jornalista Mino
Carta sempre esteve atrás de cada passo do banqueiro. Praticamente
todos os principais lances da vida de Dantas após as privatizações foram
retratadas pela CartaCapital com um alto grau de exatidão. A revista
publicava reportagens amplas, frequentes e certeiras. Dantas se dizia um
perseguido pela revista.
[Fiz] um levantamento de quatro anos e aqui está o número de
capas que a revista “CartaCapital” dedicou a cada pessoa. Ela
dedicou seis capas ao presidente [George] Bush, cinco capas às
Organizações Globo, três capas ao presidente Fernando Henrique
Cardoso, três capas ao sr. Anthony Garotinho, três capas ao sr.
[Henrique] Meirelles, duas capas ao prefeito Serra, duas capas ao
[terrorista] Bin Laden e vinte e uma capas a mim.127
Em texto na internet, Carta reconheceu ter fechado, anos atrás, um
acordo com o empresário Carlos Jereissati, da Telemar, e outras
empresas para obter recursos a fim de lançar CartaCapital. Mas o
relacionamento ruiu quando “ele [Jereissati] achou que o acordo lhe
permitiria influenciar as posições da revista”. Carta disse que a alegação
de estar “a serviço” de Demarco, era “francamente risível. Não sou
empregado de ninguém. Não fui de Jereissati, com quem me desentendi
em definitivo”.
Dantas dizia que grande parte de seus problemas estava na
comunicação. Chamou um publicitário de São Paulo para uma conversa.
Sempre em pé em sua sala, pediu ajuda para resolver “a questão da
imprensa”. O publicitário não fechou contrato.
Em 2004, um grupo próximo ao banqueiro trabalhava no tema:
Carlos Rodenburg, Maria Amália Coutrim, Verônica, o publicitário
Guilherme Sodré Martins, o Guiga, o cientista social Ney Figueiredo e,
em São Paulo, a assessoria de imprensa.
Figueiredo foi consultor das maiores entidades empresariais do país,
como a Febraban, a Fiesp e a CNI. Entre 2000 e 2002, trabalhou como
consultor informal do presidente FHC. Também foi o responsável, em
julho de 2000, por uma operação palaciana que envolveu dois ministros
para a coleta de assinaturas dos principais banqueiros e empresários do
país no momento em que estouraram denúncias contra o então
secretário-geral da Presidência da República, Eduardo Jorge. Intitulado
“Manifesto à Nação”, o texto foi publicado nos principais jornais do país e
dizia que FHC merecia “a confiança e o respeito de todos”.
Em 2004, ao receber o convite de Dantas para trabalhar em sua
equipe, Ney quis saber a opinião de FHC. O ex-presidente teria dito que
Dantas era “um grande economista”, que “quase fora seu ministro”, mas
sabia que algumas pessoas enfrentavam problemas ao se relacionar com
ele. Ney resolveu ter a conversa com Dantas mesmo assim. O consultor
ficou surpreso: “Narrou-me uma história tão maluca quanto inverossímil
que só poderia sair da cabeça de quem não sabe como funciona a
imprensa. Para ele, havia um esquema, na minha opinião, impossível de
ser montado, objetivando destruí-lo e tomar seus negócios. Teoria da
conspiração em estado puro!”.128
Mas Ney topou o desafio. Dantas permitiu que ele consultasse “seu
fantástico banco de dados sobre a imprensa”, alimentado por uma equipe
que lia, separava e analisava as notícias sobre o Opportunity que saíam
em todo canto do país e por qualquer meio. A preocupação de Dantas
com a imprensa beirava a obsessão.
Os relatórios do banco diziam que a Telecom Italia havia conseguido
“alinhar um time ao seu lado”, que seria formado por Nelson Tanure, Naji
Nahas, Paulo Marinho, o jornalista Ucho Haddad, que mantinha um blog
na internet, Ricardo Boechat, Demarco, “dois parlamentares de conduta
duvidosa e mais três ou quatro jornalistas atuando em diferentes
veículos, mas facilmente identificáveis”. Figueiredo registrou: “Dantas me
orientou a resolver seus problemas de comunicação. Ele identificava as
seguintes pessoas [contrárias]: Nelson Tanure, Mino Carta, Paulo
Henrique Amorim, Ricardo Boechat e Luís Roberto Demarco. Ele achava o
Demarco ‘um bosta, um zé-ninguém’. Mas o tempo mostrou a incorreção
disso”.
Os principais personagens mencionados haviam sido alvos da
investigação privada da Kroll ou dos suspeitos grampos no Rio.
Outro problema que Ney teve de enfrentar foram as frequentes
reclamações dos sócios da Rede Bandeirantes de Televisão sobre uma
pendência com a BrT, acerca de uma parceria com o portal iG. Figueiredo
disse que enfim a conta foi paga, por meio de uma carta de compromisso
de US$ 2 milhões em publicidade — um problema a menos para ele
resolver.
Figueiredo queria também que Dantas desse mais destaque aos
gastos da BrT na área cultural. No setor de audiovisual, um dos principais
apoios dados pela empresa à época em que era controlada pelo
Opportunity teve como destino a empresa do documentarista João
Moreira Salles, da família então proprietária do Unibanco. Quando
publicou um perfil sobre Dantas, em 2007, a própria revista piauí, criada
e dirigida por Salles, incluiu entre colchetes, no corpo da reportagem,
num gesto de transparência: “Quando era gerida por Dantas, a Brasil
Telecom apoiou projetos da VideoFilmes, empresa que pertence a um dos
sócios da piauí”.
Os registros da Cinemateca Brasileira, um projeto de memória do
Ministério da Cultura, indicam que a BrT patrocinou Entreatos (2004),
que documentou os bastidores da campanha de Lula em 2002, e Nelson
Freire (2003). Os valores dos patrocínios não aparecem nos registros da
Cinemateca, provavelmente porque ocorreram como repasse direto, sem
passar pelas leis de incentivo à cultura. Dois balanços anuais de
atividades da BrT também citam o financiamento a Abril despedaçado
(2001), filme produzido pela VideoFilmes e dirigido pelo irmão de Salles,
Walter. Pelas leis de apoio à produção cultural, que preveem o
abatimento do patrocínio no imposto de renda, a VideoFilmes também
recebeu da BrT, ao tempo em que a empresa de telefonia era controlada
pelo Opportunity, um total de R$ 1,8 milhão para quatro projetos.
O Opportunity também investiu, por meio da BrT, no site No., que
reuniu jornalistas, escritores e também colaboradores da confiança de
Daniel Dantas, como um de seus advogados, Sérgio Bermudes, e Elena
Landau.
Um banner
no site costumava anunciar “notas de
esclarecimento” do Opportunity, e o endereço anunciado no site foi, por
um tempo, o mesmo da sede do banco, no Rio. Dantas também tentou
adquirir a revista IstoÉ, de Domingo Alzugaray. “O Opportunity [...]
avaliou a compra da revista IstoÉ. A proposta do Opportunity não foi
aceita e a compra não se concretizou.”129
Mas Ney Figueiredo se sentiu derrotado na questão do destaque que
o Opportunity deveria dar aos gastos com cultura. Também divergiu de
Dantas a respeito do melhor caminho para uma tentativa de paz com o
governo Lula. Ney queria que Dantas entrasse em contato com o ministro
Gushiken, mas o banqueiro queria abrir caminho com José Dirceu.
Ney apresentou uma ideia à Verônica: seu irmão deveria sair da
condução dos negócios, ficar à parte. No seu lugar, seria colocado um
nome “acima de qualquer suspeita”. Sugeriu o ex-ministro da Economia
Maílson da Nóbrega. A proposta chegou aos ouvidos do banqueiro, que
parece não ter gostado, pois Ney deixou o banco logo depois. E nunca
mais foi procurado por Dantas.
Ney dedicou um capítulo de seu livro Diálogos com o poder à sua
passagem pelo Opportunity. Ele descreveu Dantas como uma pessoa
“muito forte, apesar do aspecto franzino”, que cultivava opiniões
definitivas sobre as pessoas e acontecimentos. Também notou um traço
“excêntrico” na personalidade de Dantas, a ponto de compará-lo ao
aviador e milionário americano Howard Hughes (1905-1976), que sofria
de fobias.
Mas nunca foi comprovado problema de saúde em Dantas. Apenas a
r evi sta piauí relatou um suposto “aumento brusco de pressão” no
banqueiro no dia do enterro do pai, em 2006. No hospital, prossegue o
texto, “diagnosticou-se que 40% das artérias” do coração de Dantas
“estavam entupidas”. O Opportunity, entretanto, informou por escrito
que essas informações são equivocadas e que Dantas nunca teve
problemas cardíacos.
Figueiredo se afastou do banco depois do primeiro grande baque na
vida de Dantas, a primeira vez que entrou para valer na mira da Polícia
Federal. As aventuras da BrT com a Kroll cobraram um alto preço.
Em 22 de julho de 2004, a Folha fez uma das mais importantes
reportagens do ano. Assinada pelo jornalista Marcio Aith, revelou a
existência de uma grande operação de espionagem contra membros do
governo Lula. Segundo o jornal, a Kroll havia seguido pessoas nas ruas,
bisbilhotado gastos pessoais e tido acesso a e-mails do então ministro
Gushiken (Secretaria de Comunicação e Gestão Estratégica) — depois
ficou demonstrado que tais mensagens integravam o correio eletrônico de
Demarco, que havia sido invadido anos antes.
O furo do jornal acelerou os planos da Polícia Federal. Dois dias
depois, os policiais prenderam Tiago Verdial, que prestou depoimento e
foi liberado. A Chacal propriamente dita foi desencadeada depois, em
outubro, quando grupos de policiais do COT (Comando de Operações
Táticas) da PF de Brasília entraram em vários endereços de São Paulo e
Brasília. No bairro paulistano do Itaim Bibi, os policiais derrubaram a
marretadas a porta da filial da Kroll.
No Rio, a equipe comandada pelo delegado Ângelo Gioia chegou à rua
Presidente Wilson. Era a primeira vez que a PF pisava nos domínios de
Dantas. A busca foi dificultada por uma porta de aço trancada. Gioia
acionou o Corpo de Bombeiros, que usou um maçarico para derrubá-la. O
perito encarregado de colher os dados armazenados no computador da
sala de Dantas relatou ao delegado que havia vários arquivos de
interesse da investigação armazenados no servidor geral do Opportunity.
Assim, a PF buscou permissão judicial para apreender e copiar o disco
rígido do banco, o que foi feito no mesmo dia.
Outra equipe da PF entrou no apartamento de Dantas em
Copacabana, onde encontrou “um manual intitulado Preliminary Report
Kroll The Risk Consulting Company”. Tratava-se de “um relatório da
Kroll, escrito em língua inglesa, classificado como de uso Confidencial,
datado de outubro de 2001”. 130 O documento nada mais é do que um
dos relatórios do Projeto Tóquio. Anos mais tarde, Dantas assim explicou
a presença do papel em sua casa: “Depois do problema da Kroll, nós
recebemos uma cópia desse relatório pela imprensa”.131
Após ter vasculhado a sede da Kroll e os escritórios do Opportunity, a
PF voltou sua atenção para um novo personagem. Em abril de 2005, uma
fonte informou ao delegado Élzio que o Opportunity e a BrT haviam
contratado os serviços de outro escritório de investigação em São Paulo,
a OnLine Security Sistemas de Segurança, pertencente ao israelense
Avner Shemesh. Ele chegou ao Brasil em 1986, como adido
administrativo da embaixada de Israel em Brasília. Tenente do exército
israelense, onde trabalhou por dez anos, Shemesh foi “comandante de
uma companhia de blindados, instrutor na escola de oficiais e
comandante de unidade antiterrorista”. 132 Deixou o governo para
trabalhar em assessoria de empresários em casos de sequestro.
A PF passou a vigiar o escritório. Com uma câmera escondida no
carro, os policiais fizeram uma filmagem que renderia muita discussão.
Segundo o relatório do delegado, o vídeo indicava que Carlos Rodenburg
fez uma visita ao escritório de Shemesh. Com base nisso, a PF obteve
uma ordem judicial de busca e apreensão na empresa. Encontrou folhas
extraídas do sistema reservado Infoseg, um enorme banco de dados
sobre os cidadãos brasileiros, mantido pelo Ministério da Justiça, e
apreendeu cinco maletas que continham microcâmeras, monitores de
vídeo e microfones “provavelmente utilizados para gravações
ambientais”.133
Na casa de Shemesh, a PF encontrou também uma série de
documentos que comprovam uma ampla investigação desencadeada
contra Demarco. Havia cópias de contas e cadastros de aparelhos fixos, a
cópia de uma conta de um telefone celular da Vivo em nome de Demarco
e o resultado de uma pesquisa, no Detran, sobre os carros que ele
possuía. Também foi feita uma pesquisa no Infoseg. Um “relatório”
descreveu que, em outubro de 2004, ele telefonou três vezes para a
mãe, do telefone celular, e uma vez para a Inglaterra. Havia sete
arquivos de fotografias. Os espiões clicaram a fachada da empresa de
Demarco, o prédio onde ele mantinha um apartamento alugado, e a
fachada de um pet shop que pertencia a uma irmã do empresário.134 Em
uma pasta denominada “Fotos LRDM”, as iniciais de Demarco, a polícia
encontrou vinte e uma fotografias do empresário, “inclusive dentro de
veículo e sem camisa”.
Outros relatórios apócrifos sugeriam que Demarco e sua empresa
sofreram um tipo de investigação que conseguia saber com quem ele e
seus funcionários falavam ao telefone. Em um CD, a polícia encontrou
três pastas denominadas “Fitas”, com três documentos em formato Word
com os nomes “Casa” e “Escritório” e os dias de 1º a 21 de dezembro de
2004 e 2 de fevereiro de 2005. As datas são notáveis por um motivo:
isso tudo ocorreu depois que a Chacal foi desencadeada. Quem
investigava Demarco não se importou com a ação da PF e todo o barulho
provocado na mídia pelo caso Kroll.
Outro papel diz que Demarco “recebeu uma ligação telefônica” do
Canadá, duas de Nova Iorque e uma de Miami. Um relatório diz:
Demarco não é dado a estar em evidência. É reservado, fugindo
aos padrões dos jovens empresários brasileiros. Não gosta de ter
sua vida profissional e pessoal exposta. Gosta de automóveis de
luxo e de restaurantes finos. Não pratica um horário rígido de
trabalho, mas no período vespertino pode ser encontrado no
Grupo Nexxy InternetCo.
Um papel semelhante descreve a rotina do jornalista Paulo Henrique
Amorim e cita um “diálogo (fone)” que Amorim teria mantido com o
consultor de empresas Antoninho Marmo Trevisan. O jornalista trabalhou
na revista Veja, Jornal do Brasil, Rede Globo, TV Bandeirantes, TV
Cultura e UOL, do Grupo Folha. Depois, foi trabalhar na Rede Record e
fundou um blog, descrito por ele em 2007 como “um exercício de
pancadaria verbal, de pancadaria ideológica”, onde passou a atacar
especialmente órgãos de imprensa, inúmeros jornalistas, José Serra, FHC
e todos os que, de uma forma ou de outra, apoiam as posições do
Opportunity. Amorim se tornou um ácido crítico de Dantas, um incômodo
público para o banqueiro.
Em 2008, Shemesh foi depor no Congresso. Ele disse que não
conhecia Dantas, Rodenburg e que nunca foi contratado pelo
Opportunity, BrT ou Kroll. Negou ter feito interceptações telefônicas
ilegais. Afirmou que a PF encontrou em seu escritório apenas microfones
direcionais que conseguem captar conversas num ambiente fechado, para
“investigação interna, dentro das empresas, quando há fraudes, quando
há roubo”.
Dantas, o Opportunity e a BrT sempre negaram qualquer contrato
com o israelense.
Em 2008, depois de quatro longos anos, Shemesh conseguiu se livrar
do processo na Justiça Federal, pois o TRF da 3ª Região entendeu que o
caso deveria tramitar pela Justiça estadual. A decisão tornou nula uma
denúncia feita contra Shemesh, e o processo começou da estaca zero na
Justiça comum. Em 2009, o Ministério Público denunciou Shemesh por
supostos crimes de porte de acessório de arma de fogo de uso exclusivo
das Forças Armadas (um silenciador) e receptação e divulgação de
informações sigilosas, mas não conseguiu enquadrá-lo pelo suposto
grampo ilegal. A 31ª Vara Criminal da Capital, entretanto, negou a
abertura de processo contra Shemesh.
Quando estourou a Chacal, o Opportunity fez de tudo para se
distanciar dos eventos e atribuir a ação da Kroll a uma ação legal e
justificada da BrT. Era também imprescindível colocar em dúvida os
relatórios da Kroll que chegaram à imprensa. A estratégia foi dizer que
esses papéis haviam sido “manipulados” ou “falsificados” pela TI ou pela
PF.
Carla deixou registrada a mesma estratégia por escrito, num de seus
e-mails ao pessoal da Kroll. Ela orientou:
Com o objetivo de desmoralizar qualquer iminente ou futuro uso
pela imprensa, ou qualquer trecho “factual” do relatório, eu
sugiro que A. [Antonius, da Kroll] em São Paulo prepare e libere
uma nota à imprensa (como a que você fez ontem sobre a
questão jurídica) ressaltando que qualquer documento que esteja
sendo atribuído à Kroll foi furtado e manipulado e, além do mais,
não reflete nenhuma verdade.
Mas, a partir de 2006, quando alguns dos principais relatórios feitos
pela Kroll foram entregues à Justiça americana, foi possível ao autor
compará-los com o que havia sido apreendido pela PF: eles são, nos alvos
e no conteúdo, idênticos a muitos dos documentos coletados durante a
Chacal.
Parte dos problemas da Kroll se deveu à própria ineficácia de suas
descobertas. Se houvesse apontado uma irregularidade específica e grave
sobre os inimigos de Dantas, talvez o rumo dos acontecimentos teria sido
outro. Os relatórios da Kroll, embora extensos (só um deles tem 195
páginas), não conseguiram fornecer uma prova inequívoca do pagamento
de propina a membros do governo ou do Congresso. Não apareceu a
pistola fumegante. São afirmações “circunstanciais”, como notou uma
advogada do próprio Opportunity no final de 2003. Se houve pagamento
de propina na venda da CRT, nunca foi demonstrado — assim como a
incrível “Conexão Espanha”, que envolveria FHC e o rei Juan Carlos. A
montanha pariu um rato, e o custo político para Dantas foi imenso.
O banqueiro procurou ficar longe do escândalo Kroll. Dizia que a
investigação fora contratada pela BrT e que ele apareceu, no máximo,
como uma espécie de informante qualificado da Kroll. No dia 13 de abril
de 2005, Dantas sentou-se na frente do delegado Élzio Vicente para
prestar depoimento. Ele reconheceu ter recebido em seu escritório, no
Rio, “no final do ano de 2003, início de 2004”, o funcionário da Kroll
Frank Holder, de Miami, e outras pessoas que teriam ido entrevistá-lo “a
respeito da venda da companhia CRT”. Também admitiu ter participado,
em Nova Iorque, de “uma apresentação” da Kroll para executivos do
Citibank. Contudo, negou ter determinado qualquer investigação.
Mas surgiram diversas evidências de que Dantas, no mínimo, dava
opiniões e era alimentado pelas descobertas da investigação. Grande
parte desses sinais está nos e-mails de Carla Cico, entregues à Justiça
dos EUA pela própria Kroll. Em maio de 2004, Carla comentou com dois
homens da agência, Holder e Carr, que haveria uma reunião com Dantas
no que ela chamou de “as horas da fofoca”. Há outras mensagens em que
ela discrimina o que “DD” achava dessa ou daquela linha de investigação.
Numa carta endereçada ao investidor Naji Nahas em 18 de agosto de
2003, mais de um ano antes da deflagração da Chacal, Dantas revelou:
“Lisboa. Fui informado pela Brasil Telecom de reunião em Lisboa que se
realizou no Hotel Ritz, na tarde de 27 de maio de 2003 [...] Tudo envolto
em rumores de articulação entre Telecom Italia e Telemar, para montar
operação hostil”.135
Dantas mencionava um trabalho de vigilância feito pelos agentes da
Kroll num hotel em Lisboa. Eles filmaram Cassio Casseb, presidente do
BB.
A ata de uma teleconferência realizada entre Dantas, Cico, o futuro
ministro do governo Lula, Roberto Mangabeira Unger, então um
contratado da BrT, executivos da Kroll e Jules Kroll demonstra o papel
relevante de Dantas. A conversa ocorreu meses depois da Chacal. O
banqueiro afirmou que “a batida policial foi feita diretamente pela PF,
porém, sem o conhecimento e o apoio do governo”.136
Dantas disse que a “questão decisiva era a Polícia Federal”, embora
defendesse a continuidade de “diálogos” com os ministros Thomaz Bastos
e Antonio Palocci. Mangabeira associava as denúncias às brigas com os
sócios italianos e americanos e afirmava que um acordo de paz poderia
gerar “um efeito cascata”, a ser sentido até na PF. Ou seja, um acordo
acabaria minando o inquérito policial.
“Dantas disse que nós precisamos continuar a exercer pressão
jurídica sobre o mérito da investigação e, se possível, aumentar e esticar
o máximo possível”, diz a ata da conversa.
Mangabeira ficou de revisar uma carta para Palocci, a ser escrita por
Jules Kroll. Na cabeça de Dantas e de seus assessores, a Chacal era só
mais um lance da disputa societária. Dantas disse que tinha o apoio do
então ministro da Casa Civil, José Dirceu.
“Ele [Dantas] afirmou especificamente ter recebido confirmação
direta de uma fonte muito próxima do ministro chefe da Casa Civil, José
Dirceu, no sentido de que, já que, Dirceu não havia sido investigado [pela
Kroll], não havia qualquer problema nisso para ele, e que ele apoiava
Dantas.”
Ao longo dos anos, Dantas foi sofisticando sua versão de que a Chacal
não passou de uma armação. Em 2008, no Congresso, afirmou: “Na
minha opinião, essa operação da Kroll [Chacal] foi montada, articulada e
encomendada para sustar a investigação da Kroll. Porque, concomitante a
isso, depois, saiu na investigação da Itália que a Telecom Italia havia
distribuído 25 milhões de euros de propina no Brasil”.
Os parlamentares ficaram tão perdidos com a alusão, que o relator da
comissão, deputado Nelson Pellegrino (PT), trocou as bolas: “A Operação
Satiagraha?”, quis saber. Eram tantos nomes, apelidos e operações que
os deputados não conseguiam entender onde acabava uma história e
começava outra.
Segundo a linha de defesa jurídica formulada pelo banco, o Projeto
Tóquio, as contratações antigas da Kroll, a perseguição a Armínio Fraga
no Rio, o vídeo em Lisboa, as inúmeras gravações de conversas
telefônicas entre Bill Goodall e Tiago Verdial, os e-mails de Carla que
falam de Dantas, o material arrecadado com a interceptação dos e-mails,
os relatórios sobre a vida de desafetos do Opportunity apreendidos na
casa de Shemesh, tudo era apenas fruto de uma operação maquiavélica
dos italianos contra o Opportunity, auxiliada por servidores brasileiros
corruptos.
Manobrando tais argumentos, os advogados do Opportunity e da BrT
transformaram a Chacal numa extensa guerra judicial que se arrastou
por quase oito anos.
Na mídia e na Justiça, uma importante peça de defesa do Opportunity
foi uma investigação realizada entre 2005 e 2007 pela Procuradoria de
Milão contra altos executivos da TI (Telecom Italia). Era uma forma bem
bolada de prender uma coisa à outra para criar uma onda de suspeitas,
como se o caso brasileiro dependesse necessariamente do esclarecimento
do caso italiano. A tática teve certo efeito. A pedido da defesa, que se
baseou numa reportagem da jornalista Janaína Leite, então na Folha, a
desembargadora do TRF da 3ª Região, Cecília Mello, mandou trazer ao
Brasil cópia do inquérito italiano. A reportagem dizia que na Itália havia
provas de corrupção de brasileiros. Colunistas na imprensa passaram a
falar em “listas” de autoridades que teriam sido compradas. Tudo isso
gerou certo alvoroço nas redações.
Os
trechos
mais
relevantes
para
a
defesa
do
banco,
aproximadamente 6 mil páginas, acabaram vazando a veículos de
comunicação ao longo dos anos. A leitura dos documentos leva a pelo
menos duas conclusões. A primeira é que a TI desencadeou,
provavelmente de 2003 a 2005, uma ampla operação de investigação
privada destinada a interceptar comunicações da Kroll, de executivos da
BrT e do Opportunity, fundos de pensão e jornalistas italianos. Os
documentos são prova assustadora do funcionamento de uma máquina de
investigação privada que perseguiu cidadãos, interceptou e roubou
arquivos de computadores e seguiu e filmou pessoas nas ruas. A segunda
conclusão é que o Opportunity enfrenta sérios problemas no sentido de
localizar uma prova objetiva de que alguém na PF ou no governo Lula
tenha recebido dinheiro para desencadear a Operação Chacal.
O escândalo italiano começou em 2005, quando o Ministério Público e
a polícia invadiram os escritórios da empresa de investigação PDI, gerida
em Florença pelo empresário e detetive Emanuele Cipriani. Os
investigadores concluíram que Cipriani tinha fortes laços com Tavaroli, o
chefe da segurança na TI. Empresas ligadas a Cipriani haviam recebido
do grupo TI aproximadamente 20 milhões de euros de 1997 a 2004.
A Procuradoria chegou ao nome de Marco Bernardini, ex-agente do
Sisde, o serviço secreto doméstico italiano. Ele criou a empresa GS, ou
Global Security Services, que começou como terceirizada da PDI, mas
que passou a receber encomendas do grupo Pirelli-Telecom. Numa pasta
da GS, a Procuradoria puxou o fio da meada da maior operação
desencadeada entre 2003 e 2004 pelo grupo: a investida anti-Kroll,
denominada “Operação Kappa” ou “K”. Numa pasta, estavam centenas de
e-mails e arquivos relacionados à BrT, ao Opportunity e a seus parceiros
na Itália.
Em dezembro de 2002, foi Bernardini, após ser avisado por uma
fonte da Sisde, quem alertou Tavaroli sobre a Kroll estar investigando
altos executivos da TI como parte de um contrato com a brasileira BrT. A
informação batia com um fato ocorrido em 2002 que gerara suspeitas
entre os italianos. De alguma forma, Dantas ficou sabendo que três altos
executivos da TI haviam se encontrado em Lisboa, “secretamente”, 137
com “representantes dos fundos de pensão brasileiros”.
Tavaroli elaborou uma ação anti-Kroll. Ele determinou que fossem
feitos pagamentos a Cipriani, que terceirizou a empreitada para uma
empresa denominada Domina. Os russos, segundo Tavaroli, conseguiram
as informações entre “2003 e maio de 2004”. Em uma reunião com sua
equipe, Tavaroli pediu mais empenho. Teria dito que a companhia pagaria
“um mês de férias na Polinésia”, caso resolvessem “o problema da Kroll”.
A data exata desse encontro foi depois fixada por Emanuele Cipriani,
após consulta à sua agenda, como o dia 27 de abril de 2004. A “Operação
K” já existia formalmente — há documentos com esse nome desde
novembro de 2003 —, mas, desde então, ganhou força redobrada. No
encontro, Tavaroli disse que sua intenção era fazer uma operação
“memorável”.138
Quando Fabio Ghioni, um contratado da TI, soube que Carla Cico
viajaria a Milão, acionou uma empresa de “gerência de risco” para
acompanhá-la e filmá-la.139 Dantas disse a Carla que recebeu
informações de que ela e Nahas foram alvo de “espreita” na Itália.140
Em junho de 2004, executivos da TI participaram de uma convenção
no Sofitel, no Rio. A Operação Kappa viveu ali seu grande momento. Os
interesses da maior agência de investigação privada do mundo e de uma
das maiores companhias telefônicas da Europa se cruzaram num hotel
cinco estrelas de Copacabana.
A TI também havia hospedado no hotel parte do seu time de jovens
especialistas em informática. Terceirizados das empresas Domina e PIT
Consulting, eles formavam um grupo apelidado de Tiger Team. Sediada
em Milão, a PIT recebeu, entre 2004 e 2006, 4,25 milhões de euros do
grupo Pirelli-Telecom. A maioria das faturas falava em “atividade Tiger
Team Latam”.
A TI descobriu que no mesmo hotel estava hospedado Omer Erginsoy,
um dos principais atores da investigação contra os italianos, chefe da
divisão de Inteligência e Investigações Financeiras da Kroll em Londres e
responsável pelo Projeto Cumberland. Tavaroli estava no Rio e pediu tudo
que fosse possível obter sobre Omer. Um dos hackers, Matteo Mariani,
conectou-se à rede do hotel e utilizou o software Cain, um sniffer,
farejador de senhas, para localizar os dados de Omer.
O u t r o hacker a serviço dos italianos, Andrea Pompilli, usou um
software que permitia ler os e-mails de Omer. Agregou-se à ação Alfredo
Melloni, que se apresentava na internet com o apelido de G00dB0y. Um
hacker contou que Melloni usou a senha de Omer para se conectar ao
servidor da Kroll e copiar os arquivos reservados de Omer e da Kroll.
Colocou-os em cinco DVDs e os entregou a Fabio Ghioni,141 que os
transferiu para um pen drive e entregou a Tavaroli. Toda a atividade
durou dois ou três dias.
A TI teve acesso a inúmeros relatórios feitos pela Kroll. O Projeto
Tóquio vazou: alvos, métodos e conclusões preliminares. Havia cerca de
670 arquivos relacionados aos projetos Cumberland e Tóquio. O feito
merecia ser recompensado. Ghioni usou sua própria conta-corrente para
pagar cerca de 20 mil euros para cada hacker.
Angelo Jannone, que estava em outro hotel, foi inteirado dos fatos e
recebeu um CD com os relatórios da Kroll — a cópia foi entregue depois à
PF brasileira.
A Procuradoria italiana encontrou com Ghioni um arquivo
denominado animaletto.txt, com a lista de trinta e três pessoas e
endereços de e-mails que deveriam ser atacados pelos hackers. Aparecem
os nomes de Dantas, Carla, Amália Coutrim, a advogada Danielle
Silbergleid, assessora do banco, e vários nomes da Kroll. A Procuradoria
desencadeou operações de busca e apreensão e prisões que atingiram
pelo menos vinte e cinco pessoas ligadas à TI, incluindo Tavaroli, que foi
preso, Jannone e Ghioni.
As invasões cibernéticas nos computadores de pessoas ligadas ao
Opportunity, à BrT e à Kroll foram uma ação de larga envergadura,
audaciosa e criminosa que se estendeu por meses a fio. Em 2013, a
espionagem levou à condenação, na Itália, do então presidente da TI,
Marco Tronchetti Provera.
Quanto à suposta corrupção relativa à Operação Chacal, os indícios
mais citados pelo Opportunity são os depoimentos dos ex-funcionários e
terceirizados da TI, como o de Ghioni. Ele afirmou que “se oferecera ou
[ele, agente público] tinha sido contratado, pago, para prender Dantas ou
fazer que prendessem Dantas”. Depois disse que “obteve o fato de
incriminá-lo”, mas não prendê-lo. As afirmações, imprecisas, deixaram o
procurador italiano em dúvida. Ele quis saber se esse funcionário
supostamente corrupto havia trabalhado ou feito investigações que
teriam levado à prisão de Dantas. Ghioni respondeu que sim, mas o
procurador insistiu em saber se quem tinha ordenado a prisão de Dantas
era um “chefe do serviço secreto”. Ghioni respondeu então que, “daquilo
que entendeu de Jannone”, o misterioso brasileiro havia criado as
condições para a prisão.
Em suma, Ghioni não havia presenciado ato de propina, mas apenas
ouvido de Jannone o relato de que algo nesse sentido teria ocorrido.
Jannone, contudo, sempre negou ter feito tais afirmações. Ainda que as
tenha feito, nada fica claro: quem era o corrupto, quando e onde havia
recebido dinheiro? O procurador mandou consignar formalmente as
afirmações de Ghioni com o cuidado de ressaltar que “não sei [Ghioni]”
se o tal funcionário integrava “o livro de pagamentos apenas de Jannone
ou se Jannone o tinha recebido de Bonera [antecessor de Jannone]”.
O “chefe do serviço secreto” citado por Ghioni é o delegado da polícia
Civil de São Paulo, Mauro Marcelo, especialista na investigação de crimes
cibernéticos, que, no segundo ano do governo Lula, foi nomeado diretor
da Abin, o serviço secreto do Palácio do Planalto. Seu nome foi citado em
conversas entre executivos da TI e o detetive particular Eloy de Lacerda
Ferreira, que trabalhou com a Pirelli na América do Sul. Ele conhecia
Marcelo e o convidou, a pedido de Tavaroli e Jannone, a dar palestras ao
grupo Pirelli-TI. Segundo Eloy, pelas palestras a Pirelli pagou R$ 10 mil a
uma empresa sua, que repassou o dinheiro a Marcelo. Contudo, as
palestras ocorreram em fevereiro de 2004, e Marcelo só foi anunciado
para o cargo na Abin em maio daquele ano. Ou seja, o pagamento da TI
foi anterior à posse na Abin. Em 2008, Eloy foi preso pela PF em Belo
Horizonte por dois dias, acusado de interceptação ilegal, no curso da
Operação Ferreiro, sem relação com o Opportunity. Eloy se apresenta na
internet como um “especialista em contraespionagem”. 142 Eloy nunca
acusou Marcelo de corrupção.
Tavaroli e outros executivos da TI também negaram, em depoimentos
à Procuradoria da Itália, terem corrompido Marcelo. Tavaroli o descreveu
como um apoiador “institucional”, embora não tenha explicado o que isso
significa. Ele disse que Marcelo lhe contou certa vez que “Dantas era um
inimigo do presidente Lula”. Mas Tavaroli frisou que a relação com
Marcelo ocorreu de “forma absolutamente correta”. 143 Marcelo sempre
negou quaisquer irregularidades e nunca foi acusado pela Procuradora de
Milão de crime na Itália ou no Brasil.
O inquérito italiano traz elementos um pouco mais objetivos, mas,
ainda assim, inconclusivos, sobre o papel do investidor Naji Nahas. Ele
nasceu no Líbano em 1945, viveu no Egito e estudou em Oxford, na
Inglaterra. Chegou há mais de quarenta anos ao Brasil, onde construiu
uma rica e polêmica carreira no mercado de capitais. Em 1989, foi
acusado de ter efetuado operações que levaram à “quebra” da Bolsa de
Valores do Rio. A CVM lhe aplicou uma multa, até então histórica, de R$
10 milhões em valores da época. Economistas saíram em defesa de
Nahas, alegando que ele agia de acordo com as normas e que havia
razões de mercado para a oscilação dos papéis. Em 2004, por fim, a
imprensa informou que Nahas acabou absolvido de todas as acusações.
Em 2001, Nahas foi o escolhido pela TI para a tarefa de interlocutor
dos italianos junto ao Opportunity. Tavaroli contou ter ouvido de um
funcionário da TI que a direção da empresa havia encarregado Nahas e
um italiano das relações institucionais da TI na América Latina de “levar
uma mala com dinheiro vivo”. Tavaroli, contudo, não soube dizer a quem
o dinheiro foi entregue. Apenas contou ter ouvido que o dinheiro serviu,
em parte, para pagar uma “comissão parlamentar”.144
A Procuradoria de Milão confirmou a entrega de uma altíssima soma a
Nahas pela TI a título de “consultoria”: 25,4 milhões de euros entre 2002
e 2006. Mas o destino da mala e o motivo pelo qual os recursos teriam
que ser em espécie ainda são pontos sem explicação. O fato é que
também não veio à tona prova de que Nahas repassou o dinheiro a
alguma autoridade brasileira.
Documentos localizados pelo autor deste livro em meio ao material
apreendido pela PF em 2008 na Operação Satiagraha indicam que Nahas
operou fortemente junto a governo e autoridades no Brasil. São três
cartas, escritas em francês, redigidas por Nahas e dirigidas ao então
presidente da TI, Marco Provera. Ao fazer um balanço dos serviços
prestados à TI, Nahas afirmou que atuou na Anatel, a agência estatal de
telecomunicações: “Eu tive que intervir para que a Anatel o aprovasse, o
que não era evidente. Mesmo assim, o acordo foi aprovado”.
Na mesma carta, Nahas mencionou problema enfrentado pela TI em
relação a uma marca de smartphone.
Algumas semanas depois, você pediu minha intervenção no
assunto Qualcomm 1900, pedindo que eu parasse a manobra do
ministro e me dizendo que seria um desastre se o mesmo
passasse pelo Congresso, por isso, você me deu carta branca.
Apesar de ter sido avisado quase em cima da hora, eu mobilizei o
Congresso e o governo e [isso] te fez ganhar uma batalha que já
estava perdida. Não pedi nada para mim, embora fosse legítimo
que eu recebesse uma remuneração por isso.
Ainda que indicativas do pesado jogo de influências exercido por
Nahas, as cartas também não são conclusivas sobre corrupção.
Outra linha de defesa levantada pelo Opportunity no caso Kroll
recorre ao mandado de prisão italiano contra Jannone, emitido em 2007,
para demonstrar possíveis provas fabricadas na Chacal. O documento,
levado ao conhecimento de vários jornalistas brasileiros, diz que Jannone
já demonstrou capacidade de “desviar as investigações”, citando uma
“falsa denúncia” que Jannone teria apresentado no Brasil com base nos
documentos retirados da Kroll. A afirmação é dúbia: se a denúncia foi
baseada em documentos subtraídos da Kroll, por que seria falsa? Maior
sentido haveria em se afirmar que Jannone agiu falsamente, ou de forma
dissimulada, ao apresentar os dados da Kroll à PF sem revelar que eles
haviam sido subtraídos. Jannone não contou tudo à PF, mas isso não
significa que os arquivos tenham sido fraudados.
O dado fundamental é que a PF brasileira já detinha o grosso dos
documentos apresentados por Jannone. O delegado Élzio, como vimos,
descartou o CD como prova relevante na Chacal. A conclusão é que a
Kroll foi, ironicamente, “grampeada” duas vezes, pela PF e pela TI.
Mais uma linha de defesa usada pelo Opportunity diz respeito a uma
suposta participação de Demarco na Chacal. De acordo com essa tese, o
empresário teria obtido recursos dos italianos e os repassado a agentes
públicos para fazerem uma perseguição a Dantas.
Segundo as provas levantadas na Itália, a TI fez pagamentos ao
advogado de Demarco, Marcelo de Oliveira Elias. Depois do escândalo
Kroll e de um acordo feito entre TI e Opportunity, foi feita uma auditoria
na TI que localizou um contrato com empresa ligada a Elias, a Gillaz
Empreendimentos. O contrato vigorou de agosto de 2004 a dezembro de
2005 — depois, portanto, do escândalo Kroll (caso revelado pela Folha
em 22 de julho). A TI detectou pagamento total de US$ 495 mil. Marco
Bonera, da TI, disse aos auditores que os serviços estavam relacionados a
informações “estratégicas para o business, fornecidas por Demarco
(atividade de inteligência)”. Um “relatório de horas trabalhadas” de Elias
mostra que o advogado estava reunindo elementos para subsidiar a TI a
se defender das investigações da Kroll e, ao mesmo tempo, abrir um
processo contra a Kroll nos EUA.
Mas não há prova de que Elias e Demarco tenham carreado esses
recursos para servidores públicos no Brasil ou na Itália — ambos nunca
foram denunciados no processo italiano. Há mesmo o desmentido
categórico de Tavaroli. Ele disse que, até onde sabia, “não houve
nenhuma atividade de corrupção, em relação aos órgãos institucionais”
brasileiros, desenvolvida por “fornecedores da TI”. Disse estar
“absolutamente seguro disso” em relação a Marcelo Elias, a Demarco e
aos consultores argentinos.145 Disse ainda que as ações judiciais
movidas por Demarco e Elias eram vistas como “instrumento adequado
de pressão” sobre Dantas e o Opportunity.
Outra indagação é se Demarco teria “influenciado” os rumos da
Chacal. A tese precisa considerar que a PF, o Ministério Público e o
Judiciário podem ser manipulados por uma única pessoa e também
entender que “influenciar” seja ato que configure crime. Para falar de
“contaminação privada”, o Opportunity exibe um e-mail despachado por
Elias a Jannone, que diz: “Demarco está em contato com o delegado da
Polícia Federal, dr. Élzio, encarregado de investigar os crimes da
Kroll/Opportunity. Demarco enviou o e-mail em atachado para esse
delegado hoje, e também falou com ele por telefone a fim de chamar sua
atenção para artigos publicados”.
Mas o contato é posterior à deflagração da Chacal. A mensagem é
datada de 21 de dezembro de 2004, enquanto a investigação da Kroll foi
revelada pela Folha meses antes, em julho, e a operação da PF, que
estava em andamento desde 2003, prendeu Tiago Verdial no final de
julho e foi desencadeada de vez em outubro. Portanto, quando Elias
enviou o e-mail, já era pública a existência do escândalo Kroll.
Na Chacal, Demarco foi apontado como vítima de investigação
privada. A conclusão da PF é esta:
Um dos alvos da organização criminosa, Luís Roberto Demarco,
notório rival de Daniel Dantas em disputas judiciais, foi objeto de
várias “investigações”. O material arrecadado em poder de Tiago
Verdial demonstrou que a quadrilha teve acesso aos dados
cadastrais dos telefones utilizados por Demarco, bem como ao
histórico de chamadas.
Mensagens atribuídas na Itália a Elias e Demarco demonstram mais
propriamente uma junção de esforços entre eles e os italianos para
enfrentar eventuais reações do Opportunity. Nesse sentido, e-mails
apresentados por Jannone à Justiça italiana são reveladores dos termos e
do alcance desse apoio mútuo. Em fevereiro de 2005, Elias enviou uma
mensagem ao italiano: “Hoje viajo para Londres para dar os primeiros
passos efetivos contra Kroll e Opportunity. É muito importante que nesse
momento façamos algo, um ataque em todos os fronts”.
Outros textos indicam que Jannone e Demarco estavam tendo sérios
desentendimentos nos esforços contra Dantas. Demarco nega a autoria
das mensagens. Em 2005, Demarco (ou o assim descrito) expressou-se
como alguém empenhado até o pescoço numa feroz batalha. Ele
defendeu a legalidade do apoio mútuo: “Não há nada de errado nisso,
não há conluio, nada que temer. Os fundos de pensão usam meus
advogados e não há conluio, o Citi agora é nosso amigo e não há
conluio”.
Em outra mensagem, Demarco faz referência a uma dívida de “200 k”
da TI para com seu advogado. Outros e-mails trocados entre os italianos
dizem que Demarco cobrava, em favor de seu advogado, US$ 250 mil
relativos a atraso pelo pagamento de trabalhos advocatícios e de
consultoria prestados por Elias. A auditoria da TI indicou que Demarco fez
a cobrança diretamente ao novo presidente da TI para América Latina,
Giorgio Della Seta. O presidente disse à auditoria que o valor “reclamado
pelo sr. Demarco” saiu do caixa da TI na América Latina.
Em abril de 2005, a TI publicou na imprensa anúncio sobre o acordo
entre a BrT e a TIM, a operadora celular da TI, que respondia às
exigências da Anatel para a questão da sobreposição das licenças móveis
e de longa distância das empresas. Isso permitiu que a TI voltasse a
exercer seus direitos, que estavam suspensos desde agosto de 2002, no
grupo de controle da BrT. O Opportunity recebeu da TI cerca de US$ 65
milhões, “a título de ressarcimento parcial pelos danos causados ao
gestor brasileiro”, conforme afirmou o banco, em mensagem ao autor, e
mais 291 milhões de euros para aquisição das participações do
Opportunity.
Logo após o acordo, os brasileiros adversários do Opportunity, e exaliados dos italianos, também entraram na mira do Tiger Team. Um
mandado de prisão expedido em 2007 pelo juiz Giuseppe Gennari, do
Tribunal Civil e Criminal de Milão, diz que Jannone também passou a
“entrar ilegalmente” nos “sistemas informatizados” de “integrantes dos
fundos de pensão que contestavam os acordos entre Daniel Dantas e TI”.
Em depoimento prestado ao procurador Nicola Piacente em Milão, Ghioni
contou ter recebido uma ordem de Jannone por volta de julho de 2005,
quatro meses após o acordo TI-BrT. Ghioni disse que Jannone “suspeitava
que Demarco estava passando algumas informações sobre a TI”. Ele disse
que “foi feita a atividade”, ou seja, a “invasão informática”.
Demarco nunca perdoou os italianos pelo acordo com o Opportunity.
Em outro e-mail a ele atribuído, reclamou: “Três meses atrás, a Telecom
Italia era um inimigo mortal do Opportunity e, subitamente (na minha
humilde opinião, inexplicavelmente), mudou de posição, fazendo um
acordo com o inimigo (suspenso pela Justiça do Brasil e dos Estados
Unidos)”.
Numa dessas incríveis reviravoltas que marcam a história do
Opportunity, os italianos começaram vigiados pela Kroll a mando da BrT,
passaram a investigar a agência e depois fizeram um acordo com o
banqueiro e voltaram sua espionagem para os desafetos do brasileiro,
que eram os fundos de pensão e Demarco — que, por sua vez, já haviam
sido espionados pela mesma Kroll. Esse resumo de apenas um par de
anos dá ideia da série de eventos incomuns que se desenvolveu no
entorno de Dantas.
A história do Opportunity, entretanto, é tão pródiga em suspeitas e
acusações que, um ano depois de conhecido, o caso Kroll já era um
episódio esquecido na imprensa, ultrapassado por fatos novíssimos. Em
2005, o nome de Dantas foi vinculado a outra suspeita de vulto, agora
envolvendo o Partido dos Trabalhadores. No maior escândalo do governo
Lula e um dos maiores da história do país, lá estava o nome de Dantas de
novo.
A caixinha vermelha
“O sr. Daniel Dantas administrava os recursos dos fundos de pensão sob forte
suspeita, confirmada à medida que o tempo passava, de havê-los conseguido de
forma espúria, pelas graças governamentais. Além disso, as provas de abuso da
posição de administrador, tirando vantagens em proveito próprio, iam se
avolumando de forma acelerada. Tal situação precária, então, deveria ser
acompanhada minuto a minuto, governo a governo, necessitando de uma alta
dosagem de influência política para se sustentar, bem como uma verdadeira
‘armada de guerra’ de advogados contratados a peso de ouro e um time de
investigadores para violar direitos e a vida de quem ousava atravessar o seu
caminho.”
Relatório final da CPMI dos Correios, agosto de 2006.
Em seu esforço para estreitar laços com o governo e o PT, o
Opportunity manteve contatos com um personagem anônimo, porém
extremamente diligente no submundo da política, o publicitário mineiro
Marcos Valério Fernandes de Souza, sócio das agências de publicidade
DNA e SMPB. Ele detinha as contas de duas companhias telefônicas
controladas pelo grupo Opportunity, a Telemig Celular e a Amazônia
Celular. Para todos os efeitos, tocava sua vida como qualquer publicitário
de médio porte, batalhando por contratos em órgãos públicos e empresas
privadas. Isso iria mudar no dia 6 de junho de 2005, quando a Folha
publicou a histórica entrevista sobre o mensalão concedida pelo deputado
Roberto Jefferson (PTB-RJ) à editora do Painel, Renata Lo Prete.
O desdobramento da crise do mensalão revelou que Marcos Valério
também operou politicamente para o Opportunity. A ponta do novelo
estava na agenda da ex-secretária de Valério, Fernanda Karina
Somaggio, onde constava uma reunião entre Valério, Delúbio Soares,
tesoureiro nacional do PT e da campanha de Lula, e Carlos Rodenburg,
homem de confiança de Dantas, no hotel Blue Tree, em Brasília, às
16h30 de 23 de julho de 2003.
O Opportunity disse que procurava corrigir o que considerou uma
grave falha de comunicação entre o banco e os petistas. Na campanha
eleitoral que elegeu Lula, em 2002, o PT adotou uma estratégia
incomum, executada por Delúbio, de arrecadação de recursos. Distribuiu
caixinhas vermelhas com uma estrela prateada e dados da conta bancária
do PT para os principais empresários do país. Era um recado, um jeito
supostamente mais elegante de pedir dinheiro. O doador não devia
colocar dinheiro nela, apenas fazer a transferência bancária para a conta
indicada. A equipe de Delúbio enviou pelos Correios ou entregou
pessoalmente 4.181 caixinhas desse tipo.
“Com base em um cadastro top das empresas do país, optou-se pelo
envio de um kit apoiado por um call center ativo com visitas aos maiores
doadores potenciais. Nas visitas e reuniões, também se colheu
impressões e sugestões do plano de governo.”146
Em oitenta dias, o time de Delúbio disparou 16.500 ligações
telefônicas e realizou 500 visitas. Das empresas procuradas, 244 fizeram
algum tipo de doação.
A caixinha também chegou à sede do Opportunity, no Rio, entregue
por Ivan Gonçalves Ribeiro Guimarães, que no governo Lula se tornaria o
presidente do Banco Popular, vinculado ao BB. Ainda que Dantas
estivesse em briga com os petistas dos fundos de pensão, o PT não teve
pudor em pedir dinheiro ao banqueiro. Entretanto, afirmou Dantas, dias
depois a caixinha foi devolvida ao PT, supostamente por um engano de
Rodenburg. E pior ainda, vazia.
Ele não havia entendido, devolveu. O governo havia começado, e
nós sentimos uma série de hostilidades que começou desde o dia
primeiro [...] e várias interpretações chegaram aos nossos
ouvidos de por que aquilo estava acontecendo. Uma delas é que
foi considerada arrogante a devolução dessa caixinha.147
Rodenburg foi à reunião com o tesoureiro do PT. O encontro foi
“muito amistoso e cordial”, segundo Dantas. Mas o assunto era pesado.
Passada a alegria da eleição de Lula, o PT tinha uma conta salgada a ser
paga. O PT havia se comprometido a quitar despesas de diversos partidos
e políticos da base aliada, quase tudo em caixa dois.
“O sr. Delúbio manifestou para ele [Rodenburg] que havia uma
dificuldade financeira no partido, a ordem de US$ 50 milhões, e que se
era possível que nós conseguíssemos resolver esse problema.”148
Dantas afirmou que Delúbio teria dito o que poderia ocorrer caso o
dinheiro chegasse ao PT: “Durante essa conversa que o sr. Delúbio
Soares teve com o Carlos Rodenburg, ele teria mencionado que poderia
ajudar a resolver as dificuldades que nos eram criadas”.
Delúbio teve uma memória muito mais vaga da conversa. “Neste
encontro Carlos Rotenburgo [sic] apenas solicitou uma aproximação com
o PT para melhorar a imagem do grupo Opportunity junto ao partido.
Rotenburgo não fez qualquer pedido ou solicitação.”149
O terceiro participante do encontro, Marcos Valério, também
minimizou a reunião. Tanto ele quanto Delúbio nada falaram sobre os
US$ 50 milhões referidos por Dantas. Valério afirmou que Rodenburg
“queria fazer uma explicação” para o PT “do que era o grupo Opportunity
e do que era o investimento deles em telefonia”.150
O operador do mensalão, contudo, contradisse Delúbio num ponto
importante. O ex-tesoureiro havia dito que Rodenburg nada havia lhe
pedido, mas Valério corrigiu: “No encontro, Rodenburg pediu a Delúbio
que ele tentasse ‘aparar as arestas’ que o grupo Opportunity mantinha
com o governo do PT”.151
Outro dado chamava a atenção dos investigadores do mensalão. As
companhias telefônicas controladas por Dantas, incluindo a Telemig
Celular, eram alguns dos principais clientes de Marcos Valério. Seria
Dantas outra fonte do “valerioduto” mineiro, que também irrigou o PSDB
de Minas? Essa pista foi seguida principalmente por parlamentares do PT,
como a senadora Ideli Salvatti (SC). Ao colar no Opportunity a pecha de
financiador de Valério, o PT fazia a ligação de Dantas com o PSDB e com
os episódios nebulosos das privatizações que marcaram o mandato de
FHC. Era uma forma esperta do PT de distribuir culpa, mas não era
inverídica a relevância dos recursos do grupo de Dantas para as contas de
Valério. A Telemig Celular e a Amazônia Celular despejaram R$ 152,4
milhões nas empresas de Valério a partir do ano 2000.
A PF abriu inquérito para investigar o mensalão, e Dantas teve que
prestar depoimento. A impressão do delegado encarregado do caso, Luís
Flávio Zampronha de Oliveira, foi das piores:
De um modo geral, verifica-se que o depoimento de Daniel
Dantas está repleto de respostas evasivas e esquecimentos de
datas e detalhes dos fatos, indicando todo seu incômodo em
relatar toda a verdade dos acontecimentos. O banqueiro não
soube esclarecer, por exemplo, como e onde Carlos Rodenburg
teria conhecido Marcos Valério, limitando-se a afirmar que teria
sido em um “negócio de cavalos”.152
A PF aprofundou a informação de que a BrT havia assinado, poucos
dias antes do início do escândalo, dois contratos de R$ 50 milhões com as
empresas de Valério. Quando o mensalão estourou, os contratos foram
suspensos e o dinheiro não foi pago. Mas a PF conseguiu a confirmação
dos funcionários da BrT de que houve uma “ordem de cima” para a
assinatura dos contratos. Luciano José Porto Fernandes, diretor de
materiais e serviços da BrT, disse que eles “foram celebrados por
determinação de Carla Cico”. E apenas três dias depois de uma
“solicitação para a contratação sem concorrência”, porque houve “um
pedido de urgência por parte da presidência da empresa”. Em sua defesa,
Carla disse à PF que a responsabilidade pelas contratações foi das áreas
de publicidade e comercial.
Tanto a CPI quanto a PF encontraram pagamentos datados de 2004.
A BrT e a Telemig Celular depositaram R$ 3,5 milhões nas contas da
SMPB para supostamente custear pesquisas e planejamento de marketing
para as companhias telefônicas. A PF e a CPI rastrearam os valores. No
mesmo dia do depósito, as agências de publicidade de Valério
transferiram o dinheiro para outras duas empresas, a Athenas Trading
(R$ 1,9 milhão) e a By Brasil Trading (R$ 976 mil), cujos responsáveis
disseram à PF que os valores foram redistribuídos a duas corretoras de
câmbio. Em seguida, as corretoras celebraram contratos de câmbio com
empresas no exterior para suposta importação de salmão e resinas. A PF
concluiu que os recursos “foram submetidos a um complexo processo de
lavagem de dinheiro, com a consequente eliminação do paper trail (trilha
do dinheiro) para impedir a identificação dos verdadeiros beneficiários”.
Desde que as suspeitas de envolvimento do Opportunity com o
mensalão vieram à tona, o banco tem dito que aresta nenhuma foi
aparada por Delúbio e que não teve sucesso com o governo petista. A
afirmação é fragilizada pelo ato de fusão da BrT com a Oi (ex-Telemar),
em abril de 2008. Para fechar a venda, o Opportunity assinou um
extenso e proveitoso acordo com os fundos de pensão controlados pelo
PT, como se verá adiante. Mas o Opportunity tem razão quando fala de
perdas durante os primeiros anos do governo Lula. Depois de ter sido
destituído do comando do Fundo Nacional, o banco buscava manter o
controle sobre a BrT.
O escândalo do mensalão chegou na pior hora para Dantas. Ele
acabara de enfrentar a tenacidade de uma anônima juíza do Rio de
Janeiro.
Márcia Cunha Silva Araújo de Carvalho é juíza em causas cíveis no
Rio desde 1992. No final de 2004, foi transferida para a 2ª Vara
Empresarial do Rio. Ela ainda tomava pé da situação dos processos
quando seu marido, o advogado e procurador de Justiça aposentado
Sérgio Antônio de Carvalho, recebeu um convite suspeito.
O empresário e estudante de direito Eduardo Raschkovsky, quem
Carvalho havia conhecido durante um almoço no Clube dos Magistrados,
em Petrópolis (Raschkovsky aparecia com frequência no Tribunal de
Justiça do Rio e participava de almoços com juízes), propôs uma parceria
profissional. Carvalho receberia um pagamento fixo mensal de R$ 100
mil mais um bônus pelas ações que ganhasse, tendo que atuar em cerca
de vinte processos. Em todos, uma das partes era o Opportunity.
Carvalho percebeu que um dos processos tramitava na vara de sua
mulher. Ele indagou a Raschkovsky sobre isso.
“Ele me disse, ‘olha, esses casos não são importantes. Pense bem,
vem um contato muito bom para o escritório, escritório recémaberto’.”153
Carvalho avisou sua mulher, a qual foi verificar o processo. Logo o
casal concluiu que o caso não era nada desimportante, na verdade, era o
mais significativo e urgente para as pretensões do Opportunity. E o
processo justamente naquele momento aguardava uma decisão da juíza.
Nesse contexto, o convite de Raschkovsky foi recebido pela juíza como
um tapa na cara.
Era uma causa que envolvia imensos interesses de lado a lado, com
repercussões sobre a gestão de um patrimônio de bilhões de reais. Em
outubro de 2003, em assembleia dos cotistas, os fundos de pensão
ligados às estatais haviam destituído o Opportunity do cargo de
administrador do chamado Fundo Nacional, sob suspeita de quebra de
dever fiduciário. Contudo, uma semana depois, quando tentaram retomar
a administração, os fundos foram surpreendidos com um anúncio de “fato
relevante” publicado no jornal Monitor Mercantil. O Opportunity
anunciava a existência de um aditivo ao acordo de acionistas entre os
fundos Nacional e Estrangeiro, ambos administrados por executivos do
Opportunity — que assinaram por ambas as partes. Tal acordo, conhecido
como umbrella (guarda-chuva), teria sido “firmado em 3 de julho de
2002, alterado e consolidado em 8 de agosto de 2003 e posteriormente
aditado em 12 de setembro de 2003”. Na prática, era um acordo do
Opportunity com o Opportunity, anunciado apenas num momento
decisivo das brigas societárias.
A juíza considerou o acordo um absurdo.
“Era tão óbvio, que ele havia feito um contrato consigo mesmo que,
se um pai contasse a história para uma criança, ela entenderia.”154
Em maio de 2005, Márcia deferiu uma “antecipação de tutela” aos
fundos de pensão para garantir a suspensão do acordo umbrella. Na
prática, confirmava a saída do Opportunity do controle das empresas. Em
sua decisão, a juíza atacou a jogada do Opportunity.
O Opportunity aproveitou-se do fato de ser mandatário dos
demais acionistas participantes do acordo para estabelecer
disposição altamente lesiva e contrária aos interesses dos
mandantes, o que beneficia extrema e exclusivamente a ele,
Opportunity, que passa a deter todo o poder político sobre as
companhias investidas, em que pese sua participação acionária
com direito a voto ser muitíssimo menor que as dos dois outros
fundos.
A juíza avançou sobre os motivos que levaram à criação do umbrella:
Há fortes indicativos de que o Opportunity tenha realizado o
acordo e aditivos para neutralizar os efeitos sobre si do legítimo
exercício dos fundos de destituí-lo do cargo de administrador [...]
O Opportunity manteve-se na gestão e com poder político sobre
as companhias, mesmo depois de destituído do mandato que lhe
fora conferido. Tal agir demonstra dolo direcionado a fraude à lei.
A decisão da juíza é amparada por um parecer emitido dias antes
pela Procuradoria Federal Especializada da CVM, que tem como tarefa
justamente averiguar a legalidade dos acordos entre acionistas de
empresas ligadas a fundos de investimento. O parecer de trinta e três
páginas da procuradora federal Marilisa Azevedo Wernesbach teve dois
“de acordo” de dois superiores. Produzido por pessoas com alto grau de
especialização na matéria, o parecer concluiu pela anulação do acordo
umbrella e disse que o documento “configura a realização de contrato
consigo mesmo, ao arrepio da lei”.
“O conflito de interesses é evidente.”
O parecer abordou ainda a demora na divulgação do acordo:
O aditivo celebrado em 12/09/2003 era de manifesto interesse
dos cotistas do [sic] Investidores Institucionais FIA [fundos de
pensão], de modo que deveria sido [sic] tempestivamente
revelado, vale dizer, a publicação tardia do respectivo Fato
Relevante traduziu-se na quebra dos deveres de diligência e
fidúcia a que estava obrigado o banco Opportunity em relação aos
Autores.
Após a decisão, começaram os problemas para a juíza. Márcia teve
que enfrentar kafkianas suspeitas levantadas pelo banco. A mais incrível
dizia que ela não havia escrito a própria decisão. O banco sugeria que
alguém — possivelmente, é claro, os fundos de pensão — havia redigido e
preparado o texto para a assinatura final da juíza.
Os advogados do Opportunity contrataram quatro peritos, dentre os
quais o escritor Antonio Olinto (1919-2009), membro da ABL (Academia
Brasileira de Letras). Eles compararam oito decisões anteriores de Márcia
e disseram que ela não foi a autora da decisão questionada. Duas peritas
afirmaram que, no corpo de sua decisão, a juíza adotou “o mesmo tom
argumentativo empregado pelos advogados [dos fundos de pensão] em
seus textos”. Disseram ainda que a juíza usava dois dos mesmos autores
de estudos jurídicos citados pelos advogados dos fundos de pensão.
Levantaram grave suspeita sobre o fato de a decisão de Márcia, no local
da assinatura, ter registrado apenas “Rio”, em vez do “Rio de Janeiro”,
presente nas outras oito decisões. Por fim, questionaram não a presença
de erros gramaticais na decisão, mas a ausência. O parecer de Olinto diz
que a juíza não cometeu “um só deslize linguístico” nem deixou passar
“qualquer incorreção gramatical”, situação diversa das anteriores.
Como num conto surrealista, a juíza era “acusada” de, ainda que às
vezes, escrever muito bem.
Em socorro a Márcia, a Associação dos Magistrados do Estado do Rio
contratou o perito Ricardo Molina, da Universidade de Campinas. Ele
apontou que o número de oito sentenças para a “amostra padrão”
analisada pelos peritos era pequeno para ser usado em tão graves
conclusões. Sobre a repetição de argumentos, Molina observou que,
antes de tomarem sua decisão, é comum os juízes reproduzirem as
argumentações de todas as partes da ação. Mas as peritas se
concentraram apenas num trecho da decisão, enquanto a juíza também
falou da posição do banco. Sobre a citação repetida de autores, Molina
descobriu que eles também foram citados pelo próprio banco na ação e
salientou que a repetição de clássicos do direito é uma banalidade.
Molina desmontou o argumento sobre o “Rio”, ao apresentar duas
outras decisões da juíza assinadas da mesma forma. A respeito da
ausência de erros gramaticais, o trabalho de Molina consistiu em apontar
trinta e seis deslizes no texto de Márcia, quase sempre a falta ou o abuso
de vírgulas. Ou seja, o perito teve de explicar que ela “continuou
errando” no texto atacado pelo banco.
O Opportunity representou contra a juíza no Órgão Especial do
Tribunal de Justiça por suposta “falsidade ideológica”. A juíza perdeu
precioso tempo na inócua discussão. Em outubro de 2006, os
desembargadores do TJ mandaram arquivar as alegações: “Chega-se à
conclusão de que não há elementos capazes de levar à conclusão de que
a representada [Márcia] não foi quem elaborou a decisão judicial que ela
subscreveu no processo em curso na Vara Empresarial, sobre a qual ela
assumiu a autoria e inteira responsabilidade”.155
A forçada polêmica sobre a autoria da decisão foi apenas uma das
várias dificuldades enfrentadas pela juíza. Ao todo, ela enfrentou cerca
de vinte procedimentos simultâneos, movidos por diferentes empresas
ligadas ao Opportunity. O banco, por exemplo, apontou que a filha da
juíza, uma aluna de direito, seria advogada do escritório que
representava os interesses dos fundos de pensão na causa. A filha, na
verdade, era uma estagiária que ganhava pouco mais de um salário
mínimo mensal e havia deixado o escritório em março, antes da decisão
da juíza. Mas, por isso, a juíza passou a sofrer um pedido de “exceção de
suspeição”, para que deixasse o processo, e foi também alvo da
corregedoria.
Muito mais aconteceu. Em setembro, a chefia da segurança do TJ
recebeu a informação de que dois homens filmaram o apartamento da
juíza e fizeram perguntas à vizinhança. Uma semana depois, um
motoqueiro mostrou um revólver à juíza, na rua, e disse que ela e sua
filha “já eram”. O caso foi relatado à polícia, que o arquivou por falta de
provas. Nos corredores do TJ, a juíza também se viu obrigada a debelar
falsos boatos de que detinha uma conta com US$ 2 milhões nas ilhas
Cayman.
Em outubro de 2005, a jornalista da Folha Janaína Leite desembarcou
no Rio para checar informações sobre Márcia. Depois de perguntar sobre
a autoria da sentença e se a juíza havia de fato lido “todo o processo”, a
jornalista indagou: “A senhora comprou um apartamento de quatro
quartos em Ipanema pouco depois de dar a sentença?”.
A juíza reagiu: “Meu Deus, que absurdo! Eu moro de aluguel” — o
ponto de exclamação consta da reportagem. “Aluguei de um casal de
velhinhos.”
As suspeitas contra Márcia Cunha foram todas arquivadas. Depois que
a onda de denúncias cessou, Márcia ajuizou uma ação de indenização por
danos morais contra o Opportunity. A filha de Márcia desistiu do direito e
hoje trabalha com moda.
“Eles, na verdade, não miraram minha pessoa, mas o juiz que estava
sentado naquela cadeira. Fosse quem fosse, passaria pelo mesmo”, disse
a juíza.
Em 2009, Eduardo Raschkovsky voltou ao noticiário. Reportagens de
Chico Otavio, de O Globo, revelaram que havia mais de dez anos ele
“agia à sombra do Judiciário fluminense, oferecendo sentenças e outras
facilidades em troca de vantagens financeiras”, e que, com o advento da
lei que veta candidatura de políticos com fichas sujas na Justiça,
Raschkovsky “atuou intensamente nos bastidores para oferecer
blindagem aos políticos mais problemáticos”.
A Assembleia Legislativa do Rio abriu uma CPI para investigar o
assunto. Raschkovsky negou tudo: “Isso é impossível. O escritório nunca
atuou dentro do Tribunal Regional Eleitoral. Segundo ponto: se alguém,
algum dia, colocar que possa fazer algum tipo de blindagem, essa pessoa,
desculpe os termos que eu vou usar, ou é louca ou é mentirosa”.156
O deputado Luiz Paulo, membro da CPI do TCE, revelou que vários
políticos haviam confirmado investidas de Raschkovsky: “Ele mentiu,
sucessivamente. Eu tenho o depoimento sigiloso de três parlamentares
de que foram procurados pelo ‘seu’ Raschkovsky”.
Na conclusão, a CPI pediu à Polícia Federal a abertura de inúmeras
investigações sobre Raschkovsky, considerando ser, “no mínimo, obscura”
sua relação com membros do Judiciário.
Enquanto o Opportunity brigava com a juíza Márcia Cunha, e corria em
Brasília a CPI dos Correios, a revista Veja divulgou uma reportagem que
à primeira vista parecia ser benéfica para os interesses do banqueiro,
mas que acabou se tornando uma enorme dor de cabeça para ele.
Intitulada “A Guerra nos Porões”, a reportagem anunciava: “O banqueiro
Daniel Dantas tem uma lista com contas em paraísos fiscais que seriam
do presidente Lula e do resto da cúpula do PT”.
Os papéis entregues à Veja teriam sido produzidos pelo americano
Frank Holder, “ex-oficial de inteligência da Força Aérea dos EUA” e exdiretor da Kroll. Haveria “contas secretas” em nome do presidente Lula,
de José Dirceu, Antonio Palocci, Luiz Gushiken, Márcio Thomaz Bastos,
Paulo Lacerda e do senador Romeu Tuma (DEM-SP).
A reportagem narrou ter obtido os papéis de Holder “com
conhecimento de Dantas” em setembro de 2005. Segundo a reportagem,
Dantas organizou o “arsenal” para “defender-se das pressões que garante
ter sofrido do PT nos últimos três anos e meio”. O jornalista da revista
Veja Marcio Aith reuniu-se com Holder na Suíça e desenvolveu um
“exaustivo trabalho de apuração”. Ele encontrou inconsistências no
material. Mas a revista Veja decidiu pela publicação por considerar que
“levaria grandes nomes” a explicar os depósitos e, de quebra, “impediria
que o banqueiro do Opportunity viesse a utilizar os dados como
instrumento de chantagem”.
Nos dias seguintes, Dantas negou que fora a fonte da revista e que o
material tenha sido alguma vez “oferecido ao Opportunity”. Quando
indagaram se teve contato com a revista Veja sobre o assunto, Dantas
respondeu que sim, que o “consultaram”, mas teria dito que “essa
história não era verossímil”. Mas a edição seguinte da revista Veja
reafirmou que Dantas era a fonte. A revista publicou uma cronologia dos
diversos contatos mantidos com o banqueiro, dois deles presenciados por
outros jornalistas da revista Veja.
O que não se sabia é que a PF recebeu uma gravação da entrevista
de Aith com Holder, feita à época da apuração da matéria. Como uma
prova de que as fontes eram Holder e Dantas. Pela primeira vez aqui
revelada, a transcrição feita pela PF indica que Aith tratou com os dois
sobre esses papéis e que o jornalista exigiu mais provas:
“O que me chama a atenção é que normalmente eles, políticos,
abrem contas em nome de empresas. Não em nome de pessoal”, disse
Aith, segundo a transcrição da PF. Ele apertou Holder:
— Qual o grau de segurança que você tem de que essas contas
existem, com esses números nas contas nos nomes dessas
pessoas? É total? 100% de segurança?
— Vamos falar que você nunca tem 100% até ir verificar no
banco pessoalmente e realizar uma transferência, né? Mas, fora
de ter feito isso, a segurança é muito alta, acima de 90.
Aith contou ter conversado com Dantas sobre o assunto:
“O Daniel havia me falado que o número, o número, um dos números
ali [da lista], um ou dois, tinha coisa com o banco americano.”
O inquérito aberto pela PF concluiu, em dezembro de 2007, que os
papéis eram uma “armação” e indiciou Dantas e Holder por suposta
calúnia (atribuir falsamente crime a alguém). Não houve decisão judicial
final até o encerramento deste livro.
Quando a revista Veja revelou sua fonte, Dantas procurou dizer que
não era próximo de Holder. Mas as relações do americano com a Kroll e
os interesses do Opportunity e da BrT são inequívocas. Uma empresa de
Holder recebeu, em 2005, US$ 838 mil da BrT. Um documento de
fevereiro de 2005 narra uma reunião em Nova Iorque entre Holder, Jules
Kroll, Charles Carr e Carla Cico, todos engajados no Projeto Tóquio.
Holder “apresentou um panorama de inteligência coletado em viagens
recentes ao Brasil”. Disse ter estado com o embaixador dos EUA no
Brasil, John Danilovich, com o conselheiro econômico John Harris e com o
“chefe das operações da CIA no Brasil”, não identificado. Esses três
americanos haviam mantido reuniões com Lula e os ministros Palocci e
Dirceu, o presidente do BNDES e “outros elementos dentro ou próximo da
Polícia Federal” e relataram a Holder como o governo encarava a Kroll e
a Chacal.
Segundo Holder, Lula teria dito que havia “uma disputa empresarial”
entre BrT, Telecom Italia e Opportunity e que a Kroll não teria cometido
ilegalidades. José Dirceu seria “geralmente apoiador de BrT/Opp/Kroll” e
entendia que a “verdadeira motivação” foi um movimento feito por
Gushiken e Thomaz Bastos contra “outros elementos predominantes no
PT”.
Na reunião, Jules Kroll também narrou encontros que manteve com
Palocci durante o Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça. Teria
dito ao ministro, na presença de outras pessoas, que as acusações e
prisões do pessoal da Kroll eram “intoleráveis”. Palocci teria dito que iria
discutir o assunto com Thomaz Bastos. Num segundo encontro, a sós,
Palocci teria dito: “Considere-me seu amigo, eu vou ajudar você”. Kroll e
o ministro continuaram em contato. O encontro privado foi negado depois
pelo advogado de Palocci, José Roberto Batochio.
A cronologia é fundamental. Na reunião em Nova Iorque, ficou
decidido que “Daniel Dantas precisa trabalhar sobre as relações com o
governo brasileiro”. E o papel de Holder seria “trabalhar uma estratégia
para lidar com a aparente contínua ameaça de Tuma/Polícia Federal do
Brasil”. O encontro ocorreu em fevereiro de 2005. Os papéis das falsas
contas secretas de Tuma e Lacerda foram entregues à revista Veja sete
meses depois.
Em abril de 2006, a CPI dos Correios indiciou Dantas por suposto tráfico
de influência, corrupção ativa e sonegação fiscal. A CPI concluiu que não
ficou comprovada boa parte dos serviços que justificariam os depósitos de
R$ 152 milhões feitos nas contas das empresas de Marcos Valério pelas
empresas de telefonia Telemig Celular e Amazônia Celular.
Indagado a respeito pelas CPMIs sobre faturas emitidas pela DNA
Propaganda e SMP&B Publicidade contra as empresas de telefonia
celular citadas — muitas delas encontradas queimadas nos
municípios de Contagem e Brumadinho, em Minas Gerais —, o sr.
Daniel Dantas disse que elas não correspondiam a serviços
prestados. Não produziu contraprovas de glosas devidamente
justificadas da inexatidão das faturas. Prometeu enviá-las a esta
Comissão, o que não acorreu.157
A CPI encontrou uma “relação simbiótica” entre Dantas e Valério,
configurada numa “troca de recursos por influência, visando à
sobrevivência de todos”.
Entre 2003 e 2004, Valério encontrou-se “duas ou três vezes” no
Brasil e “duas ou três vezes” em Portugal com o então presidente da
comissão executiva do Grupo Portugal Telecom, Miguel António Igrejas
Horta e Costa. À época, a imprensa informava que estavam ocorrendo
tratativas entre os portugueses e o Opportunity com vistas à venda da
Telemig Celular. Entretanto, Costa disse que a intenção de Valério era
manter sua conta na Telemig, caso ela fosse vendida. Uma vez, Costa
levou Valério a um encontro com o então ministro das Obras Públicas,
Transportes e Comunicações Antonio Luis Guerra Nunes Mexia. A
percepção que o ex-ministro teve do papel de Valério foi diferente da de
Costa. Ele disse que Valério lhe foi apresentado como alguém que
conhecia a Telemig, “no contexto de alguém que poderia contribuir, para
se perceber, via racional ou não, na junção das companhias”.158
Dantas negou ter autorizado ou contratado Valério para falar sobre a
venda da empresa mineira, mas a CPI concluiu: “Marcos Valério, que já
era contratado do sr. Dantas e das empresas que controlava, atuou como
verdadeiro corretor de negócios do sr. Dantas e seu grupo Opportunity”.
O relatório final da CPI dos Correios concluiu:
O sr. Daniel Dantas administrava os recursos dos fundos de
pensão sob forte suspeita, confirmada à medida que o tempo
passava, de havê-los conseguido de forma espúria, pelas graças
governamentais. Além disso, as provas de abuso da posição de
administrador, tirando vantagens em proveito próprio, iam se
avolumando de forma acelerada. Tal situação precária, então,
deveria ser acompanhada minuto a minuto, governo a governo,
necessitando de uma alta dosagem de influência política para se
sustentar, bem como uma verdadeira “armada de guerra” de
advogados contratados a peso de ouro e um time de
investigadores para violar direitos e a vida de quem ousava
atravessar o seu caminho.
A CPI dos Correios acabou em abril de 2006. Um mês depois, o
processo do mensalão que corria no STF teve um desdobramento pouco
comentado na imprensa. O então procurador-geral da República Antonio
Fernando Barros e Silva de Souza pediu ao ministro Joaquim Barbosa
autorização para enviar às seções do Ministério Público Federal, nos
estados, documentos que, em tese, indicavam crimes praticados por
pessoas sem foro privilegiado no STF. Na condição dos “sem foro”,
incluíam-se empresários, operadores de bolsa de valores e outras
companhias de seus estados e do Distrito Federal que houvessem
depositado dinheiro, em circunstâncias suspeitas, nas contas de Valério.
O envelope relativo a São Paulo foi encaminhado à então
procuradora-chefe da Procuradoria no Estado, Adriana Zawada Melo. Os
documentos versavam, entre outros, sobre duas corretoras de valores e
uma empresa do publicitário Duda Mendonça.
Por distribuição automática, o caso foi parar na 2ª Vara Federal
Criminal da capital paulista, na alameda Ministro Rocha Azevedo, onde
ganhou número próprio e ficou sob a responsabilidade da juíza Silvia
Maria Rocha. Pelo Ministério Público, atuava ali a procuradora da
República Ana Carolina Alves Araújo Roman.
Um mês depois, a procuradora lembrou que a Operação Chacal
apreendeu “o HD do servidor de rede” do Opportunity — aquele ao qual o
delegado Gioia teve acesso após arrombar uma porta —, cuja cópia
estaria na PF de Brasília. Como as empresas controladas pelo Opportunity
estavam “entre as maiores depositantes nas contas de Marcos Valério”,
como indicou o relatório final da CPI, Ana Carolina pretendia ter acesso
ao HD para estabelecer possível conexão entre os depósitos e os saques.
Pediu que fosse feita uma cópia do HD e, em seguida, uma perícia na
cópia. Em termos técnicos, seria um compartilhamento de provas, ato
bastante comum em processos judiciais, mas que, no caso do
Opportunity, com sua “armada de advogados”, não seria nada banal.
O lance de Ana Carolina foi ousado também porque em agosto o
procurador-geral da República teve insucesso com o mesmo assunto.
Antes, a então presidente do STF, Ellen Gracie, havia determinado que o
HD ficasse guardado na PF até o julgamento final de um mandado de
segurança. O HD também estava lacrado por ordem do juiz federal Luiz
Renato Pacheco Chaves de Oliveira, que aguardava julgamento de
recurso formulado pelo Opportunity. Em linhas gerais, o banco dizia que
a apreensão havia sido ilícita, pois o mandado de busca e apreensão dizia
respeito a Dantas, e não ao Opportunity. O Ministério Público afirmou que
“o escritório do sr. Daniel Dantas localiza-se no mesmo edifício onde está
sediado o banco Opportunity”.
O ministro Joaquim Barbosa negou o pedido de Antonio Fernando
Barros. Mas com a juíza Silvia Maria Rocha seria diferente. Numa decisão
singularmente lacônica, de apenas uma palavra, “defiro”, a juíza deu
espaço para que a PF começasse a dissecar um dos grandes segredos do
Opportunity. Visto em retrospecto, o gesto da juíza de 3 de julho de 2006
foi um dos mais surpreendentes e corajosos de todo o caso Satiagraha.
Dois anos depois, quando flagrada em escuta telefônica com ordem
judicial, a assessora jurídica do Opportunity, Danielle Silbergleid,
manifestou à Verônica Dantas, irmã de Daniel, todo o seu espanto: “Eu
vou te falar uma coisa que você vai ficar chocada. Sabe quando foi aberto
o HD? Em 2006. Esse negócio está aberto desde 2006 e a gente não
sabia. É um negócio de louco”.
Por uma grande ironia, o fato de o HD não ter sido aberto ainda em
2004 é que garantiu o acesso em 2006. Como o HD não havia sido
investigado, o pedido da Procuradoria ganhou coerência. Em nova
medida, a juíza Silvia determinou à PF o rompimento do lacre e a cópia
da cópia do HD. A primeira cópia havia sido feita em 2004, pois o original
foi devolvido ao Opportunity em outubro do mesmo ano. Em julho de
2006, Ana Carolina estava na sede do INC, em Brasília, no momento em
que o delegado Emmanuel Henrique Balduíno de Oliveira abriu o malote
que continha as cópias dos HDs (descobriu-se, então, que eram cinco, e
não um) apreendidos na Chacal.
Foram feitas duas cópias pelo Serviço de Perícia em Informática do
INC. Vinte e três arquivos, num total de 84,9 gigabytes, foram salvos
num disco rígido e entregues à procuradora.
Ana Carolina pediu imediatamente uma perícia. A primeira olhada
indicou que muitos arquivos estavam criptografados. Para preservar o
conteúdo dos HDs, foram criados autos em separado, sob sigilo,
distribuídos em dependência ao processo original. As folhas que tratavam
das cópias e das autorizações judiciais foram extraídas dos autos
principais.
As coisas ficaram por aí até fevereiro de 2007, quando o delegado da
PF Élzio Vicente da Silva, o mesmo que havia presidido a Chacal, enviou
à 2ª Vara Federal um ofício com informações reveladoras. O INC já havia
obtido os primeiros resultados da perícia nos HDs. Segundo Élzio, os
dados apontavam para “prática de crime de evasão de divisas,
caracterizada pela aplicação de recursos de pessoas residentes no Brasil
em subfundos geridos pelo banco Opportunity”. Tratava-se da mesma
questão levantada tantos anos atrás, desde 1999, pela imprensa e por
Demarco e nunca devidamente investigada a fundo. O “conselhinho” do
Ministério da Fazenda havia até livrado os gestores do Opportunity de
uma pequena multa aplicada pela CVM.
Agora, contudo, a PF tinha condições de citar à Justiça três casos de
pessoas que “notoriamente eram residentes no Brasil” ao tempo da
apreensão do HD, em outubro de 2004.
“Em relação à quase totalidade dos aplicadores ligados aos subfundos
do Opportunity Fund, há expressa referência às cidades (brasileiras)
ligadas a cada investidor, bem como endereços de correio eletrônico
indicativos de vínculos com o Brasil”, narrou o delegado. Ele calculou que
os subfundos detinham em torno de R$ 1,5 bilhão.
Com as novas informações, a juíza Silvia decidiu que os autos fossem
redistribuídos a uma das duas varas especializadas no combate aos
crimes de lavagem de dinheiro e contra o sistema financeiro nacional na
cidade de São Paulo.
No dia seguinte, os documentos chegaram à 6ª Vara Federal Criminal
e ali ganharam um novo número, aos cuidados do juiz substituto Márcio
Rached Millani, já que o titular, Fausto Martin De Sanctis, estava de
férias.
A pedido da Procuradoria, Millani autorizou a quebra dos sigilos
bancário e fiscal do grupo Opportunity. No mesmo dia, o juiz enviou
ofícios às “diretorias da área de Inteligência” do Banco Central e da
Receita Federal, pedindo o compartilhamento dos documentos sigilosos.
Datados de 8 de fevereiro de 2007, os documentos são a certidão de
nascimento de uma criança que depois ganharia um nome esquisito:
Operação Satiagraha.
Nem Paulo Lacerda nem Protógenes Queiroz nem Fausto De Sanctis
criaram a operação — nomes que depois a defesa do Opportunity
procurou envolver num mesmo “consórcio” ou “armação” —, a Satiagraha
na verdade nasceu de uma ordem do STF que encontrou o empenho de
uma procuradora pouco conhecida, aliada à persistência de um delegado,
às descobertas de três policiais anônimos e às convicções de uma juíza
titular e de um juiz substituto, num ato corriqueiro do aparato judicial:
havendo indícios de crimes, eles devem ser investigados. E, quando a
máquina investigativa do Estado começava a rodar, no ano de 2007,
dificilmente seria interrompida. A roda costumava girar até o fim, com
consequências imprevisíveis.
Tigres de papel
“Sou sua mãe, seu pai, seu juiz e, se necessário, serei seu carrasco. Vocês foram
escolhidos para integrar a Primeira Brigada Móvel [...] Não há casos arquivados na
Primeira Brigada Móvel. Só há casos resolvidos. Os ‘móveis’ adoram o sucesso. O
fiasco é incompatível com o trabalho dos ‘móveis’. Tenho pena deles, ladrões,
rufiões, anarquistas e ralé de toda espécie porque vocês vão pegá-los e vão metêlos no lugar deles. Na prisão.”
Discurso do chefe policial francês Faivre, personagem do filme
Brigadas do tigre (2006). Protógenes mandou distribuir cópias do
filme para os policiais e procuradores que atuavam na Satiagraha.
O delegado Élzio obteve uma vitória sem precedentes, ao conseguir
do juiz Millani autorização para interceptar o IP (do inglês “internet
protocol”) do Opportunity, uma convenção que permite a comunicação
entre dois sistemas computacionais. Assim, a PF passou a ter acesso a
mensagens de e-mail, diálogos por voip (do inglês “voice over internet
protocol”), chats, navegação na web e arquivos baixados. Ao tomar essa
medida “não ortodoxa”, como mais tarde o juiz De Sanctis a descreveu, o
delegado lembrou as turbulências experimentadas antes, durante e
depois da Operação Chacal. Ele ficou incomodado com “a divulgação de
dados falsos pelos meios de comunicação para desacreditar seus
desafetos”. Élzio se referia às notícias espalhadas pelo Opportunity sobre
“contaminação”, “cooptação” ou “pagamento” de agentes federais pela
Telecom Italia, à época da Chacal. O delegado citou a reportagem sobre
falsas contas bancárias no exterior na revista Veja e outras matérias
publicadas na revista italiana Panorama. Segundo Élzio, as publicações
na Itália “sugeriam que a Chacal teria sido apenas um instrumento
utilizado pelo governo para prejudicar Dantas e seus asseclas na disputa
com os italianos”. Para o delegado, o Opportunity buscava “desacreditar”
a “apuração dos fatos”. E previu coisa pior:
“É de se imaginar os recursos que serão utilizados quando tomarem
ciência da ocorrência do maior temor da quadrilha até então: a abertura
de um HD do Opportunity e a descoberta dos elementos probatórios
indicadores da atividade de evasão de divisas.”
A interceptação do IP era tão incomum, que a PF teve de adquirir um
equipamento próprio para a ação, instalado na sede da Intelig, em São
Paulo, com acompanhamento da empresa. Dias depois, porém, Élzio
trouxe más notícias. Embora tenha captado um enorme volume de dados
— apenas em março de 2007, a PF copiou 10.114 e-mails, 4,3 milhões de
páginas de internet, 357 arquivos transferidos e 6.019 canais de chat —,
a medida teve baixa eficácia, pois poucas mensagens guardavam alguma
relação com o objeto da investigação. Além disso, os arquivos que
continham as conversas via voip estavam criptografados.
Élzio pediu a suspensão do monitoramento, no que foi acompanhado
pela procuradora Ana Carolina. O pedido estava sendo analisado pelo juiz
De Sanctis, que voltara de férias, quando o delegado trouxe uma nova
notícia. A investigação passaria a ser comandada, a partir dali, por um
delegado de quarenta e oito anos, na PF desde 1999. E a primeira medida
do novo delegado foi discordar da interrupção do grampo no IP. Pelo
contrário, insistiu e obteve a prorrogação judicial.
Protógenes Pinheiro de Queiroz nasceu na mesma Salvador de
Dantas, em maio de 1959, filho de Rita Francisca de Paula, descendente
de escravos, e de Felippe Pinheiro de Queiroz, nascido em 1898. Depois
de deixar a Marinha, onde serviu como terceiro-sargento e instrutor de
aviação naval, Felippe foi delegado de polícia no interior da Bahia. Era
um antiamericano convicto. Em casa não entrava Coca-Cola, um produto
ianque inventado para viciar a juventude do Terceiro Mundo, e os filhos
não podiam ler histórias em quadrinhos, para se protegerem das “ideias
burguesas”. Felippe batizou seu segundo filho com Rita em homenagem
ao amigo almirante Protógenes Pereira Guimarães (1876-1938), um dos
líderes da revolta tenentista de 1922.
Da Bahia, a família seguiu para o Rio, onde Felippe e Rita tiveram um
tumultuado divórcio. Protógenes ficou com a mãe, que trabalhou para
sustentar os filhos. Em dezembro de 1984, Protógenes formou-se em
direito e, cinco anos depois, fez a pós-graduação na UFF (Universidade
Federal Fluminense). Ele recebeu, com três anos de atraso, a notícia de
que o pai havia falecido em São Paulo, em 1986. O delegado chegou a
procurar, mas nunca encontrou a sepultura do pai. Após catorze anos de
advocacia, Protógenes foi aprovado em 1998 no concurso para delegado
da PF. À sua sócia disse que iria “prender corruptos”.159
Protógenes foi designado para o Acre, onde conheceu o procurador
Luiz Francisco de Souza e participou da primeira fase das investigações
sobre o deputado Hildebrando Pascoal, acusado de mandar matar
desafetos. Depois, foi enviado ao Paraná para substituir o delegado que
cuidava do caso Banestado. O desempenho lhe rendeu a fama, na PF, de
conhecedor de crimes financeiros. Quando o delegado Paulo Lacerda
assumiu a direção-geral da PF, em 2003, Protógenes caiu nas suas
graças, pois Lacerda era especialista na matéria. Antes de ser policial,
Lacerda havia trabalhado na contabilidade do banco Nacional. Na PF,
rastreou as contas do caso PC-Collor. O diretor-geral convidou
Protógenes para um cargo em Brasília, na poderosa Diretoria de
Inteligência Policial.
Lacerda depositou muita confiança em Protógenes. Designou-o para
uma investigação sobre o então deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) e
depois para operações sucessivas que investigaram o acusado de
contrabando Law Kin Chong.
Certo dia, Protógenes ouviu de Lacerda que, finalmente, a PF tinha
pistas precisas sobre os tentáculos da Kroll no serviço público. Eram os
resultados da Chacal.
“A gente sempre ouviu que a Kroll cooptava funcionários da Polícia
Federal, da Receita. Sabíamos que eles tinham montado uma rede de
espionagem, funcionava como uma sucursal da CIA no Brasil.”160
Mas Protógenes ainda não entrou no caso, seguiu com suas próprias
investigações. Em março de 2005, jornalistas da revista Veja começaram
a investigar um esquema de venda de resultados em jogos de futebol.
Um dos envolvidos era o árbitro Edilson Pereira de Carvalho. O jornalista
André Rizek esteve com os promotores do Gaeco, um grupo de combate
ao crime organizado, e lhes passou as informações que apurou.161 Os
promotores deram início a uma investigação, mas os jornalistas, ao
perceberem a pouca estrutura disponível no Gaeco para interceptações
telefônicas, procuraram também a PF. Paulo Lacerda decidiu colocar
policiais federais à disposição do Gaeco e destacou Protógenes para
liderar a investigação na PF. Em setembro, contudo, Rizek foi avisado
“por uma fonte” de que Protógenes planejava acelerar o caso para
prender o árbitro da seguinte forma: “Descer de helicóptero no gramado,
durante o intervalo de um jogo apitado por Edilson, para prendê-lo em
rede nacional: um show de pirotecnia”. Sentindo-se “traídos”, os
jornalistas decidiram publicar a reportagem na primeira oportunidade,
dando origem ao escândalo batizado de Máfia do Apito.
Protógenes deu outra versão sobre o episódio. Ele disse que soube,
por intermédio de Lacerda, que a revista Veja iria publicar a reportagem
antes do que o delegado considerava ser “o momento ideal”. “O dr. Paulo
me informou: ‘Porra, vai estragar a operação’. Vou e converso com ela
[uma jornalista da revista Veja], falo da gravidade do prejuízo que ia dar
para a investigação.”
Segundo o delegado, a jornalista não aceitou o acordo e avisou o que
iria fazer. O material foi publicado, um furo da revista. A PF prendeu
Edilson no dia seguinte.
No final de 2006, Lacerda chamou Protógenes para investigar o
Opportunity.
O doutor Lacerda me disse que a operação era da Presidência da
República, que a Presidência tinha interesse em acabar com o
esquema do Dantas. Lula chamava o Dantas de “escroque”.
Diziam que “eles estão chantageando, e agora ficou pior, agora
conseguiu chegar ao filho de Lula, na história da Gamecorp, e
está insuportável”; que a Kroll tinha conseguido fazer uma
sucursal da CIA no Brasil. Consideravam que havia um forte
indício de que queriam desestabilizar o governo Lula. Era isso o
que me diziam. Entendi que a missão veio como um problema de
Estado — de o Brasil e o governo não serem submetidos a
chantagens.162
Embora apoiado pela direção da PF, Protógenes não era um consenso
dentro da polícia. Membros de uma estrutura marcada pela rígida
hierarquia, os policiais federais de olho na carreira não gostavam de
colegas que “corriam por fora”, os “independentes”. A projeção de
Protógenes nos meios de comunicação ampliou a rejeição interna e a
carga de ciúmes. Por outro lado — e disso ninguém podia discordar,
mesmo os que sussurravam desqualificações nos corredores —,
Protógenes levava suas missões até o fim, a qualquer preço. Law foi
preso, Maluf foi preso, o juiz da Máfia do Apito foi preso. Protógenes era
alguém que os chefes suportavam, pois trazia resultados. Até que os
chefes começaram a mudar.
Thomaz Bastos, o principal apoiador de Paulo Lacerda, pediu
exoneração do Ministério da Justiça em março de 2007. Lacerda
continuou na direção da PF até que, no dia 4 de junho, uma equipe de
policiais federais fez um movimento muito arriscado do ponto de vista
político. Com ordem judicial, eles invadiram a casa de um irmão do
presidente em São Bernardo do Campo (SP). A notícia provocou ondas de
choque no meio político. “Genival Inácio da Silva, o Vavá, está sendo
covardemente linchado porque é irmão do presidente da República”,
protestou o jornalista Elio Gaspari, em sua coluna na Folha e O Globo.
Vavá e seu filho mantinham “uma amizade antiga”, como a família
contou à imprensa à época, com o empresário Dario Morelli Filho, por sua
vez ligado a um empresário de caça-níqueis de Campo Grande (MS),
Nilton Servo. A PF interceptou conversas telefônicas entre Vavá e Dario.
Numa delas, Vavá pedia R$ 2 mil para Servo. Ele também apareceu
prometendo resolver isso ou aquilo em favor do empresário. Foi indiciado
pela PF por suposto tráfico de influência no Executivo e exploração de
prestígio no Judiciário.
Ao final da apuração, a Procuradoria da República em Mato Grosso do
Sul apresentou denúncia contra trinta e nove investigados na Operação
Xeque-Mate, mas excluiu o irmão de Lula. A parte que tratava dele foi
remetida para a delegacia da PF em São Bernardo do Campo, para que
fosse aprofundada — não se sabe o destino desse inquérito, sigiloso.
Por falta de provas ou de sintonia com os procuradores da República,
o fato é que a polícia ficou sozinha. A lógica que comandou os policiais do
caso foi a de que ninguém está acima da lei. Se Vavá era irmão do
presidente, paciência, seria tratado como qualquer investigado. A PF
havia invadido a casa de centenas de pessoas até aquela data, então,
uma a mais ou uma a menos não fazia diferença. Busca e apreensão não
significam culpa, apenas a necessidade de se recolher eventuais provas.
Mas logo ficou óbvio que Vavá não era um suspeito qualquer. A barra
pesou dentro da polícia, com acusações de excesso e vários pedidos de
explicação feitos pelo Ministério da Justiça.
Anos mais tarde, Lula confirmou toda sua contrariedade com o caso.
E revelou que agiu, embora não tenha explicado de que forma.
“Sei de abusos que houve. Tomei cuidado para que não houvesse
outros abusos. Você não entra na casa das pessoas sem mais, sem
menos, achando que a pessoa é [um] ladrão.”163
Apenas noventa dias depois da ação na casa de Vavá, Paulo Lacerda
estava no Rio Grande do Sul, participando de um seminário organizado
por entidades empresariais, quando recebeu, por volta das 14 horas, uma
ligação do Palácio do Planalto para regressar imediatamente a Brasília.
Lacerda pegou carona num avião da FAB e, do aeroporto, seguiu direto
para o Planalto. Saiu de lá já fora do cargo. A imprensa repercutiu as
informações oficiais de que Lacerda já pensava em deixar o cargo desde a
saída de Thomaz Bastos, mas a convocação dele às pressas a Brasília
contradiz essa explicação.
Lacerda foi designado para a chefia da Abin, vinculada ao Palácio do
Planalto. Pouco antes de assumir o cargo, ele deu uma declaração
singular, registrada no final de uma reportagem da Agência Estado, cuja
verdadeira dimensão só seria compreendida um ano depois, após a
deflagração da Satiagraha. Segundo Lacerda, uma de suas principais
metas na Abin era aproximá-la da PF, “pondo fim a uma falta de sintonia
inexplicável entre órgãos de inteligência do governo”. Ninguém pode
acusá-lo de não ter avisado.
A saída de Lacerda da PF teve reflexos profundos nos rumos da
Satiagraha, que àquela época contava com apenas sete meses de vida e
ainda muito chão pela frente. Uma consequência foi acionar, na cabeça
de Protógenes, todos os sinais de advertência. Ele passou a se perguntar
se o caso sofreria entraves na PF e se ele podia confiar em seus novos
chefes. Protógenes também passou a dizer que a direção da PF não
estava se importando muito com sua missão.
Os tempos eram outros, ele não tinha uma avaliação pessoal do
diretor-geral e não era mais chamado à sala para despachos que
tratavam de “assuntos de Estado”. Protógenes era considerado um bom
policial, mas seus chefes achavam que ele devia estar sob vigilância
contínua. E agora ele teria de se entender com um chefe completamente
diferente.
O novo diretor-geral, Luiz Fernando Corrêa, foi agente por quinze
anos e delegado desde 1995, sempre na área de combate a
entorpecentes. Ele e sua equipe deram início ao programa Guardião, o
fantástico banco de dados da PF que armazena e organiza interceptações
telefônicas realizadas em todo o país por ordem judicial. No governo Lula,
Corrêa foi chamado por Thomaz Bastos para ocupar a Secretaria Nacional
de Segurança Pública, onde executava as diretrizes do Plano Nacional de
Segurança Pública, principalmente a criação de gabinetes de gestão em
conjunto com as secretarias estaduais de segurança pública.
Portanto, quando voltou à PF para assumir o seu comando central,
em 2007, Corrêa estava quatro anos afastado do dia a dia da polícia. Sua
atividade no Ministério era estratégica, muito diferente de orientar e
acompanhar um inquérito policial de alto poder de combustão.
Além disso, Corrêa foi orientado por Genro a “evitar a
espetacularização” das ações da PF. Isso Corrêa deixou claro bem no dia
de sua posse, num duro discurso proferido ao lado de Lacerda. Ele
também exonerou todos os principais indicados por Lacerda nos estados e
na sede da PF. A transição traria graves problemas para Protógenes.
A Satiagraha foi a primeira — e última — operação coordenada por
Protógenes na gestão Corrêa. Como não contava mais com Lacerda na
PF, passou a dizer que estava isolado. Assim, foi quase natural a decisão
de pedir ajuda ao seu protetor. Lacerda já havia confidenciado a
jornalistas que deplorava Dantas e que não descansaria enquanto não o
colocasse na cadeia. Dantas estava na origem da reportagem sobre a
falsa conta bancária a ele atribuída no exterior. Em “novembro ou
dezembro de 2007”, Lacerda encontrou-se com Protógenes na sede da
Abin, em Brasília. Meses depois, Lacerda revelou: “O dr. Queiroz
reclamou que o efetivo estava diminuído e que ele estava com
dificuldades”.164
Lacerda indagou se o colega queria que a reclamação fosse
encaminhada a Corrêa. Protógenes “achou ótima” a ideia.
Lacerda marcou uma audiência com o novo diretor-geral e fez os
pedidos de Protógenes.
“O dr. Luiz Fernando agradeceu e disse que já estava dando
condições de trabalho ao dr. Queiroz, mas que iria verificar junto à DIP
[diretoria de inteligência] para atendê-lo no que fosse preciso.”
A reunião foi confirmada por Corrêa em depoimento que prestou à
PF. Diferentemente da versão de Lacerda, contudo, Corrêa não referiu
qualquer crítica que Protógenes tenha feito. Mas, de fato, o encontro foi
“específico” para tratar da Satiagraha, disse Corrêa:
O dr. Paulo reportou um panorama geral da investigação
destacando que Daniel Dantas tinha atribuído falsamente a ele e
ao presidente da República a titularidade de contas no exterior
[...] Reportou, ainda, que contra Dantas existia uma investigação
que estava a cargo do delegado Protógenes, tendo solicitado que
o depoente [Corrêa] mantivesse a equipe e desse todo o apoio
necessário.165
Ao tomar posse, Corrêa mandou transferir casos que tramitavam na
DIP para outras diretorias da PF que tivessem a “atribuição natural” de
apurar os crimes de determinado inquérito. Por essa lógica, o inquérito
da Satiagraha deveria sair da DIP para a DCOR, que combate o crime
organizado, mais especificamente para a subordinada DFIN, divisão de
crimes financeiros, uma seção da DCOR. Contudo, disse Corrêa, tendo em
vista o pedido de Lacerda, ele “decidiu manter [a Satiagraha] na DIP,
para que não houvesse qualquer interrupção nos trabalhos”. Isso não
duraria muito.
A direção da polícia tinha a expectativa de que o caso Satiagraha
fosse encerrado até março de 2008, data limite para a operação sair às
ruas. Protógenes teria de se entender com o diretor da DIP, Daniel
Lorenz de Azevedo. Ele começou na PF em 1981 como agente, tornou-se
delegado em 1996 e assumiu a DIP em 2007, uma semana após a posse
de Corrêa. Lorenz recebeu a orientação de Corrêa de que a DIP só
atuaria, a partir dali, “em condições excepcionais, focando sua atuação na
análise estratégica e nas atividades de contrainteligência e
contraterrorismo”. Só a Satiagraha ficou sob as asas da DIP, numa
cortesia a Lacerda.
A desidratação da DIP era diametralmente oposta à gestão de
Lacerda, que concentrou na DIP as operações mais sensíveis e de maior
repercussão política, como a Anaconda, que prendeu um juiz em São
Paulo; a Navalha, que apontou fraudes em licitações de obras, e a própria
Chacal. A DIP teria agora “uma atividade de assessoria ao nosso dirigente
maior, aos escalões superiores, ao sr. ministro da Justiça e,
eventualmente, até ao presidente da República, com documentos de
inteligência”. Entretanto, Lorenz reconheceu, depois, que duas operações
foram organizadas pela DIP no mesmo ano de 2008, uma para apurar o
furto de computadores da Petrobras, no Rio, e outra “conduzida de
maneira muito discreta sobre possível extorsão mediante sequestro de
familiares do sr. presidente da República.”166
Lorenz informou a Protógenes que deveria se reportar diretamente a
ele, e não mais a Corrêa.
Tanto Lorenz quanto Corrêa confirmaram uma reunião feita com
Protógenes, a pedido dele, na qual o delegado também pleiteou “a
manutenção da estrutura que vinha utilizando”. Lorenz pediu a
Protógenes um relatório completo sobre a situação da Satiagraha. Aí se
deu o primeiro atrito entre chefe e subordinado. Em outubro de 2007,
Protógenes entregou-lhe um documento de cinco parágrafos que trazia
apenas informações genéricas. Lorenz, por achá-lo irrelevante, não
queria nem receber o papel e só o fez por insistência de Protógenes.167
O delegado pediu que Lorenz assinasse um “recibo” de recebimento do
papel. Aquilo também incomodou muito Lorenz.
Lorenz considerou que Protógenes “não gostou da nova sistemática
que fora adotada, na qual ele já não podia reportar os assuntos da
operação diretamente ao diretor-geral”. Protógenes lhe deu informações
“de maneira verbal [...] de forma vaga, sem revelar o que exatamente
estava acontecendo”.
Mas Lorenz reconheceu que Protógenes enviou seguidos ofícios para
pedir determinados apoios da DIP. Após a Satiagraha, Protógenes
denunciou que os recursos escassearam e não houve pessoal suficiente
para dar conta da montanha de informações acumuladas sobre o
Opportunity. Lorenz respondeu: “Foram recebidos diversos memorandos,
sendo eles atendidos em quase sua totalidade, uma vez que o
atendimento a alguns pedidos não dependia apenas da DIP”.168
A sistemática da indicação dos policiais para a equipe da Satiagraha
também mudou. Até setembro de 2007, a equipe de Protógenes, que se
autodenominava “Alpha”, podia apresentar os nomes diretamente a
Lacerda. Isso dava celeridade à investigação. Foi assim que a equipe
conseguiu o apoio de um perito especializado em criptografia para
trabalhar em Brasília sobre o HD do Opportunity. Com a chegada da nova
direção na PF, contudo, a equipe não podia mais indicar nomes. Eles
passaram a ser decididos na cúpula da PF. Cada novo policial que
chegava constrangia a equipe “Alpha”, como relatou um dos
investigadores: “Isso significava simplesmente que a pessoa indicada pela
DIP estaria ali apenas para bisbilhotar o que estávamos fazendo e até
onde havíamos chegado nas investigações”.
A PF passou a atrasar o pagamento de fornecedores ligados à
Satiagraha, como o administrador do hotel São Paulo Inn, no centro. O
hotel deu à equipe um quarto duplo, depois transformado numa grande
sala, e mandou instalar uma grade de ferro na entrada do aposento. A
partir de setembro de 2007, o hotel registrou atrasos nos aluguéis.
Mesmo assim, o administrador manteve a polícia nos quartos. Dizia aos
policiais que, por terem prendido “gente importante” como Maluf, estava
“orgulhoso” de vê-los trabalhando no hotel.
A Satiagraha tinha quatro carros à disposição, um em Brasília, um no
Rio e dois em São Paulo. Com idade média de oito anos, os veículos
passavam por manutenção cara e constante, a cargo de um empresário
dono de três mecânicas e uma funilaria no litoral paulista. Os
pagamentos ao mecânico atrasaram até trinta dias, o que desmoralizava
a equipe (o mecânico manteve os serviços mesmo assim e, por isso, mais
tarde, recebeu um cartão de congratulações de “amigo da Polícia
Federal”). Os policiais disseram que, entre novembro de 2007 e março de
2008, a PF distribuiu viaturas novas para várias equipes, mas a
Satiagraha ficou de fora. Uma das principais operações em andamento na
PF brasileira também se queixava da falta de instrumentos prosaicos,
como um gravador digital, uma câmera fotográfica, uma filmadora digital
e binóculos.
No final de 2007, “Alpha” teve mais problemas. “Houve um rodízio no
período de férias, e os policiais que estavam conosco não tinham suas
ordens de missão renovadas. O DG [diretor-geral] não recebia o
coordenador [Protógenes] para se atualizar da investigação, pois a
operação estava ligada à DIP, hierarquicamente vinculada ao DG.”169
Depois, Protógenes também falou sobre a falta de pessoal. No
primeiro depoimento à CPI dos Grampos, em agosto de 2008, ele pegou
leve. “Dentro dessa reestruturação que ocorreu em termos de recursos
humanos, houve aí uma dificuldade até pelo recrutamento de pessoas
para virem trabalhar nas missões, enfim, toda uma reavaliação do que
seria [necessário] [...] Então, é critério da própria administração.”
Em outro depoimento, prestado quando ele já havia sofrido uma
devassa em sua vida determinada pela Corregedoria da PF, o delegado foi
mais incisivo:
Até ter uma adaptação, evidentemente, tem uma dificuldade, mas
o que causou estranheza foi a perpetuação dessa dificuldade [...]
De início, eu entendia que seria uma questão burocrática, mas,
com a execução da operação, fatos me revelaram que teriam que
ter [sic]uma investigação melhor da Polícia Federal mesmo, e
também do Ministério Público Federal, a respeito das tentativas
de obstrução na operação.
O clima de desconfiança piorou no final de 2007, após a divulgação
de uma entrevista concedida por Corrêa a um jornal da Capital Federal, o
Caderno Brasília. A reportagem da jornalista Rafania Almeida ressaltava a
troca de inúmeros delegados da “velha guarda” na PF e trazia uma
entrevista na qual Corrêa não deixava dúvidas: “Cada geração tem um
papel a cumprir. Cumpriu, sai fora”.
Então com quarenta e nove anos, Corrêa atacou os delegados mais
antigos e expôs uma divisão no órgão, num raro e explícito atestado das
complicadas relações de poder dentro da PF: “Foi prolongada a
permanência de uma geração que já deveria ter saído. Houve
acomodação. Faltam dois anos para eu me aposentar, e inclusive o
Lacerda também passou do tempo de se aposentar. A geração que se
protelou é que se represou. Não foi a minha que chegou e excluiu”.
Mas, para os investigadores da Satiagraha, o pior estava no final da
entrevista, na última pergunta. A jornalista indagou: “Existe uma
operação da PF, denominada Gutenberg, que apura, justamente,
irregularidades na mídia, vinculada inclusive com o banqueiro Daniel
Dantas. Ela foi suspensa ou ainda será realizada?”.
A resposta de Corrêa desabou sobre a cabeça da então secretíssima
operação:
Existe uma guerra de interesses entre as partes envolvidas.
Estamos investigando os fatos. Ela não foi suspensa, mas é muito
complexa e tem uma ramificação muito densa e está sendo
processada. Haverá uma reunião nos próximos dias para
analisarmos e determinarmos os focos para desmembrá-la e
agilizar o processo. Vai se arrastar por um bom tempo, mas vai
acontecer.170
Corrêa falou em “desdobramento” e em um processo “que vai
acontecer”, ou seja, afirmou que uma operação seria desencadeada. Para
bom entendedor, meias palavras mais do que bastaram: Daniel Dantas
estava, de novo, sob a mira da PF.
Dois anos depois, Corrêa disse não perceber nas suas palavras
nenhum vazamento de informação, ainda que involuntário.
As revistas daquela semana estavam naquela guerra, uma de um
lado, outra de outro, e isso foi o que fomentou a pergunta dela. E
eu acho que a minha saída foi uma saída habilidosa, porque eu
sabia que tinha a investigação, lógico que eu sabia, mas, ao
mesmo tempo, eu estava dizendo que ela [...] A mídia está
também muito enfronhada naquilo ali, pelo papel, até, que o
grupo dele [Dantas] tem em alguns veículos. Isso é público e
notório. Então, a mensagem que eu ia dar era: “a investigação ao
seu tempo” [...] Foi uma pergunta de momento e tu está
trazendo [a dúvida], nunca vi com uma relevância, não.171
A Justiça Federal cobrou respostas sobre a Satiagraha. A pedido de
Protógenes, Lorenz o acompanhou em uma reunião no gabinete do juiz
substituto da 6ª Vara, Márcio Millani. O juiz pediu a Protógenes que
apresentasse “de maneira clara e conclusiva os resultados de suas
investigações”.172 No carro até o aeroporto, Lorenz disse achar que o
juiz “não estava muito convicto”. Protógenes respondeu que iria
apresentar os dados necessários em tempo hábil. A cena dos dois
delegados conversando sobre a qualidade das provas da Satiagraha
contradiz a ideia disseminada posteriormente pela cúpula da PF de que
Protógenes fechou para si todo o trabalho.
Contra a Satiagraha também corria o tempo. Corrêa e Lorenz ainda
aguardavam que a operação fosse deflagrada até março de 2008. Quase
todos os dias Lorenz e Protógenes se cruzavam nos corredores da sede da
PF, e o chefe indagava sobre o andamento do caso. Deve ser estranho
para o leitor saber que uma investigação policial de tal amplitude tivesse
um prazo para acabar, como se fosse uma conta matemática. Mas foi isso
o que ocorreu no caso Satiagraha. Como tinha começado formalmente
em fevereiro de 2007, o prazo fornecido pela direção da PF foi de doze,
no máximo treze meses.
Protógenes estava determinado a levar adiante o que chamava de
“missão presidencial”. Ele foi novamente buscar apoio em Paulo Lacerda,
na Abin. Os dois se encontraram uma vez no dia 25 de fevereiro e duas
vezes no dia 4 de março.173 Os encontros duraram cerca de duas horas
cada um. Lacerda imediatamente aprovou a ideia de uma “parceria”.
“Eu achei que era muito bom, fiquei muito feliz até. Ora, havia,
algum tempo atrás, umas alusões a que a Abin não participava, não tinha
uma maior atuação no âmbito das atividades que ela tem capacidade e
tem legalidade para atuar.”174
Lacerda mandou colocar à disposição de Protógenes
Consulta à base de dados cadastrais sobre pessoas físicas e
jurídicas; pesquisa em fontes abertas, ou seja, internet e mídia
impressa, sobre nomes fornecidos pela Polícia Federal; análise do
material pesquisado, com a elaboração de resumos; confirmação
de endereços residenciais e de trabalho de algumas pessoas
investigadas, que inclusive exigiram levantamentos externos
pontuais.
Em março, a Abin designou um oficial graduado, o coordenador-geral
de Operações de Inteligência, José Ribamar Reis Guimarães, para os
contatos com Protógenes. Eles se reuniram pela primeira vez em 5 de
março, na sala do diretor-adjunto da Abin, José Milton Campana. Dias
depois, Guimarães enviou cinco agentes para São Paulo. Em seguida
enviou mais dois e, no dia 17, o oitavo. Todos se apresentaram a
Protógenes e passaram a frequentar, em dias alternados, a “sede” da
Satiagraha, no hotel de São Paulo. Uma equipe de agentes também foi
acionada pela regional da Abin no Rio. Mais quatro analistas de
informação passaram a atuar em Brasília. Protógenes pediu também uma
equipe em Salvador, mas não conseguiu. Com o passar dos dias, agentes
foram entrando e saindo no caso, alguns em substituição aos primeiros,
outros em pequenas tarefas de apenas poucas horas de duração. O
número total de agentes da Abin envolvidos na ação chegou a setenta e
cinco. Alguns foram transferidos do Paraná, de Minas Gerais, do Rio
Grande do Sul, do Ceará, do Pará, da Bahia, do Maranhão, do Rio de
Janeiro, de Goiás e de Mato Grosso do Sul. A agência gastou ao todo
cerca de R$ 337 mil com diárias e passagens aéreas e R$ 42 mil com
alimentação e aluguel de veículos.175
Revelado depois da operação, o número total de agentes gerou certo
alarde na imprensa. A explicação de Guimarães, contudo, terminou
escondida no emaranhado de críticas: “A Abin trabalha com uma escala.
Então, ela acaba demandando mais gente. Num trabalho que durar
quarenta dias e for necessário dez agentes por turno, no mínimo vinte
agentes trabalharão. Porque, de vinte em vinte dias, a gente troca.
Dificilmente passa de vinte dias”.176
A participação da Abin na Satiagraha durou quatro meses, de 10 de
março a 18 de julho. Basta calcular a troca do agente a cada vinte dias,
por imposição da escala, e eis que temos o número aparentemente
espetacular de arapongas envolvidos com a Satiagraha. Na prática,
contudo, o número de agentes em atividade não passava de uma dezena.
Quando a parceria decolou, em março, não houve dúvidas na Abin
sobre a legalidade do ato. Havia uma ordem direta de Lacerda, e a Abin
já havia participado de outras ações da PF, como a que retirou
garimpeiros da área ianomâmi, em Roraima, e a investigação sobre o
furto de computadores da Petrobras. Tendo dirigido a PF por cinco anos,
Lacerda também sabia que a parceria da polícia com outras áreas de
inteligência do governo Lula era um fato banal. Praticamente toda grande
operação desencadeada pela PF teve a participação de servidores da área
de “inteligência” de outros órgãos, como a Receita Federal, o Banco
Central, o Coaf (unidade de inteligência financeira do governo), o Ibama
e a CGU (Controladoria Geral da União).
Pelos lados da nova gestão da PF, contudo, a situação não era tão
clara assim. Protógenes não havia informado oficialmente a Lorenz sobre
a entrada dos arapongas no caso. Segundo ele, o silêncio se deveu ao
problema da desconfiança mútua.
Em março de 2008, quando chegou a informação sigilosa de que a
Abin iria entrar na Satiagraha, a sensação no comando da operação foi de
vitória. Protógenes enfim conseguia fazer decolar a “sua” operação. E ele
foi além. Chamou para a equipe Francisco Ambrósio do Nascimento,
quem acabara de conhecer por intermédio do terceiro-sargento do Cisa, o
centro de inteligência da Aeronáutica, Idalberto Matias de Araújo, o
Dadá. Protógenes queria contratar um analista de dados e pediu uma
indicação. Ambrósio passou a receber R$ 1,5 mil, às vezes mensais, às
vezes quinzenais, para analisar e separar e-mails apreendidos em 2004
pela Operação Chacal. Trabalhou das 8 horas às 18 horas numa sala do
5º andar da sede da PF. Para entrar no prédio, durante três dias utilizou
o crachá emprestado de uma servidora da PF. Depois, foi cadastrado com
fotografia e dados pessoais e passou a usar normalmente seu próprio
nome. Ambrósio dividia a mesma sala com mais dois servidores da Abin.
A sala ficava em frente ao escritório de Lorenz, de modo que Ambrósio
entendeu que era tudo de conhecimento oficial da corporação.
Os arapongas ajudavam Protógenes havia, pelo menos, um mês
quando Lorenz viu, no corredor da PF, Márcio Seltz, um oficial de
inteligência da Abin. Lorenz conhecera Seltz durante um seminário sobre
contraterrorismo, anos atrás. Seltz havia se apresentado a Protógenes
por ordem de seu chefe na Abin e passado também a frequentar o 5º
andar do “Máscara Negra”. Seu trabalho consistiu em analisar e separar
centenas de e-mails, descartando o que fosse desinteressante para a
Satiagraha. Os agentes da Abin também analisavam relatórios feitos com
base em escutas telefônicas, “em salas dos blocos 1 e 2 no setor de
Operações da Abin, em Brasília [...] Seltz analisava cerca de 400 a 600
e-mails por dia [...] e frequentemente despachava com o diretor-geral,
Paulo Lacerda”.177
Lorenz ficou bastante contrariado com a presença de Seltz no prédio.
Ele o chamou à sua sala, descobriu o que se passava e o liberou. Então,
chamou Protógenes, exigiu explicações e ordenou ao delegado que não
mais deixasse Seltz entrar na PF. Lorenz alegou, depois, inúmeras vezes,
que somente nesse dia soube que a Abin ajudava a Satiagraha.
Mas sua versão sobre os fatos contém um lado curioso. Após ter
tomado conhecimento da presença da Abin, Lorenz não procurou
investigar a fundo a extensão do papel da agência na Satiagraha. Ele
simplesmente tratou de Seltz, falou com Protógenes e mergulhou em
silêncio. Não procurou Lacerda nem ninguém da Abin. Sobre esse
comportamento, ele alegou que se deu por satisfeito com as alegações de
Protógenes, de que Abin prestava “meros auxílios”.178
Indiferente a tudo isso, o pessoal da Abin foi a campo. No dia 30 de
abril, José Maurício Michelone, lotado em Goiânia (GO), um servidor
concursado do Banco Central que trabalhava para o SNI-Abin desde os
anos 1970, foi orientado a se apresentar no Rio a Vicente Ernani Filho,
chefe de operações da superintendência estadual da Abin, como parte de
uma operação secreta à qual a agência dera o nome de Quero-Quero.
Michelone ficou no Rio exclusivamente dedicado ao Opportunity entre 30
de abril e 23 de maio. Ele e seus colegas receberam da PF treze
radiocomunicadores Nextel, com os quais também falavam com o
escrivão da PF Walter Guerra, em São Paulo. Eles faziam o “recom”, um
reconhecimento de endereços residenciais e comerciais por onde
transitavam Dantas, sua irmã Verônica e outros executivos do banco.
Tiraram fotografias e filmaram a sede do banco, na avenida Presidente
Wilson. Uma sequência dessas fotos mostra Dantas, de terno azul,
deixando um carro guiado por motorista. Caminha na calçada em direção
ao banco com a cabeça baixa, carregando uma mochila. Outro vídeo feito
por Michelone mostra o ex-deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh
sendo recepcionado por Humberto Braz no aeroporto Santos Dumont.
Greenhalgh trabalhava para o Opportunity.
A Abin criou três equipes, Alfa, Bravo e Charlie. Elas se revezavam
para acompanhar Dantas de sua casa para o trabalho, e vice-versa. No
fim do dia, as equipes faziam relatório de missão, o “Relami”, apócrifo,
que era enviado do Rio “para seus superiores”.
Os agentes da PF faziam atividades semelhantes. Em junho de 2007,
passaram um bom tempo vigiando Carlos Rodenburg, principal executivo
da Agropecuária Santa Bárbara, no Pará, um novo investimento
vinculado a Dantas. Fotografaram Rodenburg entrando no avião
turboélice do então senador Heráclito Fortes (DEM-PI), um ferrenho
defensor do Opportunity no Senado e amigo de Rodenburg.
Com ou sem apoio institucional, Protógenes havia montado sua
própria equipe, a sua “Brigada de Tigres”, como costumava dizer. Ele
extraiu essa expressão de um filme francês de 2006 cuja trama se passa
na Paris de 1907. O delegado distribuiu cópias do filme para a equipe.
O filme é uma ficção inspirada no grupo de policiais criado pelo
ministro do interior Georges Clemenceau, “O Tigre”. Um dos alvos da
equipe é o banqueiro Casemir Cagne. O comissário Valentin está
obcecado em prender Cagne, suspeito de fraude financeira. O policial é
procurado por Constance, princesa russa ligada a um grupo anarquista,
que havia roubado uma agenda de couro de uma companhia financeira.
Na agenda estavam, em código, os nomes de políticos envolvidos numa
fraude com títulos públicos da Rússia. Constance quer ajudar Valentin,
mas não pode lhe entregar a agenda, pois a origem é ilegal. Ela sugere
que a prova seja “plantada” na casa do banqueiro, para uma posterior
apreensão. O investigador concorda, usa uma prostituta para colocar a
caderneta na casa, consegue uma ordem judicial e invade a casa. A
repercussão é imensa. O chefe de Valentin, Faivre, reclama: “O juiz não
para de ligar. Meia república está no pé dele”. O livro era criptografado, e
a perita diz que precisará de anos para decifrá-lo.
Os policiais coagem Cagne, enquanto outra parte da polícia se move
para soltá-lo, com apoio do chefe da polícia de Paris, pois “todos os
bancos estão fazendo o mesmo” que Cagne. O banqueiro é solto. Os
policiais brigam entre si. O chefe Faivre reage: “A Brigada não pode mais
acobertar seus excessos”. Com a ajuda dos anarquistas, que torturam e
matam Cagne, Valentin consegue decifrar os códigos da caderneta. O
chefe da polícia acusa Valentin de “ameaçar a segurança do Estado,
prisão arbitrária, violência”. Depois de outras peripécias, Valentin se
encontra com Constance, então na prisão, que lhe diz: “Você quer mudar
o mundo? Não entendeu que é impossível?”.
Um banqueiro que é preso e solto em questão de dias, provas
criptografadas, um policial perseguido pela própria polícia, um
investigador que extrapola a lei e “meia república” perturbada. Tudo
parecia uma ficção de má qualidade.
Caçada ao Japu
“O Daniel Dantas tem relações sociais, apoios no Congresso, na classe empresarial,
na imprensa. Digamos que ele ‘se vira’.”
Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado e ex-deputado federal, ao
portal de internet Terra, em 2008, sobre como é defender Dantas
nos tribunais.
Em março de 2007, quando Protógenes assumiu a Satiagraha, ela
ainda não tinha esse nome. A investigação existia na forma de três
procedimentos separados, mas tramitando por dependência na mesma 6ª
Vara. Protógenes batizou o caso com a expressão que achou numa
biografia do líder pacifista Mahatma Gandhi (1869-1948). Com o objetivo
de encontrar uma designação única para o conjunto de suas ideias de
resistência pacífica, Gandhi lançou uma enquete no jornal Indian Opinion.
Um leitor chamado Maganlal Gandhi sugeriu “sadagraha”, junção de “sat”
(verdade) com “agraha” (firmeza). Gandhi modificou para “satyagraha”,
“que desde então se tornou corrente em [língua] gujarate como
designação de luta”.179
Protógenes não tinha um ponto fixo de trabalho. Vivia se mexendo
entre a base no hotel São Paulo Inn, um flat na rua Batatais, nos Jardins,
um apartamento no hotel Shelton, no centro, um quarto no hotel
Guanabara, no Rio, uma sala no Setor Policial Sul, em Brasília, ao lado
da Superintendência da PF no DF, e a sala do 5º andar da sede da PF,
onde funcionava a DIP. O delegado dizia ser uma forma de confundir
colegas da PF que poderiam vazar dados da investigação.
Protógenes atuou na Divisão de Contrainteligência da DIP. Um dos
truques ali aprendidos é enviar sinais externos contraditórios para
desorientar o alvo da investigação. O delegado acreditava que, se
dormisse no Rio, viajasse pela manhã a Brasília e, no outro dia,
almoçasse em São Paulo, poucos seriam capazes de dizer em que
inquérito ele estava, de fato, trabalhando. Protógenes dizia praticar a
desinformação: “Consiste em manipular os conhecimentos e/ou dados
sigilosos que são objeto, real ou potencial, de uma ação de espionagem,
com o propósito de iludir ou confundir o agente adverso”.180
Já os críticos do delegado viam nas viagens apenas um
esbanjamento. Entre janeiro de 2008 e 7 de julho, Protógenes viajou
vinte e uma vezes entre Rio, São Paulo e Brasília.181
Protógenes criou apelidos para os investigados. Nos pedidos de
interceptação e prorrogação enviados ao Judiciário, era o que aparecia,
ao lado do número telefônico. Os policiais de fora da Satiagraha e os
funcionários das companhias telefônicas que lessem esses nomes não
conseguiriam relacioná-los a Dantas. O banqueiro foi apelidado de Japu,
ave também conhecida como rei-congo e fura-banana. A irmã do
banqueiro, Verônica, era a Jaguatirica, um felino, enquanto o investidor
Naji Nahas foi chamado de Jararaca, uma serpente peçonhenta. Um dos
principais assessores de Dantas, Humberto Braz, que logo exerceria papel
capital na história, era chamado de Jacutinga 2, uma ave, enquanto Luiz
Greenhalgh era o Jacu 2, outra ave.
Até a chegada de Protógenes, a investigação havia obtido dois
avanços: a ruptura do lacre e consequente análise do HD do Opportunity
e a interceptação de toda a comunicação pela internet. Foram reunidos
101 gigabytes de informação. Em 26 de julho, Protógenes também
conseguiu do juiz Millani a autorização para fazer os grampos telefônicos.
Portanto, a interceptação dos telefones dos executivos do Opportunity
durou pouco menos de um ano, um período longe de representar
anormalidade, em 2008.
Protógenes também pediu autorização para obter senhas das
operadoras de telefonia que permitissem a ele e quatro policiais federais
um acesso irrestrito aos cadastros dos assinantes e histórico das
chamadas. Isso daria celeridade ao trabalho da polícia. O juiz De Sanctis
e seu substituto autorizaram, e as operadoras de telefonia cumpriram a
determinação sem apresentar dúvida. Só em novembro, cinco meses
depois, a Vivo apontou, em ofício, que a senha dava margem a abusos,
com “a possibilidade de uma devassa na comunicação do usuário”. De
Sanctis entendeu que não havia provas de que alguma invasão ilegal fora
cometida pelos policiais.
O assunto voltou após a deflagração da Satiagraha. Com base em
reportagem da Folha, o deputado Raul Jungmann (PMDB-PE) representou
contra De Sanctis no CNJ (Conselho Nacional de Justiça). O corregedor
Gilson Dipp mandou arquivar a representação, pois não encontrou
nenhuma falta disciplinar do juiz. O fato de a senha possibilitar a quebra
indiscriminada de sigilo não significa que isso foi praticado. A senha é
uma arma, mas o seu mero não significa um assassinato.
Em dezembro, a Satiagraha passou às mãos da procuradora da
República Adriana Scordamaglia. Ela manifestou muitas dúvidas sobre o
caso e questionou duramente o desempenho de Protógenes.
Requer
o
MPF
que
a
autoridade
policial
indique,
pormenorizadamente, quais são as provas, até então coletadas,
que demonstram, concretamente, indícios da prática de crime
pelas pessoas em investigação, já que da análise do contido no
procedimento não vislumbro fato palpável que mereça/imponha a
continuidade da diligência investigativa.
Após uma rápida descrição sobre o Opportunity e a Chacal,
Protógenes escreveu um parágrafo de difícil compreensão. “O presente
trabalho difere do trabalho comum de investigação, em que os dados são
coletados normalmente sem uma situação excepcional que justifique, que
não é o caso aqui presente.”
Protógenes seria muito criticado pela falta de clareza nos relatórios.
Naquele parágrafo, o delegado pareceu pretender dizer que,
diferentemente das investigações “normais”, a Satiagraha não tinha um
fato específico na origem, era produto de um conjunto de evidências
coletadas pela PF desde, pelo menos, 2004. Uma afirmação, de qualquer
forma, polêmica.
A procuradora Adriana ficou contrariada. “Infelizmente, ainda que as
pessoas em investigação nesses autos sejam conhecidas por seu passado
criminoso, até agora, não existe nada, ainda que indiciariamente, que
demonstre necessidade da continuidade da investigação e, sobretudo, a
viabilidade da futura acusação.”
Após novas explicações de Protógenes, a procuradora concordou em
prorrogar as interceptações telefônicas.
Tal choque entre Protógenes e a procuradora está longe do quadro
pintado posteriormente — de que PF e procuradores formaram, durante a
Satiagraha, um “consórcio”, no qual tudo o que um dizia, o outro
chancelava. O processo demonstra que a relação, pelo contrário, teve
momentos de grande conflito. Além do atrito com Adriana, Protógenes
também teve de ir a São Paulo dar explicações pessoais ao juiz Millani.
O relacionamento entre delegado e Ministério Público melhorou com
a chegada ao caso de um jovem, porém experimentado procurador, que
já havia trabalhado com o delegado em casos anteriores. Rodrigo de
Grandis considerava Protógenes “um bom delegado”, que respondia
satisfatoriamente às dúvidas do Ministério Público. Eles começaram a
colocar a Satiagraha em pé.
Nascido em São Paulo em 1976, numa família de classe média, De
Grandis se tornou promotor de Justiça em 2003, cargo em que participou
de mais de uma dezena de tribunais do júri. Foi aprendendo a dinâmica
de um inquérito, vendo os erros e acertos. Em 2004, foi aprovado no
concurso para procurador da República e designado para atuar nas varas
criminais de São Paulo. Seu primeiro caso de repercussão resultou na
prisão do ex-governador paulista Paulo Maluf, cumprida por Protógenes.
A dupla também investigou o magnata russo Boris Berezovsky sobre
suposta lavagem de dinheiro na parceria entre a empresa MSI e o
Corinthians. Aproveitando uma passagem rápida do russo pelo Brasil, e
avisado por De Grandis, Protógenes o conduziu “coercitivamente” até a
sede do MP, onde prestou depoimento. Berezovsky, que vivia em
Londres, teve de ser liberado, pois não havia ordem internacional de
captura. O processo estava aos cuidados de De Sanctis. O governo de
Vladimir Putin, um inimigo do magnata, ficou tão feliz com a história que
convidou Protógenes para uma viagem de algumas semanas ao país. O
delegado viajou bastante por toda a Rússia. O mesmo convite foi feito a
De Sanctis, que, contudo, preferiu não aceitar.
É hoje notável perceber que os dois polêmicos personagens das ondas
privatizantes que varreram a Rússia e o Brasil na década de 1990,
Dantas e Berezovsky, estiveram sob a mira do mesmo trio Protógenes,
De Sanctis e De Grandis.
Após assumir a Satiagraha, De Grandis passou a conversar mais com
Protógenes.
Na minha percepção, era alguém que dialogava com os colegas e
comigo, que trabalhava em equipe. Ele me disse que tinha sido
perseguido e também falou sobre a falta de recursos, mas eu pedi
mais elementos para investigar isso. Os elementos não foram
entregues. De resto, era um trabalho profissional, normal, não
tinha nada que chamasse a minha atenção.
No início de 2008, vieram ao inquérito os primeiros frutos das
conversas em voip interceptadas no IP do Opportunity. A maior parte dos
diálogos ocorreu quando Dantas estava em Nova Iorque participando de
audiências na Justiça americana vinculadas a uma disputa judicial com o
Citibank. Os americanos queriam ser indenizados em virtude de
problemas na relação com o Opportunity; quebra de dever fiduciário era
o principal.
Os telefonemas trouxeram à tona, pela primeira vez, a questão do
alter ego, ponto que seria relevante na conclusão da Satiagraha.
Segundo a PF, o banco criava inúmeras empresas em nome de diversos
funcionários, mas todas estavam relacionadas, em última instância, às
decisões do próprio Dantas. Para a PF, esse tipo de gestão em que o
verdadeiro dirigente se esconde sob um subordinado e que decide sem
assinar os papéis que marcam as decisões seria uma ameaça ao sistema
financeiro nacional. Nos meses seguintes, a imprensa ficaria surpresa
com a correta informação, ressaltada pela jornalista Miriam Leitão, de
que Dantas oficialmente não era dono de banco algum. Segundo os
registros do Banco Central, o dono do Opportunity era Dório Ferman.
Dantas, portanto, era um banqueiro sem banco.
Em 15 de novembro de 2007, Dantas telefonou por voip para sua
irmã Verônica e comentou que uma incômoda linha de raciocínio estava
sendo levantada pelo Citibank no processo nos EUA.
“O problema é o seguinte: eles estão desenvolvendo uma tese de que
o banco Opportunity, o Opportunity Fund, tudo isso, é um alter ego. Tem
uma explicação jurídica aqui [nos EUA] sobre o que é o alter ego. O
banco claramente não se caracteriza pelo alter ego.”182
Verônica disse que, no exterior, Ferman foi o “diretor do Fund o
tempo inteiro”, enquanto que, na parte brasileira, a empresa gestora
teve a participação de Ferman “por muito pouco tempo”, saiu da empresa
em 1997, restando ela e o irmão.
“É importante o Opportunity Fund não ser alter ego”, frisou Dantas.
Verônica quis saber: “Alter ego é o quê, do ponto de vista legal?”.
“Como a gente opera aí, com esses Opportunities todos, um é alter
ego do outro. Um pega dinheiro do outro, não tem uma relação muito
estruturada, alguém manda sem ser diretor.”
Verônica indagou qual o problema de o Fund “ser alter ego”, e o
banco não.
“O Fund ser, acho que é porque vulnerabiliza a joint venture. Tem
um prob... Mas o Fund, alter ego de Dório, não tem problema, não, o
problema é ser alter ego meu.”
“Então tá. Então é melhor botar alter ego de Dório ali”, replicou
Verônica.
A história do Opportunity é marcada por tantas desavenças,
personagens, disputas jurídicas, acusações e suspeitas, que o
desconhecimento das autoridades sobre esse cipoal passou a ser
explorado por Dantas nos processos judiciais. Em outro telefonema, ele
contou que o juiz do caso em Nova Iorque enfrentava problemas para
saber quem era quem na história.
“Onde eu sei, ele [juiz] não sabe. Onde ele sabe, eu não sei. Eu vou
tentar me manter nessa proa.”183
Dantas contou que iria abordar no seu depoimento a suposta
associação da Telecom Italia, tão explorada no caso Chacal, com
corrupção no Brasil. Ele imaginou como seria a conversa: “Acho que ele
vai voltar em [tema da] corrupção, tomara. Eu estou com uma
programada aqui, ótima. Ele diz: ‘Ah, quem te informou?’ Eu digo: ‘Nicola
Piacente’. [Aí ele diz] ‘Who is [quem é] Nicola Piacente?’ Aí pronto!”
Dantas riu bastante, assim como os que o ouviam no Brasil pelo vivavoz. Piacente era o procurador italiano que cuidava do processo de Milão.
Explicou Dantas:
Se eu botar essa minhoca no anzol, ele não vai deixar de morder
[...] Se você botar informação nova, ele tem que trazer para
dentro [do processo]. Não tem jeito. E aí, com o cabedal de
personagens enormes, cada nome que bota ali, ele [...] Ele não
sabe o que é. Então eu acho que a estratégia que a gente pensou
aí está bem direitinha. Está funcionando.
O banqueiro revelou outra estratégia para embaraçar o juiz:
— Eu agora vou dizer para ele que está interrompendo minhas
respostas e, se ele quiser, eu paro [...] Eu dou um long answer
[resposta comprida], daqui a pouco ele encheu o saco e aquele
assunto já não interessa. Porque força ele a interromper o resto
do answer. Fica o cheque em branco na mão, entendeu?
— E fica bom, porque quanto mais você está dando
informação, ele não sabe quanto mais a gente tem — concordou
uma advogada.
— Ele está sempre na encrenca. Porque tem sempre pedaço
que não veio [...] Então está infernizando a vida dele porque tem
uma porção de gente com pedaço de coisa a que ele não tem
acesso, entendeu? Então ele não consegue o [quadro] completo.
Porque obviamente isso está fora do esquadro de experiência —
completou Dantas.
Dantas tornava um juiz americano um completo idiota, perdido no
meio da história. Posteriormente, quando decretou uma das prisões do
banqueiro, o juiz De Sanctis citou esse diálogo como evidência das
estratégias de Dantas.
A técnica de citar inúmeros personagens, explorar a ignorância do
interlocutor e dar longas e evasivas respostas o banqueiro adotou
inúmeras vezes no Brasil, como quando prestou depoimentos às CPIs dos
Correios e dos Grampos. Os poucos parlamentares interessados em
destrinchar as acusações simplesmente ficavam sem saber o que
perguntar. De fato, é uma história intrincada. Jornalistas boiavam
completamente, perplexos com alusões a tramas, pactos, malas de
dinheiro, um escândalo na Itália.
A PF corria o mesmo risco, e a saída era aprofundar o conhecimento
sobre as atividades do Opportunity. Nesse sentido, grandes avanços
estavam no HD do banco. Os peritos localizaram um arquivo que trazia a
descrição pormenorizada de todos os contratos de mútuo assinados entre
31 de dezembro de 1994 e 27 de outubro de 2004 pelas empresas do
grupo Opportunity, num total de R$ 465 milhões. A PF disse ser uma
violação à Lei 7.492/86, que veda à instituição financeira “tomar ou
receber [...] empréstimo ou adiantamento” de seus próprios
controladores, administradores, membros de conselhos estatutários e
seus cônjuges, dentre outros.
Um documento encontrado pela PF nos computadores do banco
indicava uma operação orquestrada pela defesa jurídica do Opportunity.
Uma tabela descrevia como cada cliente do banco estava reagindo às
dúvidas da CVM sobre o Fund nas ilhas Cayman e qual a orientação,
como a testemunha deveria se comportar quando fosse depor na CVM.
“[O cliente] falou que o Opp transferiu seu dinheiro para o exterior. Já
corrigi. Entendeu o assunto. Está tranquilo”, diz um trecho. No pé do
documento, há listas dos “advogados do Opportunity” e dos “advogados
para os clientes”, o que demonstra uma ligação entre as duas áreas.
Entre os advogados “para os clientes” estavam um escritório de São
Paulo e a seguinte anotação: “(do ministro Márcio Thomaz Bastos)”. Ele
deixou oficialmente o escritório ao tomar posse no ministério, em 2003.
Os depoimentos prestados por alguns clientes à CVM são, de fato,
extremamente parecidos, até mesmo em vírgulas e pontos.
Outra medida da PF na Satiagraha foi pedir esclarecimentos técnicos
do Banco Central. Essa resposta demorou e demorou. A ordem expedida
pelo juiz Millani em fevereiro de 2007 só produziu resultado em junho de
2008 — cerca de dezesseis meses depois. Quando os documentos
chegaram à Satiagraha, forneceram um quadro devastador sobre o
Opportunity, o que os colocou entre as principais evidências coletadas
durante a investigação. O BC havia levantado inúmeras suspeitas ao
longo de cinco anos.
Os relatórios das auditorias somam 120 páginas. O primeiro, de
2002, começa por considerar “adequadas” as políticas de treinamento de
pessoal, de “conheça o seu cliente” e “conheça o seu funcionário”. Mas os
problemas surgiram nas movimentações financeiras. Das duas contas
bancárias em nome de Dantas — descrito como “virtual controlador do
Opportunity, embora seu nome não conste no contrato social da
instituição” —, uma registrava saldo de R$ 425,4 milhões, muito embora
os extratos indicassem R$ 111,5 milhões. A ficha cadastral do banqueiro
“não dá maiores indicações da origem de seus recursos, omitindo-se os
dados de patrimônio e renda”. Nas contas das pessoas jurídicas, mais
problemas. “As deficiências que nos pareceram mais graves são as
ausências de dados de faturamento (84% da amostra) e de balanços
(apenas 16%).”
Embora o BC tenha detectado essas irregularidades, estranhamente
“não foi expedida carta final ao Opportunity”, sob a alegação de que
havia “a necessidade de análise mais profunda do possível envolvimento
da instituição com as suspeitas manifestadas pela imprensa de
movimentações irregulares de aplicadores de fundos do Opportunity”.
Em 2004, a conclusão da fiscalização do BC foi expressiva:
Percebe-se, em resumo, que o controle do sr. Daniel Dantas
sobre as empresas do grupo Opportunity se exerce de forma
indireta, por meio de empresas de participações ou por
interpostas pessoas, como a sra. Verônica, sua irmã, e o sr. Dório
Ferman, atuando como sócio oculto nesta típica sociedade em
conta de participação. Os negócios desenvolvidos pelo grupo
Opportunity seguem essa mesma lógica, associando-se, com
reduzida participação acionária e elevado poder de decisão, a
investidores estrangeiros como o Citigroup ou institucionais
(fundos de pensão) na privatização das empresas de telefonia ou
no metrô carioca.
Dório, “sócio oculto” e alter ego. O documento também ataca o caso
dos brasileiros nas ilhas Cayman: “Conclui-se, com base nas informações
coletadas, que o banco Opportunity participou ativamente no
descumprimento de obrigações previstas na legislação de competência da
CVM, que podem ter ensejado transferências irregulares de recursos de
residentes para o exterior”.
Em 2006, o BC voltou a apontar que “certas políticas adotadas pela
instituição são irregulares perante a legislação, como o não
monitoramento das contas de depósitos e a possibilidade de abertura de
contas de depósitos sem a documentação completa”.
Os auditores fizeram um pente-fino nos correntistas e encontraram,
dentre outros casos, o de um militar aposentado, com renda mensal de
R$ 9 mil e patrimônio de R$ 335 mil, que possuía uma aplicação de R$ 9
milhões; um físico, com renda de R$ 10 mil e patrimônio de R$ 642 mil,
detinha uma aplicação de R$ 17 milhões, “incompatível com o patrimônio
e renda declarados”.
O BC descobriu que um funcionário do Opportunity era o procurador
de várias contas e também “sócio de várias empresas” do banco. Ao
mesmo tempo, era o homem registrado no BC para fazer aplicar a
circular que obrigava os bancos a verificar a compatibilidade entre a
movimentação bancária e a capacidade financeira da pessoa ou empresa.
O caso do bancário representava um evidente “conflito de interesses”,
disse a auditoria.
Após o trabalho de 2006, o BC chamou os “representantes legais” do
Opportunity à sede da Gerência Técnica do Departamento de Combate a
Ilícitos Financeiros e Supervisão de Câmbio e Capitais Internacionais do
BC no Rio. O “termo de comparecimento” diz:
Em relação aos procedimentos e ferramentas de detecção,
seleção, análise e comunicação de situações suspeitas, o banco
Opportunity nunca implementou controles e tampouco efetuou
registros internos de forma a detectar operações de contas de
depósitos de seus clientes que caracterizem indício de ocorrência
de crimes previstos na Lei 9.613/98.
O documento foi assinado por dois gerentes do Opportunity em julho
de 2007 e levado, seis dias depois, ao conhecimento da diretoria e do
comitê de auditoria do banco. No mês seguinte, o banco respondeu ao BC
que estava “adotando projetos de melhoria e plano de ações”, alegou
estar “preocupado em regularizar e promover o aperfeiçoamento de
nossos controles, tendo por base as deficiências apresentadas no referido
termo de comparecimento e cientes dos riscos inerentes a eles”. Isso tudo
ocorreu apenas um ano antes da deflagração da Satiagraha.
Os documentos animaram a equipe da PF. A investigação estava
avançando, infelizmente num momento-chave para Dantas.
Em abril de 2008, o banqueiro, os fundos de pensão e o Citibank
estavam prestes a fechar um dos maiores negócios da história do país, a
venda da BrT para a Oi (ex-Telemar), o que criaria uma “supertele” logo
apelidada pela imprensa de BrOi, um negócio avaliado em R$ 13 bilhões.
Após anos de litígios judiciais e brigas abertas, Dantas e os fundos de
pensão tentavam chegar a um acordo que permitisse a saída do
Opportunity da companhia e, ao mesmo tempo, a venda das ações do
banqueiro e dos americanos para a Telemar de Carlos Jereissati e Sérgio
Andrade. No final de 2007, os fundos de pensão já haviam adquirido as
ações da Telecom Italia.
Mas o fechamento do negócio dependia de uma série de acordos
laterais entre as partes que poriam fim às disputas judiciais. Só nas varas
empresariais do Rio, havia dezoito reclamações abertas pela BrT, em
protesto contra supostas irregularidades administrativas cometidas pela
antiga gestão da BrT, e seis ações indenizatórias. Na CVM, três
representações. Havia também, no sentido contrário, diversas
reclamações do Opportunity contra os fundos.
O Opportunity, portanto, tinha problemas tão sérios com os fundos de
pensão, que só um acordo amplo e irrevogável poderia lhe dar
tranquilidade. Dantas, então, contratou o ex-deputado Luiz Greenhalgh
(PT-SP), advogado de petistas desde a época em que o PT não passava de
uma promessa, nos anos 1980. Naquele tempo das vacas magras,
qualquer ajuda de um advogado era muito bem-vinda. Ele defendeu
sindicalistas, ativistas de direitos humanos e o próprio Lula. Nesse
sentido, a cúpula do PT era uma espécie de devedora moral de
Greenhalgh. Após perder a reeleição a deputado, em 2006, Greenhalgh
voltou à advocacia e foi contratado por Dantas em abril de 2007.
Oficialmente, Greenhalgh foi remunerado com “uma parcela única”
de R$ 300 mil, por “serviços de assessoria jurídica na área do direito
penal, com ênfase para os interesses do contratante [Opportunity]
naquilo que se convencionou chamar ‘Caso Kroll’”.184
Mas o trabalho de Greenhalgh foi muito além disso. O advogado
reconheceu que
se inteirou do assunto relativo às disputas societárias envolvendo
o Opportunity, o Citibank e a Previ e posteriormente participou
da construção de uma proposta de acordo entre as partes
mencionadas [...] Também participou da confecção das minutas
de acordo, os quais envolviam termos de desistência de ações
judiciais.185
Ao prestar depoimento no Congresso, Dantas associou a contratação
de Greenhalgh não à Chacal, como dizia o contrato, mas à nova
“supertele”. O publicitário Guilherme Sodré, Guiga, indicou o advogado,
dizendo que “poderia ser útil numa negociação com os fundos de pensão”.
Dantas contou:
Nós tínhamos uma relação muito distendida com a Previ, ele
tinha uma relação boa e tentou fazer uma negociação para tentar
acabar o conflito societário existente entre nós e a Previ com a
possível compra da Previ, da nossa participação [...] Eu já tinha
feito um acordo com a Telecom Italia, nós já tínhamos percebido
que era melhor jogar a toalha e sair do setor.186
“[...] Ele foi contratado como negociador com os fundos de pensão”,
explicou Dantas. “Nosso relacionamento tinha acabado, não tínhamos
nenhum relacionamento, não tínhamos comunicação com os fundos de
pensão [...] Então, ele atuou meio como um negociador e meio como um
mediador.”
Na fase da negociação, Dantas produziu o esboço de uma proposta de
negócio e entregou-o a Greenhalgh, que teve a tarefa de distribuí-la e
discuti-la com várias autoridades do governo Lula. O banqueiro depois
detalhou: “Eu não me lembro dessas autoridades, mas me lembro de que
a [então ministra] Dilma Rousseff estava incluída entre uma delas. Tinha
uma lista de autoridades: presidente da Anatel, presidente do BNDES,
presidente do Banco do Brasil”.
Para ajudar Greenhalgh, surgiu um misterioso personagem. Dantas e
Guiga chamavam-no pelo codinome de Arquiteto. Essa figura participou
de encontros e jantares com Guiga e Greenhalgh. E, de fato, depois que o
Arquiteto entrou em cena, o entendimento com os fundos deslanchou, e a
BrOi tomou forma — talvez daí o codinome.
Em abril, perto do fechamento do acordo, a tensão tomou conta da
cúpula do Opportunity. Na manhã do dia 23, Dantas telefonou para
Guiga, que estava em Brasília:
Eu queria só fazer um refinamento naquele assunto do Arquiteto
[...] Você lembra que tem duas fases? Eu queria botar um
periodozinho de três meses para a primeira fase, entendeu, e um
ano pro todo, entendeu? [...] Porque, senão, o que acontece: fica
deixando para depois, deixando para depois, e eu não tomo outra
providência. Então, podia combinar três meses para acontecer o
primeiro pedaço e um ano para acontecer o segundo...
O conteúdo da conversa levanta sérias dúvidas: o que seria realizado
em duas fases — um “primeiro pedaço” dali a noventa dias e o segundo
após um ano? Os prazos certamente não eram sobre a criação da BrOi,
que foi concretizada apenas dois dias depois daquela conversa. Era algum
compromisso posterior a ela, que não ficou esclarecido.
Na noite do mesmo dia, Guiga ligou para avisar Dantas: “É o
seguinte, o Arquiteto preferiu não levar ninguém porque ele acha que
qualquer outra pessoa tira o clima. Mas entendeu perfeitamente [...] Ele
também acha que as coisas podem ser resolvidas, tá certo, essa é a
avaliação que ele faz. Achou o prazo bastante razoável”.
A PF já estava bastante a par da importância do Arquiteto. No dia 17,
os federais haviam interceptado ligações que tratavam de um jantar com
as presenças de Greenhalgh, chamado de Gomes nas conversas, de Guiga
e do Arquiteto. Juntando as peças, um analista de inteligência da PF
chegou a uma conclusão surpreendente: o Arquiteto seria o bancário
João Vaccari Neto, ex-presidente da Bancoop, cooperativa de habitação
popular do sindicato dos bancários investigada em São Paulo por suposto
desvio de recursos para campanhas eleitorais do PT em São Paulo. Em
2010, Vaccari foi escolhido tesoureiro do diretório nacional do PT, mesmo
cargo exercido anos antes por Delúbio Soares.
Deve-se ressaltar que no jantar no restaurante Fogo de Chão,
ocorrido na quinta-feira, a principal pessoa que era esperada para
a conversa era João Vaccari Neto, e que depois de tal encontro as
reuniões no Rio [sobre a fusão da BrOi] foram se sucedendo com
muita frequência, para marcarem a data de hoje [22] com vistas
a fechar o negócio. (Assim, é do entender desse (sic) analista que
Vaccari é o Arquiteto, assim denominado em vários diálogos,
principalmente envolvendo Japu3 [Greenhalgh], o qual sempre
condicionava algumas decisões às consultas ao tal Arquiteto,
salvo no caso da participação de outras pessoas naquele jantar e
que sejam desconhecidas.)187
O jantar fora, de fato, importante, pois, no dia seguinte, 18,
Greenhalgh telefonou para Guiga e comemorou:
E u tô te telefonando para dar um beijo na tua testa. Um dia eu
v ou te dar um beijo na testa e o acordo vai ser fechado [...]
Ontem, ficamos até meia-noite, checando as coisas, entendeu? E,
independentemente do que aconteceu em Brasília, parece que
marcaram definitivamente quinta-feira para assinar, viu?
Em seguida, o advogado ligou para Humberto Braz e lhe passou uma
informação reveladora: “Senhor, preste atenção. A ordem da Capital é
‘meter o pau nesse assunto’. Sábado, domingo, segunda, e assinar na
terça-feira”.
Greenhalgh estava dizendo ao Opportunity que havia uma
determinação de Brasília para a conclusão do negócio. As negociações no
Rio então ganharam corpo. Os principais representantes, advogados e
executivos das partes envolvidas — fundos de pensão, BrT, Telemar,
Opportunity e Citibank — se reuniram a portas fechadas no Rio por mais
de quarenta e oito horas entre os dias 23 e 25. Às 17 horas do dia 25, o
acordo foi enfim fechado. Num telefonema, Greenhalgh contou que foram
necessárias assinaturas de setenta pessoas em 121 contratos.
Mas ainda havia um grande empecilho para o fechamento do negócio.
A lei em vigor desde 1998 impedia que uma mesma empresa detivesse
duas companhias telefônicas em sequência territorial. A barreira foi
superada de forma espetacular em novembro de 2008. O presidente Lula
baixou um decreto, depois aprovado pela Anatel, o qual alterou a lei. O
governo também financiou o negócio por meio de empréstimos liberados
pelo BNDES e pelo BB. Estava assim criado um novo monopólio, agora
privado, que englobava quase todos os estados da Federação. Uma
megaempresa com receita estimada, pelos números de 2007, em R$ 29
bilhões. A Oi pagou R$ 5,8 bilhões pela BrT, segundo a imprensa.
Meses depois, Dantas alegou que “nada ganhou” com a venda da BrT,
mas a imprensa informou um valor próximo de R$ 1 bilhão pago ao
Opportunity. Além disso, o banco assinou com os fundos de pensão um
acordo extraordinário. O documento, registrado em cartório do Rio, levou
ao arquivamento ou à retirada de todas as contendas entre Opportunity e
fundos de pensão. Foi como passar uma grande borracha no passado
conturbado da BrT. A Oi e a Telemar também concordaram em pagar R$
315 milhões para a BrT e o Opportunity “para que levantassem as ações
judiciais de um contra o outro”.188
Com um acordo tão vantajoso, o futuro discurso do Opportunity sobre
ter sido “prejudicado” pelo governo Lula e pelo PT precisa ser verificado
com outros olhos.
Às 18h27 do dia 25 de abril, Greenhalgh telefonou, eufórico, para uma
pessoa que a PF também identificou como sendo Vaccari. O advogado fez
uma brincadeira, chamando-o de “senador”. Ele reconheceu o papel
fundamental do interlocutor para a criação da “supertele”.
Essa vitória que [você] em muito contribuiu, uma simplicidade de
você. Eu queria depois chamar você para jantar, mas eu queria
falar antes do jantar. Dizer que você arrumou, na minha pessoa,
um amigo para a vida inteira [...] Toda vez que eu precisei de
você, você veio, você me ajudou, você cooperou, você acreditou
em mim, você achou que eu não estava fazendo sacanagem.
O advogado contou que “o cidadão”, muito provavelmente, Dantas,
estava aliviado com a venda.
Eu acabei de falar com o cidadão lá, e o cidadão tá lá que
[inaudível] na vida. “Porra, graças a Deus, agora vou seguir o
meu caminho e vou legal, e vou precisar de você de novo porque
eu quero me recuperar, tenho que passar um tempo me
recuperando porque eu me desgastei muito com essa história. Eu
não sou o filho da puta que todo mundo imagina...” O cara
falando para mim, isso é legal. Deu um gesto de humildade,
também. Porque ele era muito arrogante [...] Mas foi tudo legal,
viu, João, muito obrigado por tudo.
“João”, disse Greenhalgh. Mais um dado apontou para a identidade de
Vaccari. No dia 27, a secretária eletrônica do telefone celular de
Greenhalgh registrou uma chamada vinda do telefone usado por João
Vaccari.
No mesmo dia, às 11h40, um recado foi postado por Dantas no
celular de Greenhalgh. A gravação atesta o reconhecimento da
importância do papel de Greenhalgh na negociação: “Aqui é o Daniel,
estou te ligando para agradecer por tudo. Se não fosse aí, acho, por essa
ajuda aí, acho que não tinha conseguido era nada”.
Procurado ao longo de meses entre 2010 e 2011 para este livro,
Vaccari não quis atender ao autor nem respondeu a uma série de
perguntas enviadas por escrito. A um interlocutor, contudo, ele negou ser
o Arquiteto.
Após a Satiagraha, Greenhalgh soltou uma nota pública para
defender a legalidade de seus atos:
Jamais, no trabalho profissional prestado ao grupo Opportunity,
se discutiu propina, porcentagem, recursos para campanha
eleitoral de quem quer que seja. Isto é uma calúnia que vou
repelir, custe o que custar. Meu trabalho consistiu em analisar
processos em curso envolvendo o banco Opportunity, nas esferas
civil e criminal. Advoguei. Ajudei a conformar as propostas que
foram exaustivamente debatidas entre as partes até chegar ao
acordo final.189
Em meio às tensas negociações para criação da BrOi, Dantas
encontrou pela frente um grande problema. A jornalista Andréa Michael,
então na sucursal da Folha em Brasília, havia obtido informações sobre a
existência de uma operação em curso na PF sobre o banco. Ela começou a
checar as informações e procurou o delegado Daniel Lorenz, o chefe da
DIP. Em conversa na sede da PF, acompanhada pelo assessor de
comunicação da PF José Gomes Monteiro Neto, a jornalista pediu um
contato com o delegado responsável do inquérito sobre o banco, sem citar
o nome de Protógenes. Lorenz respondeu que iria consultar o
subordinado. Andréa cobrou a resposta dias depois. Lorenz avisou que o
delegado havia concordado em recebê-la. No dia combinado, Andréa
encontrou-se na sede da PF com Lorenz, a assessora da PF Flávia Mendes
Diniz e Protógenes. Flávia contou que Andréa sinalizou uma proposta de
acordo, “o que é bem comum entre os jornalistas, no sentido de que ela
não publicaria as informações que já tinha, desde que Protógenes a
avisasse, no dia da operação, para que ela viesse com a matéria, no
mesmo dia da operação, antecedendo, dando um furo de
reportagem”.190 Outras pessoas presentes ao encontro dizem que a
sugestão não partiu de Andréa, mas de Lorenz. De qualquer forma,
Protógenes não concordou. Ele respondia com evasivas, não confirmava
nem desmentia os dados de Andréa.
Mais tarde, Flávia soube que Protógenes “disse que a jornalista
estava perdida, não tinha informações que comprometessem a
investigação, e que estava tranquilo com a conversa”. 191 Após a
deflagração da Satiagraha, Protógenes reclamou muito do encontro com a
jornalista, ao qual teria sido “obrigado” a comparecer. Ele considerou que
Lorenz, ao chamá-lo para a reunião, expôs a operação, pois deu a
confirmação de que ele realmente estava no comando da investigação.
Por outro lado, Protógenes fez um juízo equivocado sobre a precisão da
apuração jornalística de Andréa. Ela não estava nada perdida.
As gravações telefônicas feitas pela PF demonstram que não apenas
Protógenes, mas também Dantas ficaram contrariados com o trabalho da
jornalista. Ele e Guiga atacaram a jornalista e o trabalho da Folha. Em 25
de abril, um dia antes da publicação da matéria, Dantas disse a Guiga
que o jornalista Hudson Corrêa, então na sucursal do jornal em Brasília,
havia procurado a assessoria de imprensa do banco para obter o
tradicional “outro lado” da apuração, ou seja, ouvir as explicações do
banco. Guiga também telefonou para Rodenburg: “Isso é aquele filho da
puta do Demarco”. O assessor de Dantas atribuía a apuração da Folha ao
desafeto do banqueiro.
Guiga fez diversas ligações para tentar obter mais informações sobre
a matéria e chegou a algumas conclusões: “Esse jornalista [Hudson]
trabalha em parceria com o tal de Leonardo [Souza] e a Andréa Michael,
que estão, há quarenta e cinco dias, atrás de uma matéria contra você.
Já entrevistaram Greenhalgh, ele não falou. Eles estariam querendo
saber quem foi que amoleceu o governo para Daniel Dantas, essa é a
tônica”.
O incômodo de Guiga e Dantas e a expressão “matéria contra você”
foram desconsiderados por Protógenes no pedido de prisão contra Andréa
— negada por De Sanctis. O delegado, depois, seria criticado por ter
pedido a prisão em desacordo com dados colhidos por sua própria
investigação.
A reportagem foi publicada no dia 26 de abril de 2008, sob o título:
“Dantas é alvo de outra investigação da PF”. Depois disso, o Opportunity
colocou em campo seu pessoal dos bastidores da política e do Judiciário.
Por exemplo, Greenhalgh, que se revelava um homem polivalente:
trabalhava na fusão da BrOi, resolvia questões criminais dos executivos
do banco e também checava uma reportagem. Dias depois, foi novamente
acionado para apurar uma perseguição, nas ruas do Rio, ao alto assessor
de Dantas, Humberto Braz. O Opportunity lavrou um boletim de
ocorrência e foi informado pela polícia de que um dos perseguidores dizia
trabalhar para a Abin, no Palácio do Planalto. Greenhalgh ligou para seu
amigo Gilberto Carvalho, então chefe do gabinete do presidente Lula, um
dos homens mais poderosos do Palácio do Planalto. Carvalho havia sido
secretário de governo e homem forte do então prefeito de Santo André
(SP) Celso Daniel (PT), morto em 2001. Após o assassinato do prefeito,
Greenhalgh auxiliou Carvalho e outros petistas da cidade.
Greenhalgh procurava Carvalho para pedir um favor, queria saber se,
de fato, a Abin havia seguido Braz. Deu o nome de uma pessoa e a placa
de um carro. Carvalho foi apurar e ligou de volta para dizer que havia
conversado com o chefe do GSI, o Gabinete de Segurança Institucional,
general Jorge Félix, e prometeu também procurar o diretor-geral da PF,
Luiz Fernando Corrêa. Carvalho informou:
O general me deu o retorno agora, e é o seguinte: não há
nenhuma pessoa na Presidência, na Abin, designada, com esse
nome. A placa do carro não existe, é fria, tá? Eles aqui acham
que a única alternativa seja um caso de falsificar um documento.
Eles não consideram possível que seja da Abin [...] Eu pedi,
insisti, disse que visse com o máximo cuidado, tal.192
Greenhalgh aproveitou para jogar lama no coordenador da
Satiagraha.
— Tá bom. Tem um delegado chamado Protógenes Queiroz, que
parece que é um cara meio descontrolado, viu?
— Ah, é? Ele está onde, o Protógenes? — quis saber
Carvalho.
— Está aí, aí em Brasília. É o que saiu na Folha, na matéria
de Andréa Michael. Mas eu estou indo amanhã [a Brasília] na
reunião do diretório [do PT].
— Te vejo lá, eu vou lá também — combinou Carvalho.
Eram velhos companheiros de partido.
O recado foi dado: alguém na cúpula do governo precisava
“controlar” o delegado.
Protógenes também queria a todo custo saber a origem do furo dado pela
Folha e começou a suspeitar de seu chefe, Lorenz. Alegou ter passado a
ele, propositalmente, dados equivocados, como o número de mandados
de prisão e a hipótese de uma busca e apreensão no Pará. Os mesmos
dados surgiram na reportagem de Andréa na Folha. Mas isso não era uma
prova cabal, pois as mesmas informações poderiam ter circulado entre
outros colegas dentro ou fora da PF e chegado à repórter.
Até que, numa conversa com Lorenz no gabinete do diretor,
Protógenes não se conteve. Disse que “tem coisas chegando à imprensa
que só você e eu sabemos”. Ao ouvir aquilo, Lorenz explodiu. De dedo em
riste, gritou para Protógenes imediatamente deixar o gabinete e a DIP.
Naquele mesmo dia, a Satiagraha foi transferida para a DCOR, por ofício,
passando à supervisão do delegado Roberto Troncon, o diretor da divisão.
Nunca houve uma reunião de transição entre Protógenes, Lorenz e
Troncon. A transferência da mais importante operação da PF foi feita por
uma simples página de papel.
Lorenz e a cúpula da PF combinaram que Troncon deveria “apertar o
cerco” para que Protógenes finalmente colocasse a operação na rua. A
cúpula da PF estava bastante ansiosa para se livrar do assunto. As razões
para essa pressa nunca ficaram suficientemente claras, mas, com
certeza, o fato de a Satiagraha ter a marca de Paulo Lacerda, ter nascido
em sua gestão e sob a sua proteção em seu gabinete, era uma lembrança
que incomodava os novos diretores da PF.
Depois da transferência para a DCOR, Protógenes deu uma “missão”
ao seu amigo do Cisa, Idalberto Araújo, o Dadá, o mesmo que havia
indicado Ambrósio para a Satiagraha. O delegado queria que ele
descobrisse a origem do furo da Folha. Dadá conhecia Andréa e foi
conversar. Sorrateiramente, ligou uma câmera digital. Depois Dadá
alegou que o vídeo era apenas um “dado de inteligência”, que não
deveria ter vindo a público — a jurisprudência no STF permite que uma
pessoa grave suas próprias conversas. A gravação só foi conhecida meses
depois, quando a PF apreendeu um pen drive em poder de Protógenes.
O segredo do vídeo era desnecessário, pois a gravação não traz a
origem do vazamento nem indício de qualquer ato irregular praticado
tanto por Andréa quanto por Dadá. A jornalista explica a Dadá que a
cúpula da PF, incluindo Lorenz, queria que Protógenes “fechasse logo” a
operação, pois isso era cobrado por Luiz Fernando Corrêa.
Um efeito da gravação foi o acirramento da briga interna na PF.
Protógenes usou aquela citação a Lorenz para voltar a insinuar que ele
estava por trás do vazamento. Esses comentários chegaram a Troncon,
que não gostou da história.
Quatro dias após a reportagem da Folha, o Opportunity convocou uma
teleconferência urgente. A conversa foi interceptada pela PF. De São
Paulo, o advogado Nélio Machado informou que iria pedir um salvoconduto para Dantas no STJ e que a operação “tinha um prazo para sair,
mas foi adiada”. Nélio contou que “o número um”, provavelmente o
diretor-geral da PF, tinha uma postura “de não impedir” a deflagração da
Satiagraha.
— E a informação também é que... aí não sei se procede ou não,
é que o Lacerda e o Japonês não estariam na linha de frente,
não. [O advogado se referia ao ex-diretor da PF Paulo Lacerda e o
ex-ministro Luiz Gushiken.] Não estariam na linha de frente. Isso
é uma coisa que nasce de uma investigação no passado e que,
aparecendo o que teria aparecido, ficaram excitados, entendeu?
— Vê se eu entendi também: uma investigação que surge do
passado e, com a quebra do HD, teria arrumado base, é isso? —
indagou uma advogada.
— É. Alguma coisa relacionada às movimentações financeiras
dentro do próprio grupo.
O diálogo é notável por documentar um advogado do próprio
Opportunity eximindo Lacerda e Gushiken de alguma “armação” contra o
banco. Esse entendimento seria inteiramente esquecido nos meses
seguintes, com o banco interessado em montar a tese de uma larga
conspiração petista.
O Opportunity se mexeu rápido para obter cópia do inquérito. Nélio
disse que havia obtido de Andréa o número de um processo e, assim, foi
bater às portas da Justiça Federal paulista. O banco entendeu que o novo
caso tramitava na 2ª Vara Federal Criminal, mas podia também ser na
5ª, responsável pela Chacal (na verdade, estava na 6ª). Era um jogo de
adivinhação. Assim, Nélio peticionou à desembargadora do Tribunal
Regional Federal Cecília Mello para exigir que as informações fossem
solicitadas às “varas especializadas em matéria penal, de tal sorte que
fique devidamente explicitada a natureza do constrangimento”.
O advogado queria, na prática, um pente-fino no Judiciário. Na 6ª
Vara, onde despachava De Sanctis, havia 2.139 feitos em andamento,
dentre os quais, 491 ações penais, segundo dados de fevereiro de
2008.193 Na 2ª Vara, 2.066 feitos. No dia seguinte, a desembargadora
ordenou que todas as varas da área penal prestassem em caráter de
urgência “informações acerca da existência do procedimento noticiado,
resguardando-se o devido sigilo”.
Era uma cobrança muito rara. Para responder a ela, em um dos
tantos fatos insólitos ocorridos ao longo da Satiagraha, oito magistrados
se reuniram numa sala do fórum criminal. Eles buscavam um consenso
que também preservasse a independência da primeira instância. Os
juízes viviam uma situação com a qual não sabiam lidar, pois o tribunal
jamais havia pedido confirmação sobre um inquérito policial sigiloso em
andamento.
De Sanctis acompanhava o quadro com apreensão. Ele estava de olho
no precedente a ser criado. Dali em diante, bastaria a um investigado
vazar uma informação para a imprensa para, em seguida, exigir acesso à
investigação e, dessa forma, exterminar a eficácia dos futuros mandados
de busca e apreensão. De Sanctis disse aos colegas que não confirmaria
nem desmentiria ao TRF a existência da investigação.
“Caso o inquérito fosse enviado ao tribunal, os investigados
rapidamente conseguiriam uma liminar no STF, teriam acesso a tudo,
gravações, laudos, o que acabaria com a investigação. Fiquei entre a cruz
e a espada. Eu optei pela preservação do sigilo.”194
De Sanctis enviou à desembargadora um ofício sigiloso de cinco
páginas. Citou um processo de 2006 em que um advogado tomou
conhecimento de um inquérito contra seu cliente e tentou arrancar a
confirmação na 6ª Vara. O juiz negou as informações, e a reclamação foi
depois julgada extinta pela relatora, desembargadora Vesna Kolmar. O
juiz escreveu que adotaria o mesmo entendimento: “O presente writ
parece mais uma tentativa de tomada de conhecimento prévio de feitos
eventualmente sigilosos, causando certa perplexidade diante da
imposição legal do segredo”.
O juiz considerou a ação do Opportunity “uma tentativa transversa
de obtenção de informações de procedimentos sob sigilo”. Ele não
confirmou nem desmentiu a existência do inquérito. Atitude semelhante
adotou o juiz Hélio Egydio de Matos Nogueira. Cinco dias depois, a
desembargadora informou que pôde “refletir melhor sobre a matéria,
revendo, assim, minha decisão anterior”. A nova posição da
desembargadora representou uma vitória importante dos juízes.
Na crucial reunião dos juízes, emergiu a figura de De Sanctis na
história da Satiagraha. Ele demonstrou até onde seria capaz de ir para
encerrar a investigação. Essa decisão e outras que tomou no mesmo
sentido iriam lhe custar muito caro, com acusações de insubordinação e
rebeldia, ameaças de processos e sindicâncias e uma série de notícias
negativas na imprensa. Mas foi a intransigência de De Sanctis que, de
fato, garantiu a sobrevivência da Satiagraha. As coisas andavam tão
estranhas naquele caso, que um juiz precisava correr riscos para garantir
apenas o seu direito de julgar.
O dilema do juiz
“Lembrava, com frequência, do jurista alemão Karl Mittermaier que dizia: ‘um delito
sem punição dá origem a dez outros’. E isso o fazia trabalhar mais e mais.”
Xeque-mate, romance do juiz Fausto De Sanctis que conta a
história fictícia de um juiz de direito.
Fausto Martin De Sanctis nasceu em fevereiro de 1964, único filho
homem numa família de quatro crianças geradas em intervalos de dois
anos. Seu pai era fiscal de tributos municipais da Prefeitura de São Paulo,
e a mãe, ex-servidora da Aeronáutica. Embora vivesse sem grandes
privações, a família tinha apenas uma perua Veraneio e uma casa —
onde a mãe de Fausto seguia morando até 2012, por mais de quarenta
anos. Fausto passou a infância e a primeira fase da juventude em escolas
públicas. Após perder o pai, de câncer, teve de começar a trabalhar aos
dezessete anos para ajudar no sustento da casa. O primeiro emprego foi
no setor de vendas de uma fábrica de tubos e conexões.
Em 1982, De Sanctis foi cursar direito na FMU, as Faculdades
Metropolitanas Unidas, no bairro da Liberdade. Estudava à noite e
trabalhava de dia. Até que se cansou da vida de vendedor, pediu
demissão e mergulhou nos estudos. Queria ser juiz trabalhista. Estudava
em casa e só saía para a FMU. Isso durou um ano e meio. “Você precisa
viver”, dizia a mãe. “Só quando passar no concurso”, retrucava o filho.
Na faculdade, De Sanctis era um “caxias”, sentava-se na primeira
fileira e anotava tudo. Uma das coisas que gostou de ouvir à época foi
que “um juiz tem que dar satisfação ao povo”. Até por isso foi ver o
comício das Diretas Já, na Praça da Sé. Em 1989, entrou para a
Procuradoria do Estado, onde atuou na Assistência Judiciária, na defesa
de réus sem dinheiro para contratar um advogado. Defendeu acusados de
homicídio e um de promover abortos.
Foi aprovado em 1990 no concurso de juiz estadual. Atuou em
Rancharia e Iepê, no interior paulista. Nessas pequenas cidades onde
todos se conhecem, o juiz ficou impressionado com a linha tênue que
separava o público do privado. Por uma ou duas vezes, foi convidado para
uma festa na qual encontrou réus que respondiam a processos que
corriam na sua vara. Decidido a não mais manter essa proximidade,
passou a viajar para São Paulo nos fins de semana. Em 1991, após novo
concurso, foi chamado para uma vaga de juiz federal substituto criminal
na cidade de São Paulo. Em outubro, pisou pela primeira vez no prédio da
Justiça Federal, então na praça da República, no centro. Ele ficaria nesse
trabalho por dezenove anos.
O novo juiz não gostou do que encontrou. Os processos se
arrastavam, e muitas penas prescreviam. Com exceção do diretor,
nenhum dos dez servidores da vara era formado em direito. Nas
audiências com advogados, um servidor da vara sempre falava no plural,
“nós decidimos” ou “nós concluímos”. O juiz ouvia aquilo estupefato e
concluiu que seu nome estava sendo usado indevidamente. Ao voltar de
férias, descobriu que o funcionário havia liberado o passaporte de um
réu, que em seguida viajou para o exterior. O juiz fez uma denúncia à
administração da Justiça. O funcionário foi transferido, mas não chegou a
ser demitido.
De Sanctis também presenciava situações constrangedoras nos lados
da PF. O governo dos EUA passou a premiar os policiais brasileiros por
cada apreensão de dólares falsificados. Em pouco tempo, começaram a
aparecer dois, três flagrantes do crime num mesmo dia. E as
“testemunhas” eram sempre os mesmos policiais.
O trabalho da PF também era visto com muitas reservas pelo
Ministério Público. Filho de um promotor de Justiça, o engenheiro
mecânico de formação e ex-professor do Senai Sílvio Martins Oliveira
tomou posse na Procuradoria da República em 1996. Ele também
desconfiava da PF. Em um caso, para evitar vazamentos, informou
endereços falsos às equipes da PF que iriam cumprir mandados de busca
e apreensão. Os endereços corretos só foram passados na última hora,
quando todos já estavam nas ruas. Para Oliveira, a situação começou a
mudar só em 2003.
“A grande transformação não foi no Judiciário, foi na PF. Até 2003, a
PF era um lixo, com raras exceções, muito ruim, corrupta e
desinteressada. Não dava para confiar em algumas áreas. Havia
informações esparsas de que a dos crimes financeiros, por exemplo, tinha
virado um balcãozinho de negócios.”195
Para De Sanctis, o trabalho na 6ª Vara era frustrante. Foram mais de
dez anos de “pequenos casos”, quase sempre fraudes de pouca monta
contra o seguro social, as quais demandavam pouca especialização. Isso
contrariava o juiz, que nunca parou de estudar ou de dar aulas. Em
1996, frequentou em Paris um curso da Escola Nacional de Magistratura
da França. Ele já havia feito cinco cursos de língua francesa e passado
duas temporadas naquele país. Por doze anos, entre 1994 e 2006, foi
professor universitário no Brasil.
De Sanctis achava que os procuradores da República deveriam ir
“atrás dos grandes casos, das grandes questões”. Ao mesmo tempo, um
movimento importante ocorria na gestão administrativa do Judiciário. Em
2001, até como reflexo do escândalo do Banestado, surgiram as
primeiras varas especializadas em lavagem de dinheiro e crimes contra o
sistema financeiro. Em março de 2003, o Conselho da Justiça Federal
determinou aos tribunais regionais federais a criação das varas
especializadas, uma experiência “considerada única no mundo”. 196 O
maior entusiasta da ideia era o ministro Gilson Dipp, do STJ.
Os resultados foram visíveis. Em 2001, havia apenas 260 inquéritos
policiais do gênero em andamento no país. Dois anos depois, o balanço já
indicava 133 ações penais ajuizadas e outros 399 inquéritos em
andamento.197 O país já tinha varas especializadas em sete estados,
mas nenhuma em São Paulo. De Sanctis foi convidado pela presidente do
TRF da 3ª Região, Anna Maria Pimentel, para fazer os estudos com vistas
à criação das varas paulistanas. A cidade ganhou duas varas
especializadas, a 2ª e a 6ª, esta dirigida por De Sanctis, que passou a
receber todo tipo de processo sobre crimes contra o sistema financeiro,
chegando a uma lista impressionante. O juiz atuou nos casos dos bancos
Banespa, América do Sul, Noroeste, Santos, Crefisul, Credit Suisse e
BNP-Paribas. Em 2006, a 6ª Vara, que naquele ano condenou o
banqueiro Edemar Cid Ferreira a vinte e um anos de cadeia — “a maior
sentença que um banqueiro já recebeu no Brasil” —, tinha recebido a
fama de “câmara de gás”.
“Quem cai lá se dana [...] Quando crimes financeiros começam a ser
julgados com rigor, algo de bom está acontecendo.”198
Em abril de 2008, De Sanctis sofreu o primeiro grande revés em um
caso sob sua responsabilidade e também o primeiro atrito conhecido com
o STF. O ministro Celso de Mello acolheu um pedido do advogado de Boris
Berezovsky, Alberto Toron, e mandou trancar o processo até o
julgamento final do habeas corpus. Dias depois, os advogados disseram
ao STF que De Sanctis seguiu tocando a cooperação internacional para
repatriação de dinheiro, levada a cabo pelo Ministério da Justiça. Celso de
Mello ordenou de novo a paralisação. De Sanctis negou ter descumprido a
ordem do STF e disse que não tinha acesso às exatas medidas
administrativas tomadas pelo Ministério, mas suas explicações foram
desconsideradas.
Aquilo seria pouco perto do que ocorreria na Satiagraha. Confrontado
com o vazamento da operação, ele decidiu não confirmar nem negar sua
existência ao TRF. O Opportunity foi ao STF em busca de uma ordem que
obrigasse o juiz a falar. Nesse meio-tempo, contudo, o banco havia feito
outro movimento, subterrâneo, bastante arriscado e com profundas
repercussões no processo.
As conversações
Três dias após a reportagem na Folha de abril de 2008 que revelou a
existência da Satiagraha, a PF captou um diálogo que, embora codificado
e com frases incompletas, escancarou o interesse direto de Dantas sobre
Protógenes. O banqueiro telefonou para Humberto José Rocha Braz,
homem de sua confiança. Nascido em 1965 e formado em Comunicação
Social em Belo Horizonte (MG), Braz foi, entre 2002 e 2005, o diretorpresidente da BrT Participações, indicado por Dantas. Depois, passou a
auxiliar o Opportunity “com a missão de solucionar a questão societária
nas empresas de telecomunicações nas quais o grupo detinha
participação”.199
Na BrT, era um funcionário com altos rendimentos. Em 2005,
recebeu entre R$ 62 mil e R$ 68 mil mensais.200 Em 2004, recebeu, em
valores brutos, R$ 1,91 milhão em vencimentos salariais da BrT,
incluindo férias e 13º salário.201
A agenda de Braz do ano de 2004 demonstra intensos contatos com
jornalistas, parlamentares e advogados. Naquele ano, ele se reuniu com
o deputado Delfim Netto, os publicitários Duda Mendonça e Marcos
Valério, os advogados Antonio Carlos de Almeida Castro, Roberto
Teixeira, que é compadre de Lula, o empresário Paulo Saad, sócio da TV
Bandeirantes, colunistas de jornais e revistas, os consultores Eduardo
Raschkovsky, Mauro Salles e Roberto Amaral, e Ivan Guimarães,
presidente do Banco Popular. Braz manteve, no mesmo período, treze
compromissos pessoais com Dantas, mais de um por mês.
Na intrincada cadeia de controle da BrT, a BrT Participações era a sua
controladora. Na presidência da empresa, Braz não raro decidia sobre
altos pagamentos. Como demonstra um e-mail de julho de 2005:
Apenas para manter um registro escrito, os honorários ajustados
entre o escritório e a Brasil Telecom para o patrocínio da
suspensão de segurança perante o STF (na linha do acertado
entre Luís Roberto e Humberto em Brasília, no dia 23/6, no
escritório do Kakay, dia do ajuizamento da própria suspensão)
são os seguintes: honorários a título de pró-labore: R$ 750 mil, a
serem pagos de imediato; e honorários a título de êxito: US$ 1
milhão.
Portanto, quando Dantas pegou o telefone para falar com Braz,
estava longe de se dirigir a um subalterno sem projeção. Pela
importância que terá na sequência dos eventos, o diálogo merece ser
conhecido em detalhes. Dantas começou:
— O Chico vai até te ligar, que ele esteve com o Helinho... E o
Hélio disse uma coisa até um pouquinho diferente do que disse
para você. Acho até que ele disse para você certo, sabe? Mas não
mencionou esse assunto de que houve aquela discussão. Meio
que colocou que o objetivo continua sendo o original e esse... e
q u e m tá responsável é esse Protógenes mesmo — disse
Dantas.202
— Sei. É o que eu acho também. Aliás, não tenho dúvida
nenhuma, até porque, senão, teria... — concordou Braz.
Ao ouvir isso, Dantas fez uma indagação:
— [inaudível] não tinha dito que tinha recebido do Otávio
uma orientação na direção oposta?
— Não, ele não recebeu, ele tem... — Dantas corrigiu o que
acabara de dizer. — Não, ele soube que foi recebido.
Braz concordou:
— Soube, e eu não tenho dúvida nenhuma de que recebeu,
pelos detalhes que ele deu. Nenhuma.
O banqueiro então sugeriu:
— Agora, já que identificou quem é...
Braz o interrompeu:
— O problema é que ele tem um contato ali que ele quer
proteger até o fim da vida, ele não vai nem confirmar isso aí,
não.
Mas Dantas insistiu:
— Eu sei, mas a minha pergunta é se... dado que a gente já
sabe quem é o endereço, se não podia entrar em contato.
— Mas o problema é que já entrou, né, e disse que não.
— Não entrou diretamente, não — reparou Dantas.
— Entrou, entrou... Não, tudo bem [entrou] através de
pessoas. Se entrar diretamente, também vai dizer que não. Nós
estamos bolando um caminho, aqui. Um caminho jurídico bem
desenhado.
O diálogo confirma que Dantas mantinha atenção sobre o
coordenador da Satiagraha e queria alguma providência. Essa conversa,
para a PF, ligou diretamente Dantas a Braz numa tentativa de
aproximação com Protógenes, um preâmbulo para os importantes passos
que Braz tomaria a seguir. Compreendendo a relevância do diálogo, o
Opportunity passou a apresentar a versão de que, a partir da palavra
“Otávio”, Dantas na verdade passou a falar de assunto completamente
diferente, a fusão da Brasil Telecom com a Oi, pois “Otávio” seria Otávio
Azevedo, do grupo Oi-Telemar, e os assuntos simplesmente se
misturaram na mesma conversa.203
É necessária extrema boa vontade para endossar a alegação do
banco. A expressão de Dantas “já que identificou quem é”, posterior à
palavra “Otávio”, guarda total coerência com a informação sobre já ter
sido confirmado que o responsável “é esse Protógenes mesmo”, anterior à
palavra “Otávio”. Tudo a indicar que se tratava de um mesmo assunto,
um mesmo fluxo de ideias.
Mas podemos conceder por um instante, a título de exercício
reflexivo, que a defesa do banco esteja correta. Permanece claro que
Dantas tinha interesse em Protógenes, a quem citou nominalmente no
diálogo. Como reforço a esse entendimento, é preciso verificar que uma
pessoa ligada a Braz de fato estava, insistentemente, atrás de Protógenes
e que realmente Braz se reuniu com um delegado da Satiagraha,
semanas depois.
No dia 29, mesmo dia da conversa Dantas-Braz, houve quarenta e
duas chamadas de Chicaroni para o delegado. Mais tarde, Chicaroni
explicou que esses contatos foram pedidos pelo advogado do Opportunity
Wilson Mirza Abraham, numa reunião da qual teria participado Pedro
Rotta, desembargador aposentado do TRF. A versão de Braz é diferente.
Disse que Rotta sugeriu que ele procurasse Chicaroni, “que poderia
ajudá-los a entender o que a Abin fazia naquela perseguição”, ocorrida
em maio, no Rio. Seja como for, restou estabelecido o elo entre Braz,
Chicaroni e o Opportunity: os homens ligados ao banco queriam manter
conversas extraoficiais com Protógenes, na mesma linha do que foi
sugerido por Dantas a Braz no diálogo gravado.
No início de junho, Chicaroni ligou para o delegado federal Marcos
Lino Ribeiro, no aeroporto de Guarulhos (SP), pedindo um telefone de
Protógenes. Ribeiro alertou o colega. Em 18 de junho, Chicaroni,
Protógenes e seu colega na Satiagraha, Victor Hugo, se reuniram no
restaurante El Tranvía. De lá, seguiram para a casa de Chicaroni, que
entregou R$ 50 mil aos policiais. Tudo era gravado por Victor Hugo por
ordem judicial expedida pelo juiz De Sanctis. Ele voltaria a trabalhar no
dia seguinte.
Antes de sair do El Tranvía no dia 18, Victor Hugo havia passado pela
recepção e reservado uma mesa para a reunião do dia seguinte com
Chicaroni e Braz. O local escolhido, contudo, foi um erro. Como se veria
na gravação do dia 19, houve muito barulho nas mesas próximas, o que
afetou a qualidade do áudio. Além disso, nos trechos mais críticos, Braz
falava baixo e apenas gesticulava ou fazia anotações.
“Em alguns trechos, sobretudo quando tratou de valores, Humberto
evitou falar, receando estar sendo gravado, e fez anotações à caneta
num guardanapo, exibindo-as a mim. Na medida do possível, confirmei os
valores verbalmente, a fim de que fossem registrados em áudio.”204
Há dificuldade de se ouvir aproximadamente um terço das quatro
horas e catorze minutos de gravação do dia 19, que integram um único
arquivo wave. Os primeiros cinquenta e um minutos permitem melhor
compreensão porque a conversa ocorreu no bar do restaurante. Ali,
Victor Hugo e Chicaroni ficaram conversando até a chegada de Braz.
Chicaroni comentou:
— A grande preocupação deles é que amanhã sai um mandado de
prisão [...] Se a gente estivermos assim posicionando o pessoal,
“olha, fiquem tranquilos”. O que vier lá para a frente, estão
pouco se lixando.
— Lá para a frente, você diz?... — indagou Victor Hugo.
— O STJ, o STF. Está pouco se lixando. Porque, na verdade, o
que acontece, a gente trabalha aqui e fica com cara de idiota. E
tomam na testa igual tomou o Castilho, colegas da Abin que
investigaram o próprio governo [...] Estão se fodendo. No final
das contas, é essa merdeira que vira lá na frente. Porque o que
manda é a grana [...] Esses caras não têm a menor preocupação.
Chicaroni citara a queda do delegado José Castilho do comando da
Operação Macuco, que investigou o Banestado. Victor Hugo especulou
com Chicaroni se fora o próprio Opportunity o responsável pelo
vazamento que redundara na matéria divulgada pela Folha. Chicaroni
negou diversas vezes essa hipótese. Chicaroni aproveitou a deixa para
culpar o empresário Demarco, o eterno desafeto do banqueiro.
A conversa voltou ao tema da propina.
— Questões de número e o caramba, eu falo com ele [Braz] —
disse Chicaroni.
— Aquele número que você tinha falado, que o valor de
alçada dele, quanto você tinha mencionado mesmo? — indagou
Victor Hugo.
— Quinhentos mil dólares — confirmou Chicaroni.
— Mais do que isso, tem que ter autorização do Daniel? —
quis saber o delegado.
— Eu creio que sim. Mas eu falo com ele.
Braz chegou ao restaurante. O delegado agora estava frente a frente
com um dos principais nomes do grupo de Dantas. O som de um piano e
um saxofone começou a atrapalhar a gravação. Victor Hugo sugeriu
então que fossem para a mesa e pediu um matambre de entrada.
Minutos depois, dois novos clientes entraram no El Tranvía. Os jornalistas
Robinson Braoios Cerântula, de cinquenta anos, e William José dos
Santos, trinta e cinco, são dois dos mais ativos e relevantes produtores
da Rede Globo de Televisão. Suas reportagens são exibidas no Jornal
Nacional, no Jornal da Globo, no jornal local SPTV e no Fantástico,
programas vistos por milhões de telespectadores. Contudo, eles
pertencem a uma espécie diferente de jornalistas. Não aparecem no
vídeo, mas atuam nos bastidores, produzindo reportagens que são
apresentadas por outros jornalistas conhecidos, como César Tralli e
Valmir Salaro. Ao entrarem como clientes comuns no El Tranvía,
Cerântula e William tornaram-se mais um ramo da parreira falsa que
decorava o teto da sala principal do restaurante. Na verdade, estavam ali
a trabalho, para documentar um ato de corrupção.
O paulistano Cerântula, filho de um funileiro e uma vendedora de
roupas, decidiu ser jornalista após acompanhar pela tevê o incêndio no
edifício Andrauss, em 1972. Àquela época, trabalhava como office boy das
7 horas às 18 horas e, à noite, estudava num colégio público no bairro de
Santana. No final dos anos 1970, era membro da CEB da paróquia de
Santana e panfletou A Voz da Unidade, jornal do clandestino Partido
Comunista Brasileiro. Já aluno de jornalismo, estreou como radioescuta
no SBT, passou pela TV Manchete e foi cobrir férias no Fantástico, da TV
Globo, no início dos anos 1990. Ali conheceu toda uma geração de
renomados repórteres, como Caco Barcellos, Marcelo Rezende, Roberto
Cabrini e Salaro.
A produção televisiva viveu, à época, um salto tecnológico.
Equipamentos de gravação ágeis e pequenos invadiram as redações.
Cerântula logo se interessou pelas “câmeras ocultas”, microcâmeras que
os produtores escondiam em roupas ou pastas. No final dos anos 1990,
ele foi trabalhar no novo núcleo criado pela Globo em São Paulo, ligado à
direção do Jornal Nacional, com a missão de produzir reportagens
investigativas. Movimento semelhante ocorreu no Rio, com ousados
jornalistas que marcaram época, como Eduardo Faustini. Um dos mais
notáveis, Tim Lopes, foi assassinado numa favela do Rio depois que
narcotraficantes descobriram que ele usava uma câmera oculta.
Todas as grandes operações realizadas pela PF em São Paulo desde
2003, como a Anaconda, a prisão de Law Kin Chong, a prisão do
banqueiro Edemar Cid Ferreira, a prisão do ex-prefeito Paulo Maluf e o
caso da compra do dossiê na campanha eleitoral de 2006 foram cobertas
por Cerântula. Ele passa o dia circulando entre delegacias.
De modo que, quando Cerântula recebeu, em junho de 2008, a
informação sobre uma operação de grande vulto em andamento na PF,
era só mais uma. Era a rotina. Cerântula havia lido a matéria da Folha,
de abril, que relatara a investigação liderada por Protógenes sobre
Dantas, mas não entendia exatamente de que forma o encontro no
restaurante se encaixava na história.
“Eu não sabia quem estava no restaurante. Tudo o que eu sabia é
que aquele encontro era uma tentativa de corrupção e que poderia dar
em cadeia”, contou Robinson.205
No El Tranvía, Cerântula e William passaram despercebidos.
Circularam até achar uma mesa a cerca de cinco metros de outra
ocupada por três homens que falavam muito baixo. Quando o garçom se
afastou, Cerântula comentou com William: “O de preto é o delegado, o
careca é o nosso alvo, mas tem que encostar os três juntos”.206
“Encostar” é incluir todos na mesma imagem. Cerântula pediu ao
garçom uma água sem gás, um suco de laranja, uma fraldinha ao ponto e
uma salada mista.
“O cara fica olhando tudo, o cara fica olhando. É ligeiro, eu vi. Na
hora que a gente chegou. Ligeiraço.”
Escondida na camisa de Cerântula, uma câmera registrava o encontro
entre o delegado Victor Hugo, Braz e Chicaroni. Por um monitor da Sony
escondido numa pochete, Robinson checava as imagens. Mas os dois
produtores nada entendiam do que se falava na mesa. Como comprova o
material apreendido meses depois pela PF, nenhuma fala foi registrada
pela equipe da Globo, com exceção da própria conversa dos produtores da
tevê. Eles gravaram apenas as imagens do trio na mesa.
— O outro é tira? — perguntou William.
— Só um é tira. Os dois são alvos.
— Ele está sendo perseguido? — indagou William
aparentemente se referindo a Protógenes.
— É porque ele tá mexendo com um cara de dentro do
governo. Esse Greenhalgh é do PT. O alvo dele era um primeiroministro. Não tá muito fácil isso, não — respondeu Cerântula.
— E ele tá se sentindo seguido. Como é? — quis saber
William.
— Não, está sendo perseguido dentro da instituição. Eles
tiraram todos os agentes dele, reduziram ele, sabe, quase que
assim, bem pequeno. Ele que tá tocando a história. Sozinho. Tá
com oito caras, e a quantidade de grampos é muito grande, muito
grande.
A conversa derivou para outros assuntos, e a gravação terminou após
trinta e um minutos. Cansados de esperar por um desfecho, Cerântula e
William pagaram a conta e foram embora.
“Eu achei que ia rolar uma cana ali, eu estava preparado para
documentar uma prisão. Mas não sabia quem era quem. Vi que não ia dar
em nada, aí fui embora”, disse Cerântula um ano depois.
No curso da investigação aberta pela direção-geral da PF para punir
Protógenes, Victor Hugo explicou ter ouvido sobre a existência de uma
gravação em vídeo: “O delegado Queiroz disse que iria providenciar uma
equipe para realizar uma filmagem do mesmo. Eu gravei o áudio dos três
encontros e sei que imagens foram gravadas apenas do segundo
encontro. Não sei dizer quem é que fez as gravações [de imagens] do
segundo encontro”.207
O escrivão Ranieri Bellomusto, um dos principais auxiliares de
Protógenes, prestou dois depoimentos na investigação. No primeiro, nada
falou sobre o encontro no El Tranvía. No segundo, apresentou a versão
de que também estava no restaurante e disse que ele é quem teria
apontado para Cerântula qual a mesa exata da reunião. Disse que os
produtores foram acionados para documentar o encontro porque a PF e a
Abin não tinham equipamento adequado para o trabalho. Afirmou que
depois ele recebeu de Cerântula um cartão de memória, cujas imagens
ele editou, na PF, para retirar as cenas em que apareciam os jornalistas.
Em seguida, entregou as imagens a Protógenes. De fato, a PF apreendeu
as imagens num pen drive do delegado. Ranieri, contudo, não aparece
nas imagens. Os produtores negaram a presença do escrivão no local e
negaram ter entregado o cartão a Protógenes. De qualquer forma, caso a
versão de Ranieri seja verdadeira, ela não altera em nada a essência do
episódio: as gravações das conversas propriamente ditas nunca foram
feitas pela Rede Globo.
O vídeo gerou inúmeros questionamentos dos advogados do
Opportunity, que passaram a dizer que Protógenes havia “terceirizado”
para a tevê o registro do ato de suborno. Entretanto, como sempre foi de
conhecimento da Justiça e como pode ser facilmente verificado, as
conversas foram todas captadas por equipamento próprio em poder do
delegado Victor Hugo. São esses os arquivos analisados e transcritos por
peritos criminais no processo que condenou Dantas por suborno.
Na sentença condenatória, assinada por De Sanctis, a referência à
gravação em vídeo, de tão inexpressiva que é no conjunto das provas,
não passou de uma nota de rodapé. As imagens apenas corroboraram a
existência do encontro, mas nada acrescentaram ao material gravado em
áudio pela PF. Quando a Satiagraha foi deflagrada, a Rede Globo apenas
juntou essas imagens ao áudio oficial do oferecimento de suborno e levou
o material ao ar, no Jornal Nacional.
O trabalho de Cerântula e William configurou, tão somente, um
grande furo jornalístico.
A conversa na mesa do El Tranvía continuou após a anônima saída dos
jornalistas. No dia anterior, a equipe da Satiagraha havia confeccionado
um organograma com informações que não prejudicavam a operação.
Também montaram fichas pessoais de Dantas e de sua irmã. Victor Hugo
mostrou os papéis a Braz, como “prova” de que estava por dentro da
investigação. Ao perceber que a gravação estava sendo prejudicada pelo
som vindo de mesas vizinhas, o delegado pediu a Braz que se sentasse ao
seu lado, para ver os papéis. A partir daí, melhorou um pouco a qualidade
do áudio.
“Pode ver com calma porque eu não posso deixar com vocês esses
documentos”, disse Victor Hugo. Chicaroni aproveitou para novamente
atacar Demarco.
— Agora, aquela segunda etapa, sem querer mudar o caminho do
assunto, nem é para agora, aquela segunda etapa que é o ponto
de honra, já conversei com o Victor, conversei com outro amigo
nosso, é montar um dossiezinho, e a gente busca ele. Aí é outra
história.
— Mas vamos resolver essa, primeiro — disse Victor Hugo.
— Vamos matar esse índio primeiro — brincou Braz.
— Pelo que você falou do Demarco, ele merece — provocou o
delegado.
A “segunda etapa” consistia em usar a PF para atingir o desafeto do
banqueiro.
Diferentemente de Chicaroni, Braz não era falastrão nem queria
exibir seus contatos com poderosos. Ele falava baixo. Victor Hugo teve de
ser paciente para ir extraindo de Braz a confirmação das coisas que
Chicaroni havia dito anteriormente. O delegado procurou confirmar com
Braz qual seria o valor da propina. Chicaroni mencionou de novo meio
milhão de reais. Braz, contudo, apenas gesticulou. Para deixar registrado
o gesto, o delegado insistiu.
“É que você gesticulou como se fosse um...”, disse o delegado.
“É que é um milhão de reais”, disse quem a PF identificou como
sendo Braz. O áudio desses trechos é ruim. Depois a defesa do
Opportunity anexou ao processo três laudos, por ela encomendados, para
afirmar que não há certeza sobre a voz de Braz. Mas o problema do áudio
não muda a essência: que discutiam valores de um suborno e que dois
delegados já haviam recebido R$ 50 mil e iriam receber mais uma
parcela.
“Ah, de reais. Entendi”, disse Victor Hugo.
Os três pediram o jantar. Na meia hora final da conversa, Chicaroni e
Braz falam do risco de pessoas se apresentarem como intermediários
para obter dinheiro a propósito da investigação. Victor Hugo falou:
— Tudo o que eu te mostrei aqui hoje, só eu tenho [...] Aí é que
é a diferença. Isso é achaque. Eu não fiz achaque. Você conhece
o Queiroz, eu te conheço. Se der para tirar ou um ou dois ou três
[nomes]... Eu não falei “olha, vem cá, tenho isso”. Você que veio
para mim e falou, “ó, tem como, não sei o quê?”. Aí que é a
diferença entre extorsão.
— É muito diferente — concordou Chicaroni.
Após três horas de conversa, o trio deixou o restaurante.
No dia seguinte, Victor Hugo encaminhou novo relatório confidencial
a De Sanctis e a De Grandis. Ele explicou trechos da conversa:
Braz perguntou se o milhão de dólares poderia ser pago em duas
parcelas de 500 mil dólares, uma antes da operação policial e
outra depois que ela fosse deflagrada, quando a quadrilha poderia
confirmar que Dantas efetivamente foi excluído da investigação.
Disse eu então que não haveria problemas. Humberto ainda
propôs que a primeira parcela de 500 mil dólares fosse paga em
várias parcelas menores, alegando que teria dificuldades em
conseguir moeda estrangeira neste montante de um dia para o
outro. Com receio de comprometer as investigações, insisti que o
pagamento da primeira parcela se desse de uma vez só,
preferencialmente nesta semana. Por fim, ficou combinado de a
primeira parcela de 500 mil dólares ser paga entre esta semana e
a próxima.
No dia 25, Victor Hugo partiu sozinho para o terceiro encontro com
Chicaroni, sendo acompanhado, a distância, pelo escrivão Ranieri. Dessa
vez, marcaram um jantar em Moema. Após meia hora de amenidades,
Chicaroni falou de uma nova entrega de dinheiro, um novo sinal.
Chicaroni queria entregar no dia seguinte, mas o delegado tinha pressa.
Enquanto ocorria aquela conversa, a equipe da Satiagraha elaborava,
em sigilo, os mandados de busca e apreensão e os pedidos de prisão,
incluindo o de Chicaroni, que seriam apresentados ao juiz De Sanctis. A
meta da equipe da Satiagraha era apanhar aqueles US$ 500 mil
prometidos por Chicaroni, que, àquela altura, já deveriam estar na casa
do professor.
Victor Hugo, assim, sugeriu: “Faz o seguinte: podemos pegar essa
parte agora, já que já está aqui mesmo, e assim que tiver o restante você
me liga. [...] O que você acha?”.
“Tá bom. Uma responsabilidade do cacete... Não vou ficar guardando
isso aqui, não.”
O delegado acabara de ouvir que o dinheiro estava estocado na casa
do professor.
Chicaroni aproveitou para lembrar:
“O ponto de honra do Daniel é pegar esse Demarco.”208
Duas horas depois, a dupla pagou a conta, deixou o restaurante e foi
caminhando até o apartamento de Chicaroni. O professor entrou,
apanhou uma sacola de dinheiro e entregou ao delegado.
“Tem oitenta mil reais aqui?”, indagou o delegado.
“É, oitenta”, respondeu Chicaroni.
Eles se despediram. Na rua, Victor Hugo encontrou-se com Ranieri.
Seguiram direto para a superintendência da PF em São Paulo, onde
fizeram a apreensão do dinheiro. Ao contar as cédulas, concluíram que
havia R$ 79.050, e não o valor dito por Chicaroni. Os dezesseis pacotes
estavam empilhados numa caixa de sapatos Timberland.209 No dia
seguinte, o delegado mandou ofício para De Sanctis e De Grandis:
“Da próxima vez que o dinheiro for entregue, além de abordar esse
fato com Hugo ou com Humberto, faremos todo o possível para conferir o
montante na presença de quem o entregar.”
Não haveria próxima vez. Aquela foi a última conversa entre Victor
Hugo e Chicaroni. A propina paga a policiais federais para que retirassem
nomes da Satiagraha e investigassem um desafeto do banqueiro já
estava fartamente documentada. Do primeiro retorno dado por
Protógenes aos telefonemas de Chicaroni até a entrega da segunda
parcela da propina, haviam se passado quinze dias de tensas
conversações. Restava apreender o dinheiro que deveria estar na casa de
Chicaroni. Não havia mais como retardar a deflagração da Operação
Satiagraha.
“Perguntaram quem era o réu”
“É preciso que nós esqueçamos o caso concreto. Porque esta corte é juíza, sim, do
caso concreto, mas, quando ela decide, faz uma pedagogia dos direitos
fundamentais.”
Ministro Gilmar Mendes, então presidente do Supremo Tribunal
Federal, em 6 de novembro de 2008, na sessão que julgou os
habeas corpus a favor de Daniel Dantas.
No primeiro fim de semana de julho de 2008, Daniel Dantas se reuniu
no apartamento de sua irmã Verônica, na avenida Vieira Souto, no Rio,
com Braz e Greenhalgh. A coluna do jornalista Ricardo Boechat na
revista IstoÉ havia publicado uma nota incômoda. Intitulada “Peixe
gordo”, dizia que o banqueiro “estava com medo de ser preso”, entrara
com três pedidos de habeas corpus, mas já perdera no STJ e no TRF,
restando apenas o STF.
Braz parece ter saído otimista da reunião, pois, no dia seguinte, ligou
cedo para Greenhalgh para dizer que havia sido “extraordinária”. 210 Ao
meio-dia, recebeu uma ligação de uma executiva do Opportunity, que
havia lido a nota e não parecia tão confiante.
“Mostrei para Verônica e ela falou, ‘vamos perguntar pro Humberto’.”
Braz era o homem que sabia das coisas. Afinal de contas, duas
semanas antes ele havia se reunido no El Tranvía com o delegado do
caso. Como “sinal”, Chicaroni havia entregado R$ 129 mil a Victor Hugo e
Protógenes. As coisas, portanto, estavam andando bem, e uma nota na
imprensa não causaria maiores estragos. Braz “veio para arrumar a
casa”, como dizia Chicaroni. Dessa forma, ninguém mexeu no dinheiro
empilhado no apartamento de Chicaroni, R$ 1,18 milhão pronto para ser
entregue, como propina, a dois delegados federais.
Na manhã do dia 8 de julho, uma terça-feira, o celular de Dantas
tocou bem cedo, às 6h33, mas ninguém atendeu. Às 8h02, Dantas
finalmente acolheu a chamada de Guiga. O publicitário informou ter
acabado de sofrer uma “busca e apreensão” em sua casa naquela manhã,
em Brasília. A notícia não surpreendeu Dantas, que estava em seu
apartamento, no Rio: “Eu também estou tendo”.
Após meses de percalços, brigas, queixas sobre a falta de recursos,
acusações de perseguição e vazamentos na PF, a Operação Satiagraha
finalmente estava na rua.
Um grupo de 164 delegados, agentes e escrivães, distribuídos em
quarenta e dois carros, cumpriram mandados de busca e apreensão e de
prisões em trinta e cinco endereços diferentes em São Paulo, Rio e
Brasília.
Dantas estava sob custódia na sala de seu apartamento, por força do
mandado expedido por De Sanctis quatro dias antes. A ordem foi
cumprida pelo delegado da PF Carlos Eduardo Pellegrini, enquanto os
policiais federais reviravam cômodos e móveis. Pellegrini fez uma
apreensão importante na sala:
O nosso alvo é um cara muito estrategista. Extremamente
estrategista. Por exemplo, quando eu entrei na sala, ele não me
franqueou acesso ao elevador. Eu pedi. Eu tive que arrombar a
porta do elevador — arrombei, mas só a fechadura, não teve
estrago nenhum ali, só dei uma entortadinha — e entrei. No que
entrei, estava, numa sacolinha azul, o note [notebook] pessoal
dele e dentro os manuscritos que ele tinha escondido de forma
rápida, do lado. A primeira coisa foi pegar aquela bolsa. No que
pegou, estavam os manuscritos. Na PF “vai uma pessoa tal falar
com tal”, no Poder Judiciário “vai tal pessoa”. No jornalista, “a
gente contrata o Mangabeira para chegar nesses meios de
comunicação”, estava todo o organograma dele lá.211
Pelo telefone, Guiga contou a Dantas que Greenhalgh já estava
acompanhando o caso. Uma hora mais tarde, voltou a telefonar, agora
mais preocupado.
—
—
—
—
Vem cá, você foi preso, Daniel?
Não. Por enquanto.
Ah, porque a imprensa diz que foi.
Ah, tá. Então deve ser — aquiesceu Dantas.
A notícia já circulava, desde cedo, por sites na internet. Se Dantas
confirmasse sua prisão, Guiga, que mantinha contatos com jornalistas,
poderia torná-la oficial. Até num momento-chave como aquele Dantas
guardava suas cartas.
Em novo telefonema, Dantas deu uma orientação em código:
“Vê se consegue ajuda aí, naquela coisa [inaudível] que o Arquiteto
ia trabalhar, acho que ali é o caminho mais... mais... fácil, entendeu?
Porque os outros são mais difíceis. Do Arquiteto e do...”
Não se sabe se esse Arquiteto é o mesmo referido pela PF como João
Vaccari Neto. Minutos mais tarde, Dantas voltou a ligar para Guiga, que
já estava na frente do advogado Luiz Greenhalgh.
— Eu tô no escritório com meu advogado aqui, conversando,
tomando umas orientações, e ele me perguntou, porque a
imprensa diz que, de fato, você está preso. Você já foi preso,
Daniel?
— Não, eu vou ser, acho.
— Você vai ser preso, você acha que vai ser?
— Eu não tenho a menor dúvida, porque está preso todo
mundo. Eu tô aqui porque não terminaram ainda o trabalho. E
dizem nada, se sim ou se não.
— Estão só fazendo o trabalho, não é?
— Tô até pronto aqui — disse Dantas sem esclarecer o que
seria isso.
— Então tá. Você quer que faça alguma coisa?
— Não, eu só acho ali que o trabalho tem que ser feito a
nível...
Guiga rapidamente cortou o raciocínio do banqueiro:
— Tá, tá. Mas eu não consigo falar, Daniel, já tentei. Tô indo
para Brasília.
Só então Dantas percebeu que Guiga estava em São Paulo, e
não em Brasília.
— Agora, eu acho aquele advogado, aquele advogado, amigo
do Luigi, amigo do Arquiteto, é que pode, é quem... Porque o
resto não tem, não. Tá bom?
Com o “ok” de Guiga, acabou a última conversa de Dantas pelo
celular antes de o banqueiro entrar num avião e parar numa cela da
carceragem da Superintendência da PF de São Paulo, no bairro do Limão.
O Japu estava preso.
Outros investigados trocavam ao telefone palavras de revolta e
choque. Às 5h55, de sua mansão no Jardim América, em São Paulo, o
investidor Naji Nahas sussurrou ao telefone para seu advogado:
— Tem a Polícia Federal aqui querendo me prender. Querendo
arrombar a porta para me prender. O que eu faço?
— O que você vai fazer, porra...
— Você acha que eu me escondo lá em cima?
— Não tem o que fazer, né.
— Puta que pariu.
— Não tem onde se esconder, não tem aonde você ir.
Um dos filhos de Nahas telefonou em seguida. Parte do
diálogo foi em francês.
— Tem aqui também.
— Na sua casa, também? Polícia Federal? — assustou-se Naji.
— É. Também — respondeu o filho.
O diálogo, interceptado pelos agentes da Satiagraha, provocou
críticas internas, pois a resposta passada naquela manhã pela equipe
responsável pelas buscas na casa do filho do investidor foi a de que ele
não havia sido encontrado em casa, e o telefonema revelava o contrário.
Deve-se ressaltar que a equipe designada para dar cumprimento
ao MBA [mandado de busca e apreensão] e MPT [mandado de
prisão temporária] na residência de Juriti2 não adotou as
providências necessárias com vistas à localização e prisão do
alvo, pois depreende-se do diálogo mantido com seu genitor que
se encontrava no interior de sua residência e não foi encontrado,
o que conduz ao raciocínio lógico de que há, naquele local,
cômodo secreto ou situação similar.212
Nahas ficou cerca de quinze minutos sem abrir a porta da casa,
mesmo tendo visto o mandado de prisão na mão de um policial. Depois
disse à PF que temia tratar-se de um assalto, muito embora, no
telefonema das 5h55, não tivesse manifestado nenhuma dúvida.
Cansados de esperar, os policiais pularam o muro da casa e prenderam
Nahas na guarita de vigilância.
Dantas não resistiu, Nahas pensou em se esconder, mas outro
investigado, Marco Matalon, o Velho, de setenta e nove anos, tido como
um dos principais doleiros de São Paulo, encontrou uma saída inventiva.
Enquanto a PF vasculhava sua casa, ele conseguiu telefonar para um
médico amigo:
— Tô com um problema. Veio ordem de prisão contra mim e não
sei, querem me guardar cinco dias na cadeia. Não sei por quê,
não sei o que aconteceu. Então, estou te avisando que talvez eu
vá precisar que você fala que eu estava doente e tenho todos os
exames aqui.
O médico teve uma ideia:
— E se a gente internar você, dizer que você teve uma
press...
A proposta era tão boa, que Matalon interrompeu a conversa
e passou o celular para um agente federal que estava ao seu
lado:
— Fala com o meu médico. Ele quer me internar.
O policial viu uma saída para contornar “a situação da prisão
decretada contra o seu Marco”:
— Eu não tenho como providenciar, de minha própria
vontade, uma internação dele ou que ele fique em prisão
domiciliar. [É preciso] requerer isso para o juiz. Então eu
precisaria aí que o senhor me aparelhasse da melhor forma
possível, documentalmente [...] Precisaria de um atestado médico
do senhor.
O médico queria pedir logo ao juiz uma internação:
— Justificativa é uma coisa, internar é outra. Ele vai ser
internado. Eu preciso falar uma mentirinha, que ele tá numa
emergência.
— Tá. Perfeito — disse o policial.
Não só apoiou a proposta, como também foi ao consultório do médico
apanhar os documentos. Matalon não chegou a ir para a carceragem da
polícia.
Outros quatro policiais federais entraram, às 6 horas, na casa da
advogada Danielle Silbergleid, no Rio. A assessora da diretoria do
Opportunity formada em direito pela PUC do Rio em 1998 chorou ao
telefone quando disse ao colega João Mendes, advogado do banco, que
estava sendo presa.
Danielle trabalhou rápido ao telefone, mobilizou advogados e deu
orientações. Trocou informações com o advogado Alberto Pavie Ribeiro,
de Brasília. Eles decidiram não procurar De Sanctis ou o TRF. O caminho
estava traçado: Supremo Tribunal Federal. Como os ministros estavam
em férias, pedidos urgentes passavam a ser analisados por Gilmar
Mendes.
“O HC agora vai para o presidente, não é?”, indagou Danielle.
Por volta das 14 horas, os telefones celulares dos investigados foram
recolhidos. Os presos seguiram para São Paulo, num avião da polícia. A
imprensa fotografou, a distância, a entrada de Dantas algemado no
prédio da PF paulistana, com os pulsos ocultos pelas mangas do paletó.
Depois Protógenes disse ter ouvido, durante a noite, Dantas dizer em
voz alta para Naji Nahas, que ocupava outra cela na mesma ala: “Naji,
isso é culpa do PT!”. A fala, contudo, não foi gravada, e o banqueiro
depois negou tê-la pronunciado.
Os jornais do dia 9 trouxeram os detalhes da operação, incluindo
menções ao ex-deputado Greenhalgh. O advogado recebeu um apoio
explícito da direção do PT. Às 10 horas, o deputado Ricardo Berzoini (SP),
presidente nacional do partido, telefonou:
— Tô te ligando para te dizer da minha solidariedade total e
irrestrita e me colocar à disposição para qualquer coisa.
— Isso é uma coisa política — adiantou o advogado.
Berzoini aproveitou para criticar a PF:
— Eu sei... E a maneira, o modus operandi dos homens é
muito complicado.
No final da noite de 9 de julho, um dia após as prisões, o ministro
Gilmar Mendes concedeu a primeira ordem de liberação dos presos. Por
volta da meia-noite, a notícia chegou à carceragem da PF por meio de um
rádio que estava com um preso de outra ala. Dantas soube da notícia e
passou-a à Danielle.213
O HC havia sido impetrado pelos advogados do Opportunity
originalmente no STF no dia 11 de junho, em favor de Dantas e de
Verônica. Eles haviam recorrido de uma decisão tomada em maio pelo
STJ sobre outro HC.
Após a reportagem da Folha do dia 26 de abril, o advogado Nélio
Machado procurou o TRF da 3ª Região com dois objetivos: garantir o
salvo-conduto dos irmãos Dantas e ter acesso ao inquérito. Derrotado em
São Paulo, recorreu ao STJ. A primeira decisão do ministro Arnaldo
Esteves de Lima, em 29 de maio, foi uma ducha de água fria.
“Em princípio, não há fundamento para liminar e nem mesmo para o
processamento deste writ. De qualquer forma, ouça-se o Ministério
Público Federal.”
Os advogados não queriam que o caso fosse para o Ministério Público
e peticionaram para que o ministro expedisse logo um alvará de salvoconduto. Em nova decisão, de 6 de junho, o ministro explicou que era
direito dos advogados o acesso à investigação. Mas para o salvo-conduto
era necessário provar que a liberdade do banqueiro estava ameaçada. E
fez uma observação que seria o ponto nevrálgico das discussões do futuro
HC concedido pelo STF: “Em regra, é incabível habeas corpus contra
decisão pela qual o relator indefere liminar — Súmula 691/STF.
Excepcionalmente, quando evidente o abuso ou ilegalidade, a atingir,
direta ou potencialmente, a liberdade, mitiga-se tal princípio, conforme
cediça jurisprudência”.
O ministro pediu informações à desembargadora do TRF Ramza
Tartuce, que também já havia negado o HC. Por fim, novamente mandou
remeter o processo ao Ministério Público Federal. Nesse ínterim, os
advogados recorreram ao STF contra a primeira decisão do STJ.
Em 12 de junho, o processo no STF foi distribuído ao gabinete do
ministro Eros Grau. Ele pediu informações a De Sanctis e um parecer do
Ministério Público. O processo foi remetido à PGR (Procuradoria-Geral da
República), aos cuidados do subprocurador Wagner Gonçalves, um
experiente membro do MPF que já foi cotado para o cargo de procuradorgeral. Seu parecer, de nove páginas, foi concluído em 7 de julho, um dia
antes da deflagração da Satiagraha.
Portanto, quando Gilmar Mendes decidiu sobre a soltura de Dantas,
em 9 de julho, ele já sabia da posição da PGR. O subprocurador era
inteiramente contrário ao HC. Apontou que o Opportunity procurava
“saltar instâncias”. Gonçalves notou que o mérito dos HCs impetrados
pelo banco no TRF e no STJ não havia sido sequer julgado, mas o banco
já batia às portas do STF. O subprocurador apontou que esse pulo não
era possível:
“[A apreciação] macula a ordem dos processos nos tribunais
superiores; haveria julgamento per saltum, o que é inadmissível.” 214
O que impedia a apreciação, segundo Gonçalves, era a Súmula nº
691, de setembro de 2003, aprovada em plenária do STF. É um texto
simples e objetivo: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer
d e habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas
corpus requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar”.
Era o exato caso em análise. A liminar foi indeferida em duas
ocasiões, no TRF e no STJ, e o Opportunity recorreu ao STF.
Contudo, com o passar dos anos, ministros do STF começaram a dizer
que iriam relativizar essa súmula. Nos caminhos surpreendentes da corte
suprema brasileira, o que parecia claro nem sempre o era. Os ministros
passaram a dizer que casos de “flagrante ilegalidade ou abuso de poder”
poderiam levar à não aplicação da súmula.
O efeito nocivo da “flexibilização” já havia sido notado por
integrantes do próprio STF. Durante um debate acerca de um HC
impetrado pelo empresário Roberto Justus, que pretendia trancar uma
ação penal aberta sobre créditos tributários que ainda estavam em fase
de discussão administrativa, o então ministro Sepúlveda Pertence
levantou o problema de forma bastante enfática: “Estamos, decidida e
declaradamente, a propor uma restrição à Súmula. Na verdade um
cancelamento [...] Homenageio os advogados do meu país. Nenhum deles
deixará de falar que a sua ‘ilegalidade’ é flagrante”.
O HC de Justus foi mandado ao plenário. Lá, Cezar Peluso propôs o
cancelamento da 691 e a edição de uma nova súmula que mantivesse o
texto da primeira, mas com a observação: “Exceto nos casos em que o
Supremo entende que compete conhecer”.
O ministro Joaquim Barbosa apoiou Pertence e fez uma advertência:
Há outro problema que também me preocupa. Trata-se de certa
fragilidade, certa instrumentalização deste tribunal por certos
setores. Não raro, utiliza-se a corte como balão de ensaio.
Explico. Essa questão foi objeto de um artigo recente do ilustre
advogado, propondo exatamente a revogação da súmula.
O advogado citado era Alberto Zacharias Toron, um dos defensores
de Dantas na Operação Chacal. Ao final da votação, o pleito de Justus
venceu. Pertence então decretou o “fim” da súmula: “Para mim, eu a
considero moralmente cancelada, embora não se tenha deliberado
formalmente a respeito”.
O novo entendimento levantava uma pergunta: os ministros do STJ e
desembargadores do TRF não conseguem enxergar uma “ilegalidade
flagrante” que só os ministros do STF são capazes de ver?
De Sanctis emitiu as ordens de prisão contra Dantas, sua irmã e os
funcionários do Opportunity no dia 4 de julho. Elas foram cumpridas pela
PF no dia 8. No mesmo dia, os advogados Nélio e Pavie pediram ao STF
uma decisão urgente sobre o HC de junho. A petição foi subscrita por
quatro advogados: Pedro Gordilho, Fernando Neves da Silva, Luiz Carlos
Lopes Madeira e Henrique Neves da Silva. É um grupo de grande
prestígio nas cortes de Brasília. Advogado em Brasília desde 1961,
Gordilho é amigo do ministro Peluso. Quando o ministro tomou posse na
presidência do STF, em 2010, Gordilho foi autorizado a fazer um discurso
em sua homenagem. Fernando Neves da Silva e Madeira foram ministros
do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Gilmar Mendes tomou duas decisões no dia 9. A primeira tratou da
questão do acesso aos documentos, pela defesa. O ministro reconheceu
que, “em princípio”, a jurisprudência do STF “é no sentido da
inadmissibilidade” da impetração de um HC como aquele. Citou cinco
decisões anteriores do STF, sendo três por unanimidade e duas por
maioria, nas turmas. Contudo, afirmou que “o rigor na aplicação da
Súmula 691/STF tem sido abrandado por julgados desta Corte em
hipóteses excepcionais”, como a que evita “flagrante constrangimento
ilegal”. Mendes citou uma decisão unânime do STF, na 1ª Turma, outra
unânime, no plenário, outra por maioria, na 1ª Turma, e duas decisões
monocráticas, uma de sua própria autoria.
Dos HCs citados, apenas um tratou de uma decisão sobre réu preso,
com afastamento da Súmula 691, após liminar não concedida pelo TRF ou
pelo STJ. Era o HC julgado em julho de 2005 pelo ministro Marco Aurélio
de Mello em favor de um juiz acusado de mandar matar um colega no
Espírito Santo. Ao analisar o HC derrotado no STJ, Marco Aurélio disse
que os indícios contra o juiz eram insuficientes. Mandou afastar a Súmula
691 e libertá-lo.
Os outros casos citados por Mendes trataram de trancamento de
ações penais, como o de abril de 2005. O juiz federal Ali Mazloum — que
mais tarde julgaria o processo que tratou de supostos crimes praticados
por Protógenes na Satiagraha — havia pedido o adiamento de um
depoimento que deveria prestar naquele mês no Órgão Especial do TRF e,
ao mesmo tempo, o julgamento do pedido de trancamento da ação penal.
Mendes ordenou que o STJ suspendesse o depoimento.
No HC de Dantas, após citar a jurisprudência, Mendes autorizou o
acesso aos autos e pediu informações, em caráter de urgência, a De
Sanctis.
O 9 de Julho é feriado em São Paulo. Assim, o ofício de Mendes foi
recebido pelo juiz federal do plantão, Luiz Renato Pacheco Chaves de
Oliveira, que imediatamente telefonou para De Sanctis. Oliveira enviou
ao STF cópia da decisão de De Sanctis e informou que seu colega havia
autorizado, desde o dia anterior, o repasse do documento a todos os
advogados dos investigados. Ainda no feriado, De Sanctis também
remeteu diretamente ao STF nova cópia da sua decisão e outros
documentos de três processos relacionados à Satiagraha.
A decisão de De Sanctis tinha 124 páginas. Na parte final, que tratou
da decretação das prisões temporárias, citou a Lei 7.960/89. Ela diz que
a prisão deve ser “imprescindível para as investigações do inquérito
policial” sobre treze tipos de crimes, dentre os crimes contra o sistema
financeiro, previstos na Lei 7.492/86. De Sanctis listou três motivos:
evitar a troca de informações entre os investigados, permitir a audiência
imediata dos investigados “para que seja possível confrontar com a prova
já produzida e a ser obtida com a medida de busca e apreensão” e evitar
que eles destruíssem documentos e arquivos virtuais.
Sobre Dantas, o juiz afirmou que ele, “com a absoluta certeza de sua
impunidade”, “diligentemente exerceria seu poder de mando sobre os
demais investigados sem adoção de ações visíveis, porquanto seu nome
não consta de muitas das empresas investigadas”. Mencionou o diálogo
gravado com “sua articulação para confundir autoridade judiciária da
Corte de Nova Iorque na ocasião em que prestara depoimento em
processo movido pelo Citibank”.
No STF, Mendes tomou sua segunda decisão. Ele afirmou que “a
fundamentação utilizada pelo decreto de prisão temporária —
indubitavelmente a espécie mais agressiva de prisão cautelar — não é
suficiente para justificar a restrição à liberdade dos pacientes”. O ministro
disse que De Sanctis cometeu “uma patente violação a direitos
individuais dos pacientes”. E considerou “desatualizado” o parecer do
subprocurador Gonçalves.
De uma só vez, a decisão do ministro fez vigorar três importantes
condições. Primeiro, considerou válido o afastamento da Súmula 691 —
ou seja, julgou matéria sobre a qual o TRF e o STJ já haviam negado
liminares. Depois, “converteu a natureza” do pedido de salvo-conduto de
preventiva para “liberatória”. Por fim, considerou não existir
fundamentação legal para a decretação das prisões temporárias.
Às 23h30 do dia 9, Mendes mandou soltar os irmãos Dantas e os
funcionários do Opportunity. Às 5h30 da manhã do dia 10, o banqueiro
deixou o prédio da PF. Vestindo um terno escuro, sem gravata, ele
caminhou rápido até o carro que o esperava no estacionamento,
enquanto os flashes dos fotógrafos disparavam ao longe.
O carro de Dantas foi seguido discretamente por uma Blazer verdeescura, conduzida pelo escrivão Ranieri Bellomusto. Sua missão era não
perder Dantas de vista. Os policiais estavam escaldados. Numa operação
anterior, uma equipe de Protógenes havia perdido a pista da mulher do
acusado de contrabando Law Kin Chong. Quando uma ordem de prisão foi
expedida contra ela, a polícia demorou sessenta dias para localizá-la.
Os principais investigados da Satiagraha que moravam no Rio
decidiram ficar em São Paulo para atender a um pedido da PF para que
prestassem depoimento no final do mesmo dia 10. O grupo de Dantas
ficou hospedado em um hotel no Itaim Bibi. Danielle voltou a acionar seu
celular e contou ao marido que as condições na cela da PF eram
execráveis: não havia descarga nas privadas, que exalavam mau cheiro o
dia todo, a PF não forneceu comida, e os presos tiveram de fazer faxina.
No avião até São Paulo, todos tiveram de ficar algemados a um cinto. O
militar da FAB responsável pelo voo teria “berrado” com os presos. Na
saída do avião, foram novamente algemados e colocados num camburão
da PF, e um policial tirou fotos de todos.
“Fomos tratados como criminosos. Sabe o que tem contra mim na
denúncia? Que eu sou ‘pessoa íntima’ [de Daniel e Verônica]. Coisa do
Demarco. Não tem nada, entendeu? É uma humilhação desnecessária.”
A explicação de que poderes extraordinários de Demarco estavam
“por trás de tudo” — do furo que a Folha deu, em abril, à própria
existência de uma apuração judicial de larga escala, passando por todas
as matérias jornalísticas contrárias ao banco e até as brigas com os
fundos de pensão — é um mantra no Opportunity.
N o lobby do hotel, em rápida entrevista à Folha, Dantas se declarou
inocente e classificou de “superficiais” as evidências do caso. Atribuiu sua
prisão às “revelações” que fez à Procuradoria de Milão, no bombástico
“processo italiano”.
O Opportunity decidiu que o advogado Nélio iria receber a imprensa
em entrevista coletiva na filial do banco, em São Paulo, antes dos
depoimentos na PF. Enquanto isso, Dantas e Danielle deixaram o hotel e
seguiram para o escritório de Nélio, na avenida 9 de Julho, para uma
conversa com outros advogados. Toda essa movimentação era
acompanhada pela Blazer da PF.
Por volta das 14 horas, Protógenes, Pellegrini e Ranieri estacionaram
o carro na garagem do prédio, foram à recepção e pediram para falar com
Nélio. Apresentaram-se como empresários à procura de uma consulta
jurídica. O porteiro ligou para o escritório, no 9º andar, e foi informado
de que Nélio estava numa reunião com um cliente, “um empresário”, e
que toda sua agenda para o dia fora cancelada. Era tudo o que os
policiais precisavam ouvir. Eles então se identificaram como policiais e
disseram que iriam subir de qualquer forma. Pellegrini foi para o
elevador, Protógenes ficou no lobby e Ranieri, na garagem. Um advogado
que trabalha para Nélio desceu para receber Pellegrini. Após uma
conversa dura, ambos voltaram à recepção do hotel. Protógenes informou
ao advogado que tinha um mandado de prisão preventiva para ser
cumprido e que o advogado não poderia obstruir o caminho da polícia. Os
três acabaram subindo no elevador.
Quando os policiais entraram no escritório, Dantas estava sentado
num sofá de couro, com a cabeça baixa, apoiada nas mãos, e os cotovelos
enterrados nas pernas. Havia cerca de vinte pessoas na sala. Protógenes
anunciou que trazia a ordem de prisão. Um advogado gritou que “não era
possível” e que a polícia não podia invadir um escritório de advocacia.
Protógenes entendeu que Dantas demorava a se decidir. Ele ameaçou
telefonar para a PF, disse que “vão chegar aqui cem policiais que vão
cercar e invadir este prédio. E eu vou chamar a imprensa para
acompanhar”.215
Após encerrar, às pressas, a entrevista coletiva que concedia no
Opportunity, Nélio voltou ao seu escritório. Ele pediu que Dantas pelo
menos não fosse algemado. O banqueiro seguiu sem algemas até o carro
da polícia no estacionamento. Foi colocado no banco de trás, ao lado de
Pellegrini, enquanto Protógenes ficou ao lado do motorista, Ranieri. No
caminho, Dantas perguntou aos policiais quais os motivos exatos daquela
prisão. Eles explicaram em linhas gerais, e Dantas retrucou que não era
caso de prisão. Protógenes aproveitou para comentar que Dantas tinha
“hábitos simples”. O delegado tinha ouvido dos agentes que o
apartamento de Dantas era pouco mobiliado e sem obras de arte. Dantas
teria respondido que “gostava de ser assim”.216
Dantas foi filmado e fotografado pela imprensa ao entrar algemado
na PF, pela porta da frente, ao lado de Pellegrini. Protógenes disse ter
ficado no carro para “não ser acusado de estrelismo”. A entrada escolhida
foi proposital. “Aquela entrada pela frente foi para quebrar o poder dele,
mesmo. Mostrar que ele não tinha condições de interferir no processo”,
reconheceu o delegado, meses depois.
Assim que Dantas foi levado, Danielle telefonou para o advogado Alberto
Pavie, em Brasília, para combinar a estratégia que deveria ser usada a
fim de jogar Gilmar Mendes contra os delegados. Eles deveriam ser
tachados de rebeldes.
O que eu acho que a gente precisa mostrar para o Gilmar: “Aqui,
amigo, a manobra que estão fazendo em relação a você. Pediram a
temporária, você deu temporária, eles tinham a informação desde meianoite e meia, seguraram o cara lá, obrigaram a gente a assinar um
papelzinho dizendo que a gente iria comparecer amanhã, forçando a
gente a ficar em São Paulo, e aí transformaram uma manobra, pedindo a
preventiva”.
Pavie ficou preocupado com a informação de que o juiz teria ouvido
novas testemunhas, pois achava que “não teria havido produção de prova
nenhuma” entre a primeira e a segunda ordem de prisão. O ponto era, de
fato, essencial. A prisão preventiva, para ser decretada logo após a
suspensão de uma prisão temporária por ordem do STF, só poderia estar
acompanhada de novos indícios.
De Sanctis realmente seria um suicida se não tivesse levado em
conta novas evidências. E elas de fato haviam sido encontradas no dia 8
de julho. Os dados não constavam da primeira decisão por uma razão
simples: as primeiras ordens de prisão são de 4 de julho (só cumpridas
pela PF no dia 8), portanto quatro dias antes de os policiais terem
entrado nas casas de Dantas e Chicaroni. Assim, De Sanctis não poderia
ter levado em conta evidências que nem sequer existiam.
No apartamento do banqueiro, os policiais apreenderam,
fotografaram e etiquetaram vários papéis que estavam numa mochila
azul em cima da sala de jantar. São quatro anotações manuscritas e
cinco folhas de computador impressas. Nomes e valores constam de
tabelas intituladas “Contribuições ao Clube” e “Contribuições ao Partido”.
As colunas são divididas por “valor”, “data”, “interlocutor”,
“motivo/utilização” e “forma”. Está escrito que 1,5 milhão (não se sabe se
reais ou dólares) foi pago em cash, em espécie, por “Pedro”, no ano de
2004, a título de “Contribuição para que um dos companheiros não fosse
indiciado criminalmente”.
O papel intitulado “Contribuições ao Partido” registra que 3 milhões
foram pagos por intermédio de “Rubens” em outubro de 2002 para a
“Campanha de Fernando à Presidência”. No ano de 2004, 20 milhões
foram pagos pelo trio “Pedro/Eduardo/Dudu” como “despesas de
campanha de Letícia”. Aqui se fala em uma divisão: “13 milhões em
pagamento de faturas e 7 milhões depositados”.
O valor total tratado em cada tabela oscilou de 30,4 milhões a 36
milhões. Outra tabela no mesmo estilo traz referências diretas a assuntos
de interesse do Opportunity. As colunas são divididas em “objeto”,
“resultado”, “Pagamento escritório” e “Pagamento escritório associado”.
Sobre o “HC denunciação caluniosa”, que teve um resultado “ ok 2x1”,
houve um pagamento escritório de “300”. Após a listagem de cinco
inquéritos, há o “Assunto Kroll”, cujo resultado estava “em andamento”,
e para o qual o “Pagamento escritório” foi de “500”.
Nas anotações à mão, há nomes de policiais, de membros do
Ministério Público, do Judiciário e de executivos da Telecom Italia. O
delegado Zulmar Pimentel, por exemplo, um dos principais responsáveis
pelas grandes operações da PF, incluindo a Chacal, que investigou o
Opportunity, é xingado de ‘filho da pauta, [o] segundo [cargo abaixo do
de] Paulo Lacerda, ódio do mundo’. Há um “xis” à frente dos nomes de
Protógenes e de De Sanctis. Uma anotação diz “US$ 3 mil para corromper
a polícia”. Outra anotação é mais genérica, “Corromper a polícia”.
Um papel rabiscado em um bloco de anotações com a marca do
luxuoso hotel Waldorf Astoria, em Nova Iorque, traz frases em inglês
sobre “assuntos importantes” e “Conselho da Magistratura”. Logo abaixo,
alguém escreveu: “Usar o assunto da polícia para produzir notícia e
influir na Justiça”. Não há data da anotação.
Outra evidência — estrondosa — foi encontrada no apartamento de
Hugo Chicaroni. Pilhas de dinheiro, num total de R$ 1,18 milhão, valor
que seria usado para corromper Protógenes e Victor Hugo. Em seguida à
apreensão, Chicaroni prestou um depoimento esclarecedor. Ele confirmou
ter procurado os dois delegados a mando do grupo Opportunity e ter feito
pagamentos a ambos. Explicou que, por intermédio de um amigo, o exdesembargador Pedro Rotta, conheceu no Rio o advogado Wilson Mirza,
que teria mostrado a Chicaroni a reportagem da Folha que tratava da
investigação e pedido que entrasse em contato com o delegado. Vinte
dias depois, prosseguiu Chicaroni, ele procurou Protógenes. O delegado
lhe teria dito que “não estava mais no caso” e indicou como novo
responsável o delegado Victor Hugo.
Chicaroni disse ter estado com Victor Hugo e pedido “que fossem
passadas informações” ao Opportunity sobre o inquérito. Diz o
depoimento: “Nesse momento, [Chicaroni] entregou ao delegado Victor
Hugo R$ 50 mil a título de ‘primeiro encontro’ e também pela promessa
de pequenas informações”. Chicaroni procurou Mirza e lhe disse que
Victor Hugo não gostaria de falar com advogados, mas com executivos do
Opportunity. Então Mirza apresentou a Chicaroni o ex-presidente da BrT
Participações, Humberto Braz. Chicaroni foi além: “Tenho conhecimento
de que o controlador do grupo Opportunity é o banqueiro Daniel Dantas e
que Humberto estava na condição, naquele momento, representando
interesses do grupo Opportunity”, declarou.217
O professor contou ainda que “pessoas ligadas ao Opportunity”
haviam levado à sua casa, cerca de dez dias antes, a quantia de R$ 865
mil em espécie, que “deveriam ser entregues ao delegado Victor Hugo”.
Chicaroni alegou que o resto do dinheiro encontrado em sua casa, cerca
de R$ 300 mil, veio do caixa de sua empresa, a Frango Forte. Chicaroni
prestou um segundo depoimento. Na presença de seu advogado, Milton
Fernando Talzi, ele reafirmou todo o primeiro depoimento e declarou que
“gostaria de salientar mais uma vez que busca a delação premiada”. Ele
ressaltou:
Sua única atuação se deu na aproximação de pessoas ligadas ao
grupo Opportunity e policiais federais, salientando que jamais participou
das negociações tidas entre os mesmos [...] Em relação aos recursos que
recebeu para pagamento do delegado Victor Hugo, informa que quem
coordenou a entrega dos valores ao declarante [Chicaroni] foi uma
pessoa de nome Humberto, executivo do grupo Opportunity.
Os dois depoimentos de Chicaroni não poderiam ser mais claros. Em
síntese, eles corroboraram as gravações realizadas por Victor Hugo.
Contudo, meses depois Chicaroni apresentou uma versão
completamente diferente do que ele mesmo havia dito à PF na presença
de advogado. Dizia agora ter sido “coagido” por Protógenes e deu a
seguinte explicação sobre o dinheiro achado em sua casa: “Esse dinheiro
foi mandado a mim pelo Braz, para que guardasse em São Paulo, mas eu
não sabia para que os recursos seriam usados”. 218 No posterior
interrogatório na Justiça, também disse que Protógenes é quem havia
pedido propina.
Os papéis apreendidos pela polícia no apartamento de Dantas foram
examinados entre os dias 8 e 9. Movidos a bolacha, café e água,
Protógenes, Victor Hugo, Pellegrini, Karina e os escrivães Ranieri e
Walter passaram a noite elaborando o novo pedido de prisão. Às 10 horas
do dia 10, cinco horas depois da soltura de Dantas, Protógenes e Victor
Hugo foram ao fórum da Justiça para aguardar a decisão de De Sanctis
sobre o novo pedido.
O juiz decidiu: “O requerido [Dantas] detém significativo poder
econômico e possui contatos com o exterior [...] Ficou claro que coragem
e condições para tumultuar a persecução penal não faltam ao
representado”.
A nova ordem de prisão estava destinada a ser pintada em cores de
“rebeldia”, “armadilha” e “insurgência” de De Sanctis contra Gilmar
Mendes, em particular, e contra o STF, como um todo. A defesa do
banqueiro procurou, desde o início, demonstrar a Mendes que houve uma
armadilha e que ele teria sido enganado pelo juiz de primeira instância.
Nos dias seguintes, essa tese foi inteiramente vencedora, tanto no
gabinete do presidente do STF quanto em boa parte da imprensa.
“Nova [prova]? Nós não sabemos”, reconheceu a advogada do
Opportunity, na conversa telefônica com Pavie, que estava em Brasília.
“Acho que não vale a pena você afirmar nem que houve nem que não
houve, porque é tudo fofoca, rumor e dedução. Mas, mostrando o
seguinte: o ardil da parte deles.”
Os advogados do Opportunity passaram a insinuar que a PF havia
“plantado” provas no apartamento de Dantas.
Explicou Danielle:
O cara, quando estava fazendo a diligência, subitamente apareceu
assim, “Ha, ha, encontrei o que eu precisava”. E este papel foi um dos
papéis que o Daniel fez a ressalva que não reconhecia. E o que eu estou
comentando aqui com o pessoal é o seguinte, todo mundo fala tudo do
Daniel, menos que o cara é imbecil e burro [...] Não é nem razoável
achar que ele teria um papel como aquele na casa dele.
Na manhã do dia 11, o Opportunity tinha algo a comemorar. “Vocês
já leram o Estadão? O Gilmar está mandando abrir uma sindicância
contra o Fausto no CNJ. E O Globo também [diz o mesmo]”, informou
Danielle a Arthur Carvalho.
Mendes também enviou uma comunicação à Corregedoria do TRF da
3ª Região, que abriu um procedimento. Trata-se de uma peça tão bizarra,
que De Sanctis depois mandou plastificá-la, como recordação. O
documento informa a abertura de uma investigação contra o juiz. No
campo destinado ao “assunto”, que se constitui no motivo da apuração,
está dito que são as próprias decisões tomadas pelo magistrado. Uma
decisão judicial, sobre a qual há todo um espaço legal no Judiciário para
ser debatida, mantida ou derrubada, era agora denunciada como
insubordinação e desobediência. Se toda decisão judicial der origem a
uma representação, as corregedorias do Judiciário entrarão em pane.
Danielle conversou com o colega João Mendes, que agora estava no
STF, em Brasília. Mesmo com o tribunal em recesso, o gabinete da
presidência permitiu a entrada do advogado às 11 horas. João cochichou
ao telefone: “Quando a gente chegou aqui, só podia entrar duas da tarde.
Assim que conseguiram contato com o gabinete, perguntaram quem era o
réu, a gente falou que era o Daniel. Aí falou assim: ‘Pode subir’. A gente
subiu”.
Danielle aproveitou para passar adiante todo tipo de boato possível
contra De Sanctis. Afinal de contas, João estava numa posição excelente,
em contato direto com o gabinete do presidente do Supremo.
— Você sabe que o Fausto mandou colocar escuta ambiental no
gabinete do Gilmar, que o jornal tá falando?... E que existem conversas
de advogados, como se tivesse tido alguma irregularidade, o que não
tem, as conversas dos advogados de Daniel, quando foram despachar com
ele [Gilmar]?
— Caramba! — assustou-se João.
— Tá no jorn... Quer dizer, alguém está me contando aqui,
porque não dá tempo de ler tudo o que está acontecendo, que a
gente está fazendo aqui outras coisas.
Era uma informação, de fato, trepidante. Um juiz federal mandar
instalar um microfone na sala do presidente do STF era surreal, e
certamente ilegal, pois De Sanctis não tinha competência para investigar
o ministro. O advogado do Opportunity de pronto soube o que fazer com
aquela informação: “Tá, deixa eu passar isso para eles então. Obrigado,
Dani”.
Danielle se valia principalmente de uma nota publicada na editoria
“Painel”, da Folha. Ela dizia que Mendes havia sido alertado por uma
juíza federal de São Paulo sobre um possível “monitoramento” em seu
gabinete. Informava que o ministro “confirmou informação” de que a PF
tinha em mãos um vídeo, “com imagens gravadas no Supremo”, em que
assessores da presidência conversavam com advogados do Opportunity. A
nota, portanto, atribuía a Mendes a informação.
A desembargadora e vice-presidente do TRF da 3ª Região Suzana de
Camargo Gomes fazia compras num shopping no feriado de 9 de Julho
quando tocou seu celular. Era um funcionário do TRF, dizendo que o
presidente do STF gostaria de falar com ela. O ministro e a juíza são
amigos. A desembargadora ouviu de Mendes que uma decisão sua que
permitia o acesso dos advogados aos autos da Satiagraha “não estava
sendo cumprida”. Assim, pediu “a intervenção” de Suzana e afirmou que
diria o mesmo à presidente do TRF, Marli Ferreira.219
Quando Suzana telefonou para Marli, esta já estava a par das
reclamações de Mendes. Num ato incomum, o presidente do STF ligou
para as duas principais autoridades do TRF. Marli depois contou: “Recebi
ligação do ministro Gilmar Mendes, em que ele solicitou o meu apoio no
sentido de obter informações sobre os autos de inquérito referentes à
Operação Satiagraha”.220
Mas o juiz do plantão já havia, conforme o próprio Mendes
reconheceu em sua decisão, repassado a íntegra da decisão de De
Sanctis. Marli ligou para De Sanctis e ouviu explicação igual. Ela
telefonou para Mendes e deu essa resposta. No dia seguinte, contudo,
Marli teve uma surpresa: soube pela imprensa que Suzana enviara ao
STF páginas do inquérito.
As atividades de Suzana continuaram no dia 10 de julho. Por volta
das 14 horas, logo depois da decretação da segunda prisão contra Dantas,
ela recebeu outra ligação de Mendes. Dessa vez, segundo ela, o ministro
“solicitava providências no sentido de confirmar se o juiz responsável
pelo caso estaria afrontando a decisão que proferira [na noite anterior]”.
Suzana telefonou para De Sanctis. Ela narrou depois à PF: “Indaguei
daquele magistrado sobre o fato mencionado pelo ministro Gilmar
Mendes relativo à afronta da decisão liminar da soltura”.
Suzana disse que De Sanctis lhe falou que havia uma “grande
sujeira” e perguntou “se ela achava normal o fato de o presidente do STF
ter participado na segunda-feira anterior em seu gabinete de uma
reunião com duração de duas horas, com advogados da defesa dos
envolvidos na operação”.
No ponto crucial do diálogo, Suzana relatou:
Na mesma oportunidade, o juiz também informou que havia
gravações “deles” falando mal de sua atuação como juiz. Não posso
afirmar que as gravações “deles” diziam respeito a conversas do ministro
com os advogados, mas informo que tais elementos foram repassados no
mesmo contexto da informação de que o ministro havia se reunido com
os advogados do caso, por duas horas, indicando possível relação entre
um fato e outro.
A declaração de Suzana deixa claro que De Sanctis não lhe disse que
estava gravando Mendes, mas apenas que foi isso o que ela entendeu, a
“possível relação”. Em novembro, Gilmar Mendes fez a seguinte narrativa
sobre esses eventos:
Também vem a notícia de monitoramento do meu gabinete, trazida,
inicialmente, por um jornalista da revista Veja e confirmada, depois, pela
desembargadora Suzana Camargo, que falara com o juiz da 6ª Vara e
disse à desembargadora que recebia informes sobre o que se dizia no
meu gabinete. Portanto, havia a prática do monitoramento. Mas havia,
também, a prática do amedrontamento.221
A versão de De Sanctis sobre a conversa com Suzana é diferente em
vários aspectos. Citando como testemunhas da conversa o diretor da
secretaria, uma oficial de gabinete e uma analista judiciária, todos em
sua sala no momento da ligação, ele disse que a desembargadora pediu
por telefone que reconsiderasse sua decisão que ordenou a prisão
preventiva de Dantas.
Fiquei surpreso com o teor da ligação, tendo aquela desembargadora
invocado a condição de amiga pessoal do ministro, e informando o quanto
o ministro Gilmar Mendes estava “irado”, afirmando que ele teria tomado
como pessoal a nova decretação da prisão de Daniel Dantas. O objetivo
da ligação da vice-presidente era confirmar ao ministro se eram
verdadeiras as informações sobre a notícia da nova prisão. Informei que a
decisão era técnica, tomada com base na legislação e fruto de novos
elementos [...] Houve insistência da desembargadora em relatar a ira do
ministro, tendo inclusive solicitado que [De Sanctis] reconsiderasse a
decisão, fazendo que eu frisasse novamente que a decisão tinha caráter
técnico.222
Gilmar Mendes voltou a falar com Marli Ferreira no dia 10, de forma
bastante enfática: “O ministro me informou que a desembargadora
Suzana lhe havia dito que o juiz Fausto teria feito comentários sobre a
existência de interceptação no gabinete da presidência do STF”.
Agora não era mais “monitoramento”, mas uma “interceptação”, isto
é, um grampo ilegal. Marli ligou para De Sanctis, que reagiu. “O
magistrado perguntou se eu também iria solicitar que sua decisão fosse
modificada, como havia feito a vice-presidente do TRF/SP.”
Marli disse que não, “até porque jamais faria qualquer solicitação
nesse sentido”. Ela contou ao juiz sobre a suposta interceptação no
gabinete do ministro, “pois o próprio ministro lhe havia informado tal
fato”. De Sanctis, segundo Marli, “ficou perplexo e nitidamente revoltado”
e disse que “jamais cometeria tamanha ilegalidade”. Marli telefonou para
Mendes e lhe disse que a interceptação não era verdadeira e que a nova
prisão era baseada em novas provas.
Mas as especulações sobre uma interceptação no STF, ordenada por
um juiz de São Paulo, cresceram de forma espantosa nas horas
seguintes. Elas foram incentivadas pela leitura enviesada dos documentos
e diálogos telefônicos interceptados de forma legal que já integravam os
autos da Satiagraha muito antes da decisão de Mendes.
Dias antes da deflagração da operação, a PF havia interceptado
e-mails que revelavam a estratégia do Opportunity para que um pedido
de liminar no HC caísse nas mãos de Mendes, ou do vice-presidente do
STF, Cezar Peluso. Um dos contratados do banco, o advogado Luiz Carlos
Lopes Madeira, afirmou em e-mail direcionado aos advogados do banco:
“Insisto que não estou pensando no STJ. No STF, quem estará na
presidência é o ministro Gilmar ou o ministro Cezar Peluso”.223
Em nova comunicação, Madeira explicou o que deveria ser feito:
O relator [Eros Grau] viajou para São Paulo hoje. Retorna
amanhã, 27. Em seguida viaja e só volta no final do recesso.
Pelas normas regimentais do STJ, em casos tais de urgência, o
processo vai para a presidência. Penso que no STF o
processamento deve ser o mesmo. Na presidência não seria mais
viável?
Outro defensor do Opportunity, Henrique Neves, concordou com
Madeira: “No STF, por sua vez, a questão ainda está na apreciação da
liminar, o que pode ser levado ao Presidente no plantão”.
Quando os e-mails vieram a público, pela Folha, após a Satiagraha,
Madeira protestou: “Isso se trata de uma ilegalidade, de uma violência. É
uma estupidez, nem na época da ditadura se chegou a quebrar o sigilo de
advogados”.
Em maio, a descoberta dessa movimentação deixou os investigadores
da Satiagraha em pânico. No dia 2 de julho, eles informaram Protógenes,
que levou aos autos: “O presente relatório foi feito em caráter de
urgência objetivando informar a autoridade policial de possíveis
manobras no âmbito do Poder Judiciário que possam causar significativo
prejuízo para a presente investigação policial”.
Havia também as conversas telefônicas de Danielle, aqui relatadas
publicamente pela primeira vez, parágrafos acima. Com acesso direto aos
e-mails e telefonemas, a PF e o juiz tinham plenas condições de saber
quando, como e por que os advogados do banco buscavam o gabinete de
Mendes. Mas isso não queria dizer que os dados foram obtidos por
monitoramento no gabinete de Mendes. As exaustivas investigações
posteriores desencadeadas pela PF, pela Abin e pela CPI dos Grampos,
que ouviram dezenas de pessoas, invadiram residências e apreenderam
computadores, nunca confirmaram a existência de qualquer grampo no
gabinete. O “monitoramento”, se pode ser assim chamado, foi indireto,
por meio de terceiros. Eram pessoas escrevendo e falando sobre Mendes,
o que esperavam alcançar dele ou do Supremo.
Quando alguém está sob vigilância eletrônica ou telefônica com
ordem judicial, tudo o que produzir e for de interesse da investigação fica
armazenado no inquérito. Pelas leis brasileiras, o juiz não pode
simplesmente varrer os indícios para debaixo do tapete, pois as provas
não podem ser desfeitas. É assim que uma investigação legal funciona.
Não há um poder superior que extermine os áudios e documentos apenas
porque os investigados citam, ainda que indevidamente, um terceiro não
investigado, mesmo que seja o presidente do Supremo.
Ao conversar com Suzana, pelo telefone, De Sanctis tinha pleno
conhecimento da ação dos advogados que falavam da presidência do STF.
Daí a dizer que mandara grampear Mendes era uma distância fabulosa, a
distância entre a lei e o crime. Mas a estratégia de classificar as simples
menções a autoridades de “espionagem” voltaria diversas vezes após a
Satiagraha, na imprensa e fora dela. As investigações posteriores,
contudo, demonstraram que, assim como Mendes, a então ministra da
Casa Civil Dilma Rousseff e o então secretário pessoal do presidente da
República Gilberto Carvalho jamais tiveram suas linhas telefônicas
interceptadas. Afirmação no sentido contrário é uma mistificação que não
tem nenhuma base nos dados reais disponíveis; os indisponíveis, ou
inexistentes, são o campo apropriado da paranoia.
No depoimento que prestou à PF de Brasília, no dia 9 de setembro de
2009, a própria Suzana afirmou: “Não acredito que o juiz Fausto tenha
decretado ‘grampos’ ilegais atingindo os telefones do ministro Gilmar
Mendes. Os fatos por ele relatados a mim devem ser oriundos de
informações obtidas no decorrer das investigações da Operação
Satiagraha”.
Essa afirmação clara e objetiva não veio a público antes deste livro.
No dia 11 de julho, o primeiro em que Dantas passou preso por força da
segunda ordem de prisão, defensores do Opportunity efetivamente se
reuniram com assessores da presidência do STF. As esperanças da
advogada Danielle foram renovadas com uma informação surpreendente
passada pelo advogado João Mendes. Ele não só foi recebido no gabinete
do presidente do STF, segundo ele antes do horário de expediente, como
ainda pôde argumentar, com auxiliares diretos do ministro, as possíveis
deficiências da segunda ordem de prisão emitida por De Sanctis. Essas
conversas também são inéditas. João ligou para Danielle:
— Olha só, os assessores aqui do presidente acharam relevante
aquela questão da data dos depoimentos [...] A gente tem aí para
mandar por fax para mim?
O advogado queria expor ao STF a tese do “ardil” levantada
mais cedo. O advogado pediu:
— Manda por fax aqui para a presidência do STF.
Enquanto João perguntava aos servidores o número do
aparelho, Danielle lembrou:
— João, você viu como é que precisava de você aí?
— É verdade, é verdade. Você estava certíssima, foi
superimportante pra gente.
— Por isso que eu não quis discutir com você na hora, vi que
você estava nervoso. Mas é preciso ter alguém de confiança aí.
Porque, na verdade, tudo o que a gente tem tá aí. Tá tudo aí.
O advogado ressaltou o interesse dos assessores da
presidência:
— Os assessores são superjovens, fizeram perguntas, estão
acompanhando pela imprensa, claro, aí perguntaram: “E esse
depoimento?”. A gente explicou que não tinha nenhum fato novo
no depoimento.
João repassou o número do fax, 61-3217-4526, e consultou
para quem o documento deveria seguir.
— Manda para o doutor Luciano. “De Alberto Pavie para
doutor Luciano.” Luciano Fuck. Que ele vai receber, pediu esse
documento.
Fuck era o secretário-geral da presidência do STF. Graduado em
direito pela Universidade de Brasília, ele foi indicado por Gilmar Mendes,
de quem já era assessor, e tomou posse no cargo em abril de 2008.
Procurado pelo autor para que explicasse suas conversas com os
advogados do Opportunity, o servidor informou, por meio da assessoria
de imprensa do STF: “O senhor Luciano Fuck informa que não concederá
a entrevista solicitada”. 224 Em 2011, Fuck era o chefe de gabinete do
ministro Mendes.
O fax de fato chegou à secretária-chefe da Secretaria Judiciária da
Presidência do STF, às 10h45.225
Às 17h30, as tevês começaram a divulgar que Gilmar Mendes havia
concedido o segundo HC em favor de Dantas — o primeiro fora dado
quarenta e duas horas antes. Pavie, o advogado do Opportunity, foi
checar a informação e, um minuto depois, telefonou: “Danielle,
confirmado”.
“Confirmado, confirmado”, repetiu Danielle. A sala do Opportunity
explodiu em gritos de comemoração, como ficou gravado pela PF.
Dez minutos depois, João Mendes estava com a decisão nas mãos e
deu mais detalhes à Danielle. O resultado foi muito melhor e mais amplo
do que o esperado:
Ele antecipou inclusive o mérito. Ele falou que não há suficientes
indícios de autoria e materialidade [...] Ele inclusive cita aquela
parte que o Hugo fala, “grupo Opportunity”, não faz menção
expressa à pessoa do Daniel, aquele negócio que você tinha
falado ontem. Além disso, ele fala que não há fato novo. E bate
no juiz. Fala que era um absurdo, que era simples convicção
daquele magistrado e que não tinha... Foi muito legal. Ele pegou
vários argumentos da nossa peça, bateu, fundamentou, foi uma
decisão bonita.
Ainda lendo o papel enquanto falava ao telefone, João se
surpreendeu com outro trecho: “E olha só! Ele reproduz, ele bota a nossa
parte que a gente falou, ‘tratou-se de uma armadilha’. Caraca!”,
comemorou João, dando uma larga risada. Era o próprio argumento
inicial do Opportunity, que passaria a circular com ênfase por vários sites
noticiosos.
Mendes escreveu: “Ressalte-se, em acréscimo, que o novo
encarceramento do paciente revela nítida via oblíqua de desrespeitar a
decisão deste Supremo Tribunal Federal”.
Para ilustrar seu ponto de vista, o ministro transcreveu partes da
manifestação da defesa do banco: “Tratou-se de uma armadilha —
engendrada em prévio acordo com o MPF e com o Juiz da 6ª Vara
Criminal — destinada a conferir um mínimo de tempo para que aquele
magistrado decretasse a ‘prisão preventiva’ em razão da liminar que
suspendera a eficácia da ‘prisão temporária’”.
Sobre as novas provas propriamente ditas, Mendes utilizou outras
desqualificações, tachando-as “de duvidosa idoneidade”, “de vago
significado” e “documentos apócrifos”. Ele não esclareceu o problema da
idoneidade. Parecia sugerir que a PF tinha “plantado” as provas, tese
jamais comprovada.
Mendes disse ainda que o juiz “já dispunha”, na decretação da prisão
temporária, da hipótese de que Braz e Chicaroni participaram de um
esquema de propina. Contudo, a apreensão do dinheiro ocorreu no dia 8,
enquanto a decisão do juiz foi do dia 4. Além disso, o juiz não dispunha
de um dado relevante, o depoimento de Chicaroni, que fez importante
ligação com o banco Opportunity.
O próprio Mendes transcreveu: “O declarante [Chicaroni] informa ter
conhecimento que o controlador do Grupo Opportunity é Daniel Dantas e
que Humberto estava na condição, naquele momento, representando
interesses do Grupo Opportunity”.
Mas nada disso convenceu o ministro: “Evidentemente, essa menção
[de Chicaroni] não é suficiente a justificar a conclusão de que o paciente
teria envolvimento direto no suposto delito”.
De novo em liberdade, Dantas usou o seu telefone celular do Rio. Ligou
para Guiga para especular as circunstâncias e implicações da Satiagraha
e reclamou: “É de uma violência inacreditável [...] O que tem ali? Não
tem nada. Grampo telefônico em largo excesso, no meu entender”.
Ele continuou:
Tem umas passagens ali... A mais exótica de todas não é nem
comigo, é com o Naji, tá certo? É o negócio de ele receber informações
privilegiadas do Federal Reserve. Eles dizem lá que a taxa de juros, que
alguém disse que a taxa ia baixar tantos por cento, e baixou. Então que
eles receberam informação privilegiada. Agora, vamos supor que ele
tenha recebido. Não é crime no Brasil, não sei nem se é crime nos
Estados Unidos. Se o presidente do Banco Central quiser telefonar para
Naji Nahas e dar uma informação privilegiada, ele não está descumprindo
a lei no Brasil. E o que a Polícia Federal tem que ver com isso?
Entre os dias 8 e 11 de julho, Dantas recebeu um grande baque. Mas
as coisas também não estavam fáceis para um de seus algozes,
Protógenes. Na mesma manhã em que o banqueiro foi encarcerado,
começou a lenta e gradual descida do delegado aos infernos da burocracia
e de uma batalha pública no Congresso e na imprensa, que expunham
seus erros e questionavam seus métodos. Para Protógenes, ele apenas
cumpriu o que entendia ser legal e necessário — recusou uma propina
milionária e prendeu um figurão —, mas o preço a ser pago seria alto.
Por outro lado, recebeu uma avalanche de congratulações e apoio na
forma de e-mails, cartas e declarações públicas em sites, emissoras de
tevê e jornais. O país pareceu mesmo dividido sobre o assunto.
Protógenes chegou a considerar desdobramento semelhante. Em 2006,
ele disse enigmaticamente que estava prestes a entrar num caso grande
e complexo que iria “rachar o país ao meio”, 226 sem dar detalhes. O
delegado talvez só não contasse que racharia junto, dividido entre a
polícia e a política.
A virose
“Na verdade, nós aqui na Câmara dos Deputados, via de regra, os parlamentares,
nós sabemos de tudo um pouco, mas de um pouco nós não sabemos tudo. E desse
pouco quem sabe tudo, nessa tarefa aí, nesse negócio, é exatamente o senhor
[Daniel Dantas]. E nós — eu quero confessar pelo que vi aqui, pelo que tenho visto
— sabemos muito pouco ou quase nada.”
Deputado federal Pompeo de Mattos (PDT-RS), dirigindo-se a
Dantas durante o depoimento do banqueiro à CPI das
Interceptações Telefônicas, em 13 de agosto de 2008.
A ordem para a abertura do inquérito da PF sobre a conduta de
Protógenes veio do gabinete do então ministro da Justiça Tarso Genro
(PT-RS). Ele encaminhou a Luiz Fernando Corrêa reclamações da TV
Brasil, emissora do governo federal, e do escritório do SBT em Brasília
sobre suposto “privilégio” dado à TV Globo no dia da deflagração da
Satiagraha. Uma equipe da emissora flagrou o ex-prefeito Celso Pitta de
pijama, quando ele abriu a porta de casa para receber a polícia. O
problema da concorrência, portanto, não era exatamente as imagens,
mas sim a falta delas.
A PF anexou ao pedido de Genro três relatórios de delegados que
disseram ter encontrado jornalistas na rua, com câmeras e microfones,
em frente às casas de Matalon, Nahas e Pitta. As suspeitas sobre o
vazamento recaíram em Protógenes. Às 5 horas do dia da operação, no
briefing que reuniu todos os policiais do caso na PF paulistana,
Protógenes citou os nomes de Nahas e Pitta, o que causou estranheza
entre os policiais, pois o comum era receber os nomes dos “alvos” quando
todos já estavam nos carros. No briefing, o delegado Paulo de Tarso
Teixeira observou que os policiais deveriam impedir que a imprensa
filmasse os investigados, mas Protógenes relativizou o alerta, dizendo ser
impossível evitar imagens em operações daquele tipo. Paulo de Tarso não
gostou. Ele era o chefe da DFIN, a Divisão de Repressão a Crimes
Financeiros, subordinada à DCOR, Diretoria de Combate ao Crime
Organizado, ambas vinculadas à direção-geral da PF, em Brasília. Como o
caso Satiagraha havia sido transferido, em março, da DIP para a DCOR,
Paulo de Tarso era o chefe imediato de Protógenes — acima dele naquele
setor, só o delegado Roberto Troncon, diretor da DCOR.
Após o briefing, Protógenes insistiu em acompanhar a delegada
Juliana Ferrer, que iria prender Pitta, no Jardim Paulista. O delegado
disse que o ex-prefeito era um alvo politicamente sensível, daí a
necessidade de “acompanhamento especial”. Porém, quando o Nissan em
que estavam saiu da avenida 9 de Julho em direção à avenida 23 de
Maio, o delegado recebeu um telefonema de Paulo de Tarso. Ele disse que
o colega não poderia ter saído do prédio da PF e exigiu seu retorno.
Protógenes contou, dias depois, ter sido ofendido:
“‘Que porra você está fazendo que está fora da SR/DPF/SP, Queiroz?
Você é um mentiroso, você mentiu para mim. Você não me avisou porra
nenhuma’, e outras palavras de baixo nível que não recordo devido ao
choque emocional que tomou conta de toda a equipe naquele
momento.”227
Protógenes, enfim, regressou para a PF, em outro carro.
Um dia depois da Satiagraha, Paulo de Tarso telefonou a Protógenes
para dizer que uma prometida reunião em Brasília, na qual seria feito o
balanço da operação, havia sido desmarcada por Luiz Fernando Corrêa.
Sem avisar o colega, Protógenes gravou o telefonema. Paulo de Tarso
revelou que o ministro da Justiça pedia esclarecimentos à PF e que a
Rede Bandeirantes também reclamava das imagens da Globo.
Protógenes começou a ser sangrado em outra frente, ainda mais
problemática. Entre 9 e 14 de julho, a imprensa relatou a participação
dos agentes da Abin na operação. Revelou-se que, em maio, no Rio, Braz
foi seguido pelas ruas de Ipanema. Uma fonte das informações era o
senador Heráclito Fortes (DEM-PI). Em maio, ele foi procurado por seu
amigo Carlos Rodenburg e pelo publicitário Guiga. Os dois reclamaram
que Verônica e Braz estavam sendo seguidos e que “havia uma operação
montada”. Heráclito telefonou para o general Jorge Félix, do GSI do
Palácio do Planalto, e cobrou explicações.
“Eu lhe disse que estava havendo um desvio de ações no Rio e que
isso precisava ser apurado”, 228 disse o senador. Dias depois, apareceu
em seu gabinete o então diretor-geral da Abin, Paulo Lacerda.
Ele desmentiu, me disse que não era verdade que gente da Abin
tinha seguido o Braz. Aí começou a esculhambar o Daniel Dantas. Eu
disse que ele tinha todo o direito de não gostar de Dantas, mas que não
podia usar a Abin para isso. Indaguei sobre o Protógenes, e ele disse que
era um homem de sua inteira confiança.
Horas depois da conversa, disse o senador, um assessor de Lacerda
telefonou para dizer que a perseguição fora um engano, na verdade os
agentes da Abin seguiam “um russo” e acabaram topando com Braz sem
saber sua identidade.
O ponto culminante das pressões sobre Protógenes ocorreu seis dias
depois da Satiagraha, quando a PF fez, numa sala da Superintendência
em São Paulo, aquela reunião a princípio cancelada por Corrêa. Dela
participaram Protógenes, Troncon, Paulo de Tarso, Leandro Daiello
Coimbra, então superintendente da PF em São Paulo, outros dois
delegados da Satiagraha, Pellegrini e Karina, entre outros policiais. O
encontro foi gravado por ordem de Troncon. O áudio foi depois
classificado no mais alto grau de sigilo e levado para Brasília. Protógenes
deixou a coordenação da Satiagraha ao término dessa reunião. Quando
os jornais passaram a divulgar a versão de que ele havia sido afastado, e
não deixado o caso por conta própria, a direção-geral divulgou em
Brasília trechos editados da reunião. Eram muito curtos: do total de duas
horas e cinquenta e cinco minutos, a PF liberou pouco mais de quatro
minutos, nos quais Protógenes aparecia elogiando Troncon e a direçãogeral e concordava em deixar a operação para se dedicar aos estudos na
Academia Nacional de Polícia.
A íntegra da gravação, contudo, revela uma realidade bem diferente.
Troncon começou fazendo um duro diagnóstico sobre a Satiagraha.
Disse que as “informações não fluíram” e que uma cópia da decisão do
juiz De Sanctis e a lista dos investigados não foram entregues “para
informar ao diretor-geral”. Reclamou das imagens de Pitta e da casa de
Nahas, disse que só ficou sabendo pela imprensa sobre a ajuda da Abin e
quis saber do “monitoramento” do gabinete de Gilmar Mendes. Coimbra
também fez diversas críticas a Protógenes. Reconheceu que teve acesso
às listas dos “alvos”, mas não à decisão judicial. Troncon e Coimbra
indagaram sobre o segundo pedido de prisão preventiva contra Dantas
não ter sido informado previamente ao superintendente, Coimbra.
Protógenes, Pellegrini e Karina se defenderam várias vezes, dizendo
ter seguido todos os trâmites burocráticos.
Em determinado ponto, houve uma revelação importante sobre o
número correto de policiais à disposição da Satiagraha. Protógenes
lembrou que, quando a investigação foi transferida da DIP para a DCOR,
ele enviou a Troncon uma relação dos policiais então vinculados à
operação. Protógenes indagou: “Acho que eram seis policiais, né, doutor
Troncon?”.
“Eram cinco ou seis”, confirmou Troncon.
Nos meses seguintes, a direção-geral da PF divulgou à imprensa que
dezenas e dezenas de policiais trabalharam naquela que teria sido uma
das mais custosas operações da história da polícia. No dizer da cúpula da
PF, Protógenes reclamava de barriga cheia. Mas a reunião revela o exato
contrário, nas palavras do próprio Coimbra:
— É pequena, mas tem sido o padrão, Protógenes [...] Mas é
óbvio que nós nos preocupamos, isso tem sido um norte, desde a
minha época de coordenação em Brasília, que as operações
tenham uma ajuda muito boa no decorrer, mas, depois da
execução, elas meio que se esvaziam. Isso tem sido uma
discussão longa em Brasília, de não esvaziar, mas sim reforçar.
Tu sabes tanto quanto eu que, via de regra, ela esvazia logo
depois.
— Todas as operações são esvaziadas — alfinetou Protógenes.
Troncon voltou ao “monitoramento” de Gilmar Mendes.
Protógenes disse que havia notícias distorcidas na imprensa, e
Pellegrini acrescentou:
É um grupo muito forte. Eu fui executar a prisão lá no [escritório de]
Nélio Machado, e tinha dois desembargadores aposentados e um juiz do
Rio. Na casa do Daniel Dantas, eu achei vários documentos — o Victor
achou um de 2004 —, eu vi um de 2007, de R$ 18 milhões para
pagamento de propinas para políticos, juiz e jornalistas no ano de 2007.
Coimbra concordou que denúncias surgem para enfraquecer policiais:
“Todos nós que trabalhamos em casos importantes em algum
momento fomos minados, muitas vezes por colegas com algum
interesse.”
A reunião pareceu até caminhar para um desfecho mais tranquilo.
Mas a fala de Coimbra sobre ser “minado” internamente era a deixa para
o que viria em seguida. Ele, Paulo de Tarso e Troncon se alternaram em
declarações no mesmo sentido, apertando o cerco sobre Protógenes. Os
dias do delegado na Satiagraha acabaram numa sequência de vinte
minutos.
Paulo de Tarso disse que “ficou muito preocupado” com a informação
de que o juiz e o procurador tinham orientado Protógenes a não repassar
cópia do mandado de prisão para outras autoridades da PF (os dois
negam ter feito a orientação): “Eu acho o seguinte, acho que há uma
desconfiança em cima do superintendente que está começando”.
Coimbra, que em 2011, no governo Dilma, se tornou diretor-geral da
PF, concordou: “Que tem que ser esclarecida, porque eu pretendo ficar
alguns anos aqui e pretendo fulminar esse problema agora”.
Ficou mais claro o objetivo da reunião, que era “fulminar” o
problema. Mas qual seria ele?
Troncon dirigiu-se a Protógenes:
— Eu vejo você um cara esforçado, Queiroz, um cara competente,
só que tem um problema: você tem uma teoria da conspiração e
uma paranoia que contaminam todo mundo.
Troncon ironizou:
— Então, “eu sou um supertira, um superpolicial, mas só
posso trabalhar num caso, ou num caso em que uma pessoa vai
desenvolver” [...] A confiança é uma via de dupla mão. À medida
que você começa a desconfiar de mim, eu também tenho motivo
para desconfiar de você e de cada um de vocês.
O diretor da PF disse que era preciso agir: “Se nós permitirmos essa
sequência de desencontros, atritos, essa virose da desconfiança, se a
gente permitir que isso se instale e se alastre, não vejo bom desfecho,
não [...] Esse é o ponto crucial da nossa crise hoje. É uma crise de
confiança”.
Troncon contou que sofreu desconfianças por ter integrado, em 1987,
o movimento ruralista radical UDR (União Democrática Ruralista), em
Dracena (SP). Mesmo assim, foi escolhido por Corrêa, numa gestão
petista, como diretor da PF. Protógenes então indagou se já havia
desconfiado alguma vez de Troncon.
“Em momento nenhum”, retrucou Troncon, numa grande contradição.
Ele havia acabado de falar sobre o problema da desconfiança. “O
problema é o seguinte, é que, nessa sucessão de atos, eu me senti
bastante chateado [...] ‘Será que está a serviço do PT, do senador xis’?
Pô, peraí.”
Protógenes disse que a reportagem da Folha que revelou a existência
da Satiagraha levou o Opportunity a tentar seu afastamento do caso. E
revelou que a PF lhe deu um prazo fatal para concluir o caso: “Daí,
Troncon, toda minha agonia. Não era teoria da conspiração, eu tinha
motivos para agir assim”.
Troncon partiu então para o que ele chamou de “a outra situação”,
um curso a que Protógenes daria início na academia em Brasília.
Protógenes disse que começaria o curso dentro de uma semana. Troncon
indagou:
— E esse inquérito, você vai relatar?
— Vou relatar [...] Eu peguei o [inquérito] da gestão
fraudulenta e a corrupção, que já está materializada [...] Sabedor
de que tem réu preso, eu tenho que terminar essa investigação
em trinta dias. Então eu vou ouvir o Daniel Dantas, fiz uma pauta
para ouvir a cúpula do Opportunity, me parece que são cinco
pessoas e os dois corruptores que estão aí, e o inquérito está
encerrado.
O assunto até estimulou os outros delegados da Satiagraha a falarem
sobre os rumos do caso: “É preciso comprar HDs para fazer o
espelhamento”, sugeriu Karina. “Esses HDs que encontrei na casa dele
estavam no fundo falso da biblioteca. O próximo passo dele [Dantas] é
pegar esses HDs de volta”, concluiu Pellegrini (o Opportunity negou
existir “fundo falso”).
Os delegados ainda falavam sobre o futuro, quando Coimbra fez uma
pergunta a Protógenes: “Mas você consegue relatar até sexta-feira?”.
Protógenes havia dito, pouco antes, que iria relatar o inquérito “em
trinta dias”. Pela lógica da pergunta de Coimbra, Protógenes teria apenas
quatro dias para acabar o trabalho, vinte e seis a menos do que o pedido.
Para não restar dúvidas, Protógenes repetiu:
— Trinta dias.
— Tá, mas tu vai estar no curso superior — pressionou
Coimbra.
— Sim. Mas eu marquei com o advogado de fazer as
audiências nos finais de semana, até para preservação de
imagem...
— Eu acho isso... complicado [...] Tem que ver, porque fica à
disposição da academia — disse Coimbra.
— Mas [no] sábado e domingo tem aula? — indagou
Protógenes.
— Sábado tem aula. O problema é parecer que é pessoal —
afirmou Coimbra.
Em outras palavras, o superintendente disse que Protógenes deveria
deixar o caso para “despersonalizar” a Satiagraha. O raciocínio foi
rapidamente apoiado por Troncon: “Quer dizer, o que a gente tem que
perguntar no momento, tem que despersonificar a investigação. A
investigação é a investigação do órgão, é investigação criminal, ainda que
você dê sua colaboração, porque você é o cara que mais sabe desse
negócio, mas assim, ó, fora dessa situação”.
A “situação” da qual Protógenes deveria ficar “fora” era todo e
qualquer inquérito da Satiagraha. Portanto, Troncon disse a Protógenes
que ele não deveria mais investigar Dantas, mas apenas, no máximo,
“dar sua colaboração”.
Protógenes ainda argumentou:
— Muito pelo contrário, ela não está personificada. Tem três, tem
quatro delegados nessa investigação. Inclusive o Victor fez a ação
controlada e ele vai, por sugestão minha, aí cabe avaliação tua, fazer o
inquérito sobre a unificação das “teles”.
Mas Troncon deixou ainda mais claro o que pretendia:
— Não, o que a gente tem que pensar é o seguinte [...] Aí eu
concordo com o Leandro. A gente discutiu isso um pouco antes,
logo que cheguei de manhã aqui. A gente tem que sair desse foco
da personificação [...] Especialmente quem está no período da
academia — até tem os outros que trabalham meio período —,
ele está com dedicação exclusiva ao curso, à frequência das aulas
e tudo mais. Mas por que vamos abrir [exceção] para o Queiroz?
Troncon acabara de revelar que, antes da reunião, havia traçado uma
estratégia em comum com Coimbra. A reunião ocorreu apenas para
chancelar algo que já havia sido decidido.
— Ele vai relatar até sexta-feira. Não consegue relatar até sextafeira? — exigiu Coimbra.
Troncon respondeu por Protógenes:
— Não, porque tem que ouvir o pessoal [...] Você consegue
concluir até sexta? Se concluir até sexta, tudo bem — insistiu
Troncon.
Era a terceira pergunta na mesma direção. Protógenes, afinal, cedeu
ao óbvio. A direção da PF o queria fora da Satiagraha num prazo máximo
de quatro dias.
“Depende de eu falar com o advogado. Só faltava o Humberto [Braz],
ele se apresentou. Acredito que não tem nenhum óbice, não”, finalmente
cedeu Protógenes.
“Então, ele conclui até sexta. E a gente fica para resolver os
outros...”, apontou Coimbra.
O inquérito seria relatado por Protógenes na data exigida por seus
superiores, dali a quatro dias, com o indiciamento de Dantas e outras
nove pessoas. O relatório e os indiciamentos, contudo, perderam sentido,
pois o inquérito foi outra vez relatado pelo novo delegado do caso.
Ainda na reunião, Troncon orientou que não só Protógenes, mas
também todos os delegados da Satiagraha saíssem do caso. Ele foi direto:
Eu, particularmente, pela avaliação que fiz, até antes dessa reunião,
eu já tinha conversado com o dr. Leandro, dizendo o seguinte: “Ó, para
buscar a impessoalidade, eu acho que os delegados que estão nesse caso
têm que seguir [sair do caso]”. Põe outros delegados. É a opinião pessoal
minha. Você [Protógenes] está indo para a Academia, de maneira
nenhuma poderia [continuar], Pellegrini está em outra lotação, foi
chamado meio de última hora, está ajudando muito bem, está ótimo,
Karina já está há tempo... Por quê? Porque a imprensa está explorando
isso e vai explorar muito mais.
Troncon voltou-se para Protógenes:
Eu acho assim, no seu caso, em particular, nossa, não tem [o que
hesitar]... Se você conseguir relatar sexta-feira, beleza, mas
prosseguir numa situação, isso aí é dar lenha na fogueira.
Certamente prosseguirá como fonte de consulta, como apoio [...]
mas você continuar tocando inquérito...
Protógenes voltou a dizer que queria encerrar a operação: “A minha
proposta é essa, eu fico até o final da operação [...] Só que com um
diferencial, eu não vou ficar presidindo, não pretendo presidir nenhuma
investigação. Ficaria num apoio de um trabalho, coletando dados,
analisando...”.
As duas últimas frases também foram pinçadas do contexto e
divulgadas pela direção-geral da PF como suposta prova de que
Protógenes abriu mão do caso.
Troncon se despediu do grupo, disse que tinha de pegar um avião.
Outro delegado, não identificado na gravação, pediu a palavra.
Protógenes já estava fora, havia jogado a toalha diante da avalanche de
acusações. Mas o colega comentou: “Se retirar Karina e Pellegrini sem
um motivo aparente e justificado, não vai parecer que...”.
Troncon nem deixou que ele completasse a frase. Alegou que Karina
e Pellegrini estavam envolvidos “emocionalmente” com o caso.
— Eu vou dizer por quê [...] Eu vejo que vocês, emocionalmente,
estão meio confusos. Eu vi certa confusão nisso. Agora, vocês é
que me respondam: têm condições de conduzir, tecnicamente,
sem emotividade, o caso, até a sua conclusão? — indagou
Troncon.
— Tem, se os meios forem dados, tem. Senão, eu preciso
sair, inclusive — respondeu Karina.
— Eu não pedi para estar aqui [na reunião], eu fui chamado
— protestou Pellegrini.
Dois dos principais delegados da Satiagraha se disseram capazes de
tocar o caso adiante.
A fala do diretor da PF era tortuosa — disse que a decisão cabia ao
superintendente, mas acusou os colegas de “emotividade”. Ele fez as
mesmas perguntas duas ou três vezes. Pellegrini se defendeu: “Minha
missão, chefe, eu cumpri minha missão. O alvo principal não teve
problema nenhum. Eu trouxe todos os presos para cá, me deram outra
missão, eu cumpri com a minha missão. De forma técnica, em nenhum
momento fui emotivo”.
Mas não havia mais por onde avançar na conversa. Os delegados
estavam já quase batendo boca com um diretor da PF. Troncon disse que
iria encerrar o encontro. Antes, Paulo de Tarso indagou se Karina e
Pellegrini “desconfiavam” dos chefes. Mas Coimbra não gostou nada da
pergunta, disse que não deveria “nem ter sido feita”: “Deixa eu deixar
uma coisa bem clara aqui nessa mesa para todo mundo entender. Não
são os delegados que confiam no superintendente para fazer uma
operação aqui, é o superintendente que escolhe um delegado da sua
confiança para fazer uma operação aqui”.
Dessa forma crua, Coimbra resumiu como funciona o controle da
cúpula da PF sobre as mais importantes investigações. Os
superintendentes têm poder total para indicar ou afastar os delegados.
Confirma-se pela própria boca de um alto integrante da PF que a
presidência de um inquérito pode ser manobrada pelos chefes. Nesse
sentido, a reunião forneceu uma visão rara e privilegiada sobre o
exercício do poder na Polícia Federal.
A reunião selou a saída dos quatro principais delegados da
Satiagraha. Victor Hugo voltou para Ribeirão Preto (SP), Karina seguiu
para a Corregedoria, e Pellegrini, para a delegacia antidrogas. Protógenes
ficou no caso apenas mais quatro dias. Depois, foi colocado na
“geladeira”. Sobre ele se voltou toda a força investigativa da
Corregedoria da PF, por ordem do diretor-geral. De caçador, o delegado
passou a caça, e cada ato seu passou a ser escrutinado, amplificado.
Protógenes virou alvo em nove procedimentos diferentes: três
processos disciplinares, três sindicâncias e três inquéritos policiais. O
delegado foi acusado de ter ordenado o suposto grampo sobre Gilmar
Mendes, de vazamento de informações na Satiagraha, de um texto que
escreveu em seu blog, de ter declarado apoio à candidatura de Luciana
Genro (PSOL-RS) e até de suposto vazamento do caso Maluf, de dois
anos antes.
As coisas também não estavam fáceis para Protógenes na imprensa,
que fez pesadas críticas ao pedido de prisão contra a jornalista Andréa
Michael. Após deixar o xadrez da PF, o próprio Dantas explicou, num
telefonema a Guiga, que a matéria da Folha havia sido um problema para
o banco:
Ele [Protógenes] até fez uma construção curiosa [...] Sugerindo ali
que aquela Andréa Michaeli teria ligado, por exemplo, para me oferecer
um negócio, quando ligou por meio de você. Quando na verdade ela
estava fazendo uma matéria e queria me ouvir, e eu não queria ser
ouvido [...] Eu me lembro de você ter me ligado para dizer que “estão
preparando uma matéria contra mim”. E eles acham, devem achar, que
aquela matéria foi cultivada por nós. Eu não tinha nem informação sobre
a matéria.
Outro foco de críticas foi um capítulo que o delegado insistiu em
incluir em um de seus relatórios parciais. O procurador De Grandis
tentou, inutilmente, demovê-lo da ideia, por considerar o relatório
irrelevante no conjunto das investigações, mas o delegado alegou que
estaria traindo suas convicções se o retirasse. Denominado “Indícios de
manipulação de setores da mídia pelo banqueiro Daniel Dantas”, o texto
de 76 páginas é uma pensata sobre a relação entre jornalistas e o
Opportunity, que acabou por não apontar evidência de crime cometido
por jornalistas. A maior prova disso é que o próprio delegado não pediu a
prisão de nenhum jornalista, com exceção da de Andréa, e o Judiciário
não decretou nenhuma prisão. Mas um apoio mais amplo à operação
desabou na mídia da noite para o dia, com seguidos artigos apontando
erros factuais e de português, incongruências, falhas de entendimento e
o tom messiânico nos relatórios do delegado. Os delegados da Satiagraha
mais acertaram, como a recusa da propina milionária, do que erraram,
mas todos os erros passaram a ser dissecados com uma imensa lente de
aumento.
No sentido contrário, na internet diversos blogs e sites remaram
contra a maré, com milhares de mensagens em apoio à Satiagraha.
Muitos comentários diziam que eventuais deslizes do delegado não eram
capazes de manchar a investigação como um todo.
O maior enfrentamento de Protógenes se deu com a revista Veja, que
informava tiragem semanal de até 1,3 milhão de exemplares em 2008.
No relatório, Protógenes acusou a revista de “integrar a organização
criminosa” do Opportunity. A revista se defendeu: “As referências à Veja
são sórdidas e desprovidas de evidências mínimas — porque, de fato, elas
não existem”. Para efeitos processuais, o Ministério Público e o juiz não
levaram em conta a suspeita do delegado, mas sua simples existência, no
bojo da Satiagraha, foi o que bastou para a revista colocar o delegado sob
sua mira.
A crítica ficou realmente pesada na edição de 13 de agosto. Com a
capa “Espiões fora do controle”, a revista afirmou que um documento
mostrava “que o STF foi espionado” e que “o Palácio do Planalto investiga
escuta clandestina na antessala de Lula”. Segundo a publicação,
“descobre-se que as desconfianças não eram produto de paranoia”.
A evidência apontada pela revista era um relatório assinado pelo
chefe da Seção de Operações Especiais da Secretaria de Segurança do
STF, Ailton Carvalho de Queiroz, irmão do governador do DF, Agnelo
Queiroz (PT), que dizia ter sido encontrado um sinal de radiofrequência
na sala ocupada pelo assessor-chefe da presidência do STF. Tal sinal,
segundo o relatório, “é altamente suspeito, e vinha de fora do STF. O que
nos leva a suspeitar de um possível monitoramento, que pode ter
ocorrido nas proximidades”. Duas edições depois, a revista anunciou que
“a Abin gravou o ministro. Diálogo comprova que espiões do governo
grampearam o presidente do Supremo Tribunal Federal”.
A reportagem relatava o conteúdo de um suposto diálogo telefônico
ocorrido entre Mendes e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), que
pedia apoio do ministro para ajudar a formalizar um convite para uma
testemunha na CPI da Pedofilia. A revista Veja afirmou que não tinha o
áudio da conversa, apenas a transcrição, e que o diálogo havia sido
confirmado pelos dois interlocutores. A pessoa que forneceu a transcrição
era “um servidor da própria Abin”.
Segundo Demóstenes relatou depois, alguns dias antes da
reportagem ele foi procurado em seu gabinete por um jornalista da
revista Veja que abriu um notebook, mostrou a transcrição e perguntou
se o senador confirmava ter mantido a conversa. Demóstenes, que não
pediu nem ficou com cópia do papel, afirmou dois anos mais tarde: “Não
posso dizer que seja literalmente o que eu conversei. Mas,
aparentemente, foi aquilo. O diálogo foi aquele. Eu acredito que foi uma
transcrição literal”.229
Demóstenes falou com Mendes de um aparelho fixo, no gabinete do
Senado, na presença de três servidores da Secretaria de Direitos
Humanos do governo, um chefe da 4ª secretaria do Senado e um
procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais, que ali estavam para
resolver o assunto do telefonema. Um dos presentes, que pediu
anonimato, rememorou o telefonema: “O que saiu na revista é o que eu
presenciei, mas é óbvio que não me lembro de cada frase. Eu acho que a
transcrição é fidedigna”.
Entretanto, a confirmação da conversa não era capaz de confirmar o
grampo e muito menos vinculá-lo às autoridades da Satiagraha. Na
manhã em que a reportagem foi publicada, Demóstenes recebeu um
telefonema do então senador Romeu Tuma (DEM-SP), amigo de Paulo
Lacerda, a quem empregou como assessor nos anos 1990. Demóstenes
rememorou: “O Romeu me disse: ‘Demóstenes, isso não é o Paulo
Lacerda, é coisa do andar de baixo. É gente que quer derrubar o Paulo’”.
Dias depois, Demóstenes foi procurado pelo presidente da Asbin
(Associação dos Servidores da Abin), o oficial de inteligência Nery Kluwe
de Aguiar Filho. “O Kluwe me disse que entendia que a história contada
na revista Veja era real. Que no grupo ligado a Lacerda, que estava
auxiliando Protógenes, pode ter tido uma divergência, aí uma ala
resolveu liberar essa coisa lateral, só para dar um recado de que não
concordava com aquilo”, disse o senador.
O que Demóstenes desconsiderou é que Kluwe estava prestes a se
tornar um alvo da corregedoria da Abin. Em outubro de 2008, a Abin
abriu um procedimento administrativo para averiguar a suspeita de que
Kluwe, formado em advocacia, havia atuado como procurador em
processos administrativos na União, o que é vedado pela lei do servidor
público. Com base nos resultados da sindicância, Kluwe foi exonerado em
2010 sob a alegação de “atuar, como procurador ou intermediário, junto
a repartições públicas”, como registrou a portaria do ministério. Kluwe
negou irregularidade e recorreu ao STJ, pedindo a suspensão da portaria.
Em outubro de 2010, por cinco votos a três, o STJ indeferiu o pedido de
Kluwe.
Ao tomar posse na direção da Abin, em 2007, Paulo Lacerda
vitaminou a corregedoria da agência e autorizou apuração sobre
irregularidades internas.
A data do suposto grampo precisa ser considerada. A conversa entre
Demóstenes e Mendes ocorreu no dia 15 de julho de 2008 — portanto,
uma semana depois da deflagração da Satiagraha, um dia depois de o
delegado Protógenes ter deixado o comando da investigação e quatro dias
depois de a Folha ter divulgado a informação sobre um “monitoramento”
no STF.
Assim, os supostos arapongas deveriam ter notáveis nervos de aço,
pois teriam decidido manter, paciente e perigosamente, um grampo ilegal
sobre a mais alta corte do país no momento em que o “monitoramento”
já era um assunto quente e público em todo o país. Considerando a
cronologia, é mais pertinente imaginar que o grampo, se é que ocorreu,
tenha sido instalado depois do dia da deflagração da Satiagraha, e não
antes. No campo das hipóteses, não é demais imaginar que seria um
meio efetivo de criar um atrito entre o STF, a Abin e a PF. Aliás, foi esse
o resultado.
A revista Veja chegou às bancas num sábado, 30 de agosto. No dia
seguinte, Mendes telefonou para o então presidente Lula para pedir
providências, chamou-o “às falas”, como ele disse. Depois, no programa
de tevê Roda Viva, afirmou que “o presidente tem que ser chamado às
responsabilidades mesmo”. Na segunda-feira, Mendes telefonou para o
então ministro da Defesa Nelson Jobim (PMDB-RS), “manifestando sua
indignação”.230 Entre 1995 e 1996, Mendes havia trabalhado como
assessor de Jobim, então ministro da Justiça do governo FHC. Foi
agendada uma audiência de emergência com Lula no Palácio do Planalto,
da qual participaram Jobim, Mendes e os ministros do STF Cezar Peluso e
Ayres Britto. À tarde, houve reunião no alto escalão do governo,
incluindo o ministro do GSI, o general Jorge Félix, ao qual a Abin estava
vinculada. No encontro, Jobim mostrou a Lula uma lista de equipamentos
importados dos EUA e destinados à Abin. O relatório foi produzido pelo
Exército, em resposta a uma consulta do ministro. Jobim disse que alguns
dos equipamentos da agência eram capazes de fazer interceptação
telefônica. Na frente de Lula, Jobim “pediu a cabeça” de Lacerda.
Eu sustentei a tese de que nós estávamos perante um caso de
responsabilidade política e, portanto, eu entendia que deveria haver o
afastamento da cúpula da Abin, para que pudessem ser feitas as
investigações [...] As informações que eu tinha eram informações de que
esses instrumentos viabilizaram interceptação telefônica.231
Na reunião com Lula, Jobim também atacou a participação da agência
na Satiagraha: “Não haveria justificativa nenhuma da participação da
Abin nesse tipo de atividade. E a decisão foi tomada pelo presidente,
determinando o afastamento da cúpula para determinar investigações”.
Naquele mesmo dia, Lacerda foi afastado da Abin. Contudo, o tempo
iria mostrar rapidamente que as suspeitas apresentadas por Jobim
estavam inteiramente incorretas.
Dezessete dias depois, a PF enviou ao Congresso o resultado da
análise feita nos equipamentos da Abin. Negou a capacidade de fazer
grampos, o que contrariava o dado informado por Jobim. As máquinas
serviam para detectar grampos, e não realizá-los. Mas a notícia veio
tarde demais, e Lula nunca recuou da decisão do afastamento de 1º de
setembro. Em 29 de dezembro, houve a exoneração definitiva de Lacerda
na Abin. Ele recebeu um cargo de adido policial na embaixada do Brasil
em Portugal.
O suposto grampo no STF foi investigado em três frentes. A Abin
abriu uma sindicância, e a direção-geral da PF abriu um inquérito,
presidido pelo delegado William Marcel Murad, com o apoio do delegado
Rômulo Fisch Berrêdo de Menezes. A terceira frente era uma Comissão
Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados até então
inteiramente fora do noticiário, apelidada de CPI dos Grampos. Ela havia
sido criada para averiguar outra capa da revista Veja, intitulada “Medo no
Supremo”, de agosto de 2007, que também citava suspeitas de
interceptação em telefones utilizados por quatro ministros, incluindo
Gilmar Mendes. Esses supostos grampos também jamais foram
encontrados.
A CPI foi presidida pelo deputado federal Marcelo Itagiba (PMDB-RJ),
delegado licenciado da PF, notabilizado nos anos 1990 por comandar uma
equipe vinculada ao Ministério da Saúde durante a gestão do então
ministro José Serra, com objetivo de investigar e prevenir fraudes com
medicamentos e irregularidades na pasta. No cargo de superintendente
da PF do Rio, Itagiba foi o responsável, em 2002, por mudar a equipe da
delegacia de crimes fazendários, então chefiada pelo delegado Deuler da
Rocha, que investigava supostos crimes nas privatizações do governo
FHC e havia agendado o depoimento de Dantas, entre outros. À época,
Itagiba disse que o afastamento foi “um ato de rotina administrativa” e
negou qualquer relação entre a medida e o inquérito sobre as
privatizações.
Em 2008, a Folha revelou que a campanha eleitoral de Itagiba
recebeu, em 2006, R$ 10 mil de um dos principais investigados pela
Satiagraha, Dório Ferman, do Opportunity. Itagiba disse à época que
conheceu Ferman casualmente, na sinagoga que frequenta, no Rio. Outro
membro que se destacou pelas críticas à Satiagraha, Raul Jungmann
(PPS-PE), foi ministro do Desenvolvimento Agrário no governo FHC e
também havia recebido, em 2006, uma doação de R$ 4 mil de Dório
Ferman. O deputado disse que não conhecia Ferman e que a doação
ocorreu num jantar promovido pelo ex-presidente do BC Armínio Fraga,
com “amigos ligados a corretoras de valores e mercado financeiro”.
A CPI investiu contra os supostos grampos ilegais da Satiagraha.
Vontade não faltava, pois alguns dos parlamentares da comissão haviam
tido problemas com as investigações abertas pela PF na gestão de Paulo
Lacerda. Como Lacerda era ligado a Protógenes, os deputados tinham
muito que perguntar e muito que denunciar sobre o “Estado policial” e a
“República dos grampos”. Era um ambiente abertamente hostil às
operações da PF. Maurício Quintella Lessa (PR-AL) disse que havia “uma
rede”: “O Supremo foi vítima — ou pelo menos se sente vítima — de uma
possível escuta ilegal. Quantos deputados aqui também se sentem, pelo
menos se sentem cerceados e vigiados?”.
A CPI tinha um objetivo principal: conter os grampos, inclusive os
legais. Era o Legislativo dizendo como a PF deveria funcionar.
Itagiba chegou a expressar isso: “Temos que investigar para
solicitar as interceptações, e não interceptar para realizar
investigações. Acho que essa é máxima que deve nortear os
trabalhos de quem faz a atividade policial e acho também que
esse é o caminho que vamos percorrer nesta Comissão”.
A CPI convocou Ailton Queiroz, do STF. Foi uma ducha de água fria.
Ele contou que sua equipe não conseguiu fazer a chamada “demodulação”
do sinal, que permitiria transformar o sinal em áudio. Ou seja, nunca
soube se foi captada uma conversa telefônica. Ailton acrescentou que o
dia da varredura, 10 de julho, “não foi um dia normal”, pois havia “uma
dúzia” de carros e equipamentos de emissoras de tevê em volta do prédio
do STF — a sala onde foi detectado o sinal era voltada para o
estacionamento. Ailton explicou que os técnicos também não
conseguiram saber a origem do sinal, mas tiveram certeza de que ele
vinha de fora, e não de dentro do prédio. Apesar de todas as
interrogações, Ailton entendeu que deveria informar ao presidente do
STF, o que fez. Mas frisou ter dito que a sua comunicação foi bastante
cautelosa: “[Foi] sempre utilizada a palavra possível, sempre utilizada a
palavra provável, em função da dificuldade que foi de identificar”.
Ailton foi claro quanto à precariedade do seu achado. Se não havia
origem e natureza do sinal, poderia ser tudo e poderia ser nada. No mês
seguinte, o ativo presidente da associação dos agentes da Abin, Nery
Kluwe, foi convocado à CPI porque apareceu em outubro na revista Veja,
dando entrevista sobre a participação da Abin na Satiagraha. Mas negou
ter sido a fonte da matéria original sobre o grampo. À vontade no
depoimento, acabou por revelar: “O que se traz à discussão é que para a
Abin não é interesse nenhum grampear um ministro ou uma autoridade
do governo. A Abin não se ocupa disso. Para nós é muito mais, vamos
dizer assim, vantajoso recrutar a secretária da autoridade como fonte
humana do que interceptar um telefone”.
A impressionante informação de Kluwe não suscitou qualquer
comentário entre os parlamentares. Desde que a Abin foi criada, no final
dos anos 1990, o governo repete que ela não investiga cidadãos. Kluwe
afirmou o contrário, que a Abin “recruta” secretárias. Mas a CPI estava
mais preocupada em atacar a Satiagraha.
A comissão tomou o depoimento do substituto de Lacerda na Abin,
um nome que gerou controvérsia. Wilson Roberto Trezza havia
trabalhado em 2002 para a BrT, então controlada pelo Opportunity, como
diretor do fundo de previdência da CRT. Trezza disse que deixou a
companhia em 2003, “em uma situação litigiosa”, consequência, segundo
ele, de uma ordem que ele não engoliu: “Fui convidado a fazer uma
operação financeira que entendi que era ilegal, à época, no valor de US$
35 milhões. Me recusei a fazer e fui demitido por esta razão [...] Em
nenhum momento sequer fui apresentado, tive uma reunião, um contato
telefônico ou uma troca de e-mail com o sr. Daniel Dantas”.
É novamente notável verificar que nenhum deputado presente à
sessão da CPI manifestou a mínima curiosidade sobre o que seria essa
milionária operação suspeita, se chegou a ser realizada e quem
“convidou” Trezza a agir contra seus próprios escrúpulos.
No momento em que as investigações da PF, da Abin e da CPI patinavam
sem nenhuma prova sobre o grampo, uma quarta investigação deu sinal
de vida, e de forma espetacular. Tratava-se daquele inquérito aberto por
ordem do ministro Tarso Genro para atender às reclamações das
emissoras de tevê sobre a “exclusividade” dada à TV Globo. O inquérito
policial tramitava em São Paulo, presidido pelo delegado federal Amaro
Vieira Ferreira e sob a responsabilidade do juiz federal Ali Mazloum. O
magistrado havia sido alvo da PF e do Ministério Público durante a
Operação Anaconda, em 2003. Mas as suspeitas foram desfeitas no STF,
e ele pôde regressar à 7ª Vara, a mesma cadeira da qual teve que sair
anos antes. Assim como alguns deputados da CPI, Mazloum tinha
inúmeros reparos a fazer sobre as operações da PF e do Ministério
Público. Ao depor na CPI, ele fez denúncias contra os responsáveis pela
Anaconda.
Na manhã de 5 de novembro, com ordem de Mazloum, equipes
chefiadas por Amaro invadiram endereços no Rio, São Paulo e Brasília
para cumprir mandados de busca e apreensão. Pela primeira vez na
história da Abin, uma equipe de policiais devassou um escritório do
serviço secreto brasileiro, ao entrar na subsede da superintendência
estadual da agência no Rio e de lá retirar quatro discos rígidos e um
notebook. A PF entrou nas casas de Thélio Braun d’Azevedo, um dos mais
altos dirigentes da agência, coordenador-geral de Operações de
Inteligência, de Luiz Eduardo Melo, fiscal da Receita Federal cedido à
Abin, do terceiro-sargento do Cisa, Idalberto Araújo, do terceiro-sargento
da 7ª Companhia Independente de Polícia Militar do DF Jairo Martins de
Souza e em quatro endereços utilizados por Protógenes.
Por volta das 7h55, o general Félix, do GSI, recebeu um telefonema
de Tarso Genro. Ele queria avisar que uma ordem de busca e apreensão
havia sido emitida contra um prédio da Abin e seria cumprida “dentro de
dois dias”. Mas o general explicou ao ministro que as buscas já estavam
ocorrendo, naquela mesma manhã, havia quase duas horas.
“Eu senti que ele meio que se surpreendeu”, contou depois o
general.232 Félix foi apurar o que havia nos computadores apreendidos e
disse ao ministro da Justiça, por telefone, que estava preocupado, pois as
informações “comprometem o trabalho da Abin”. Na segunda-feira, dia
10, Félix enviou uma carta a Genro, com cópia ao presidente Lula, para
dizer que viu a operação com “profunda estranheza”.
Os computadores recolhidos contêm dados sigilosos cujo
conhecimento por pessoal não autorizado inviabiliza operações em curso
e dá (sic) conhecimento das mesmas a essas pessoas não autorizadas.
Expõe (sic) nomes, valores recebidos e dados de informantes que podem
até mesmo colocar sua integridade física em risco e impossibilitam a
continuação do trabalho com esses informantes e tornam extremamente
difícil o recrutamento de novos.
A pedido de Félix, a AGU (Advocacia Geral da União) interveio a favor
da Abin. Ela queria que pessoas da Abin participassem da abertura e
“averiguação do material apreendido”, mas o pedido foi indeferido por
Mazloum. Ele escreveu que a Abin “não pode interferir nos trabalhos do
presidente deste inquérito policial”.
Apesar da reação pública de Félix, o fato é que o GSI, por meio da
Abin, iria escancarar as portas da agência para a PF. Numa atitude sem
paralelo, a Abin concordou em entregar à PF as listas completas e
nominais de todos os agentes secretos envolvidos no apoio à Satiagraha.
O ofício nº 89, assinado por Trezza, por exemplo, lista treze analistas de
informação, com nome, sobrenome e local de trabalho. Todos os
principais chefes da Abin também foram orientados pela direção a prestar
depoimentos à PF, nos quais faziam constar suas funções passadas e
atuais. Como o processo era público, a imprensa tomou conhecimento
pormenorizado de quem eram os principais servidores da Abin e suas
atividades.
O gesto da Abin/GSI seria impensável em muitos outros países. Nos
Estados Unidos, dois altos membros do governo Bush foram exonerados e
processados depois que o nome da mulher de um diplomata, crítico da
invasão no Iraque, apareceu exposto em reportagem como agente da
CIA. A essência de um serviço de inteligência é o sigilo sobre seus
agentes e funções. Antes de entregar os dados, a Abin/GSI poderia ter
apelado a outras instâncias judiciais e alegar, com alguma chance de
êxito, possíveis danos irreparáveis à atividade da agência.
A hipótese mais provável é que a Abin tenha sido pressionada pela
cúpula da PF a jogar toda a responsabilidade sobre Lacerda e Protógenes,
eximindo-se, assim, de maiores críticas. Essa saída foi sugerida à época a
dirigentes da Abin por um alto integrante da inteligência da PF, como dois
anos depois o policial relatou ao autor deste livro, sob condição de
anonimato.
O fato é que a invasão aos endereços da Abin não produziu qualquer
avanço nas investigações. Nenhuma gravação telefônica ilegal foi
encontrada após um imenso pente-fino realizado em todos os CDs, pen
drive, discos rígidos, telefones celulares e agendas eletrônicas
apreendidos na Abin e nas casas de todos os investigados. Achou-se
apenas, em um computador, “material pornográfico”, um fato banal que
foi tratado como um verdadeiro escândalo por parte da imprensa.
O inquérito de Amaro também investiu contra jornalistas da Rede
Globo. Robinson Cerântula e William Santos foram submetidos a longos e
detalhados depoimentos. O repórter César Tralli foi abordado pelo
delegado da corregedoria da PF Armando Coelho, que o convidou para um
almoço no restaurante Spot, em São Paulo. Segundo um documento que
integra o inquérito, a missão atribuída a Coelho pela corregedoria era
fazer “levantamentos preliminares” para o inquérito de Amaro. Na
prática, a PF queria arrancar as fontes do jornalista. Mas o encontro foi
inútil, pois Tralli não deu qualquer pista.
Nenhum grampo criminoso foi encontrado em poder dos policiais da
Satiagraha. Protógenes acabou indiciado pelo delegado Amaro por
suposto vazamento de informações e “fraude processual” — que consistia
em não ter avisado à Justiça sobre o vídeo feito pela equipe da Rede
Globo no restaurante El Tranvía —, mas não por interceptação telefônica
ilegal. A cúpula da PF nunca reconheceu oficialmente, e com o destaque
necessário, mas sabe-se hoje que todas as interceptações telefônicas
encontradas nos computadores pessoais de Protógenes foram autorizadas
por decisão judicial. Eram apenas cópias das interceptações oficiais.
Mas o mistério sobre o STF continuava. A imprensa seguiu tentando
localizar os audaciosos arapongas que teriam grampeado a mais alta
autoridade do Supremo. A revista Veja informou que o general Félix teria
enfim admitido que o grampo existiu e foi feito por alguém da agência.
Teria dito isso numa reunião realizada na sede da Abin, e a gravação do
encontro foi entregue à revista. Contudo, revelada ao público pela
própria revista em seu site na internet, a íntegra da gravação permite
entendimento diverso. Félix abriu o encontro com informações sobre as
apreensões realizadas pela PF. Falou dos esforços para diminuir os danos.
E então fez um pedido à plateia:
Vou pedir uma coisa que, efetivamente, é extremamente difícil, sigilo
com relação ao que estamos conversando aqui. Mas, se vazar, paciência,
é o que mais tem acontecido. Infelizmente, tem ocorrido uma série muito
grande de vazamentos, vazamentos ocasionados, repito, infelizmente,
por colegas de vocês. Desde o vazamento que deu origem a toda esse...
[sic] toda essa celeuma, essa reportagem aqui, “A Abin grampeou o
ministro”, foi vazada por um colega de vocês, está claramente na
reportagem.
A gravação demonstra que Félix atribuía a reportagem a alguém da
Abin, mas não o reconhecimento de interceptação ilegal. O general não
foi claro na sua manifestação. No jargão jornalístico, quando alguém diz
que uma informação foi “vazada”, supõe-se que ela seja verdadeira. O
general parece ter confundido as expressões “vazamento” e “fonte”. Nem
sempre uma fonte tem informação verdadeira. A fonte pode contar uma
mentira, por variados interesses. Ao dizer que a reportagem foi “vazada”,
provavelmente o general queria dizer, como se extrai do conjunto de sua
fala inteira, simplesmente que a reportagem teve como fonte um agente
da Abin, como a própria Veja já havia dito. O fato é que Félix nunca disse
algo parecido com: “Ok, a Abin gravou o STF”. Suas palavras na reunião
com os agentes da Abin foram mal interpretadas, jogando mais gasolina
na fogueira.
A Abin e o GSI jamais reconheceram qualquer grampo, pelo
contrário. No dia 19 de dezembro, o GSI anunciou o arquivamento da
sindicância aberta para apurar a eventual participação de agentes da
Abin em escutas clandestinas.
Mas quem sabe a investigação montada pela PF de Brasília poderia
trazer maiores revelações. Houve nova devassa, com pente-fino em
áudios, arquivos, computadores e a tomada dos depoimentos de mais de
oitenta pessoas, entre agentes da Abin, policiais federais e colaboradores
da Satiagraha. Em outubro de 2008, os delegados Murad e Berrêdo foram
ouvir Paulo Lacerda. Ele disse não acreditar que a Abin e Protógenes
estivessem por trás do suposto grampo: “Pelo que conheço do dr.
Protógenes, ele trabalha no limite da legalidade, não acreditando [não
acredito] que ultrapasse tal limite”.
Lacerda contou aos delegados que, em 2006, ele tomou
conhecimento de que uma pessoa o acusou, no Congresso, de ter contas
não declaradas no exterior. Ele fez um ofício à PF para abrir mão de seus
sigilos bancários, fiscal e telefônico. Seis meses depois, disse Lacerda, a
revista Veja publicou a reportagem sobre a suposta conta no exterior e
revelou que a fonte da matéria foi Daniel Dantas. Lacerda ressaltou:
“Acredito que tal inquérito é importante por demonstrar o perfil das
pessoas envolvidas”.
No final do seu depoimento, Lacerda deixou consignado: “A defesa de
Daniel Dantas tenta anular hoje os atos de polícia judiciária,
influenciando autoridades nos vários níveis”.
O inquérito da PF Murad-Berrêdo foi concluído no segundo semestre
de 2009, sem o indiciamento de nenhum dos integrantes da Satiagraha
ou da Abin por grampo ilegal. O relatório final nunca foi tornado público.
A Procuradoria-Geral da República também nunca fez o resumo da
investigação. O inquérito sobre uma suspeita que derrubou o chefe do
serviço secreto e deixou uma nódoa sobre dezenas de servidores públicos
não gerou nenhuma informação oficial e ampla, sendo devidamente
empurrado para debaixo do tapete. A imprensa informou algumas vezes,
em notícias sem fonte identificada, que o inquérito concluiu que não
houve grampo e que não seria possível acusar ninguém. A PF e a PGR
nunca contestaram essas notícias, aqui tomadas por verdadeiras.
A CPI dos Grampos terminou rachada, com o relatório oficial do
deputado Nelson Pellegrino (PT-BA), de 415 páginas, e um voto em
separado do deputado Itagiba, de sessenta e nove páginas. Nenhum
acusou qualquer policial federal ou servidor da Abin de qualquer
interceptação ilegal dentro ou fora do STF. As acusações de Itagiba
giraram em torno do emprego irregular de verbas públicas na parceria
Abin-PF. Para o deputado, como não havia uma autorização expressa
para a parceria, os gastos foram irregulares. Ele também acusou Lacerda
e Protógenes de “falso testemunho”, por terem dado números e
explicações divergentes sobre a parceria Abin-PF. O deputado teve por
norma não solicitar o indiciamento de quem já se encontrava investigado
em outro procedimento. Assim, Dantas e Protógenes — o primeiro
investigado pelo caso Kroll, e o segundo no inquérito da 7ª Vara paulista
— também deixaram de ser indiciados.
As investigações desencadeadas sobre a Operação Satiagraha não
conseguiram trazer indícios de escuta clandestina, mas as suspeitas iriam
atingir a carreira policial de Protógenes de modo irreversível. Depois da
reunião do dia 14 de julho, o delegado viu sua “casa”, a PF, lhe dar as
costas. Ele diz que um de seus filhos, de dez anos, ficou “traumatizado”
com a invasão no seu apartamento, no Rio, e recebeu atendimento
psicológico. Na PF, o delegado não tinha mais com quem falar. Suas
coisas foram retiradas de sua escrivaninha e colocadas num armário de
ferro. A PF fechou as portas para o delegado.
Ao mesmo tempo, um importante apoio apareceu. O delegado
começou a receber convites para palestras e entrevistas, e ganhou a
estrada. Nessa fase, Protógenes, que anos antes tinha dado aulas na
academia de polícia, chegou a fazer três palestras por semana, em várias
capitais — só em Fortaleza esteve cinco vezes entre 2008 e 2009. Um
dos locais mais estranhos foi um galpão montado numa praça pública em
Rubiataba (GO). Houve uma palestra num ginásio esportivo numa
universidade em Salvador e outra num centro de convenções para alunos
de três faculdades. O delegado, de repente, estava falando para
multidões.
“Eu parecia o bispo Macedo.”
O lado messiânico do discurso de Protógenes foi muitas vezes objeto
de críticas na imprensa, e uma frase assim só reforçava o estereótipo.
Protógenes, que começou a falar sobre si mesmo em terceira pessoa,
queria “varrer” a corrupção do país. Causou apreensão, entre seus
apoiadores, uma mensagem em seu blog ao anunciar que ele foi vítima
de um “atentado”. A prova era um problema mecânico no carro que lhe
causou uma queimadura no pé. Tal atentado nunca ficou provado. Não
adiantou ele explicar que o autor do texto não fora ele, mas um primo
que atualizava o blog. Ele logo aprendeu que tudo que saísse de sua boca
ou lhe fosse atribuído seria devidamente escrutinado, avaliado e
desconstruído peça por peça.
Mas Protógenes já havia se liberado dessas barreiras. E tinha um
apoio impressionante na internet. As pessoas se manifestavam em blogs,
redes sociais e nos comentários das reportagens. A imensa maioria
protestava contra a interrupção da Satiagraha e as perseguições sofridas
pelo delegado e pelo juiz De Sanctis. Protógenes tornou-se uma figura
popular, era parado nas ruas para dar autógrafos. Nesse contexto, pouco
demorou até ele ir direto para os braços da política.
O processo disciplinar que levou ao afastamento do delegado da DIP,
em Brasília, nasceu justamente de uma declaração feita na campanha
eleitoral de 2008. Num vídeo de vinte e nove segundos, gravado pela
campanha do candidato a prefeito de Poços de Caldas (MG) Paulo Tadeu
(PT), o delegado disse: “Sou o delegado Protógenes Queiroz. Para trazer
meu apoio e minha solidariedade à candidatura do prefeito Paulo Tadeu,
e a importância de trazer uma delegacia da Polícia Federal para esta
região”.
Após a decisão da corregedoria, Protógenes não mais poderia estar à
frente de nenhuma operação policial.
O delegado disse ter sido provocado a lançar sua candidatura quando
participou em Salvador, em julho de 2009, de um protesto de
funcionários da Petrobras contra uma CPI no Senado que pretendia
investigar a estatal. Protógenes agora apoiava uma manifestação
contrária a uma investigação sobre irregularidades com recursos públicos.
Foi só a primeira de muitas contradições em relação ao seu passado. Nas
comemorações do 1º de Maio do mesmo ano, ele recebeu o apoio do
deputado Paulo Pereira da Silva (PDT-SP), que havia sido alvo de uma
operação da PF no ano de 2008 e contra quem tramitam investigações no
STF sobre desvios de recursos públicos.
Quem tentou levar Protógenes para o PDT foi seu amigo, o exdeputado federal Luiz Antônio Medeiros, à época secretário nacional das
relações do trabalho do Ministério do Trabalho. Medeiros queria lançar o
delegado como deputado federal pelo partido, mas não conseguiu. Houve
um choque de egos.
“O Paulinho não se entendeu direito com o Protógenes. O Paulinho
queria controlar o Protógenes. Ele disse que Protógenes teria tanto tempo
de tevê quanto qualquer outro candidato. Aí, não deu certo.”233
Protógenes queria mais tempo na tevê que um candidato normal e,
assim, acabou no Partido Comunista do Brasil. Logo ele, católico devoto
que sempre traz à lapela uma imagem de Nossa Senhora.
No momento em que Protógenes dava seus primeiros passos na política, a
Satiagraha foi o motivo de uma sessão de alto significado no Supremo
Tribunal Federal. Gilmar Mendes levou ao plenário os dois habeas corpus
concedidos em julho em favor de Dantas, para que fossem confirmados
ou negados pelos outros ministros. A investigação como um todo, o juiz
De Sanctis, o Ministério Público e o delegado foram alvos de acusações
sem precedentes. O Supremo foi o palco iluminado da maior
desqualificação pública da Satiagraha.
Um caso excepcional
“Todas as vezes que a autoridade da Suprema Corte do Brasil, pouco importa o
nomen juris que pode se aplicar a esta ou aquela situação, é ofendida, agredida,
malferida, impõe-se, ao pleno da Suprema Corte, uma reação imediata, uma
reação dura, uma reação coerente, uma reação firme, de modo que nós possamos
ter a certeza de que estamos cumprindo coerentemente o nosso dever. E assim
sempre fazemos e continuaremos a fazer, sem exceção, todos nós,
uniformemente.”
Ministro do STF Carlos Alberto Menezes Direito, na sessão que
julgou os habeas corpus de Daniel Dantas.
Em 6 de novembro de 2008, de camisa branca, gravata azul e capa
preta sobre os ombros, Gilmar Mendes inclinou-se ao microfone para
anunciar aos nove ministros e ao procurador-geral da República,
sentados à mesa do plenário do STF em forma de “U”, a abertura do
julgamento do mérito dos dois HCs concedidos a Daniel Dantas. O
ministro apontou, depois, o caso Dantas como uma “situação atípica” e “o
momento mais dramático” de sua presidência no STF, entre 2008 e
2010.234
E foi uma presidência extremamente atribulada. Mendes mostrou-se
um agente político em pleno exercício do poder. Ele amplificou os ataques
ao que considerava o “Estado policial”, a ação independente da PF e do
Ministério Público. Só quem acompanhava sua carreira com alguma
atenção podia ter previsto que não seria diferente. O coro às reclamações
de advogados criminalistas marcava seu discurso havia muito tempo. Ele
havia sido, afinal de contas, o próprio advogado-geral da União.
Mendes nasceu na pequena Diamantino, no interior de Mato Grosso,
em 30 de dezembro de 1955. Como o nome já diz, a cidade foi fundada
durante o ciclo dos grandes garimpos de diamante que deram à economia
de Mato Grosso um passado glorioso. O arraial surgiu com as comitivas
de aventureiros que saíam de Sorocaba, em São Paulo, para fincar
acampamentos e procurar riquezas nas bordas da Chapada dos Parecis. O
local registrava pouco mais de 6.000 moradores quando de sua fundação,
em 1728, e não cresceu muito desde lá — em 2004, o IBGE estimou sua
população em 19.906 habitantes.
Após o esgotamento das riquezas, Diamantino entrou em decadência
no século 20. Mas a família de Mendes, no sentido contrário, ganhou
prestígio e poder. Depois do Golpe Militar de 1964, o pai do ministro,
Francisco Ferreira Mendes, o “Chiquinho”, se elegeu duas vezes prefeito
da cidade com apoio do partido que dava sustentação política à ditadura,
a Arena.
Em meados dos anos 1970, o futuro ministro se matriculou na
Universidade de Brasília. Concluiu o curso de direito em 1978. Depois de
alguns anos dando aulas na UnB sobre direito público e ética e legislação
dos meios de comunicação, Mendes pôs em prática um plano mais
ambicioso. Nos anos 1980, passou temporadas na antiga Alemanha
Ocidental, onde fez estudos com vistas à aceitação para doutorado,
concluído com louvor em 1990, e mestrado, entre 1988 e 1989, na
universidade Westfälische Wilhelms-Universität Münster, como informa o
currículo divulgado pelo STF. Nesse meio tempo, no Brasil, ele passou em
três concursos simultâneos: juiz federal, assessor legislativo do Senado
Federal e procurador da República. Optou pela carreira no Ministério
Público — órgão com o qual, no futuro, tantas vezes se defrontaria.
Embora procurador de primeira instância, Mendes foi atuar no STF, a
convite do então procurador-geral da República Inocêncio Mártires
Coelho, nomeado na ditadura do general João Baptista Figueiredo (19811985).
Coelho havia sido professor de Mendes na pós-graduação da UnB.
Preso por dez dias após o golpe de 1964 por atuar no movimento
estudantil de Belém do Pará, onde nasceu, em 1941, Coelho afastou-se
da esquerda e passou a dar aulas na UnB. Nos anos 1970, foi para o
governo e se tornou, no Gabinete Civil de Figueiredo, assessor jurídico e
amigo235 do poderoso general Golbery do Couto e Silva (1911-1987),
um dos artífices do mesmo golpe que levara Coelho à prisão. Em 1981,
Coelho foi nomeado por Figueiredo procurador-geral da República. Era
um cargo de livre nomeação do ditador, “um delegado de confiança do
presidente”, do qual este poderia também se livrar a qualquer hora e sem
qualquer explicação. A Procuradoria-Geral não passava de uma
repartição, que funcionava num andar do Ministério da Indústria e
Comércio. Na prática, o procurador-geral era também o “advogado-geral
da União”, função só criada com esse nome no regime democrático, a
qual no futuro seria ocupada, dentre outros, por Mendes. Coelho se
orgulha de ter dado os primeiros passos na criação de uma estrutura,
inclusive física, para o Ministério Público Federal.
Mas sua gestão seria marcada publicamente de outra forma. O então
procurador da República Pedro Jorge de Melo e Silva, de Pernambuco,
começou a ser ameaçado de morte por causa das investigações sobre o
“escândalo da mandioca”, um desvio de verbas públicas na agência do
Banco do Brasil de Floresta (PE). Marco Maciel, então governador de
Pernambuco, e depois senador pelo PFL, telefonou para Coelho para
reclamar de uma suposta parcialidade do procurador na condução do
caso. Coelho orientou o governador a dizer a quem se sentisse
incomodado que fizesse uma representação contra o procurador, o que
ocorreu dias depois, por iniciativa de um dos investigados. Coelho
designou seu colega, um subprocurador, para ouvir Pedro Jorge e fazer
uma apuração preliminar sobre o assunto. A par do resultado da
apuração, Coelho decidiu excluir Pedro Jorge da investigação,
substituindo-o por outro procurador. No ínterim exato entre a assinatura
da decisão e a sua publicação no Diário Oficial, Pedro Jorge foi fuzilado
por pistoleiros de aluguel enquanto comprava pão em Olinda (PE). Coelho
passou a ter que dar explicações à imprensa, mas conseguiu contornar a
crise e autorizar uma investigação que acabou por prender os autores do
crime.
Disse depois Coelho:
Se, hoje, com a experiência adquirida ao longo dos anos, tivesse que
novamente me deparar com a decisão espinhosa que tive de substituir o
procurador, eu o substituiria. Mas não sem antes fazer uma espécie de
tomada de opinião da própria classe, não para repartir responsabilidades,
mas para ouvir mais pontos de vista a respeito da conveniência e da
oportunidade de tomar uma medida daquela natureza.236
Coelho e Gilmar Mendes se tornariam sócios em uma escola privada
de direito, o IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público).
Com o fim da ditadura, em 1985, Mendes continuou na PGR e se
tornou assessor do sucessor de Coelho, Sepúlveda Pertence. Em sua
passagem pelo MPF, Mendes não foi conhecido por conduzir ou
acompanhar investigação criminal. O processo de maior repercussão de
que tomou parte tinha a ver com o Parque Nacional do Xingu, cujos
limites ele apoiou.
Quando ocorreu a sabatina a que foi submetido no Senado, em 2002,
sobre a indicação do seu nome ao STF, ele se lembrou dessa ação com
orgulho:
Como me atribuem a pecha de ser um homem conservador e há a
ideia de que a questão indígena é tema da área esquerdista, seja lá o que
for, não me atribuem nenhum mérito. Fui eu, com a minha atuação como
procurador da República, quem evitou que o Parque Nacional do Xingu se
tornasse, a rigor, terra de particulares, por isso enfrentei processo na
honrosa presença do hoje ministro Sepúlveda Pertence.
Em novembro de 1990, Mendes concluiu seu doutorado na Alemanha
com o tema “Controle abstrato de normas perante a Corte Constitucional
Alemã e perante o STF”. Ao voltar ao Brasil, porém, não conseguiu
manter seu trabalho de atuar pelo Ministério Público em processos que
tramitavam no STF.
A PGR entendeu que a nova Constituição dizia que ele deveria atuar
na primeira instância da Justiça Federal de Brasília, junto com os outros
procuradores “comuns”. Mendes não gostou, atribuiu a medida ao novo
procurador-geral, Aristides Junqueira. Anos depois, Mendes deu
demonstração de que não perdoou o comportamento de Aristides:
Quando voltei, a Procuradoria da República estava transformada. Na
verdade, era a gestão inicial do procurador Aristides Junqueira. Era uma
cogestão. A associação [dos procuradores] e o procurador-geral geriam
aquilo. Era uma legitimidade toda própria. Quando cheguei, já era
considerado talvez o melhor, o maior especialista em questão
constitucional na Procuradoria da República. Devo ter voltado um pouco
melhor, mas o dr. Aristides disse: “Você vai para a primeira instância,
porque agora a regra é esta: procurador que não é subprocurador fica na
primeira instância. Agora, aqui manda a corporação”.237
É notável perceber que o primeiro dos atritos de Mendes com o
Ministério Público, que já remontam duas décadas, nasceu por uma
discussão sobre seu cargo.238 Por diversas vezes ao longo de sua
trajetória, Mendes demonstrou uma capacidade extrema de levar a sério
suas contendas. Àquela época, já não seria diferente. Mendes decidiu
rumar para o Executivo, o que acabou por interromper sua carreira no
Ministério Público. Ele foi para o Executivo e nunca mais retornou ao
Ministério Público.
No governo de Fernando Collor (1990-1992), foi primeiro adjunto da
subsecretaria-geral da Presidência, passando a trabalhar no Palácio do
Planalto. Um dos trabalhos de Mendes no governo foi presidir a comissão
que produziu o novo Manual de Redação da Presidência. A bibliografia
referida na obra incluiu um livro e um artigo de sua própria autoria.
Mendes, depois, se tornou consultor jurídico da Secretaria-Geral da
Presidência. Identificado pela imprensa como “assessor jurídico do
Planalto”, Mendes teve participação ativa na defesa do presidente Collor,
acossado pelas investigações de ninguém menos que Aristides Junqueira
e pelo inquérito da PF presidido por um delegado chamado Paulo Lacerda
— em relação a quem, no futuro, Mendes também iria demonstrar
contrariedade. Em setembro de 1992, poucas semanas antes do
impeachment de Collor, Mendes trabalhou para obter no STF,
“extraoficialmente”, as perguntas que o procurador fez por escrito ao
presidente da República. Em entrevista, Mendes descredenciou-as: “As
perguntas são óbvias demais e desinteressantes”.239
Mendes voltou ao Executivo no primeiro ano do governo de Fernando
Henrique Cardoso, como assessor do então ministro da Justiça, Nelson
Jobim (PMDB-RS). Segundo o currículo do ministro, até 1996 ele
“colaborou na coordenação e na elaboração de projetos de reforma
constitucional e legislativa”. Em 1996, voltou a despachar no Palácio do
Planalto, como subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil. Em janeiro
de 2000, ele se tornou o advogado-geral da União, por escolha do
presidente FHC. Mendes passou cerca de uma década no Executivo, nos
governos do PRN e do PSDB. Além de representar a União em processos
judiciais, a AGU atua como uma espécie de conselheira jurídica do
presidente e dos ministros.
No primeiro ano à frente da AGU, Mendes teve um grande choque
com o Ministério Público. Um grupo de procuradores, incluindo Valquíria
Oliveira Quixadá Nunes, do Distrito Federal, investigava denúncias sobre
desvios no DNER, o departamento de estradas, quando foi informado de
que a gestão do antecessor de Mendes na AGU havia realizado uma
auditoria sobre o tema, que teria apontado irregularidades. Os
procuradores disseram que o trabalho ficou pronto em 2000, mas Mendes
demorou mais de um ano para repassá-lo ao Ministério Público. Eles
acusaram:
A conduta do réu [Mendes] indica claramente o propósito de evitar
que os fatos apurados nas investigações da Corregedoria da AdvocaciaGeral da União fossem conhecidos por qualquer órgão fora da estrutura
do Ministério dos Transportes e da AGU. A Câmara dos Deputados, a
Polícia Federal e o Tribunal de Contas da União solicitaram o envio de
cópia da referida correição ao dr. Gilmar, que, no entanto, recusou-se a
enviar os documentos, que somente foram obtidos mediante ordem
judicial.
Na contestação à ação, Mendes disse que só virou alvo dos
procuradores em razão das críticas que fazia ao Ministério Público: “A
presente ação tem sua base assentada em uma falsidade, isto é, em uma
mentira concebida para justificá-la”, afirmou Mendes.
Anos depois, contudo, Mendes tornou pública sua profunda
desconfiança sobre auditorias:
As correições, como V. Exas. sabem, são levantamentos unilaterais
feitos por um ou dois servidores, sem nenhum contraditório. Quantas
vezes criticamos os relatórios da Siset, os relatórios das inspeções do
Tribunal de Contas exatamente por essa unilateralidade? Hoje, temos até
casos de corregedores processados porque fizeram afirmações, depois
vazadas na imprensa, sobre juízes e sobre a atuação de procuradores, o
que gera uma grande insegurança. Temos muita cautela com esses
documentos internos da Administração antes de fazê-los chegar aos
demais setores.240
O caso acabou arquivado pelo STF, mas Mendes não deixou o assunto
barato. Em janeiro de 2001, na condição de advogado-geral da União, ele
ajudou a incentivar uma medida provisória que previa uma multa de até
R$ 151 mil por ação de improbidade administrativa aberta de forma
“infundada”. Poderiam pagar a multa procuradores da República,
delegados da PF e auditores da Receita Federal. Mendes assim defendeu a
medida: “A ação de improbidade dá uma conotação política muito forte.
Então, o que a MP 2.088 fez foi limitar este tipo de ação”.241
Os jornais apontaram Mendes como o autor da MP, o que, dois anos
depois, ele negou: “Não participei de sua redação, o texto veio do
Ministério da Justiça, mas estou absolutamente conforme com essa ideia,
porque ela é compatível com a ideia básica do Estado de Direito”.
Da mesma forma, Mendes negou ter participado da redação da
Medida Provisória nº 2.049, de 2000, que concedia ao advogado-geral da
União o foro especial por prerrogativa de função no STF, o chamado foro
privilegiado, que permite a parlamentares e ministros, dentre outros,
serem processados e julgados apenas no STF. Apenas vinte dias antes da
MP, o STF havia negado o foro a chefes da AGU. Mendes é um ardoroso
defensor do foro privilegiado.
A segunda ação de improbidade administrativa contra Mendes foi
proposta pelo procurador Luiz Francisco de Souza com base numa
representação feita pelo deputado federal Walter Pinheiro (PT-BA), que
se valeu de uma reportagem publicada em 2002 pela revista Época. A
revista revelou que Mendes era fundador e sócio do IDP (Instituto
Brasiliense de Direito Público) e que a AGU fazia pagamentos ao
instituto, referentes a cursos de formação oferecidos a servidores
públicos federais. Mendes disse à revista que recebia cerca de R$ 5 mil
mensais a título de “distribuição de lucros” por sua cota no IDP.
O procurador Luiz Francisco obteve uma relação de 112 servidores da
própria AGU, portanto subordinados a Mendes, e 339 de outros órgãos
federais que haviam estudado no IDP às expensas da União. Em vários
casos, Mendes foi o próprio palestrante ou professor. Luiz Francisco
achou aquilo um flagrante problema ético. Em 9 de setembro de 2002,
quando Mendes já era ministro do STF, Souza ajuizou a ação para pedir a
condenação de Mendes e o ressarcimento de R$ 241 mil. A acusação do
procurador falava em enriquecimento ilícito:
A AGU efetuou, com o conhecimento e a anuência tácita do dr.
Gilmar, 451 (quatrocentos e cinquenta e um) contratos informais
ímprobos, com a empresa do próprio dr. Gilmar, locupletando-o,
enriquecendo-o ilicitamente. Os responsáveis por tais despesas eram
membros da AGU, subordinados ao dr. Gilmar e dependentes do mesmo
para manterem cargos de chefia e funções gratificadas.
Essa ação também não foi adiante, acabou arquivada. Mendes alegou
que a Lei Orgânica da Magistratura permite aos juízes atuar em cursos de
formação, desde que não sejam dirigentes da empresa. Ele apresentou
uma nota da presidência da Comissão de Ética Pública, vinculada ao
Palácio do Planalto: “A Comissão concluiu não haver qualquer
incompatibilidade jurídica ou ética entre o exercício do cargo de
advogado-geral da União e de membro e professor do IDP”.
Cinco anos mais tarde, o assunto voltou ao noticiário. Entre 2000 e
2008, o IDP obteve aproximadamente R$ 2,4 milhões de diversos órgãos
públicos, como o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), a FAB, a Receita
Federal, o Senado e vários ministérios. Também foi revelado que o prédio
do IDP fora construído em parte com um financiamento de R$ 3 milhões
do FCO (Fundo Constitucional do Centro-Oeste), uma linha de crédito
liberada pelo Banco do Brasil no DF em 2004, quando Mendes já presidia
o STF.242
Na eleição municipal de 2000, Mendes dispensou grande atenção à
sua Diamantino. Seu irmão, o médico-veterinário Francisco Ferreira
Mendes Júnior, lançou-se candidato a prefeito pelo PPS. Gilmar Mendes
levou à cidade ministros de Estado. Seu irmão foi eleito, tornando-se o
segundo prefeito na história da família, e reeleito em 2004, quando
novamente Mendes levou à cidade mais ministros de Estado.
O dono de cartório Erival Capistrano de Oliveira (PDT) e seu irmão, o
ex-prefeito Darcy, eram os líderes do grupo político derrotado em 2000 e
2004. Em 2008, Erival venceu as eleições, quebrando dezesseis anos de
mandatos de políticos ligados aos Mendes, incluindo os oito anos do irmão
Francisco. Uma das primeiras medidas de Erival foi fazer uma auditoria
nas contas de Francisco e enviar o resultado para o TCE (Tribunal de
Contas do Estado). Mas logo Erival teve o mandato cassado por um juiz
eleitoral, em 2009, sob suspeita de irregularidade na prestação de três
doações no valor total de R$ 20 mil nas contas de sua campanha. Quem
assumiu o cargo foi o político apoiado pelos Mendes, Juviano Lincoln, do
PPS. Erival recorreu ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral), que suspendeu
a decisão. Por conta de recursos, Erival não havia conseguido retornar ao
cargo até dezembro de 2010. Nas campanhas eleitorais de Diamantino,
Erival contou que Gilmar Mendes foi presença expressiva:
[Em 2000] ele começou a vir usando de toda a força para
conseguir eleger o irmão. Ele vinha com a influência que ele
tinha, como advogado-geral da União, junto aos produtores
rurais. Ele chegava aqui e o pessoal tinha um respeito muito
grande por ele. E acabava influenciando na votação do irmão
dele. Ele participou de campanha, pedindo votos pelos
bairros.243
O poder dos Mendes em Diamantino só aumentou desde 2000. Em
2001, a família pôs em funcionamento a Uned (Faculdade de Ciências
Sociais e Aplicadas de Diamantino), dirigida pela irmã do ministro. Anos
depois, a instituição mantenedora da faculdade, a União de Ensino
Superior de Diamantino, obteve do Ministério das Comunicações a
concessão de um canal de tevê. A outorga foi concedida nos últimos dias
do governo FHC, em dezembro de 2002. A TV Diamante entrou no ar em
2006, como afiliada da Rede TV!. Em 2008, passou a retransmitir o sinal
do SBT.
O patrimônio da família seguiu crescendo nos anos seguintes. Em
2009, sua família era proprietária de três fazendas que somavam 1.764
hectares em Diamantino e Alto Paraguai (MT), uma delas avaliada em R$
1 milhão, além de criar 309 cabeças de gado.244
Essa atividade rural não impediu que Mendes, na presidência do STF,
fizesse pesadas críticas aos movimentos de trabalhadores rurais sem
terra e ao governo, de quem cobrou ação enérgica contra invasões de
terras. Mendes, contudo, disse publicamente que nunca foi pecuarista.
Em 2008, o jornalista Altino Machado, do Acre, o abordou para saber por
que ele não se manifestava sobre assassinatos de lideranças de
trabalhadores rurais. O jornalista indagou se isso decorreu do fato de
Mendes “ser ministro ou pecuarista”. Mendes disse que se manifestava
sempre contra “qualquer violação de direitos” e encerrou com uma
ameaça: “A pergunta, de qualquer forma, é desrespeitosa. O senhor tome
cuidado ao fazer esse tipo de pergunta. Eu não sou pecuarista”. No dia
seguinte, Machado concordou que sua pergunta foi “desrespeitosa”.
A ligação de Mendes com o meio rural deu origem a um dos piores
bate-bocas da história do STF. No meio da discussão, o ministro Joaquim
Barbosa disse que Mendes estava “destruindo a Justiça deste país” e
alfinetou: “Vossa Excelência, quando se dirige a mim, não está falando
com seus capangas no Mato Grosso”. Mendes reagiu: “Ministro Joaquim,
Vossa Excelência me respeite”. O debate esquentou depois que Mendes
afirmou que Barbosa não tinha “condições de dar lição de moral a
ninguém”.
O estilo seco e direto de Mendes, que marcaria sua passagem pela
presidência do STF, também produziu problemas para todos os lados nos
tempos da AGU. Ao saber que um juiz do interior do Pará, Eduardo Luiz
Rocha Cubas, decidiu intimar o presidente FHC por edital, por entender
que era uma pessoa difícil de ser localizada e muito ocupada, o então
advogado-geral da União representou contra o magistrado na
Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. No texto,
Mendes escreveu que a atitude do juiz “beira as raias do deboche, além
de arrostar comezinhas regras do direito processual civil”. Cubas não
gostou dos termos e formulou uma queixa-crime contra Mendes por
supostas injúria e difamação. O então procurador-geral da República,
Geraldo Brindeiro, pediu o arquivamento da ação, por considerar que
Mendes não teve a intenção de difamar o juiz. Contudo, Brindeiro não
deixou de perceber que a crítica de Mendes tinha sido acima do tom
recomendado: “Conquanto censurável, inconveniente ou exacerbada, a
crítica contida na representação não desvela vontade livre e consciente
de praticar fato difamante ou injurioso em desfavor do querelante”.245
Algo parecido ocorreu durante a privatização do Banespa. Na função
de advogado-geral da União, Mendes se mostrou um defensor fervoroso
da política de privatizações do governo. Quando a juíza federal
Rosimayre Gonçalves Carvalho concedeu uma liminar que suspendeu por
cinco dias o leilão de privatização do Banespa (Banco do Estado de São
Paulo), Mendes atacou o Judiciário em entrevistas à imprensa: “O
autismo é um mal complicado no Judiciário”.
Rosimayre se disse ofendida e representou contra Mendes. Na peça,
ela anexou o sentido da palavra extraída dos dicionários — “fenômeno
patológico caracterizado pelo desligamento da realidade exterior e criação
mental de um mundo autônomo” — e lamentou: “Eis uma das mais
graves ofensas que um advogado poderia atribuir ao julgador que decide
contra sua pretensão”. A juíza queria que Mendes demonstrasse com
provas a “patologia”. O caso chegou ao STF, que decidiu pelo seu
arquivamento.
A posse de Mendes no STF foi das mais controversas. Às vésperas da
confirmação, cerca de 300 alunos e advogados, reunidos por dois centros
acadêmicos da faculdade de direito da USP, fizeram um “ato de repúdio”,
com a presença de professores simpáticos ao PT, o então presidente da
Câmara de Vereadores, José Eduardo Cardozo (PT), e representantes do
Ministério Público. O vídeo que registrou o ato foi enviado ao Senado.
Os críticos apontavam um conflito ético na possibilidade de Mendes
vir a julgar, como ministro do STF, teses que ele havia levantado ou
mesmo processos em que havia atuado como advogado-geral. Seria como
bater o escanteio e cabecear para o gol. Ressalte-se que, sete anos
depois, quando José Antônio Dias Toffoli foi nomeado, então advogadogeral da União do governo Lula, não houve grita parecida na USP e no
MP.
Outra parte dos críticos de Mendes tinha objeções mais específicas.
Citaram sua passagem pela AGU como prova de um ativista jurídico que
procurava interferir nas atividades do Ministério Público.
Na sessão no Senado, Mendes teve de ouvir uma carta lida pelo expresidente do Conselho Federal da OAB, Reginaldo Oscar de Castro, que
instou os senadores a investigar o passado de Mendes, citando ações a
que ele respondeu. Mendes partiu para o ataque:
Claro que Sua Excelência faz justiça ao seu passado de agente da
ditadura militar [...] São processos triviais. Militei como advogado
da União intensamente. Claro que tenho processos de crime
contra a honra. Eventualmente, muitos já arquivados. Temos tido
refregas com o Ministério Público. Propõem-se, em retaliação, as
ações civis de improbidade, as famosas “açõezinhas de
improbidade”, como depois saem nos jornais etc.
No final dos anos 1960, Castro havia trabalhado por dois anos na PF
na análise de letras de música e peças de teatro, na prática um censor.
Mas disse que nunca atuou no interrogatório ou prisão de militantes da
esquerda e que, quando recebeu uma ordem superior para barrar um
filme no qual não viu problemas, deixou a PF. Ao falar do passado de
Mendes na sabatina, o ex-presidente da OAB disse que pretendia “deixar
historicamente demonstrado que os cidadãos podem questionar a
indicação de alguém para o Supremo”.
Os atritos entre Castro e Mendes remontam à passagem do ministro
no governo FHC. A legislação da época previa que o presidente da
República deveria reeditar mensalmente as medidas provisórias em vigor,
que eram muitas. Nas reedições, poderiam surgir dispositivos não
incluídos nas edições originais, ou, pelo contrário, poderiam ser retirados
dispositivos anteriormente previstos. Isso demandava uma atenção
redobrada da OAB, que foi uma crítica permanente da edição das MPs.
Segundo Castro, Mendes era o responsável por encaminhar ao presidente
os textos das reedições.
“Como o presidente tinha que reeditar mensalmente centenas de
medidas, jamais teria condições de ler cada uma, antes de assinar.
Chegava para ele como um prato pronto. Então, quem era o grande
legislador daquela época? O Gilmar. Ele fazia como bem entendia.”246
Em um texto publicado na imprensa, Castro anunciou a abertura de
um processo contra Mendes por suposto problema ético. O pano de fundo
era também a reedição de infinitas medidas provisórias.
As hostilidades da Advocacia-Geral da União com a OAB são recentes.
Ao tempo em que era a primeira dirigida por Geraldo Quintão, imperava
absoluta harmonia. Embora o atual ministro da Defesa fosse um defensor
intransigente do Estado, não moldava a ordem jurídica aos interesses de
seu cliente. Muito menos fazia pressão sistemática sobre o Judiciário,
comparecendo aos gabinetes dos ministros levando a tiracolo autoridades
do primeiro escalão do governo. O atual titular do cargo procede de modo
diametralmente oposto, em clara afronta ao Código de Ética e Disciplina
[da OAB].247
A OAB também dizia que Mendes visitou ministros do STF na
companhia do então ministro da Fazenda, Pedro Malan, e do então
presidente do Banco Central, Armínio Fraga, às vésperas de julgamentos
no STF de interesse do governo. O Conselho Federal da Ordem chegou a
aprovar o envio de um processo preliminar para a seção de Brasília para
abertura de um processo ético a fim de averiguar se Mendes utilizou
“influência indevida” em benefício do cliente, o governo federal.
Apesar das divergências, em 2008 Castro subscreveu um texto de
apoio a Mendes. Ele concordou com a defesa que o ministro fez das
“garantias fundamentais” dos investigados pela PF.
Na sabatina no Senado, o relator, senador Lúcio Alcântara (PSDBCE), da base governista, concluiu que as ações judiciais “não tinham nada
de gravosas”.
Os reparos de Reginaldo de Castro deram em nada. Mas a reunião foi
suspensa por causa de um pedido de vista coletivo. Uma semana depois,
a sabatina foi retomada, numa sessão que durou quatro horas e
cinquenta e quatro minutos. Mendes foi bombardeado de perguntas,
principalmente do senador Jefferson Peres (PDT-AM) e do senador José
Eduardo Dutra (PT-SE), então líder do bloco de oposição no Senado. O
senador Arthur Virgílio (PSDB-AM), líder do governo, saiu em defesa de
Mendes.
Mendes teve de dar uma resposta sobre sua participação na obtenção
de licença para a faculdade privada em Diamantino. Havia dúvidas se o
candidato a ministro havia interferido politicamente para obter a licença
de funcionamento da escola. Ele disse que se retirou da sociedade, da
qual tinha 20% das cotas, em 2001, antes de a faculdade ter obtido
autorização para funcionar, e que o MEC e a OAB haviam avaliado in loco
as condições da faculdade. Na resposta, contudo, Mendes fez outro tipo
de revelação, sobre engajamento político: “Esse empreendimento,
senador, não foi pensado como empreendimento empresarial, mas de
dimensão social para viabilizar, inclusive politicamente, a eleição, que
veio a se confirmar depois, do meu irmão Chico Mendes, pelo PSB,
vinculado inclusive ao seu partido [PT] no meu estado”.
Francisco estava na plateia, assistindo à sabatina.
O nome de Mendes foi aprovado para o STF por dezesseis votos
favoráveis e seis contrários. O novo ministro do STF, aos quarenta e seis
anos, era um orgulho para Mato Grosso, como disseram três senadores
durante a sabatina, e sua trajetória era vitoriosa — a história de um
jovem de uma pequena cidade do interior do país que se empenhou nos
estudos, inclusive na Europa, e galgou altos postos da República até obter
uma cadeira no Supremo. Sua obra era apreciada por boa parte da
academia, da qual nunca faltavam convites para palestras e seminários.
Mendes era um vencedor, e isso até seus piores inimigos haveriam de
reconhecer. Mas ele tinha ainda muitas contas a acertar com seu
passado. Suas manifestações no STF revelaram um homem que se via
destinado a corrigir as imperfeições das atividades do Ministério Público,
denunciar um suposto “Estado policial” e defender as garantias dos
investigados e réus.
Depois da posse no STF, em junho de 2002, iniciou uma escalada de
confrontação com o Ministério Público. Ele se vingou de Valquíria Quixadá
e Luiz Francisco, citando-os de modo negativo em sessões do STF.
“Essa ação é da dona Valquíria Quixadá”, disse, por exemplo, a
respeito de uma ação movida pelo MPF contra um ministro do governo
FHC que usou um hotel da Aeronáutica para passar férias em Fernando
de Noronha. Mais tarde, Mendes voltou à carga: “Quem sabe fazer a
leitura de atos políticos, sabe por que essa ação foi proposta, qual a sua
motivação. Não preciso falar das histórias de [Guilherme] Schelb e Luiz
Francisco, nem das histórias de dona Valquíria Quixadá”.248
O auge das acusações ocorreu numa sessão em dezembro de 2006. O
tribunal julgava reclamação formulada pela então prefeita de Magé (RJ),
Núbia Cozzolino, que respondia a seis ações de improbidade e queria ser
julgada pelo Tribunal de Justiça do Rio, não pela primeira instância. Por
uma questão técnica, Mendes não acolheu o pedido da prefeita. Contudo,
disse que “não poderia deixar de registrar posicionamento pessoal sobre
o tema”, por enxergar “visível abuso por parte de membros do Ministério
Público”.
Mendes defendeu dois ex-ministros do governo FHC, Martus Tavares
e Pratini de Moraes, que haviam sido alvo de ações de improbidade.
Segundo o ministro, os procuradores buscaram somente “a execração
pública dos auxiliares do presidente da República [FHC]”. Citando
matérias do site “Consultor Jurídico”, Mendes voltou a atacar Valquíria
Quixadá, afirmando que ela moveu uma ação contra a presidência do
Banco Central em razão de perdas que ela e outros procuradores
sofreram num fundo de investimento, o que a procuradora sempre
negou.
O ministro abordou o inquérito aberto por Luiz Francisco sobre o
Opportunity Fund. Ele abraçou a tese da suposta “contaminação” da
investigação, noticiada pelo site “Consultor Jurídico”. É um ponto
importante na defesa do Opportunity.
“O caso se referia a uma ação movida por Luiz Francisco contra o
grupo Opportunity, em cuja formulação se detectou o dedo de um
desafeto e adversário do grupo, o empresário Luís Roberto Demarco”,
afirmou o ministro. Baseando-se exclusivamente na matéria do site, o
ministro sugeriu que o banco era vítima de um complô, passando ao largo
das investigações do caso Banestado, que demonstraram inúmeras
remessas para o Opportunity Fund.
O autor do arquivo de onde saiu a denúncia, assinada por Luiz
Francisco, era o advogado de Demarco, Marcelo Elias. E o arquivo fora
gerado num computador da Nexxy Capital Ltda., pertencente ao
empresário, descreveu o ministro.
No STF, quem pode atuar em nome do MPF é a Procuradoria-Geral da
República. Valquíria, então lotada na Procuradoria do DF, e Luiz Francisco
e Guilherme Schelb, lotados na Procuradoria Regional, portanto todos
ausentes da sessão do STF, não tinham meios de se manifestar, ficando
sem qualquer chance de defesa contra as acusações de Mendes. O exprocurador-geral da República Cláudio Fonteles saiu em defesa dos
procuradores por meio de uma nota pública, mas só depois da sessão.
Em reportagem na Folha de 12 de março de 2007, mais de um ano
antes da deflagração da Satiagraha, o jornalista Frederico Vasconcelos
listou inúmeras decisões polêmicas de Mendes em casos de investigação
federal. Contrariando o parecer do MPF, o Supremo trancou, com base
num voto de Mendes, ação penal contra o desembargador Roberto
Haddad, do Tribunal Regional Federal de São Paulo, investigado por
suposta falsificação de documento da Receita — o que ele sempre negou.
Em fevereiro, Mendes, como relator do caso, também decidiu, e foi
acompanhado pelo tribunal, pela suspensão da quebra dos sigilos do
subprocurador-geral da República Antônio Augusto César, investigado
pela Operação Anaconda. Mendes entendeu que a denúncia era “inepta”.
Na reportagem, Vasconcelos também tratou da ação de Luiz Francisco
contra Mendes e o IDP.
As manifestações de Mendes contra o Ministério Público ganharam o
apoio das grandes bancas de advocacia. Antes de entrar no STF, como
reflexo das polêmicas com o Ministério Público e pela própria função de
defender a União contra as investidas dos procuradores, Mendes já havia
cimentado uma série de apoios entre advogados de renome. No STF, ele
deu voz a todo um grupo dos principais escritórios de defesa de São Paulo
e do Rio que atacavam os procuradores da República e a PF.
Um dos principais apoios a Mendes nesse grupo foi Arnold Wald.
Trata-se de um dos advogados mais bem remunerados pela Brasil
Telecom durante a gestão sob o controle de Daniel Dantas, como o
próprio banqueiro descreveu, ao ser interrogado em sessão pelo então
senador José Eduardo Dutra (PT-SE) sobre os gastos da BrT com
escritórios de advocacia: “Trabalharam na Brasil Telecom uns sessenta
advogados [...] O maior advogado das causas da Brasil Telecom era o sr.
Arnold Wald, que possivelmente foi o que mais recebeu da companhia. A
companhia vem num conflito societário muito agressivo e muito ácido, há
bastante tempo”.249
O escritório Wald e Associados Advogados S/C trabalhou para a BrT
por cinco anos (de 2001 a 2006). Nesse período, recebeu 502
pagamentos, no valor total de R$ 27,1 milhões.250 Wald atuou em favor
da BrT em várias disputas societárias que tramitaram na Justiça de
primeiro grau do Rio, em agravos de instrumento no Tribunal de Justiça,
em audiências na Justiça Federal de Brasília e de São Paulo e nos
tribunais regionais federais da 1ª e da 3ª Regiões. Wald atuou num dos
casos mais sérios para os negócios do banco, a disputa com os fundos de
pensão acerca da legalidade do acordo umbrella, alvo da decisão da juíza
Márcia Cunha.
A página do escritório de Arnold Wald na internet durante anos
apontou a BrT como um de seus principais clientes e a telefonia como
uma de suas principais áreas: “O escritório atua intensamente no
planejamento e elaboração de defesas e recursos judiciais, bem como no
acompanhamento de processos administrativos e em arbitragens
envolvendo as grandes empresas do setor”.
Wald e Mendes têm muita afinidade sobre temas de repercussão no
dia a dia da Justiça, tratados tanto pela AGU quanto pelo STF. Em 1997,
coassinaram um artigo de imprensa que considerava uma “aberração” a
possibilidade de um juiz de primeira instância abrir uma ação de
improbidade administrativa contra um ministro de Estado. A vedação
seria uma “condição da manutenção da própria hierarquia judiciária e do
sistema democrático”.
Entre 2000 e 2005, época em que Wald trabalhou ativamente para a
BrT, ele e Mendes atuaram juntos para atualizar, da 23ª à 28ª edição, a
obra do professor Hely Lopes Meirelles, que trata de ações diretas de
inconstitucionalidade, dentre outros temas.
Wald e Mendes também trabalharam na elaboração da Lei nº 9.882,
de dezembro de 1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da
arguição de descumprimento de preceito fundamental. Mendes assim
descreveu o trabalho:
Todos sabem que tive uma participação direta, efetiva, na concepção
do projeto que resultou na Lei n° 9.882 [...] O professor Celso Bastos
elaborou um texto, encaminhou-me aquele texto. Fiz uma revisão [...]
Fiz uma nova proposta e criamos uma comissão maior, com a presença
de Wald, Oscar Corrêa e Ives Gandra, e discutimos o texto. Chegamos a
um texto básico que encaminhamos ao Supremo Tribunal Federal.251
No cargo de advogado-geral da União, Mendes deu apoio a projetos
de lei cuja origem tinha sido apreciada ou sugerida por Wald. Em abril de
2001, por exemplo, Mendes remeteu ao então presidente FHC proposta
de projeto de lei que estabelecia novos parâmetros para o mandado de
segurança individual e coletivo. O projeto foi “calcado em uma comissão
de juristas” constituída por portaria ministerial, da qual Wald foi o
relator.
Sempre que pôde, Wald deu mostras públicas de apreço e apoio ao
ministro. Quando a oposição ao governo FHC gritou contra a indicação de
Mendes para o STF, Wald subscreveu e enviou ao Senado um manifesto
de apoio. Também em abril de 2008, quando Mendes tomou posse na
presidência do Supremo, Wald e Ives Gandra Martins escreveram um
artigo com rasgados elogios ao ministro.
Procurado pelo autor por escrito, Wald não deu resposta a um pedido
de entrevista.
Wald não é o único advogado que defendeu os interesses do
Opportunity e manteve relações com Mendes. O ministro é amigo do
advogado carioca Sérgio Bermudes, que foi o defensor de Dantas no
inquérito aberto em 1998 pelo Ministério Público do Rio para apurar
irregularidades no leilão das companhias telefônicas.
“Temos certeza de que houve improbidade administrativa, mas vou
deixar o advogado Sérgio Bermudes na dúvida se entraremos com ação
contra o banco Opportunity”, disse à época o procurador da República
Rogério Nascimento. Bermudes desconversou: “Vamos esperar a
ação”.252 Bermudes atuou em outra causa de extrema relevância para
Daniel Dantas, os reflexos da disputa nas ilhas Cayman na possível
dissolução do fundo CVC Opportunity. Bermudes era citado à época pela
imprensa como “advogado do Opportunity na causa”.253
Bermudes também defendeu os interesses de Dantas na Corte
Internacional de Arbitragem. “O advogado de Dantas, Sérgio Bermudes,
reiterou hoje que o banqueiro não pretende falar sobre a decisão do
Citibank de afastar o banco de investimentos da gestão do
CVC/Opportunity.”254
Os fundos de pensão reclamaram muito das onerosas contratações de
assessores jurídicos pela BrT sob a batuta do Opportunity, citando Wald e
Bermudes.
Os escritórios mais usados pelo Opportunity são o Barbosa, Mussnich,
Aragão (um dos sócios é cunhado de Daniel Dantas), Wald e Associados
Advogados, Sérgio Bermudes e Advogados e Advocacia Zveiter. Esses
gastos em nada beneficiaram os acionistas das companhias e foram feitos
contra os interesses dos próprios acionistas.255
Em 2009, a mulher de Mendes, Guiomar, ex-assessora do ministro
Marco Aurélio, decidiu deixar o STF. Seu novo emprego foi o escritório de
Bermudes, na “área administrativa”. Guiomar se tornou colega de
ninguém menos que Elena Landau, a ex-consultora do grupo
Opportunity. Elena também foi trabalhar no escritório de Bermudes,
como consultora.256
A amizade entre Mendes e Bermudes foi abordada em reportagem do
jornalista Luiz Maklouf de Carvalho na revista piauí, em 2010. O ministro
e sua mulher, Guiomar,
já se hospedaram nos apartamentos de Sérgio Bermudes no Rio,
no Morro da Viúva, e em Nova Iorque, na Quinta Avenida.
Também usam sua Mercedes-Benz, com o motorista. Logo depois
da solenidade de transferência da presidência do Supremo para
Cezar Peluso [2010], Mendes e Guiomar embarcaram em uma
viagem de cinco dias a Buenos Aires — presente de Sérgio
Bermudes, que os acompanhou.
“O Gilmar e eu somos irmãos, nos falamos duas vezes por dia”, disse
o advogado a Maklouf. “A gente brinca, ri, sou advogado dele em algumas
questões. Somos dois homens de boa-fé e de caráter que podem
suplantar uma eventual divergência”, contou Bermudes ao jornalista.
Ainda segundo a reportagem, Guiomar chama Bermudes de “amigo” e
“irmão”.
Procurado pelo autor deste livro, Bermudes confirmou por e-mail seus
vínculos com Dantas, mas se recusou a conceder entrevista:
Tendo sido advogado em causas de empresa do sr. Daniel Dantas, só
tomei conhecimento de fatos necessários ao meu trabalho. De qualquer
forma, as leis regentes da advocacia me impedem de falar sobre o sr.
Dantas, mesmo quando, como no caso, eu não disponha de nenhum
elemento que pudesse ser útil ao seu trabalho jornalístico.
Mendes e Bermudes nem sempre foram próximos. Nos anos 1990, o
advogado representava o professor da PUC-RJ Manoel Messias Peixinho
numa ação popular que questionava a constitucionalidade de uma medida
provisória. Num programa da TV Cultura, Mendes chamou Bermudes de
“chicanista”, ou seja, um advogado que abusa de recursos judiciais com
base em argumentos irrelevantes a fim de dificultar o andamento de um
processo. Disse esperar que Bermudes deixasse de tomar o tempo da
AGU. Em carta, Bermudes revidou: “Sua esperança me dá todo o direito
de manifestar-lhe a minha, no sentido de que você deixe o cargo que
ocupa e que não merece por causa do seu desequilíbrio, do seu
destempero, da sua leviandade, e que abdique da sua propalada
pretensão de alcançar o Supremo”.
Em 2010, Mendes fundou em Brasília a EDB (Escola de Direito do
Brasil), com a missão de “formar líderes com habilidades e competências
para
analisar
os
problemas
sociais,
políticos
e
econômicos
contemporâneos”, tendo como parceiras duas faculdades privadas. Dois
dos mais ilustres integrantes do corpo docente eram Arnold Wald e
Sérgio Bermudes.
Em 2010, Inocêncio Mártires Coelho e Mendes, amigos de muitos
anos, se desentenderam na condução do IDP. Coelho abriu uma ação
judicial para tentar anular uma decisão pela qual foi retirado da direção
do instituto. Ele tentou permanecer na função pela via judicial e até
ganhou uma liminar na primeira instância, mas depois sofreu uma
derrota no Tribunal de Justiça do DF. O advogado de Mendes nessa causa
foi, novamente, o escritório de Bermudes.
As estreitas ligações de Mendes com Wald e Bermudes não impediram o
ministro de julgar os dois HCs em favor do banqueiro. O ministro não se
considerou impedido para julgar o caso. O Código de Processo Civil, entre
os artigos 134 e 138, diz que o juiz pode se declarar impedido “por
motivo de foro íntimo”, além de outras hipóteses listadas, dentre as
quais, “amigo íntimo ou inimigo capital de quaisquer das partes”. O CPC
também abre a possibilidade de as partes levantarem a suspeição do juiz,
o que não foi feito pela Procuradoria-Geral da República. Alguns
advogados e juízes alegam que só réus são partes de processos, não os
seus advogados.
Entre os HCs que Mendes concedeu, em julho, e a sessão do dia 6 de
novembro, que deveria confirmá-los ou revogá-los, outros fatos
ocorreram na relação de Mendes com os investigadores da Satiagraha.
Além das histórias do grampo e do “monitoramento” do seu gabinete,
ambas jamais comprovadas, Mendes também demonstrou incômodo com
uma notícia da revista IstoÉ, que acusou a procuradora da República Lívia
Tinôco de realizar uma “investigação sorrateira” para tentar saber quem
havia se reunido com o advogado de Dantas, Nélio Machado, em junho,
num restaurante japonês de Brasília. A procuradora enviou um ofício ao
restaurante, ato que foi entendido pela revista como indício de uma
investigação contra Mendes — mas a procuradora não tinha poderes para
investigar um ministro do STF.
Como retrata o relatório de Protógenes escrito em 13 de junho de
2008, portanto muito antes das decisões de Mendes sobre os HCs de
Dantas, o delegado estava no restaurante Original Shundi, na Asa Sul,
quando viu Nélio Machado entrar e sentar-se a uma mesa em que três
pessoas o aguardavam. O delegado, dizendo-se “seguido”, pegou um
telefone celular e tirou fotos. As imagens, de má qualidade, não
permitem saber quem eram as outras pessoas. Mas nunca o delegado
disse taxativamente, nos autos da Satiagraha, que aquelas pessoas eram
assessores de Mendes.
Talvez Protógenes possa ter sugerido à procuradora da República que
tirasse a dúvida sobre se aquelas pessoas eram ou não lotadas no STF —
o que o delegado nega ter feito —, mas Mendes recolheu a matéria da
IstoÉ como a fiel revelação de uma operação deliberada, e ilegal, para
desacreditá-lo perante a opinião pública, assim como havia tomado como
verdadeira a história do grampo. O então presidente do STF
potencializava qualquer sinal contrário a ele, por mais tênue que fosse.
Durante a sessão no STF, Mendes também citou dois episódios de
2007 que atiçaram suas dúvidas mais conspiratórias. Em maio daquele
ano, após Mendes ter mandado libertar parte dos investigados pela
Operação Navalha, a imprensa divulgou que a empreiteira Gautama, pivô
do escândalo, havia distribuído presentes a diversas autoridades, dentre
as quais certo “Gilmar Mendes”. À época, a Folha ressaltou a dúvida
sobre quem seria essa pessoa — depois definida como um ex-secretário
do governo do Sergipe, homônimo do ministro. Mas Mendes acusou como
o autor “da notícia dada” o chefe da comunicação da PF na gestão de
Paulo Lacerda, o jornalista François René.
Outro episódio foi uma conversa telefônica que ele disse ter mantido
com o procurador-geral da República Antonio Fernando. O conteúdo da
conversa teria chegado ao conhecimento da jornalista Silvana de Freitas,
então na Folha. Para Mendes, foram sinais inequívocos de que a PF
queria “amedrontá-lo”.
“O que isso revelava, em toda a extens [ão]...? Que havia duas
práticas sistêmicas aqui. Uma, monitorar, ouvir, o relator dos processos.
A outra, amedrontá-lo de alguma forma, atemorizá-lo de alguma forma
com algum tipo de informação inverídica”, discursou Mendes.257
Dias depois, as acusações contra René ecoaram na CPI dos Grampos,
na qual o deputado federal Marcelo Itagiba acusou o assessor de
“distribuir dossiês”.
Mendes, entretanto, contou apenas uma parte da história. A PF abriu
uma investigação sobre o vazamento e tomou o depoimento de René, que
havia trabalhado por mais de sete anos na comunicação do Ministério da
Educação durante o governo FHC. René contou que a informação sobre a
lista dos presentes da Gautama chegou a ele pela própria imprensa e
negou ter espalhado os boatos. O jornalista Hugo Marques, então na
IstoÉ, procurou-o na assessoria da PF com uma cópia da lista para saber
se a PF confirmava a existência do papel no bojo da Navalha. O encontro
foi presenciado por outros jornalistas. Mais tarde, um repórter de O Globo
também telefonou para René para tentar checar a mesma informação.
Eu disse que eles deviam tomar cuidado, pois poderia ser algum
homônimo, e não confirmei nem desmenti a existência dessa lista. Eu só
soube desse papel por meio da imprensa. Mas fui acusado em plena
sessão do STF. Acho que, na verdade, o alvo verdadeiro era o doutor
Paulo Lacerda, pois todos sabem da minha ligação com ele. Atingindo a
mim, atingiam o doutor Paulo.258
Caso houvesse sido ouvido à época por Mendes ou pela imprensa,
Hugo Marques confirmaria a história:
Quando eu mostrei o papel, o René foi checar e me alertou para eu
desistir da apuração, que foi o que eu fiz. Ele disse: “Hugo, cuidado com
isso aí. Pode ser um homônimo”. Nesse sentido, ele até defendeu o
Gilmar Mendes. Quando o acusaram de vazamento, acho que queriam
mesmo era atingir o Paulo Lacerda.259
René nunca foi indiciado nem processado sob a acusação do
vazamento. Mas, ainda que ele tenha, de fato, passado adiante um dado
que se revelou equivocado, o que sempre negou ter feito, e Hugo
Marques nega ter ocorrido, é comum que assessores deem dicas aos
jornalistas para que eles confirmem a veracidade da informação antes de
publicá-la. Uma dica não é uma informação e não deve ser divulgada
acriticamente. Era de alto interesse público verificar se uma autoridade
do STF realmente constava daquela lista de nomes. Até para dizer que
houve um erro. Mas Mendes demonstrou querer controlar o que um
assessor deve ou não dizer em off aos jornalistas. Mendes chegou a dizer
isso claramente à Folha, em 2007: “A PF não pode falar em off. Off de
policial e de ministro do STF é covardia”.
Tanto Mendes quanto Itagiba também afirmaram que René era
funcionário da Abin. Isso reforçaria o elo com Lacerda. Mas a verdade é
que René nunca foi servidor da agência, tendo feito apenas duas
palestras para o órgão, em dois estados, por não mais de R$ 500 ao todo.
Quando Lacerda foi para a Abin, René não o acompanhou. Sobre a
citação à jornalista Silvana, o suposto grampo contra Mendes também
jamais foi localizado, e seu áudio também nunca veio a público.
Mendes havia decidido sobre os HCs durante as férias do STF, mas o
relator original era o ministro Eros Grau. Após a leitura do relatório de
Grau, a palavra foi passada ao advogado Nélio Machado. Ele atacou De
Sanctis, o Ministério Público e Protógenes. Disse que o juiz “atua em
cumplicidade com o Ministério Público, ao lado da autoridade policial, este
famigerado Protógenes” e viu “rebeldia” na reunião dos juízes de São
Paulo.
O advogado procurou se colocar ao lado dos ministros do STF. Seriam
todos vítimas de uma espionagem em larga escala. “Eu comecei a
advogar no tempo do regime militar, conheci as vicissitudes da ditadura,
nunca me senti perseguido, nunca me senti vigiado, e o Supremo
também [...] É uma luta das forças do direito contra um Estado policial
que se pretende implantar no país.”
Em sua fala, o então procurador-geral da República, Antonio
Fernando Barros e Silva de Souza, repudiou os termos do advogado: “O
Ministério Público não tem cúmplices, não exerce atividade ilícita”.
O procurador atacou a competência do STF para apreciar aqueles
HCs. Disse que o caso “afronta o enunciado da Súmula 691”. Havia um
grande problema, no entender do procurador:
A flexibilização da súmula pressupõe a existência de decisão anterior,
monocrática, de ministro de tribunal superior que indefira medida liminar
e m habeas corpus. E, no caso, a propósito da decisão que decretou a
prisão preventiva, não há antecedente pedido de liminar nem respectiva
decisão em habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça.
O julgamento se dividiu em duas etapas. Na primeira, os ministros
iriam analisar se a Súmula 691 poderia ter sido afastada e se o habeas
corpus preventivo poderia ter sido reconfigurado para liberatório. Só
depois iriam discutir o mérito. Passou-se à palavra dos dez ministros — o
11º, Joaquim Barbosa, estava ausente.
Eros Grau, o relator, disse que a segunda prisão de Dantas se baseou
apenas em “papeluchos”. Afirmou ainda que o gabinete de Gilmar Mendes
foi “invadido”, fato jamais comprovado.
“[...] E as agressões intimidatórias a nós todos? E o gabinete de
Vossa Excelência sendo invadido pela bisbilhotagem e coisas mais?
Querem nos intimidar e não se intimidam de mostrá-lo às claras.”
O ministro Cezar Peluso indagou a Grau:
— Qual terá sido o fato novo em que Sua Excelência [De Sanctis]
se baseou para decretar a prisão preventiva [...] Acho que este é
o ponto fundamental nesta causa.
— O fato novo foi o aparecimento de dois pedaços de papel.
Está nas folhas 925 — respondeu Grau.
— Qual é o fato novo? É isso que eu quero saber — insistiu
Peluso.
— Eu não posso responder qual é fato novo porque não há
indicação de fato novo — alegou Grau.
Peluso exclamou:
— Não há fato novo!
— O que há é a indicação dessas provas novas — corrigiu-se
Grau.
— Teriam, então, surgido provas novas. Ministro relator, por
gentileza, essas provas novas consistiriam em quê? — prosseguiu
Peluso.
Grau, então, leu o trecho da decisão do juiz que fala da localização,
no apartamento de Dantas, dos papéis intitulados “contribuições ao
clube”. E completou: “É só isso”.
Além de minimizar a importância dos papéis, Grau deixou de citar os
depoimentos de Hugo Chicaroni à PF, que vinculavam o dinheiro
apreendido ao Opportunity, e a apreensão das cédulas de dinheiro. Tais
“fatos novos” haviam sido lidos durante o voto do próprio Eros, mas
omitidos quando o relator deu a resposta a Peluso. Essa incrível omissão,
naquilo que Peluso qualificou de “o ponto fundamental” da causa, resta
como um dos tantos detalhes intrigantes do caso Satiagraha.
Passou-se à análise das preliminares. O ministro Menezes Direito
disse que todos os ministros eram “extremamente rigorosos, pelo menos
na composição da Primeira Turma, no que concerne à aplicação da
Súmula nº 691”, pois “a Suprema Corte não pode banalizar o
conhecimento da hierarquia jurisdicional brasileira”. Contudo, no caso
Dantas, Direito entendeu “que é perfeitamente lógica a superação da
súmula”. O principal motivo, segundo o ministro, seria a suposta “nítida
via oblíqua de desrespeitar a decisão do STF”, o mesmo argumento de
Gilmar Mendes.
A ministra Cármen Lúcia disse que também costuma ser “muito dura”
sobre a súmula, mas que poderia suplantá-la “quando se configurasse
constrangimento ilegal manifesto”. Ricardo Lewandowski também
concordou. Para ele, aquele era um caso fora do comum: “[Eros Grau]
identificou na espécie a excepcionalidade, porque estamos diante de uma
patente ilegalidade que só poderia ser remediada mediante o remédio
constitucional que é exatamente o habeas corpus”.
Peluso disse que o afastamento da súmula não era uma inovação e
apoiou o voto do relator. A ministra Ellen Gracie apoiou o relator com
base no tema da suposta “desobediência” de De Sanctis, mas frisou que
“muito raramente” dava por “transposto o obstáculo da Súmula nº 691”.
O ministro Marco Aurélio de Mello primeiro criticou o julgamento per
saltum, a supressão das instâncias:
Requereu-se, no Tribunal Regional Federal, diante do fato novo, a
concessão da medida acauteladora visando a afastar a prisão
temporária? A resposta é negativa. Requereu-se no Superior
Tribunal de Justiça, mesmo diante da sinalização do relator
quanto à relevância do que versado e de ausência de risco que
veio a ser transmudado em gravame? Não.
O ministro ironizou a defesa: “Sinto-me muito lisonjeado, no que
mais uma vez se acreditou no taco do Supremo. Porque, com queima de
etapas, requereu-se o reconhecimento do direito à liberdade no habeas
corpus aqui impetrado”.
Embora crítico dos caminhos percorridos pelo HC, Marco Aurélio
apoiou o afastamento da súmula e a transformação do HC em liberatório
tendo em vista a nova realidade — as duas prisões de Dantas. Mas ele
protestou contra a transformação do HC:
Não posso conceber que um habeas corpus preventivo seja
redirecionado a mais não poder. Que se torne liberatório e, uma vez
alcançada a liberdade do paciente, havendo outros atos subsequentes de
constrição, seja mais uma vez direcionado contra esses outros atos [...]
Aí o transformaria [o HC] em verdadeira panaceia, servindo, portanto,
para fulminar todo e qualquer ato judicial.
Celso de Mello acompanhou os primeiros colegas. Gilmar Mendes
também apoiou o afastamento da súmula. Quase todos disseram a
mesma coisa, que normalmente apoiavam a súmula, mas não naquele
caso. Era uma tarde de grandes reconsiderações, como a que fez Mendes:
Hoje, até me penitencio, porque me inscrevi entre aqueles que, em
razão do caráter novo naquele momento da súmula, do seu novel
lançamento, eu ponderei que talvez devêssemos elaborar com
distinguishing, fazendo as devidas distinções, mas hoje vimos elaborando
e construindo essa doutrina que faz esses devidos temperamentos.
Após a penitência, e uma pausa para o lanche, os ministros passaram
a analisar o mérito dos HCs. Primeiro a falar, Direito voltou a mencionar
uma suposta singularidade do caso: “Quando votamos na preliminar
sobre o conhecimento do habeas corpus, fizemos questão de destacar que
estávamos considerando uma situação de natureza excepcional”, reiterou
o ministro.
Para Direito, houve “desrespeito” ao STF quando De Sanctis emitiu a
segunda ordem de prisão. O ministro instou os colegas a se unirem, como
se todos tivessem sido atacados por uma força inimiga:
Impõe-se, ao pleno da Suprema Corte, uma reação imediata, uma
reação dura, uma reação coerente, uma reação firme, de modo a que nós
possamos ter a certeza de que estamos cumprindo coerentemente o
nosso dever. E assim sempre fazemos e continuaremos a fazer, sem
exceção, todos nós, uniformemente.
Ricardo Lewandowski aquiesceu: “Nós estamos diante de um evidente
constrangimento ilegal do paciente”. Ayres Britto também falou em
“ilegalidade”: “No caso, o cerceio à liberdade dos pacientes se deu por
abuso de poder e ilegalidade, conjugadamente”. O ministro Peluso pegou
a deixa, dizendo haver “uma ilegalidade encorpada”.
Celso de Mello tomou a palavra. Nesse ponto das discussões, há
discrepâncias entre o que foi efetivamente falado durante a sessão e o
que acabou constando no texto do inteiro teor, uma espécie de ata da
sessão, disponível ao público no site do STF na internet. Depois da
sessão, os ministros podem “limpar” as declarações que deram ao
microfone. Na fala de Celso de Mello, embora o documento confirme o
teor de suas intervenções, diversas passagens foram suavizadas.
Ao microfone, o ministro falou sobre o “comportamento” de De
Sanctis:
Eu diria que essa verdadeira recusa do magistrado em questão, de
prestar informações ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, ao
Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal, na verdade
constitui um comportamento que, eu diria, insolente, insólito, no mínimo,
para não dizer ilícito, e de todo estranhável.
No papel, o ministro aparece falando de um “comportamento
insolente e insólito”, mas sumiram as palavras “ilícito” e “estranhável”.
Peluso disse que a “Corte tem que tomar uma providência” e disse
que Grau esclareceu que não teriam ocorrido “fatos novos” a justificar a
decisão, mas sim “provas novas”.
“Mas quais seriam essas provas? Papéis apócrifos que faziam
referência a não entendi bem o quê [...] O que não consigo ver é como
esses documentos, esses papéis apócrifos, poderiam justificar o ato
gravíssimo de descumprimento da ordem do presidente do Supremo
Tribunal Federal.”
Novamente Peluso passou ao largo da apreensão do dinheiro e do
depoimento de Chicaroni. Peluso, apoiado por Celso de Mello, disse que o
juiz “não quis se submeter” à ordem de Mendes. Ao término do voto,
Peluso investiu contra os juízes que haviam feito um abaixo-assinado em
favor de De Sanctis. Exaltado e com o dedo em riste, Peluso atacou: “O
que se viu foi uma crítica clara, ostensiva, aberta e pública contra uma
decisão tomada pelo presidente do Supremo [...] Os juízes, muitos deles
noviços, não são corregedores do Supremo Tribunal Federal! Não são
corregedores de ninguém, a não ser dos seus subordinados”.
Em seguida, a ministra Ellen Gracie deu um curto voto de uma frase,
a favor do relator. Seu então namorado, o jornalista Roberto D’Ávila,
havia trabalhado para um dos investigados da Satiagraha, o investidor
Naji Nahas. Um áudio demonstrou que Nahas mandou entregar, no início
de 2008, R$ 50 mil para o jornalista, a título de pagamento de uma
pesquisa de opinião feita pela sua empresa, a CDN. O diálogo constava
dos autos da Satiagraha e foi reproduzido pelos jornais. Mas Ellen Gracie
também entendeu que não era o caso de se declarar impedida de
participar do julgamento. E a PGR não levantou suspeição.
Marco Aurélio de Mello foi o único a apoiar as decisões de De Sanctis.
Ao longo de quarenta e três minutos, o ministro ofereceu uma visão
completamente diferente de tudo o que havia sido dito pelos outros
ministros. Disse que leu o processo “com a máxima atenção”, ou seja,
“com régua e esferográfica vermelha”. Sua primeira conclusão é que não
estava em jogo toda a primeira decisão de De Sanctis, mas, sim, a
segunda decisão, a da prisão preventiva. A questão era se houve ou não
repetição de fatos para a decretação da segunda prisão. Para que isso
ficasse claro, o ministro simplesmente comparou as duas decisões. E as
cercou de elogios: “Devo consignar, presidente, que poucas vezes me
defrontei com peças redigidas com tamanha seriedade, com tamanha
acuidade, com tamanho zelo, como cumpre ao Judiciário fazer. As duas
peças subscritas pelo juiz Fausto Martin De Sanctis foram muito bem
elaboradas”.
Marco Aurélio começou a ler, ponto a ponto, os trechos essenciais das
decisões, explicando-os, debulhando-os. Notou que De Sanctis citou duas
vezes a doutrina do próprio Gilmar Mendes. Após a apresentação correta
e ampla dos indícios recolhidos para subsidiar as temporárias e as
preventivas, Marco Aurélio respondeu à pergunta-chave: “A meu ver, na
preventiva, lançaram-se fatos novos”.
O ministro apontou que os indícios colhidos permitiam a decretação
da preventiva, pois, soltos, os investigados poderiam obstruir a
investigação, tal como teriam tentado, anteriormente, ao dar dinheiro a
dois delegados federais. Para explicar de onde De Sanctis retirou tal
conclusão, o ministro descreveu a apreensão do dinheiro, o depoimento
de Chicaroni e os papéis encontrados no apartamento de Dantas. Tais
dados, explicou o ministro, só vieram à tona no dia 8 de julho, enquanto
a primeira prisão datava de 4 de julho.
Marco Aurélio foi o único ministro a explicar a cronologia dos
eventos: “Há elementos calcados em diligências efetivadas no dia 8 de
julho de 2008, após a formalização da temporária, conducentes, a meu
ver, ao respaldo da preventiva”.
Mas a posição de Marco Aurélio foi derrotada. Após quatro horas e
trinta e quatro minutos de julgamento, Mendes proclamou o resultado
pelo apoio, por nove votos a um, à sua decisão de julho.
Quase ao final da sessão, Peluso cobrou de Mendes uma ação, por
meio do CNJ, contra 134 juízes federais que haviam subscrito um abaixoassinado de apoio a De Sanctis. Ao encerrar a sessão, sussurrando ao
microfone, Mendes disse que tomaria providências.
A Corregedoria do TRF da 3ª Região notificou os 134 magistrados. A
Ajufe (Associação dos Juízes Federais) recorreu ao STJ, e o ministro
Hamilton Carvalhido mandou suspender o expediente da Corregedoria.
Ele considerou que o manifesto não foi uma emissão de “juízo
depreciativo” sobre decisão tomada pelo STF. Em apoio a Carvalhido, 121
procuradores da República subscreveram um novo manifesto.
Mesmo inocentado de qualquer acusação sobre grampos contra o
ministro Gilmar Mendes, De Sanctis tornou-se alvo de representações no
TRF e no CNJ.
No Órgão Especial do TRF, De Sanctis acabou inocentado de duas
acusações: a reunião dos juízes federais em maio de 2008 e uma ordem
do STF para que fosse “investigada” a segunda ordem de prisão. No CNJ,
Daniel Dantas pediu uma revisão disciplinar, com base na decisão do TRF.
Também no CNJ, o juiz Ali Mazloum pediu uma investigação contra seu
colega De Sanctis, sob alegação de que era preciso avaliar os telefonemas
que delegado, juiz e procurador de República teriam trocado durante a
Satiagraha — suposta irregularidade ou ilegalidade desses telefonemas
foi depois descartada.
Dantas entrou com mais duas representações contra De Sanctis no
TRF, alegando que ele divulgou suas decisões à imprensa, o que seria
ilegal. De Sanctis não perdeu nenhuma dessas causas.
Aos trancos e barrancos, o juiz conseguiu dar celeridade ao processo
que tratava da entrega do dinheiro aos delegados Victor Hugo e
Protógenes. Em dezembro de 2008, De Sanctis condenou Dantas a dez
anos de reclusão e ao pagamento de R$ 13,42 milhões em multa e
reparação. O banqueiro recorreu da sentença. Ele e os outros
investigados tentaram de todas as formas desqualificar as provas
apresentadas pela PF. Usaram a história da TV Globo para alegar
“fraude”. E encomendaram três laudos, do IBP (Instituto Brasileiro de
Peritos em Comércio Eletrônico e Telemática) e do perito Ricardo Molina,
para atacar os problemas de áudio e supostas conclusões precipitadas da
PF.
Após a deflagração da Satiagraha, Gilmar Mendes, o STF e o CNJ, ambos
presididos pelo ministro, tomaram algumas providências inéditas que
tiveram grande repercussão no dia a dia das investigações judiciais. O
conjunto foi logo apelidado de “Legislação Satiagraha”.
Os milhões de espectadores de tevê no Brasil já estavam
acostumados às imagens de suspeitos algemados transitando para cima e
para baixo nos noticiários. Muito comum uma equipe de tevê filmar o
preso ainda dentro de sua casa. Era quase parte da paisagem nacional.
Mas foi a prisão de Dantas que movimentou o Supremo. Apenas um mês
depois da prisão, o tribunal aproveitou a discussão sobre um HC já em
andamento para emitir uma súmula vinculante, a de nº 11, pela qual os
delegados passam a andar no fio da navalha. O texto da súmula contém
uma ameaça a todos os policiais:
Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado
receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por
parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito,
sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da
autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere,
sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
Foi a primeira vez que os ministros do STF elaboraram uma súmula
vinculante para “normatizar” aspecto de uma investigação criminal. As
dez anteriores trataram de termos de adesão, consórcios e sorteios,
anulação de ato administrativo, indexação salarial, defesa em processo
disciplinar, remuneração no serviço militar, limite à taxa de juros,
prescrição de créditos tributários, limite sobre o tempo remido de
condenados e aspectos sobre declaração de inconstitucionalidade de lei.
Dias depois, um procurador de Justiça do Rio, Kleber Couto, publicou
um artigo em O Globo sobre a “súmula Satiagraha”: “A questão de fundo
é saber por que a súmula foi expedida. O STF não a expediu em seu
conceito jurídico. Na verdade, o seu presidente bradou com raiva e
arrogância uma ameaça a todos pela segunda prisão do banqueiro Daniel
Dantas”. Logo em seguida, a Corregedoria do CNMP (Conselho Nacional
do Ministério Público) anunciou ter aberto um expediente para averiguar
“a conduta” do procurador. Expressar opinião sobre assunto público
tornou-se um perigo.
As novidades continuaram chegando. Em setembro, o CNJ, em ato
assinado por seu então presidente, Gilmar Mendes, estabeleceu novas
diretrizes para as interceptações telefônicas e de e-mails. As regras são
incrivelmente detalhadas, pontificando até o número e o texto de
envelopes envolvidos na operação. No curso de um inquérito policial, as
interceptações têm de ser decididas em curto espaço de tempo, sob pena
de se perder algum diálogo-chave para a investigação. Na prática, as
tantas exigências do CNJ acabaram minando a disposição dos juízes.
Qualquer deslize nesse emaranhado de protocolos e números, e o
magistrado enfrentará todo o peso da Corregedoria do CNJ. Muitos juízes
passaram a pensar dez vezes antes de entrar nesse inferno da
burocracia.
“Hoje a gente vê elementos suficientes que ensejariam uma
interceptação telefônica, mas o juiz se sente acuado. [Ele pergunta] ‘será
que eu não vou ser representado no CNJ, como o doutor Fausto?’”, disse
à Folha, em dezembro de 2008, o delegado federal Luiz Roberto
Ungaretti de Godoy, um dos coordenadores da Operação Têmis, que
investigou seis magistrados.
No início de 2009, o ministro do STJ Cesar Asfor Rocha, presidente do
CJF (Conselho da Justiça Federal), assinou uma resolução que é a mais
completa e abrangente medida que o Estado brasileiro já tomou no
sentido de tolher o acesso da imprensa a informações sobre processos
judiciais. A medida colocou contra a parede todos os juízes federais que
atuam em matérias penais. Desde então, eles estão proibidos de fornecer
“quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão
de imprensa” e quaisquer “elementos contidos em processos e
procedimentos de investigação criminal sob publicidade restrita”. A
publicação oficial ficou limitada a “seus números, data de decisão, da
sentença ou do acórdão”.
Além de tudo isso, Gilmar Mendes envolveu num mesmo esforço o
então presidente Lula, o então presidente da Câmara, Michel Temer
(PMDB-SP), e o então presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP).
Partiu do ministro a ideia de lançar a segunda edição do chamado Pacto
Republicano, uma espécie de carta de compromissos dos três poderes.
Anunciado em abril de 2009, o pacto trouxe como primeira “matéria
prioritária” nada menos que a atualização da lei de interceptações
telefônicas. O segundo ponto foi a revisão da legislação relativa ao abuso
de autoridade. Saber que os grampos e a atuação de delegados,
procuradores e juízes foram apontados como os maiores problemas da
República dá uma dimensão do ambiente que se formou na cúpula do STF
após a Satiagraha.
A operação continuou sendo bombardeada em várias instâncias, com
algumas decisões estranhas, inéditas, únicas. Em dezembro de 2009, o
ministro do STF Eros Grau determinou uma espécie de apreensão da
apreensão. Acolhendo pedido dos advogados de Dório Ferman, braço
direito de Dantas, Grau exigiu que todos os arquivos originais digitais,
discos rígidos e pen drives recolhidos pela Satiagraha fossem enviados ao
STF num prazo improrrogável de quarenta e oito horas. A ordem do
ministro incluía até os arquivos não copiados ou analisados. Assim, o
Opportunity saberia antes da PF o que ela própria tinha em mãos.
Eram quarenta e nove notebooks, 119 discos rígidos, 141 CDs,
dezenove DVDs, trinta e cinco pen drives, doze CPUs, treze cartões de
memória, 199 disquetes, agendas, gravadores e microcassetes.
O juiz federal substituto da 6ª Vara, Fabio Rubem David Müzel,
requisitou escolta policial para o transporte do material. O
superintendente da PF paulista, Leandro Daiello Coimbra, que havia
ajudado a chutar Protógenes da Satiagraha, informou que a PF não tinha
dinheiro para as diárias dos policiais. A viagem foi realizada por dois
agentes de segurança do fórum federal e dois agentes da escolta armada
do TRF. Com exceção de seis discos rígidos, um notebook e um pen drive
criptografados que foram encontrados no apartamento de Dantas,
naquele momento nos Estados Unidos para uma perícia (e que depois
foram devolvidos sem que a criptografia tenha sido devassada), todo o
material foi entregue a Eros Grau. Três técnicos do STF e três de São
Paulo levaram sete horas e meia só para conferir a carga.
Os advogados queriam que Grau ordenasse uma cópia do material. O
pedido foi acolhido pelo ministro, mas a Secretaria Judiciária do STF
informou não ter condições técnicas para o trabalho. A CorregedoriaGeral da PF também respondeu que seriam necessárias 826 horas de
trabalho e a compra de cinquenta e oito discos rígidos de 500 gigabytes
cada um. A Satiagraha havia gerado cerca de vinte e nove terabytes de
informações.
Nesse momento, a defesa de Ferman esclareceu que o pedido original
não tratava de todo o material apreendido, mas tão somente do que foi
apanhado na empresa Angra Partners Gestão de Recursos, em Botafogo,
no Rio, apenas oito discos rígidos, três notebooks, dois pen drives e um
palmtop.
Ou seja, só ao final de sete meses de atraso no processo, revelou-se
que o pedido dos advogados de Ferman foi incrivelmente
malcompreendido no STF.
A Angra Partners geriu a BrT após a saída do Opportunity do bloco de
controle da companhia telefônica, em 2005. A defesa jurídica do
Opportunity passou a sugerir que Protógenes escondeu as provas
arrecadadas na Angra, daí a necessidade dessa espécie de intervenção do
STF. A tese esbarra num problema cronológico: Protógenes caiu do
comando da operação apenas seis dias depois das apreensões. Os laudos
sobre as apreensões só foram concluídos pela área da perícia técnica da
PF quando o coordenador da Satiagraha era outro. Os relatórios
produzidos por Protógenes não levaram em conta a apreensão na Angra
Partners porque o resultado da busca só surgiu depois de sua saída.
Mas os arquivos apreendidos na Angra conteriam, de fato, algum
indício de crime? A parte do conteúdo surgiu em reportagem publicada
pela revista IstoÉ e coassinada por Leonardo Attuch, que informou ter
tido acesso a uma “agenda” de Alberto Guth, um dos executivos da
Angra. Anotações fariam referência a um suposto “encontro secreto”, em
2005, do então presidente Lula com o então primeiro-ministro italiano,
Silvio Berlusconi, e o presidente da Telecom Italia, Tronchetti Provera,
“para discutir o tema Brasil Telecom e a possível venda da empresa à
operadora italiana de telefonia. Abaixo, ele anota a expressão delta,
seguida de 10%”. A revista diz ainda que há anotações sobre pagamentos
ao ex-sócio e desafeto de Dantas, Demarco.
Como já havia feito com o “processo italiano”, o Opportunity passou a
citar a agenda como algo que deveria ser investigado antes de o próprio
grupo, como se um fato dependesse exclusivamente do outro. O
Opportunity procurou misturar os dois eventos, como escreveram os
advogados do banco em petição protocolada no STF:
Todos esses elementos, isoladamente ou de forma sequenciada, estão
a indicar a relevância do material apreendido na sede da empresa Angra
Partners, inclusive para o exercício da ampla defesa e do contraditório, o
que se revela particularmente importante no caso concreto: a defesa,
desde o princípio, está a indicar a origem fraudulenta da Operação
Satiagraha, circunstância essa que começa a vir à tona.
O que supostos pagamentos da Angra aos seus advogados e
apoiadores ou um encontro de Lula com Berlusconi na Itália têm a ver
com uma alegada “fraude” na Satiagraha contra Dantas, orquestrada pela
PF, pelo Ministério Público e pelo Judiciário, só uma estratégia jurídica
bem delineada poderia explicar.
O fato é que todas as provas da Satiagraha ficaram estacionadas em
Brasília durante treze longos meses, pois a devolução só ocorreu em 20
de janeiro de 2011. Ficaram no STF apenas os dados relativos à Angra.
Nesse meio-tempo, Dantas entrou na causa como “assistente ou terceiro
interessado”. Nada mal para um réu condenado na 6ª Vara paulistana.
A estratégia tomada pela defesa de Dantas mirou novamente Paulo
Lacerda, a Abin, Demarco e Paulo Henrique Amorim, quase todos aqueles
que o banco dizia estarem “por trás” da Chacal. Pelas dimensões que a
tese tomou em setores da imprensa, ela merece ser verificada em
detalhes. Tudo começou com uma decisão de maio de 2009 do juiz da 7ª
Vara Federal, Ali Mazloum, que acolheu denúncia contra Protógenes no
bojo do inquérito tocado pelo delegado Amaro. O juiz citou na decisão
que existiriam cerca de “cinquenta telefonemas” trocados em 2008 entre
Protógenes, a empresa PHA, de Amorim, a empresa de Demarco, a
Nexxy, Lacerda e um diretor da Abin.
A PF não havia indiciado nenhuma dessas pessoas por nada
relacionado a esses alegados telefonemas e nem mesmo tomado os
depoimentos de Demarco e de Amorim. Avançar sobre esse tema foi uma
decisão do juiz. Mazloum descreveu Demarco como “envolvido em
diversas demandas judiciais de natureza comercial, como é público e
notório”, e apontou, sobre os telefonemas: “Esse fato inusitado deverá
ser exaustivamente investigado, com rigor e celeridade, vez que
inadmissível e impensável que grupos econômicos, de um lado e de
outro, possam permear atividades do Estado”. O juiz então determinou a
abertura de um inquérito policial para apurar as ligações.
Após muita insistência, os advogados de Demarco tiveram acesso ao
processo. Afirmaram à Justiça não ter localizado as tais dezenas de
telefonemas. A essa mesma conclusão havia chegado o Ministério Público.
Após uma nova análise minuciosa, o Ministério Público apontou duas
chamadas ou chamadas incompletas de Protógenes para um aparelho em
nome da Nexxy. Os outros quarenta e oito telefonemas foram realizados
ou recebidos pela empresa de Amorim. Demarco negou qualquer
conversa telefônica com Protógenes.
A procuradora Cristiane Bacha Canzian Casagrande observou em
parecer que a localização dos registros telefônicos não foi feita pela PF,
mas “sim em razão de atividade realizada pelo próprio magistrado
oficiante no feito [Mazloum]”.
Quase três anos depois, o site Consultor Jurídico disse que os
telefonemas do aparelho da Nexxy que Protógenes fez ou recebeu seriam
noventa e três, que “o maior inimigo de Dantas [Demarco] participou, de
fato, da operação” e que era preciso saber se a Satiagraha “foi
arquitetada e dirigida pela iniciativa privada”. O advogado de Humberto
Braz, Carlos Frederico Müller, disse ao site que “fica claro que a operação
foi comandada de fora para dentro”.
Com base nesses mesmos argumentos, em abril de 2011, Daniel
Dantas protocolou no STF o pedido de abertura de um inquérito policial
para averiguar crime de falso testemunho supostamente cometido por
Protógenes. Novamente citando uma “ampla comunicação” entre o
delegado e as empresas de Demarco e Paulo Henrique Amorim, Dantas
afirmou que o delegado mentiu ao ser interrogado em dois processos
decorrentes da Satiagraha. Quando indagaram se mantinha contatos com
Amorim e Demarco, o delegado respondeu que não, enquanto a defesa de
Dantas alega que houve mais de 150 telefonemas entre o delegado e as
empresas de Demarco e do jornalista.
Ouvida no processo, a Procuradoria-Geral da República disse que,
ainda que ficasse comprovada a mentira de Protógenes, não havia crime
algum, pois ele foi ouvido na qualidade de testemunha, o que o dispensa
de produzir prova contra si mesmo. A PGR citou ampla jurisprudência no
STF. Em novembro do mesmo ano, a ministra do STF Cármen Lúcia
ordenou o arquivamento do pedido de Dantas, citando que o fato descrito
pelo banqueiro era “atípico”, ou seja, não previsto no Código Penal, e que
o pedido de arquivamento, quando vem da PGR, é “irrecusável”.
Em maio de 2013, o tema da suposta “privatização” da Satiagraha
voltou à tona. A subprocuradora-geral da República Claudia Sampaio, em
petição subscrita pelo seu marido, o então procurador-geral da República
Roberto Gurgel, pediu a quebra de sigilo telefônico e outras apurações
sobre Protógenes, Demarco, Paulo Lacerda, um ex-chefe da Abin e Paulo
Henrique Amorim. Também pediu investigação sobre um “padrinho” de
Protógenes que teria lhe doado dois imóveis em época anterior à
Satiagraha.
Na petição, a PGR diz que houve uma apreensão de R$ 280 mil na
casa de Protógenes, durante o inquérito que tramitou sob os cuidados do
juiz Ali Mazloum. O fato, contudo, jamais ocorreu. Ouvido pela imprensa
na época, Mazloum confirmou que não houve apreensão de dinheiro com
o delegado da PF. A falsa informação inserida pela PGR pode ter
contribuído para a decisão do ministro do STF José Dias Toffoli, que
deferiu o pedido de investigação — o caso seguia em andamento até
setembro de 2013.
Ainda que as supostas conversas telefônicas entre Protógenes e Demarco
sejam um dia confirmadas, dificilmente seriam capazes de representar
um problema legal na Satiagraha. É praxe, numa investigação policial,
que o delegado procure inimigos da pessoa investigada. Isso também é
feito por qualquer repórter com mínima experiência em jornalismo
investigativo: não só inimigos, mas ex-sócios, parentes em briga e exmulheres são fontes potenciais para boas informações. Incontáveis crimes
vieram a público e foram solucionados dessa forma. Não seria diferente
com o Opportunity. Mas, prosseguindo na suposição, pode-se imaginar
que adversários de Dantas tenham usado suas argumentações contra o
Opportunity para, como alega o banco, tentar “dirigir” o delegado.
Entretanto, isso não se encaixa como crime e muito menos seria capaz de
anular as provas colhidas na apuração. O delegado nunca está sozinho no
inquérito, e suas conclusões são verificadas pelo Ministério Público e pelo
Judiciário. Delegados não julgam nem denunciam, apenas apuram e
informam.
De fato, Demarco havia, no passado recente, cerrado fileiras com
canadenses e italianos num esforço contra o Opportunity. Havia
conversado inúmeras vezes com Gushiken, ligado aos fundos de pensão,
e também esteve em contato com pessoas que poderiam investigar o
Opportunity ao longo dos anos. Ele havia incorporado a luta contra
Dantas à rotina de sua vida. Contudo, isso não torna suas atitudes ilegais
ou criminosas. A despeito dos esforços de seus adversários (como quando
Chicaroni, na reunião do restaurante El Tranvía, tentou “jogar” a PF
contra Demarco), o empresário nunca foi investigado por suborno de
autoridades. Por fim, a Justiça nunca confirmou qualquer suposta “ação
privada” na Satiagraha.
A operação seguiu, e a PF obteve muitos avanços na segunda etapa da
investigação. O novo delegado do caso, Ricardo Saadi, estava pronto para
apresentar seu relatório final. O documento continha descobertas que
iriam aprofundar a compreensão dos métodos de Daniel Dantas.
O goleiro diante do pênalti
“Pudemos constatar durante a investigação que estamos diante de um grupo
criminoso organizado, nos termos expostos na Convenção da ONU Contra a
Criminalidade Transnacional (Convenção de Palermo) [...] O líder é Daniel Valente
Dantas. Cabe a ele definir as estratégias ‘macro’ da organização, bem como dar a
palavra final nos assuntos mais importantes.”
Relatório final da Operação Satiagraha, do delegado Ricardo
Saadi, em abril de 2009.
Se havia um exato oposto de Protógenes na PF, esse era o delegado
Ricardo Andrade Saadi. Eles são diferentes em quase tudo. A juventude
cheia de dificuldades de Protógenes contrasta com a origem sem
sobressaltos de Saadi, passada nos melhores colégios de São Paulo, numa
família dedicada aos estudos. Seu pai, professor de geografia, coordenou
cursos na PUC de São Paulo. O tio foi delegado federal. Saadi estudou no
tradicional colégio São Luís, fez direito no Mackenzie e economia na PUC.
Na PF, era descrito como um técnico, avesso a aparecer na mídia, e mais
de uma vez afirmou que detesta falar com jornalistas, pois eles fazem
“parar o trabalho e perder tempo”. A leitura com viés esquerdista que
Protógenes fazia do mundo e que por fim o levou à carreira política pelo
PCdoB não despertava nenhum interesse em Saadi. Na faculdade, Saadi
chegou a ler O capital, de Karl Marx. “Entendi o que ele disse, mas nunca
concordei.”260
O delegado assumiu o comando da Satiagraha quarenta e oito horas
depois que Protógenes foi dela defenestrado. Estava no olho do furacão
de uma das maiores crises da história da PF. Chegou à nova função em
meio a dúvidas sobre suas reais intenções. Será que deixaria a apuração
pela metade, sem aprofundar as linhas investigativas indicadas na
primeira fase? Seria Saadi um “homem da cúpula da PF” interessado
apenas em expor os erros da equipe de Protógenes?
Saadi não foi escolhido à toa. Era tido na PF como uma espécie de
bombeiro que procurava resgatar algo de interesse no meio dos destroços
ao mesmo tempo em que investigava a causa do incêndio. Ficava assim
com a dupla função de construir algo novo ao mesmo tempo em que
destruía o errado. Era uma responsabilidade imensa: ele tinha apenas
trinta e três anos de idade, dos quais seis na PF.
Em 2005, Saadi teve pela frente seu primeiro grande desafio. Assim
como faria três anos depois, ele passou a presidir o inquérito a respeito
do Banco Santos num momento em que a PF já havia realizado as
investigações preliminares. Houve buscas e apreensões na casa e nos
locais de trabalho do banqueiro Edemar Cid Ferreira. Centenas de bens,
computadores, obras de arte e documentos estavam à espera de
catalogação, leitura e classificação. Era uma das maiores apreensões da
história da PF, determinadas pelo juiz Fausto De Sanctis. Saadi tinha
apenas 120 dias para apresentar um relatório final que pudesse ou não
embasar um pedido de prisão do banqueiro. Ele reuniu um grupo de
policiais para a tarefa — gosta do trabalho em equipe. São-paulino
doente, montou e incentivou times de futebol por onde passou: a
faculdade, a Ordem dos Advogados do Brasil e a PF. Escolheu logo a pior
posição, a de goleiro, embora não seja muito alto, com 1,76 m. É uma
função em que não se pode falhar.
“Um atacante pode perder dez gols, mas, se faz um, sai do campo
consagrado. Se o goleiro comete um erro, sai massacrado.”
Após quatro meses de trabalho no caso do banco Santos, ele
entregou ao Ministério Público as provas capazes de subsidiar um pedido
de prisão. Foi cumprir o mandado de prisão contra Edemar, que passou
oitenta e nove dias na cadeia. Dois anos depois, Edemar deu um
depoimento contundente sobre sua passagem pelo presídio: “Não há
como qualificar de outra forma: é um depósito humano, onde as pessoas
estão confinadas de maneira pior que animais no zoológico”.261
Em 2007, Saadi tornou-se chefe da delegacia que combate crimes
financeiros da PF paulistana. Nessa mesma época, recebeu um
telefonema de Protógenes, convidando-o para atuar num caso em
Brasília. Já era a Satiagraha, mas Saadi não aceitou o convite. Em julho
do ano seguinte, Saadi ajudou a preparar a deflagração da operação.
Durante todo o dia 8 de julho, Protógenes trabalhou na sala de Saadi, em
São Paulo. E era de Saadi o terno emprestado que Protógenes usou na
primeira entrevista coletiva que concedeu a respeito da operação.
Em 14 de julho, Protógenes saiu da chefia do caso. No dia 16, Saadi
foi chamado ao gabinete do superintendente, Leandro Coimbra. O chefe
disse que a investigação deveria ir até o fim.
“A intenção era mostrar que não havia dedo de Daniel Dantas, que
ninguém ia parar as investigações.”262
A segunda fase da Satiagraha começou a decolar. Saadi pediu mais
recursos financeiros e mais pessoal. Havia tanto material apreendido —
30 terabytes era o cálculo —, que a polícia teve de comprar vários discos
rígidos. Entre HDs, pen drives e DVDs apreendidos, havia cerca de 500
mídias a serem periciadas. Saadi esvaziou uma sala no quarto andar da
PF paulistana e a destinou para análise e catalogação do material
apreendido. De trinta a quarenta policiais, alguns deslocados de Brasília,
trabalharam na sala.
Saadi tomou diversas providências que se revelaram fundamentais
para a coesão do seu relatório final: acolheu e manteve os relatórios
técnicos e periciais realizados na primeira fase da Satiagraha,
especialmente os relatórios do BC; manteve as transcrições e áudios que
haviam sido interceptados pela iniciativa de Protógenes; tomou o
depoimento dos principais dirigentes dos fundos de pensão; interrogou
doleiros que operaram para abastecer o Opportunity Fund; e teve acesso
aos documentos e conclusões da auditoria na BrT realizada pelos fundos
de pensão depois da saída de Dantas do controle da companhia
telefônica.
Saadi também recuperou um episódio denunciado pelos fundos de
pensão em 2006: a empresa Highlake e seu papel na aquisição de ações
do grupo canadense TIW. A Highlake foi constituída em janeiro de 2003,
tendo como gestores várias pessoas do Opportunity. Saadi concluiu que a
operação foi lesiva para a BrT e o Citibank.
As descobertas de Saadi guardam relação com os documentos
apresentados pelo Citibank, ex-parceiro de Dantas, no processo aberto
pelo banco americano contra o Opportunity em Nova Iorque, dentre os
quais, uma declaração da executiva Mary Lynn Putney, que por muitos
anos foi uma apoiadora de Dantas. Em declaração juramentada de
fevereiro de 2008, ela relatou:
No verão de 2002, Daniel Dantas me informou que a TIW estava
atravessando severas dificuldades financeiras e estava ansiosa [sic] para
vender 49% dos seus interesses na Telpart. Dantas asseverou que
acreditava na aquisição dos interesses da TIW na Telpart em um
favorável preço baixo que seria possível à luz das dificuldades financeiras
e à ausência de outros interessados em adquirir as ações minoritárias da
TIW. Dantas e eu concordamos que a saída da TIW, sob essas
circunstâncias apresentadas, era uma excelente oportunidade de
investimento para o Fundo CVC por conta do substancial potencial de
crescimento das ações da Telpart com a eventual venda da Telemig e da
Amazônia [Celular].
Dantas sugeriu criar uma nova empresa-veículo, uma holding, para
adquirir as ações da TIW na Telpart e propôs que o Citibank, por meio do
Fundo CVC, contribuísse com US$ 22 milhões para essa nova entidade,
denominada Highlake. Mary Lynn informou a Dantas que considerava “a
contribuição de US$ 22 milhões, com a compreensão de que o Fundo CVC
iria receber uma participação pro rata [valor proporcional] acerca dos
interesses da Telpart vendidos pela TIW”.
Em março de 2003, Dantas disse a Mary Lynn que conseguira um
acordo para comprar as ações da Telpart num total de US$ 65 milhões. O
Citi contribuiu com os US$ 22 milhões, dizendo ter a certeza de que
receberia, assim, cerca de um terço das ações adquiridas. Contudo,
segundo a narrativa de Mary Lynn, Dantas providenciou notas
promissórias.
Depois que revi a nota promissória, descobri que os termos eram
diferentes daqueles que foram prometidos a mim por Dantas. Primeiro, a
nota previa que apenas a Highlake, e não o Fundo CVC, podia opinar pela
conversão da dívida de US$ 22 milhões do Fundo CVC em interesses
equivalentes na Highlake. Segundo, mesmo considerando que a Highlake
decidisse fazer tal conversão, a nota previa que o Fundo CVC poderia
receber as ações da Highlake com um valor de mercado equivalente
apenas a US$ 22 milhões mais correções, não uma ação pro rata
equivalente na Highlake, tal como prometido por Dantas.
Mary Lynn disse à Justiça que reclamou com Dantas. Ele teria dito
que iria corrigir a nota. Contudo, disse Mary Lynn, “até onde eu sei, o
Opportunity nunca corrigiu a nota como prometido”.
A executiva disse que, depois que saiu do Citibank, Dantas alegou
que o Opportunity estruturou a nota daquela forma para “proteger o
Fundo CVC”, pois várias empresas do grupo Opportunity tinham
“reclamações judiciais” contra a Highlake, cujo valor em discussão era
maior do que o valor das ações da Highlake na Telpart.
Disse Mary Lynn:
Essa suposta explicação nunca fez sentido para mim, porque a
estrutura da nota tal como fora prometida [...] era a melhor maneira de
proteger o Fundo CVC nesse investimento. Além do mais, apesar dos
meus reiterados pedidos, Dantas nunca providenciou informações sobre
as alegadas “reclamações judiciais”, incluindo informações suficientes que
permitam avaliar o valor dessas “reclamações”.
Eu soube que o Opportunity agora alega que o Opportunity
Fund, um fundo de investimento controlado por Dantas, detém
95% da Highlake, apesar de não ter colaborado com nenhum
dinheiro para a aquisição das ações da Telpart (na parte dos
fundos da Highlake). Eu soube que o Opportunity Fund pagou
apenas um preço nominal de US$ 47 mil para adquirir 95% das
ações ordinárias da Highlake.
Na reclamação que o Citi apresentou nos EUA, seus advogados
acusaram Dantas e o Opportunity de fraude e má-fé:
Em suma, os réus obtiveram US$ 22 milhões da IEII sob falsos
objetivos, desviar fraudulentamente da IEII que, em troca da contribuição
de US$ 22 milhões, o Fundo CVC receberia um terço do capital da
Highlake. Na verdade, Dantas apenas deu ao Fundo CVC uma nota
promissória de US$ 22 milhões, contendo termos impróprios e altamente
desfavoráveis, cujo reembolso foi estendido sem o consentimento da IEII
e sem a aprovação do Comitê de Conselheiros.
O relatório final de Saadi também deu atenção ao caso da juíza
Márcia Cunha, que havia sido perturbada no Rio após proferir decisões
contrárias ao Opportunity.
Saadi e De Grandis, que continuou no caso, também conseguiram
desferir um dos mais duros golpes contra o Opportunity. No início de
2009, o secretário nacional de Justiça do Ministério da Justiça, Romeu
Tuma Júnior, anunciou que o Brasil obteve o bloqueio de US$ 2 bilhões
em contas relacionadas ao Opportunity ou seus gestores nos Estados
Unidos, no Reino Unido e na Suíça. Uma das contas, denominada Tiger
Eye, foi bloqueada por ordem do juiz do Distrito de Columbia, em
Washington, John D. Bates, com um saldo de US$ 450 milhões. A base
para o bloqueio foi um affidavit, ou testemunho juramentado, assinado
por Ricardo Saadi.
Para averiguar essa conta, o Departamento de Justiça americano
contratou um especialista em lavagem de dinheiro, Kenneth Lyn Counts,
ex-agente especial do Programa de Crime de Colarinho Branco do FBI,
com vinte e quatro anos de carreira. Ele fez uma descoberta espetacular.
Em depoimento juramentado, narrou ter obtido documentos bancários
que indicaram que US$ 242 milhões depositados em 2002 na Tiger Eye
vieram de resgate de cotas do Opportunity Fund, nas ilhas Cayman.
Essas cotas eram “pertencentes ou controladas pelos Dantas”, o que
novamente traz à baila a existência de brasileiros no fundo. Antes de
chegar à conta Tiger Eye, o dinheiro passou por uma conta chamada
Harpy Eagle, em Londres, também controlada por Dantas.
Para Counts, a sucessão de depósitos e transferências é um indício de
que Dantas “visava camuflar a fonte dos recursos depositados”, além de
“evitar a atenção, o exame e as sanções legais” dos organismos de
combate à lavagem de dinheiro. Em seu affidavit, Counts revelou o
conteúdo de uma conversa telefônica interceptada pela Satiagraha em 17
de abril de 2008. Ao contatar um funcionário do custódio dos recursos
ligados aos Dantas, o BBH, Verônica recebeu a informação de que os
bancos Safra de Luxemburgo e UBS de Londres estavam pedindo
informações mais detalhadas sobre os beneficiários finais dos recursos,
tendo em vista as regras internacionais de prevenção à lavagem de
dinheiro. No dia 7 de julho, apenas um dia antes da deflagração da
Satiagraha, a conta Harpy Eagle transferiu US$ 51,8 milhões para a
conta Tiger Eye.
Os termos empregados por Counts em seu testemunho foram então
duramente atacados pelos advogados do Opportunity. Eles conseguiram
um recuo do americano. O primeiro testemunho do ex-agente foi
substituído por outro mais ameno, menos incisivo, mas com as mesmas
conclusões essenciais do primeiro documento. Um ano depois, o
Opportunity anunciou ter obtido do juiz Bates a ordem de desbloqueio da
conta Tiger Eye.
Um mês depois do seu primeiro relatório parcial, Saadi fez um de
seus principais movimentos. Em entendimento com o Ministério Público,
ele tomou o depoimento de uma importante testemunha. Claudine Spiero
detinha um profundo conhecimento sobre as práticas bancárias e aceitou
colaborar com as investigações. No ano anterior, Claudine, formada em
economia pela PUC e com pós-doutorado na USP, que havia morado cinco
anos no Canadá, era uma gerente independente da filial em São Paulo do
banco suíço Credit Suisse. Seu papel era captar clientes para fundos de
investimento no exterior e no Brasil. Às 6 horas da manhã do dia 6 de
novembro de 2007, portanto muito antes da deflagração da Satiagraha,
ela acordou com o toque da campainha na porta de seu apartamento nos
Jardins, bairro rico de São Paulo. Acompanhado de nove policiais
federais, o delegado Carlos Pellegrini — o mesmo que faria as buscas no
apartamento de Dantas — pediu passagem, mostrando um mandado de
busca e apreensão expedido pelo juiz De Sanctis. Claudine sentou-se no
sofá e foi algemada com as mãos para trás. A busca demorou cinco horas.
Atrás de documentos comprometedores, os policiais quebraram uma
louça e rasgaram um sofá de couro. Ao final, Claudine recebeu voz de
prisão e foi levada para a Penitenciária Feminina da Capital e, de lá, para
uma cadeia no bairro de Santana. Ela só sairia da prisão quarenta e cinco
dias depois. A PF estava investigando o banco Credit Suisse havia mais
de dois anos. A suspeita era a prática de “dólar-cabo”, o envio irregular
de recursos para o exterior por meio de doleiros, e fora dos canais oficiais
do Banco Central. Além de Claudine, foram presos seu filho e mais vinte
e cinco investigados.
Claudine se disse chocada com as condições da prisão. De uma cadeia
a outra, ela foi transportada na traseira de um Fiat Fiorino com sinais de
vômito e sangue.
“São condições subumanas. Se você quer conhecer o inferno na
terra, é a prisão feminina. É uma desesperança. Eu tinha mais tristeza
que medo. Quando você sai de lá, sai indiferente com o mundo. Não dá
mais para ser feliz.”263
Faltava tudo na cadeia. Não havia vassoura, o vaso do banheiro era
uma fossa aberta e a água do chuveiro era gelada. Quando deixou a
prisão, Claudine procurou alguns empresários e fez uma doação à cadeia
de R$ 50 mil em camisetas, papel higiênico, absorventes e duas mil
sandálias. Claudine travou também dura luta jurídica para tirar da cadeia
seu filho de vinte e cinco anos de idade. Ele passaria mais quarenta e
cinco dias preso, teve crises de pânico e sofreu ameaças de outros
presidiários.
Quando Claudine conseguiu a liberdade do filho, concluiu que um dos
investigados havia mentido sobre ele, incriminando-o. Claudine decidiu
virar uma colaboradora da Justiça, por meio de uma delação premiada.
Por esse instituto, previsto em lei, o réu passa a contar com redução da
pena, desde que forneça ao juiz elementos objetivos que ajudem no
desvendamento dos crimes. É uma ferramenta poderosa no combate ao
crime organizado utilizado em todo o mundo.
Só o primeiro depoimento de Claudine rendeu setenta páginas, que
iluminaram as fraudes no Credit. Claudine conhecia diversos doleiros e
muitos detalhes sobre a prática da internação de capitais — a legalização
da entrada no Brasil de dinheiro guardado no exterior. Ela apontou
caminhos em diversos outros inquéritos em andamento na PF. Em três
anos, Claudine prestou cerca de trinta depoimentos à PF, à Procuradoria
e à Justiça Federal.
Quando Saadi assumiu a Satiagraha, recorreu à Claudine, pois sabia
que ela conhecia o empresário William Yu, cuja empresa mantinha
contatos com Humberto Braz. O depoimento de Claudine teve como foco
as operações que envolviam a empresa Santos Brasil, administradora do
maior terminal de contêineres do Porto de Santos, que o Opportunity
havia ajudado a adquirir em leilão de privatização ocorrido em 1997.
O que pude esclarecer é como se compram os debêntures da
Santos Brasil via dinheiro lá fora, que paraísos fiscais são usados
e de que forma isso acontece. Eu tinha explicado essa história
previamente e eles foram buscar a história e a acharam no [caso]
Opportunity. Eles já tinham feito a busca e apreensão no
Opportunity. Mas eles não tinham como entender a operação.
Eles nem sabiam quem era o Roberto Amaral.
Ele é descrito comumente na imprensa como um dos mais influentes
“consultores” — um eufemismo para lobista — do país de todos os
tempos. Trabalhou por vinte e nove anos na empreiteira Andrade
Gutierrez, tendo chegado a diretor-geral da unidade em São Paulo.
Claudine contou à PF que trabalhava no mercado paralelo de câmbio
“realizando operações de cabo” quando conheceu William Yu. Ele
“solicitou algumas vezes a internação de recursos por meio de operações
de cabo”.264 Segundo Claudine, um dos clientes de Yu e, por tabela, dela
mesma, era Roberto Amaral. Ela contou que, no início de 2007, recebeu
uma consulta de Yu para “internar, por meio de operações de cabo”, US$
5 milhões. “Tais recursos seriam do Opportunity e, caso a operação fosse
realizada, o valor a ser entregue no Brasil seria em espécie.”
O depoimento de Claudine foi decisivo para abrir as novas portas no
caso: “A busca e apreensão no Amaral foram baseadas no meu
depoimento. Eles chegaram a ir lá com cópia do meu depoimento”.
O conjunto de informações que a Polícia Federal encontrou na casa
de Amaral permite um impressionante mergulho na mente e nas práticas
de Daniel Dantas e seus esforços e apreensões acerca de fatos ocorridos
no segundo mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, mais de
sete anos antes da Satiagraha.
As ameaças do grande credor
“Eu conheço a história. Toda essa idiotice de achar que sou eu que está fornecendo
informações é tola. Se eu quisesse denunciar, não seria com esta incompetência.”
Daniel Dantas, por meio do codinome “SJward”, em e-mail
enviado a Roberto Amaral em maio de 2002.
Quando Dantas recorreu a Roberto Amaral, em 2001, o banqueiro
enfrentava problemas em várias frentes. Nas ilhas Cayman, brigava com
Demarco e a canadense TIW; no Brasil, enfrentava as primeiras
denúncias dos fundos de pensão sobre quebra de dever fiduciário na
gestão de empresas de telefonia e lutava para que o BC e a CVM não
trouxessem para o país as listas dos cotistas do Opportunity Fund nas
ilhas Cayman, o que poderia confirmar a presença de brasileiros. Além
disso, o país vivia um intenso período pré-eleitoral, em que o candidato
do presidente FHC, José Serra, enfrentava dificuldades para sobrepujar
Lula, do PT, e Roseana Sarney, do PFL. Dantas queria saber como
ficariam suas posições no futuro governo.
O Opportunity pagou cerca de R$ 3,45 milhões pelo trabalho de
Amaral, segundo tabela apreendida pela PF no escritório de Yu. Não se
sabe quanto ficou com o consultor e quanto ele gastou com
subcontratados.
Nascido em 1937, Roberto Figueiredo do Amaral foi cobrador antes
de entrar, aos trinta e dois anos de idade, na construtora Andrade
Gutierrez. Nos anos 1980, tornou-se um estreito aliado do então
governador paulista Orestes Quércia (PMDB), quando a AG obteve
inúmeras obras no governo estadual. Ao longo de três décadas, Amaral
trabalhou nos bastidores da política e fechou contratos milionários de
obras públicas. Acabou íntimo de vários políticos, num exemplo da
simbiose entre empreiteiros e dirigentes públicos.
Por força de seu ofício, manteve relacionamento profissional com
inúmeros prefeitos municipais, secretários e governadores de
Estado, ministros e presidentes da República, sendo que, com
algumas dessas ilustres personalidades, acabou cultivando
amizades, que duram até hoje, sendo, pois, uma pessoa
inquestionavelmente séria.
Amaral pagou as despesas médicas do final da vida do ex-presidente
Jânio Quadros e custeou os estudos do neto de Jânio, por “quatro ou
cinco anos”, em um curso de economia em Londres.265
Em 1998, ao deixar a AG, Amaral foi morar na costa mediterrânea da
Espanha, onde andava em carros de luxo, como um Porsche e um Jaguar,
e apreciava vinhos caros e apresentações de música clássica.266
Amaral sumiu da cena brasileira até que, entre julho e outubro de
2001, bizarros anúncios fúnebres foram publicados no Jornal do Brasil, no
Jornal de Brasília e no Estado de Minas. Eles anunciavam a missa de 50º
dia da morte do sucessor de Amaral na empreiteira, José Rubens Goulart
Pereira, o Dolly. Um dos anúncios dizia que estiveram na missa os donos
da AG e um certo “mr. Swenka, do Banco Helvético Cordier”. Todos
teriam entoado “um salmo em louvor e solidariedade ao dr. Paulo Maluf e
seu filho Flávio, para que terminem as persecutórias agruras que estão
enfrentando”.
Mas Dolly, na verdade, estava bem vivo. Os anúncios eram uma
vingança de Amaral contra o que considerava pouco-caso da AG a
respeito do seu desempenho e de sua antiga equipe, traduzido numa
“dívida”, cujo valor não foi tornado público. O fato gerou um pequeno
escândalo, e a AG teve de dar explicações ao Ministério Público.
Naquele momento, Amaral já mantinha um estreito relacionamento
com Daniel Dantas.
Sete anos depois, a ligação se tornou uma linha de investigação da
Satiagraha. Em dezembro de 2008, com ordem de De Sanctis, uma
equipe de policiais invadiu a casa de Amaral no Morumbi, em São Paulo.
O consultor presenciou a batida. O delegado Bruno Titz de Rezende,
tendo por testemunhas o zelador do prédio e dois policiais militares,
encontrou vários documentos com o nome de William Yu, o mesmo
relatado pela testemunha Claudine, e sua empresa Aquarius.
Mas o maior achado estava no escritório da casa: dezenove CDs,
guardados numa estante, e um disco rígido Maxtor do computador
pessoal de Amaral. Ali havia centenas de e-mails trocados em 2001 e
2002, que Amaral havia copiado e guardado. Com outros arquivos em
Word, fotografias e documentos escaneados, o total apreendido atingiu
2,8 gigabytes.
Uma parte dos e-mails, que tratavam da relação de Dantas com dois
jornalistas, foi aproveitada pelo delegado Saadi no relatório final da
Satiagraha.
Até este livro, o conteúdo de apenas uma pequena parte desses
e-mails tinha vindo a público, pela revista Época.
O material restante representa o maior segredo da Operação
Satiagraha. As mensagens foram copiadas em dez CDs e remetidas à
PGR, em Brasília, a pedido da Procuradoria da República em São Paulo,
pois há citação a pelo menos uma pessoa com foro privilegiado, o
ministro do STF Gilmar Mendes.
As mensagens impressionam pela extensão das estratégias e dos
objetivos e o peso dos interlocutores do Opportunity. Mas o primeiro
aspecto a ser enfrentado é quanto à autoria das mensagens. Quando a
primeira mensagem veio a público, em 2009, o Opportunity disse
desconhecer a autoria. Ao ser procurado pelo autor, em março de 2011, o
banco voltou a se dissociar desses e-mails: “O Opportunity desconhece de
quem são e quem produziu as pseudomensagens atribuídas por você a
Roberto Amaral. Os assuntos elencados por você não foram temas de
correspondência trocada entre Daniel Dantas e Roberto Amaral”.
Amaral, por sua vez, não confirmou nem desmentiu a autoria. Por
meio de seu advogado, José Luis Oliveira Lima, disse que foi orientado
pela defesa a não se manifestar sobre os e-mails.
A leitura das mensagens, contudo, deixa poucas dúvidas sobre a
origem e o destino dos e-mails. A PF também concluiu nesse sentido. Em
seu relatório final, Saadi explicou que os codinomes “SJward” e “OVS”, ou
“Olhos Verdes Sensuais”, eram, na verdade, Dantas, enquanto
“lexus3333” e “Rogério Antar” são Roberto Amaral. Diversos indícios
corroboram o entendimento da PF. Um deles surgiu após um deslize de
Amaral. Ele acionou seu e-mail pessoal que usava na Espanha,
“amaralbr”, para enviar a uma pessoa cópia de uma série de e-mails
enviados de “lexus3333” para “SJward”. Para deixar o destinatário
informado sobre o que se passava, Amaral escreveu no campo do
assunto: “E-mails trocados com Daniel Dantas. Particular”. Outros e-mails
chamam “OVS” de “Daniel” e apontam como “destinatário” exatamente
“D.Dantas”.267 Além disso, uma pessoa íntima do consultor confirmou ao
autor que as mensagens foram, de fato, trocadas com Dantas. Outras
pessoas ouvidas confirmaram o conteúdo de diversas mensagens. Assim,
o autor passa a tratar, daqui para frente, os codinomes pelas suas
verdadeiras identidades.
Amaral e Dantas utilizavam códigos para esconder seus
interlocutores. O autor analisou mais de 1.800 e-mails, comparou datas e
situações e pôde elucidar o rudimentar código de Amaral. A tarefa não foi
das mais difíceis, pois algumas vezes Amaral arquivou, na pasta do
programa Outlook Express, cópias de reportagens que falam da pessoa.
Assim, é possível concluir que “TH” e “A Pessoa” são os apelidos do expresidente Fernando Henrique Cardoso, “Niger”, uma cerveja escura
conhecida pelo gosto amargo, e “candidato” eram o então concorrente
tucano à Presidência, José Serra (PSDB-SP), e “Conde” era Andrea
Matarazzo, ex-ministro-chefe de Comunicação do governo FHC.
(Outros códigos foram quebrados graças a uma atrapalhada
mensagem enviada por um consultor da Santos Brasil. Ele enviou a
Dantas e Amaral um e-mail cheio de nomes em código, mas, ao final da
própria mensagem, incluiu um “glossário” com os nomes verdadeiros.)
O trabalho de Amaral consistia em influenciar, ou pelo menos tentar,
pessoas de grande poder de decisão. O modo pelo qual ele tratava essas
autoridades era coloquial e pouco cerimonioso, o que demonstra tanto
intimidade quanto ausência de bom senso. Tendo em vista o histórico de
Amaral, a primeira hipótese é a mais provável. O então presidente era
tratado simplesmente por “você”, “vc” ou “FHC”. De setembro de 2001 a
maio de 2002, Amaral enviou as mensagens a FHC por um canal
singular: a caixa de correio eletrônico do Planalto em nome do capitão de
corveta Marcos Jorge Matusevicius, então ajudante de ordens do
presidente, responsável pela coordenação da agenda presidencial, da
secretaria particular e da organização do acervo documental privado do
presidente.
Amaral é extremamente direto em suas mensagens a FHC. Como
porta-voz dos interesses de Dantas, exige, sempre em letras maiúsculas,
soluções rápidas e eficientes para suas demandas. Ele nunca
cumprimenta nem se despede do presidente. Eis a íntegra de uma dessas
mensagens:
Seria importante falarmos — dentro de suas possibilidades — com
urgência sobre imprensa. Você decide: ou na sua viagem Europa
ou eu vou aí. Tenho informes e ideias que cheguei a colocar para
você. É uma covardia o que está ocorrendo e os números
envolvidos são ridículos; sufocando pessoas sérias. Embora não
seja de sua responsabilidade, você não pode deixar isto como
herança de um governo, que, como já disse, deixará saudades
três meses depois de terminar. Soube que o Bradesco foi
solicitado para que apoiasse. Ele está enrolando. Informação
segura.
Entre fevereiro e março de 2002, Amaral começou a deixar mais
claras suas investidas em nome do Opportunity. Ele queria indicar o
substituto do então presidente do fundo de pensão, Luiz Tarquínio
Sardinha Ferro. Em dezembro de 2001, Tarquínio havia informado à
presidência do Banco do Brasil que queria deixar o cargo, e o Opportunity
tentava emplacar um nome de sua confiança, de codinome “Ibiza”.
William Yu, o amigo e consultor de Amaral em transações financeiras,
man dou e-mail para dizer que recebeu a informação de que “um
executivo do Banco do Brasil em Londres chamado Carlos Tesandro [ sic,
Tersandro] está sendo considerado para ser o novo presidente da Previ”.
Amaral copiou a mensagem para Dantas. E mandou uma mensagem a
FHC, no endereço eletrônico do Palácio do Planalto, para reclamar da
possível nomeação. Trata-se de uma verdadeira ameaça:
Falei com Eduardo Jorge. Esteve com você ontem. Por ele ter
estado com você é que sugiro o seguinte: não é bom para o seu
governo que o Carlos Tessandro ( sic) Adeodato vá para qualquer
lugar da Previ, mesmo contínuo. O pedigree dele é discutível.
Disse isso ao E.J. Confie no Eduardo Jorge, não confie neste caso.
É de bom tamanho que Tessandro fique onde está, na Europa e
bem quietinho. É bom para o [ministro da Fazenda Pedro] Malan,
pessoalmente, para o candidato [Serra], para Ricardo Sérgio, que
já sofreu demais e, principalmente, é bom para o Eduardo Jorge.
Tersandro nunca foi nomeado para presidente da Previ.
No primeiro trimestre de 2002, um assunto espinhoso para o Palácio
do Planalto mobilizou a atenção de Dantas-Amaral. O senador ACM
prestou um depoimento à PF em Salvador (BA) no inquérito que corria
em Brasília para investigar as privatizações. Partindo de uma denúncia de
ACM, a revista Veja apontou que o empresário Benjamin Steinbruch, que
havia arrematado a Vale do Rio Doce em leilão, reclamou com
integrantes do governo que Ricardo Sérgio teria cobrado um “pedágio” de
R$ 15 milhões para ajudar a formatar o consórcio.
Dantas se tornou o suspeito do vazamento dos dados para ACM. Todo
mundo no PSDB se lembrou das ligações de Dantas com o senador. Nos
e-mails, Amaral discute com Dantas uma forma de preservá-lo, dizer que
não foi ele a fonte. Eles chamaram o assunto de “Operação Catraca” —
como se alguém tivesse que pagar alguma coisa para entrar em um
lugar. Amaral pediu a Dantas “argumentos para a vacina para a
antifofoca preventiva”.
O banqueiro respondeu:
1. Não tenho [tive] interesse nesta publicação. Não ajuda em
nada. 2. A IstoÉ semana passada saiu com uma matéria muito
ruim e totalmente infundada contra nós. 3. Não tenho
relacionamento com L. Francisco e ele tem procurado me criar
problemas. 4. A única coisa de produtiva que eu acho que você
poderia comentar é que, pelo que eu soube, o candidato não
levou dois dos cinquenta, o que mostra que ele tem que colocar
mais ordem e competência nas iniciativas, pois o barulho é
proporcional ao valor bruto e a utilidade ao líquido. Operar com
uma eficiência de 4% é loucura.
Horas depois, Amaral informou: “Já vacinei”.
Amaral mandava mensagens para José Serra por meio de um
colaborador do tucano, Luiz Paulo Arcanjo. Ele foi assessor de Serra nos
ministérios do Planejamento (1996-1998) e da Saúde (1998-2002) e, em
2007, assessor especial do então governador de São Paulo.
Não se sabe exatamente a reação de Serra, ou de quem recebeu a
“vacina”, mas ela parece ter sido bastante negativa. Porque logo depois
Amaral enviou a Dantas, “para ler e rasgar”, a cópia de um e-mail que ele
disse ter enviado a Serra para protestar contra a suposta reação do
tucano. Nessa mensagem, Amaral fez uma declaração enigmática: Dantas
teria um crédito, um grande crédito, embora poucas pessoas soubessem
disso.
Recebi seu recado lido por amigo comum. Aviso-lhe: não mais
mande-me (sic) recados neste tom: acho que você estava fora de
si quando mandou esta infeliz mensagem. Não sou lambe-cu
acanalhado ou acarneirado. Você sabe disso. Já fiquei seis anos
sem falar com você e, se necessário, fico mais vinte. Não sou
Roseana ou Sarney. Você precisa de mim e eu não preciso de
você. Você vá ser acavalado, acerbo, com quem tem obrigação de
aguentá-lo. Quanto à sua bizantina observação sobre D [Dantas],
devo dizer-lhe: você não sabe de nada — nada mesmo. Ponha
isto na sua cabeça. Ele é credor, grande credor. Eu e duas
pessoas sabemos disso. Não seja encegueirado e não se deixe
embair pelo pequeno Sérgio Andrade [...] Cópia deste vai para a
Pessoa.
Dantas também ficou incomodado com o tom pesado do e-mail, que
era para ter sido apenas a “vacina”. No dia 3 de abril, ele escreveu a
Amaral para falar sobre “a pessoa”, FHC:
Fiquei um pouco preocupado com a vacina. Entendo a lógica de
que envolvido é mais confiável. Minha preocupação é que desde o
início da privatização temos criticado Ricardo Sérgio, os
esquemas, e a pessoa sabe disso. Maurício tem reportado tudo a
ele milimetricamente. Tenho medo de que esta vacina crie mais
problemas do que traga soluções. Pode ficar estranho parecendo
que mentimos ou que estamos mentindo. Acho [que] é necessário
um acabamento neste assunto, como se após a entrada na
Telemar tenhamos concordado com uma ajuda para a campanha.
À época, reportagens da IstoÉ Dinheiro e da revista Veja diziam que
uma empresa denominada Rivoli Participações havia sido aberta no final
de 1998 em nome de duas funcionárias do escritório de um advogado que
atuava tanto para Ricardo Sérgio quanto para o grupo La Fonte, do
empresário Carlos Jereissati, que formara o consórcio que arrematou a
Telemar. Segundo a notícia, depois da privatização a Rivoli recebeu 4,4%
das ações da Telemar, cuja sociedade era mantida pela La Fonte e Inepar,
Macal e Andrade Gutierrez, além dos fundos de pensão. Logo depois, as
ações da Rivoli foram transferidas para os outros sócios, e a Rivoli acabou
esvaziada. E a Macal e a Inepar transferiram suas cotas para a GP e o
banco Opportunity. O procurador Luiz Francisco dizia à época que poderia
ter sido uma operação para pagamento indevido.
Agora é possível verificar, por esses e-mails, que Dantas, de fato,
admitiu pagamentos realizados a “RS” (Ricardo Sérgio), por meio da
empresa Rivoli, muito embora alegasse que não corrompeu ninguém. O
banqueiro escreveu no e-mail:
Uma saída para a pessoa sobre o meu envolvimento na questão
catraca seria que a participação da Rivoli foi vendida para os
quatro sócios na ocasião da minha entrada na Telemar. Assim,
parte do dinheiro foi de fato pago por mim, mas comprando as
ações e o destino não era minha conta. Na prática, acho que os
outros não pagaram pelas ações, só eu mesmo, e acho que foi
tudo que foi pago a RS. Como o assunto é difícil de explicar, não
me interessa a divulgação, mas acho importante esclarecer à
pessoa que eu não estava envolvido em corromper o governo
dele.
Amaral não gostou nada do estilo defensivo de Dantas. Ele enviou
uma mensagem demolidora, mas também reveladora de seus objetivos:
Você é uma das pessoas mais broxantes que conheço. A sua
sensibilidade é de uma panzerdivision [divisão de tanques
nazistas] [...] Não seja pretensioso, se houve mendacidade, foi
minha e não sua. E a minha credibilidade, onde fica? E incomodar
a pessoa para resolver um assunto em que você estava mais sujo
do que pau de galinheiro? Antes da minha conversa com ele, ele
e o candidato tinham certeza, assim como a torcida do Flamengo,
de que você entregara o roteiro completo ao ACM. Agora não
mais. Usei o meu cacife como poucas vezes usei somente em
consideração a você. Uma das estratégias mais bem montadas já
feitas, você consegue transformar em uma aporrinhação. A razão
da minha resposta desaforada ao candidato foi justamente você e
a Operação Catraca.
Amaral ficou tão contrariado com a posição de Dantas, que decidiu
mandar uma segunda mensagem, a “broxante parte 2”.
“Tenho medo que esta vacina crie mais problemas do que traga
soluções.” Por esta frase percebi que você nem de longe viu a
enrascada em que estava metido. Não adiantava mandar recados
milimétricos ou medidas paliativas. O problema com o candidato,
o e-mail virulento, começou com uma leitura clara que ambos
faziam (pessoa e candidato): você é homem do ACM, entregou e
traduziu para ele os dados do R.S. [Ricardo Sérgio]. Omitiu-se
quando confrontado com a imprensa. Esta a leitura que percebi.
Eu estaria sendo usado por você como um biombo para proteção.
Não tenho por hábito abrir tudo que está acontecendo, sobretudo
quando acho não levar a nada. Contrario neste momento este
hábito para que você sinta onde está pisando. O candidato é, ao
contrário da pessoa, vingativo e tem uma memória notável. Pois
bem, tudo isto está totalmente superado pela minha intervenção
na hora precisa, EU pondo na mesa para ambos o seu
“envolvimento”. Acabou a conversa e ficaram sem ter o que
dizer. O resto é resto...
Um grande feito da consultoria de Amaral foi o encontro entre Dantas
e FHC no Palácio do Planalto, que era para ser secreto, mas vazou. Ele foi
abordado, primeiro, pela revista Época, em maio de 2002, e depois pela
coluna do jornalista Fernando Rodrigues, na Folha, para quem a conversa
era um exemplo de como o presidente “trabalha nos bastidores para
ajudar a candidatura de José Serra”. Amaral apressou-se a dar
explicações a FHC: “A notícia ‘O sociólogo e o banqueiro’ vai ser
desmentida. Houve vazamento na portaria, indubitavelmente”.
A imprensa relatou genericamente que o encontro tratou de assuntos
relativos aos problemas que Dantas enfrentava com os fundos de pensão,
notadamente a Previ. Os e-mails permitem agora conhecer melhor os
temas e os resultados da reunião. Ela foi ansiosamente aguardada por
Dantas desde, pelo menos, dezembro de 2001. Até o encontro ocorrer,
Dantas enviou, por meio de Amaral, diversos recados ao Palácio do
Planalto, alguns abertamente ameaçadores. As mensagens mostram
como Dantas sabe manobrar os segredos que guarda a sete chaves. Um
dos e-mails mais enfáticos é de vinte dias antes da reunião e merece ser
conhecido na íntegra:
Não seria o caso de falar com a pessoa que você é que me fez
publicar a nota? E que a persistir a situação terei que explicar o
assunto Telemar. Ele tem medo que todo o assunto volte à pauta,
e sabe que eu sei muito. Não tenho é como ficar sendo acusado
sem resposta. Eu sei que quando estavam torpedeando [o
empresário] Benjamin Steinbruch, ele ameaçou contar tudo e
disseram que isto o afastou da pessoa, o que de fato ocorreu. Mas
pararam de bater nele e deram a CSN de bandeja, financiada pelo
BNDES e Previ no descruzamento da CVRD. Na época senti que a
pessoa estava com medo. Não gosto do tom de ameaça, mas a
situação é que progressivamente, quer queiramos ou não, a
situação Ricardo Sérgio está vindo para a superfície. Aliás, acho
que já deveríamos começar a trabalhar em uma nota para não
termos que publicar de emergência.
É possível imaginar o impacto que um recado desses teria no Palácio
do Planalto: Daniel Dantas ameaçando contar coisas sobre o “assunto
Telemar”. Dizendo que “sabe muito”. A resposta de Amaral demonstra
que esse recado não foi o primeiro:
Quero entender o que o Conde quis dizer com “o candidato estava
incomodado com os recados que você manda”. Não é curiosidade,
não. Acho que pode se encaixar na estratégia que falo acima que
se resume grosseiramente: se não vai por bem, vai por mal. O
inconveniente dessa estratégia é que não se pode piscar. O jogo é
pesado.
A estratégia citada por Amaral está documentada em várias
mensagens trocadas com Dantas. No e-mail de abril, Amaral assim a
definiu: “Segunda, dia 15, 19h pessoa. Assunto Ibiza. 2. Terça ou quarta
encontro eu só com candidato. Assunto Ibiza. 3. Terça ou quarta, você e
eu, com candidato. Assunto Ibiza e ajuda eleitoral, só depois do sucesso
Ibiza e outro assunto de interesse seu”.
Assim, o banqueiro condicionava a nomeação desse indicado “Ibiza”,
na Previ, a uma “ajuda eleitoral” ao candidato Serra. Não há segurança
de que o acordo tenha prosperado. Em 2002, o Opportunity não
registrou, na Justiça Eleitoral, doações eleitorais.
As mensagens indicam que Dantas e Amaral estavam tendo
problemas com Serra a propósito de um suposto “desconhecimento” do
candidato a respeito de algo que ele deveria saber, mas que não sabia —
a história do “crédito”. Isso fica bem claro num resumo escrito num
arquivo em programa Word. O autor registrado nas propriedades do
arquivo foi “Amaral Roberto Figueiredo Do” — dado inequívoco sobre a
autenticidade das mensagens. Ele escreveu, para sua própria memória,
que não renovaria contrato com Dantas por estar enfrentando alguns
problemas:
Serr[a]. Preparar agenda. Levar DD [...] Não vou renovar DD.
Evitei crises sobre crises. DD é credor. Fico mal Ibiza. Costurar
assim com candidato que não sabe dos três DL. Os três ficam por
Ibiza. Ou interventor forte que atenda DD. Dá ajuda a Niger
nova. Abaixo as expectativas de Ni que não sabe da história toda.
Sobre os “três DL” referidos na mensagem, que “ficariam por Ibiza”,
provavelmente é uma referência a dinheiro. Em outras mensagens,
Amaral cita dólares como “DOL”.
Há diversas indicações de que houve outra reunião entre Dantas e
FHC no final de 2001. Ao falar desse encontro, o banqueiro fez menções
ao ministro do STF Gilmar Mendes, à época o advogado-geral da União.
O s e-mails não revelam uma irregularidade específica, mas sim uma
correlação entre os trabalhos de Mendes à frente da AGU e os interesses
do Opportunity.
Em novembro de 2001, Dantas informou a Amaral que havia se
encontrado com FHC e “Maurício”. Gilmar Mendes não estava presente,
mas foi tema da conversa: “A reunião com a pessoa foi muito agradável.
Percorri a nossa pauta, e pedi a ele que falasse com Gilmar para que a
União entrasse na causa no lugar da Anatel. Ele disse que falaria e
Maurício vai dar o followup [sequência]”.
Horas depois, Dantas mandou nova mensagem sobre o mesmo
assunto, com uma advertência no sentido de que ficasse escondido o fato
de que ele, Dantas, é quem estava por trás das iniciativas da AGU:
Eu pedi à pessoa apenas uma coisa, a entrada de Gilmar para
deslocar as cuas [provavelmente quis digitar “causas”] para a
Justiça Federal. Segui seu conselho de nunca pedir muitas
[coisas] para evitar de ser atendido na mais fácil e normalmente
menos útil. Falei com ele que o erro da Anatel onde escolher uma
ou outra causa. O dever dela seria [o] de levar todas as questões
para a Justiça Federal que envolvam controle de concessionária.
A obrigação enquanto concessionário prevalece sobre a questão
societária, assim o tribunal competente para julgar o assunto é a
Justiça Federal. Falei que não pedimos um resultado, apenas o
direito de que a questão seja julgada de forma isenta e
competente. Se você puder lembrar a ele que é importante que
Gilmar entre como um caso geral, questão de princípio, para
evitar a crítica de que está tomando partido.
Depois, Dantas reconheceu que a estratégia deu certo. Ele explicou a
Amaral que o apoio de Mendes se dava de forma indireta, pela pessoa de
Antônio Domingos Teixeira Bedran, o procurador-geral da Anatel. E se há
alguma dúvida sobre a correta identidade de “Gilmar”, ela é dissipada na
mensagem: “Está sendo cogitada uma mudança geral na Anatel. Seria
conveniente manter e se possível promover o procurador-geral Antônio
Bedran, que obedece a Gilmar Mendes (Advogado-Geral da União). Ele
tem ficado do lado de Gilmar que tem nos ajudado a levar o assunto para
a Justiça Federal”.
Bedran assumiu a Procuradoria-Geral da Anatel em 1998, mas, por
dois anos, seguiu integrando um escritório de advocacia em Belo
Horizonte (MG) que prestava serviços para a Telemig Celular, controlada
pelo Opportunity. Em 2001, ao apurar o assunto, a Corregedoria da AGU
concluiu que Bedran não atuou nem foi remunerado pela companhia
telefônica, e o inocentou das suspeitas. Entre 2001 e 2002, a Anatel
discutia as brigas societárias entre Opportunity e TIW. Os canadenses
pediam a dissolução da holding Newtel, pela qual o banco se tornou o
controlador da Telemig.
“Por iniciativa de Bedran, a Anatel vem se manifestando nas ações
judiciais contra a anulação da Newtel, o que fortalece a posição do
Opportunity, daí a irritação dos fundos de pensão e da TIW com a
contratação do escritório mineiro.”268
No começo de 2002, exatamente como Dantas disse que gostaria de
ver ocorrer, a Anatel
entrou na Justiça ao lado do Opportunity. O procurador da
agência, Antônio Bedran, fez um claro pedido ao desembargador
que cuida do caso para que resolva a questão em favor da
manutenção da Newtel. Na agência, a explicação é de que o
órgão tem a obrigação de se manifestar quando o bloco de
controle está em jogo. [...] Além disso, a Anatel considera
legítimo entrar em favor de uma das partes quando a outra está
claramente querendo quebrar o contrato. A posição do advogado
dos fundos, Sérgio Mannheimer, no entanto, é de que agência
está tomando partido em favor do banco.269
Nove anos depois, Bedran disse que apenas se manifestava nos
processos quando a Justiça Federal provocava a Anatel. Ele reconheceu
que esteve na AGU para discutir com o órgão determinado assunto o qual
envolvia o Opportunity na Anatel e que a AGU chegou a se manifestar
nos autos, por meio de uma “petiçãozinha de quatro ou cinco parágrafos”.
Mas negou que tenha conversado sobre o assunto com Gilmar Mendes.
“Eu estive com ele quando ele era subchefe jurídico da Presidência e
depois, na AGU, mas só para cumprimentá-lo. Jamais ele me orientou ou
pediu ação minha sobre processos que envolviam o Opportunity. Nunca
sequer conversamos a respeito”, afirmou Bedran.270
Em 4 de junho de 2002, Amaral tinha notícias urgentes para Dantas
sobre Bedran. Ele disse ter conversado com FHC. Frisou de novo as
intensas pressões que seu grupo estava fazendo sobre o Planalto e falou
novamente sobre “grana” para “campanha”.
André não irá. Bedran ficará [FHC] teima no seguinte: conselho e
diretoria da Previ são os mesmos. Que o governo terá o voto de
minerva no conselho e os funcionários no conselho fiscal.
Retruquei que conselho e diretoria são coisas diferentes. Vai ver,
mas mostrou firmeza e estava com alguém. Acertamos na mosca:
eu disse que você precisaria de ajuda para conseguir administrar
assunto CRT, que não conseguiria administrar sem mim, que a
picaretagem internacional estava envolvida e você não estava
conseguindo controlar uns acionistas. Que a grana — pasme —
tinha isso para a campanha do Niger, segundo os informantes.
Que eu precisava de um programa mínimo. Disse que era urgente
ação na Op. [operação] Copa do Mundo. Disse que já tinha agido.
Ia aparecer meu nome, do Maurício e do Conde, possivelmente e
com certeza do R. Sérgio. Silêncio sepulcral. Que o importante
era o precedente que seria aberto.
Também é possível compreender o que seria essa “Operação Copa do
Mundo”, pois há inúmeros e-mails tratando do assunto. Amaral
pressionava o governo a não dar apoio a um esforço que foi iniciado pelo
procurador Luiz Francisco e que passava pelo BC e pela CVM, para obter
as listas dos cotistas do Opportunity Fund nas ilhas Cayman, na berlinda
após as revelações do ex-sócio de Dantas, Demarco. A estratégia de
Amaral foi dizer a FHC que, se as listas fossem enviadas ao Brasil, nomes
ligados ao tucanato viriam a público. Uma nota de imprensa havia dito
que Luiz Francisco aumentaria esse esforço após a Copa do Mundo de
2002, daí o nome da “operação”. Ao escrever “disse que já tinha agido”,
Amaral comunicava a Dantas que o presidente da República estava a par
do assunto e teria feito algo não compreensível.
O parlamentar mais empenhado em apurar o assunto Cayman era o
então deputado federal Milton Temer, filiado ao PT. Após integrar a CPI
do Proer, o programa tucano de socorro aos bancos, ele passou a se
interessar por falcatruas no sistema financeiro. Numa entrevista à TV
Câmara, Temer citou declarações que Demarco dera à CartaCapital sobre
o fundo. Demarco se aproximou do parlamentar.
O Demarco me procurou, eu não o conhecia. Ele me perguntou se
eu estava a fim de “ir para a briga com Dantas”. Eu disse,
“estou”. E ele começou a me municiar. Ele disse, “tem um fundo
lá” — porque o Demarco sabia. Eu disse, “então me dá essa
porra”. Ele me colocou diretamente em contato com o
equivalente ao presidente do Banco Central de Cayman [...] Eu
desconfiava de que lá [no fundo] estivesse a alta tucanagem.271
Temer buscou o respaldo do PT: “O aval que eu tinha era do próprio
Gushiken. Nessa época ele era um dirigente importante do PT, em quem
eu confiava. Ele disse ‘vai fundo nisso’. Ele estava em briga com o Daniel
Dantas”.
Temer conversou por telefone com a autoridade monetária de
Cayman. O deputado gravou a conversa e entregou a fita a um jornalista
— não ficou com cópia. A autoridade teria dito que as listas só seriam
enviadas ao Brasil se houvesse um pedido expresso do presidente do BC
brasileiro. Temer procurou, então, Armínio Fraga, que teria prometido
tomar providências. Dias depois, Temer ouviu das ilhas Cayman que as
listas haviam sido enviadas ao BC. Mas a informação foi negada a Temer
por Fraga. O jogo de empurra continuou até o assunto morrer.
“O Armínio Fraga chegou a se interessar pelo assunto, disse que ia
apurar, mas depois [disse] que não tinha recebido nada”, disse Temer.
O procedimento aberto pela CVM em 2001 fala do insucesso em obter
a lista.
Diz o voto do diretor-relator do caso na CVM:
Infelizmente, não obstante o esforço da CVM, não foram colhidos
bons frutos: as autoridades das ilhas Cayman negaram o
fornecimento de documentação e informações, pois exigiram
garantias de que a informação não seria usada em processos
criminais, o que, evidentemente, por força de lei, a CVM não pôde
assegurar.
A informação revela que a CVM se disse impedida por uma
possibilidade e deixou de obter o dado de fato essencial: quem eram os
brasileiros nas ilhas Cayman. Luiz Francisco jamais obteve a lista.
Oficialmente, o BC remete às explicações da CVM, que afirmou não
ter obtido as listas “em virtude da resistência das autoridades das ilhas
Cayman em fornecê-las”. 272 Nos bastidores, contudo, a história era
outra. Os e-mails agora revelados expõem a estratégia de Dantas e
Amaral para evitar a apuração. Amaral enviou diversos e-mails de
advertência a FHC, pintando a tal “Operação Copa” como um golpe
político contra o PSDB. Ele escreveu ao presidente:
A estratégia é diabólica: os alvos são os que mandei no último fax
e os supracitados [em amarelo]. A fonte é ótima. Já existe uma
lista na CVM, inodora, insípida e incolor. São os bois de piranha.
Aberto o precedente, aí o L.F. [Luiz Francisco] faz a festa e um
carnaval junto, cronometrado para estourar depois da Copa do
Mundo, a melhor época, na avaliação do estado maior
encarregado desta operação. Contribuição de petista para petista.
Sugiro a você, com empenho, que encarregue o ministro Malan
de desmontar com urgência esta armação, felizmente descoberta
a tempo. O Armínio, embora parente do presidente da CVM, não
é indicado para tratar deste caso. Converso pessoalmente. O juiz
nas ilhas Cayman de posse do pedido da CVM, se for enviado,
libera os nomes dia 15 de junho.
Horas antes, Dantas havia mandado a Amaral um e-mail com essas
mesmas diretrizes. Ele carregava nas tintas, dizendo que Luiz Francisco
procurava alvejar o filho do presidente.
O presidente da CVM é José Luiz Osório. É casado com a irmã de
Armínio e foi indicado por ele. Podemos acrescentar que o
precedente é perigoso, Luiz Francisco vai atrás depois de todo
mundo [,] e a CVM, uma vez criado o precedente, terá dificuldade
de recuar [...] Luiz Francisco quer pegar R Sérgio e o Filho da
pessoa que trabalhava com Benjamin [Steinbruch].
Amaral disse que conversou com FHC por telefone. O consultor
relatou as providências tomadas até então:
A pessoa me acordou agora, estava com Temer. Disse-me que
tinha procurado o Malan para tratar da Operação Copa do Mundo.
Disse que foi bom ele não ter encontrado, pois a pessoa indicada
era o Armínio. Não são mais cunhados, mas são amigos (Armínio
e Osório). Disse-lhe que já tinha ido uma lista sem importância.
Demonstrou surpresa. Falei da Norma Parente e o importante é
que não mais lista nem se peça mais lista nenhuma. O Armínio
que vai tratar e — penso — P. [Pedro] Parente também.
No apartamento de Amaral, em 2008, a PF apreendeu duas páginas
impressas em computador que tratam de uma série de compromissos e
tópicos que ele e Dantas deveriam conversar com “P”, provavelmente
“Pessoa”, ou FHC. No final do papel, apócrifo, há o seguinte: “Assunto
lista nomes Operação Copa do Mundo. Opportunity. Pactual. Matrix.
Garantia”. Trata-se de uma lista de bancos que teriam fundos de
investimento no exterior nos mesmos moldes do Opportunity. A
estratégia de Amaral era dizer ao Planalto que, caso as listas de cotistas
do Opportunity viessem para o Brasil, as dos outros bancos também
chegariam, com desfecho imprevisível. Havia um interesse especial sobre
o banco Matrix, que teria um impacto “trinta” vezes maior do que o caso
Opportunity. Isso fica bem demonstrado num e-mail enviado por Amaral
a Dantas em 11 de junho de 2002:
O assunto CVM já está exposto por inteiro. Hoje não é o dia nem
a hora de se falar em Matrix. Parecerá chantagem, e chantagem
barata que não é o seu ou meu estilo. Leia, por favor, os e-mails
anteriores, aonde fomos até onde poderíamos ir. Com a minha
postura, o assunto Matrix terá que ser utilizado com cuidado.
Tenho notícias [de] que o título “Operação Copa do Mundo” vale
trinta Matrix. Aguardemos o telefonema de hoje. O assunto
“interventor despedir advogados” tem que começar com uma
montagem, com uma história. Para amanhã, se não espanta [sic]
e não leva a nada.
Uma semana depois, Amaral enviou um e-mail para José Serra, por
meio do assessor Arcanjo. O tom da mensagem é novamente inquietante,
pois fala em querer “preservar o governo”, como se ele estivesse em
risco.
Acho que já falei à exaustão sobre a Operação Copa do Mundo.
Como seu amigo, sem interesse algum a não ser preservar o seu
governo, devo dizer-lhe pela vez derradeira para não ser
inoportuno: é um crasso erro — para não dizer burrice — de
quem o está assessorando achar que o Luiz Francisco, o
procurador populi, tendo sucesso em uma primeira lista, vá parar
por aí. Acho que já está quase tarde para dar um basta às
loucuras da CVM.
Além de pressionar o Planalto e o PSDB para tentar matar a
investigação no nascedouro, Dantas e Amaral tinham outro armamento.
Eles acionaram uma pessoa a quem identificavam como “Braga” ou
“Comandante”. Sua correta identificação foi agora possível graças à
minuta de um contrato anexada a um dos e-mails. Trata-se do
empresário Carlos Henrique Ferreira Braga, capitão de corveta da reserva
da Marinha desde o final dos anos 1960. Braga e o ex-deputado Milton
Temer haviam servido juntos na Marinha e chegaram a dividir um
apartamento. Quando Temer foi preso em 1964, após o golpe, Braga
conseguiu uma cela melhor para o amigo e, durante quarenta e cinco
dias, foi visitá-lo.
No final de 2001, Braga havia assinado um contrato com William Yu,
o parceiro de Amaral, no valor de US$ 80 mil mensais, válido de janeiro
a março de 2002, com o objetivo de atuar para a compra da canadense
TIW, a fim de retirá-la do controle da empresa Telemig Celular. Caso
conseguisse, Braga receberia mais US$ 1 milhão. Yu e sua empresa
Aquarius, contudo, eram remunerados pelo Opportunity a fim de
contratar Braga, como demonstram os e-mails. Eles montaram uma
história para convencer Braga, alegando que havia “um grupo português”
interessado na compra da Telemig, ocultando que o Opportunity era o
verdadeiro contratante.
Dantas foi informado sobre a amizade entre Braga e Temer e instou
Amaral a acionar o militar acerca do problema nas ilhas Cayman: “Estive
com Luis Octavio [Motta Veiga]. Ele me disse que quem conhece o Temer
é o comandante Braga. Ele me disse que conhece bem o comandante [...]
Ele sabe tudo de Demarco, tem muita credibilidade no partido, foi
inclusive convidado para ser secretário de [ex-governadora do Rio]
Benedita”.
Duas horas depois, Yu enviou um e-mail “confidencial” a Amaral, que
o repassou a Dantas. Diz que Braga obteve “do irmão dele em Brasília”
cópias de dois e-mails supostamente enviados por Demarco a Temer. Nas
mensagens, Demarco faz uma cronologia dos eventos relacionados à lista
das ilhas Cayman e aponta caminhos para a investigação.
Yu, Amaral e Dantas discutiram a possibilidade de alguma autoridade,
no Rio, dar uma entrevista coletiva em defesa do Opportunity. E Dantas
teve outra ideia: “Seria possível ele entregar o e-mail na entrevista e
falar que recebeu de Demarco?”.
O banqueiro queria novamente “incriminar” seu desafeto. Mas Yu
reagiu rápido: “Caro D., impossível entregar os dois e-mails, pois eles
foram dados somente para o nosso amigo no Rio em confiança”.
Amaral apoiou a decisão de Yu: “O W. Yu leu para mim os dois emails. Eles não podem ser divulgados, direta ou indiretamente, total ou
em parte nem notinhas nem nada. Sei que a tentação é grande”.
Nos dias seguintes, quando se avaliava a renovação do contrato de
Braga, ocorreu um longo debate entre Dantas, Yu e Amaral sobre os reais
préstimos do militar. Dantas queria mais resultados de Braga, que ficara
encarregado de procurar o ex-presidente do BC, Gustavo Franco, à época
representante dos interesses da TIW. Dantas escreveu a Amaral:
Queria discutir um pouco com você o contrato de Braga. A
realidade é que não funcionou. O objetivo era pressionar Gustavo
[Franco], que na prática não se intimidou [...] Desde o primeiro
contrato que venho insistindo em alguma cláusula de eficácia, ou
alguma demonstração de que tem a capacidade de agir.
As críticas de Dantas obrigaram Yu e Amaral a apresentar um
relatório sobre “os feitos” de Braga.
É lógico que ele [Braga] não gostou e rebateu: trabalhei
bastante; muitas coisas não aparecem de imediato; o trabalho
meu não é matemático como um financista; articulei bastante
com o sogro e com o GF [Gustavo Franco]; articulei junto aos
Fundos; impedi que D. [Dantas] fosse chamado na CPI; o nosso
contrato é para TIW vender para o Português [ficção criada pelo
Opportunity para não revelar a Franco o real interesse do banco]
e não entrar numa briga e publicar notinhas no jornal que não
propiciam resultados.
O contrato não foi renovado, embora Amaral tenha intercedido em
favor de Braga: “O Braga não precisa fazer nenhum papel mostrando que
trabalhou. Eu sei que trabalhou e agora tive uma conversa final com DD
sobre isso, que concordou”.
Até início de 2011, quando foi procurado pelo autor, Temer não tinha
conhecimento do contrato firmado entre seu amigo e os representantes
do Opportunity. Disse que Braga não fez pressão para que a questão das
ilhas Cayman ficasse sem solução.
“O Braga é quase meu irmão. [À época] ele conversou comigo sobre
isso, mas muito pouco. Ele sabia que eu estava fazendo isso [investigar
as ilhas Cayman]. Mas ele nunca discutiu isso comigo, nunca fez uma
demanda política a mim”, disse Temer.
Eu não operava pela Câmara, eu operava pelo Ministério Público,
com representações. Aí o “engavetador” [procurador-geral da
República Geraldo Brindeiro] engavetava. Eu fazia batalha
política e dava repercussão. Mas tínhamos uma imensa
dificuldade, porque não só os donos de jornal estavam
empolgados, [mas também] os repórteres estavam empolgados
com o governo tucano. Todo mundo defendeu o Proer.
Mais uma vez, dando prova da idoneidade desses e-mails, Braga
confirmou ter assinado o contrato com Yu e ter se encontrado com
Gustavo Franco, exatamente como dizem as mensagens. Mas minimizou
seu papel e disse que ficou sabendo que seu contratante era o
Opportunity apenas ao final do contrato. “Eu não gosto de ficar jogando
pedra nos outros, sou bastante velho para assumir as besteiras que faço.
Mas, vamos dizer assim, eu não gostei, não gostei. Me disseram que era
um grupo português, mas depois não era. Se ele me dissesse, no início,
que era Fulano de Tal, eu provavelmente diria ‘não quero’.”273
“Nós fomos diretamente ao Gustavo Franco para saber por que ele
era, à época, eu acho, o representante da TIW no Brasil. A conversa foi
franca e objetiva, mais ou menos curta. ‘Pode-se chegar a um valor para
uma empresa comprar outra?’ Ele disse que não. Não evoluiu mais nada.”
Braga também negou ter agido para pressionar Temer. “Eu não fiz
esforço nenhum. Eu não tinha o menor poder de evitar.” Afirmou ainda
que não tinha uma memória precisa sobre os fatos.
“Eu fui queimando os troços, depois de cinco, seis anos. Muito papel
foi acumulando, agora não tenho mais. Se eles pudessem me usar, me
usariam para outras coisas. Mas eu não sou ‘usável’ mesmo.”
Dantas e Amaral trocaram seus últimos e-mails ao final do primeiro
semestre de 2002, às vésperas do fim do contrato do consultor. Eles
fizeram um balanço de todo o lobby realizado pela dupla no governo FHC,
objetivos, conquistas e derrotas. Surgiu um gosto bem amargo na relação
entre os dois. É um documento precioso sobre os périplos e artimanhas
do grupo. Quem deu início à lavagem da roupa suja foi Dantas:
Gostaria de discutir com você se não seria conveniente
alterarmos a nossa estratégia de ação. Temos tido o foco do
nosso empenho na pessoa. Enquanto os outros têm focado mais
abaixo, tipo em Calabis, Tarquínios etc. A realidade é que somos
muito bem tratados, nos entendem perfeitamente, mas nada
ocorre de fato. Tarquínio fica [na Previ], Ibiza não emplaca.
Calabi é nomeado conselheiro e não sai. Naji entra no circuito
que inclui Calabi. O Conde me exclui do Jantar, e inclui Tronchetti
[da TI]. Os fundos permanecem na mesma batida. Sou acusado e
não posso me defender porque poderia expor quem está nos
ajudando — mas a ajuda não ocorre. A pessoa ficou de falar com
Ruy Mesquita [de O Estado de S. Paulo], mas ninguém falou com
Ruy. Depois soubemos que ficou para outra data — ficou?
Pimenta atuou pelos italianos [...] Todo o mundo está
conseguindo resolver a vida junto aos fundos por caminhos
diferentes. Nós optamos por esta direção que me agrada, mas a
realidade é que não estamos conseguindo. Ajudamos a pessoa em
tudo que ela quis, lembre as publicações de jornais etc. Ajudamos
antes para não vincular — entendo que não gostem do vínculo,
eu também não —, mas o resultado é estranho.
As “publicações” foram anúncios pagos por um grupo de empresários,
liderados pelo Opportunity, em apoio ao programa de privatizações. Em
suma, Dantas estava bastante pessimista e, indiretamente, fazia críticas
ao trabalho de Amaral. A resposta do consultor foi bastante dura:
Calabi, já expliquei. Jantar do Conde, você não pode ir mesmo,
mas talvez seja recebido pela pessoa na Embaixada. Tarquínio,
concordamos com a solução. Naji, [sic] não tem nada o cu de ver
com as calças. Ruy, foi cobrado ontem [...] Você, que era por eles
(tucanos) considerado uma espécie de novo filho de ACM, até que
houve grande progresso. Afinal, não foi pelos seus belos olhos
que a pessoa gastou com você uma hora e meia, mas três horas,
e Niger, que não podia ouvir falar de você, ouviu-o atentamente
por quatro horas. Progresso houve sim, e muito. Estou aberto
para qualquer conversa, mas detesto fatos distorcidos e
analisados sob uma ótica que só vê um lado da questão.
O jantar citado por Dantas entre executivos do setor telefônico e
membros do governo FHC na Embaixada do Brasil em Roma era fonte de
desgosto do banqueiro. Amaral tentou encaixá-lo no jantar, mas não
conseguiu. Disse genericamente que ouviu de Matarazzo, o anfitrião, que
Dantas estava “malfalado”. Dantas reclamou:
Durante este tempo todo recebi as acusações calado, até
acusações de ter feito acusações, o que é bizantino. Se eu estou
falado foi para proteger o anfitrião [Andrea Matarazzo] e o
convidado [FHC], ou pelo menos quem os cerca. Não denunciei
nada nem este é o meu estilo, mas não gostei do comentário [de
Matarazzo], é no mínimo injusto. Eu conheço a história. Toda
essa idiotice de achar que sou eu que está fornecendo
informações é tola. Se eu quisesse denunciar, não seria com esta
incompetência.
Amaral não renovou o contrato com o banqueiro. Numa mensagem
aos seus familiares, ele contou que Dantas chegou a lhe oferecer o dobro
do que ganhava.
Oito anos depois, Matusevicius, o servidor do Planalto que recebia os
e-mails destinados a FHC, confirmou ao autor por e-mail que uma de suas
funções era levar informações, mas que não se recordava ao certo de
todas as pessoas com as quais manteve contato:
Travamos conhecimento com centenas de pessoas [...] Pode ser
que, em uma daquelas ocasiões, tenha encontrado o sr. Roberto
[Amaral], mas não tenho recordação de tê-lo conhecido
pessoalmente. Nas audiências e nos eventos acima mencionados,
diversas
vezes
os
interlocutores
ficavam
de
enviar
posteriormente mais dados ou informações para o presidente.
Quando isto ocorria, entregava meu cartão, com o e-mail do
Planalto, e, em várias ocasiões, anotava também o particular
para evitar qualquer problema de envio ou recebimento.
Armínio Fraga disse que conhece Dantas, mas que nunca tratou do
assunto Cayman com ele. Disse ainda não ter recebido orientação do
Palácio do Planalto sobre como tratar o assunto e procurou minimizá-lo.
“Assuntos como esse eram encaminhados às áreas técnica e jurídica do
BC, não me lembro dos detalhes do caso específico.”
Interrogado se lembrava de uma conversa com Temer sobre o
assunto, Armínio respondeu que “sim, vagamente, se não me falha [a
memória], na Câmara”. Por fim, o ex-presidente do BC disse não saber
qual o desfecho, dentro do BC, do caso Cayman.
Fernando Henrique Cardoso disse que “jamais daria instruções” ao
presidente do BC
sobre como agir em matéria administrativa, muito menos no
sentido de favorecer alguém. Pode ter havido a pretensão, mas
sem resultado, e mesmo dela não me recordo. Sei que houve
muito barulho (acho que até mesmo pela imprensa) sobre uma
lista de brasileiros que teriam investido nas ilhas Cayman para se
beneficiarem de isenções fiscais. Eu jamais diria ao BC que não
cobrasse das autoridades da ilha isso ou aquilo, se fosse
obrigação da autoridade monetária fazê-lo [...] O mesmo se diga
quanto à AGU, cujo responsável de então poderá corroborar a
veracidade do que digo.
O ex-presidente disse que não utilizava computadores para se
corresponder e que “se os ajudantes de ordens os receberam, é possível,
pois recebiam centenas ou milhares de cartas e pedidos”. As demandas
eram, depois de filtradas, entregues às mãos do presidente. Disse não
saber de “pormenores” da cooperação de Amaral com o Opportunity,
“mas sabia que [o banco] tinha ligação com ele”.274
Serra, procurado pelo autor, negou, por meio da assessoria, ter
conhecimento dos e-mails:
Todas as questões “abordadas” referem-se a supostos fatos
transcorridos há nove ou dez anos. Em 2002 José Serra estava
no turbilhão da campanha presidencial. Ele jamais tomou
conhecimento das supostas tratativas mencionadas e desconhece
inteiramente questões sobre supostas listas de cotistas, Previ etc.
Qualquer presunção em contrário é delirante.
O s e-mails Amaral-Dantas também revelam que, para divulgar
notícias de interesse do Opportunity, o consultor mantinha contatos
frequentes com pelo menos dois jornalistas: Gilberto di Pierro, o Giba
Um, dono de um site na internet, e Claudio Humberto, ex-porta-voz do
presidente Collor, responsável por uma coluna política publicada na
internet e em vários jornais espalhados pelo país. Em dezembro de 2001,
Amaral acionou Claudio: “A nota que necessitamos é: o empresário Luís
Demarco declarou sobre [sic] juramento na corte real da Grand Cayman
que com R$ 75 mil pode-se fazer alguém abrir um inquérito na polícia de
São Paulo. De quem [sic] será que ele está se referindo?”.
A nota saiu assim publicada na coluna, no mesmo dia: “Em litígio com
o banqueiro Daniel Dantas, o empresário Luís Demarco, ex-sócio e
inimigo do dono do Banco Opportunity, declarou na Corte Real da Grand
Cayman, sob juramento, que ‘com R$ 75 mil pode-se fazer alguém abrir
um inquérito na polícia de São Paulo’. É mesmo? Quem?”.
O s e-mails mostram outra operação, mais complexa. Ela envolvia a
divulgação do conteúdo dos grampos telefônicos feitos de forma
controversa no telefone do ex-consultor de Dantas, Paulo Marinho. As
fitas mais importantes haviam sido reveladas pela revista Veja em junho
do ano anterior. Mas outras permaneciam inéditas. Nos e-mails, como
despiste, as transcrições de tais grampos foram chamadas de “atas”.
Dantas e Amaral queriam “esquentar” os grampos, ou seja, dar uma
origem para poder usá-los na briga judicial nas ilhas Cayman. Em e-mail,
Dantas procurou Amaral:
Tanure aproveitou para publicar o assunto parcialmente é claro
no JB. Seria muito útil se eu pudesse mostrar as atas nas ilhas
Cayman. Só que o documento, embora gravado legalmente, não
foi para investigação desse assunto e, portanto, além de não nos
servir como prova, não pode ser usado. A única alternativa seria
que eu conseguisse publicar, mesmo que em um jornal menor.
Será que você tem como?
Dantas também queria que os internautas ouvissem as conversas,
para aumentar o impacto.
“Estou preparando o material da publicação [...] No original são muito
mais impressionantes. Será que o nosso amigo poderia divulgar no
original (som)? Receberia pronta em formato adequado. Você acha boa
ideia?”
Amaral disse que sim. Em 31 de março, ele já havia encontrado
alguém disposto a divulgar o material, Giba Um. “O Humberto é amigo
dele e pode falar em meu nome. Mande urgente, pois eu o acordei
naquela madrugada e prometi os 50 mil dele.”
Os áudios foram ao ar no site de Giba Um na internet no dia 2 de
outubro, acompanhados de notas intituladas “relações incestuosas”. Essas
mensagens guardam relação com uma série de arquivos depois
apreendidos pela PF no computador de um executivo do grupo
Opportunity. Havia vinte e um arquivos com conversas telefônicas em
formato mp3.
O delegado Saadi tomou o depoimento dos dois jornalistas. Claudio
Humberto negou irregularidades, mas confirmou o conteúdo dos e-mails
apreendidos na casa de Amaral, o que novamente empresta credibilidade
ao material apreendido. O jornalista disse que recebia da BrT por
propagandas divulgadas em seu site na forma de banners. Contou que
Amaral sempre foi “boa fonte” e que, às vezes, lhe arrumava
anunciantes.
Giba Um confirmou à PF que Amaral prestou consultoria a Dantas.
Disse que o conheceu por ter sido assessor de imprensa da Andrade
Gutierrez, mas negou ter divulgado informações “a pedido de Amaral,
Dantas ou Braz” e afirmou que “nunca recebeu recursos de Braz, Dantas
ou uma de suas empresas”.
O conjunto dos e-mails trocados entre Dantas e Amaral contém diversos
pontos enigmáticos e perturbadores. Que “envolvimento” seria aquele
relativo a Dantas que Amaral teve de relatar a Serra e FHC, o que foi
capaz de deixá-los sem ter o que dizer? Por que Dantas, segundo Amaral,
não é apenas um simples credor, mas “um grande credor”? Por que a
simples menção ao banco Matrix poderia ser considerada, pelo Planalto,
uma “chantagem”? O que seriam os “três DL”, sobre os quais Serra não
teria conhecimento? Por que Dantas achava que Serra deveria pôr “mais
ordem e competência nas iniciativas”? O que Dantas tanto sabia sobre o
“assunto Telemar” que poderia ser obrigado a revelar? Por que Dantas
fez pagamentos à empresa Rivoli, um fato que não lhe “interessa
divulgar”? O Banco Central foi mobilizado pelo Planalto para impedir que
a lista do fundo nas ilhas Cayman viesse para o Brasil? Por que Dantas
afirmou estar “malfalado” porque teve de “proteger” Matarazzo, FHC, “ou
pelo menos quem os cerca”?
Amaral, Dantas, FHC, Serra, Braga, Temer, Armínio, Mendes,
Matarazzo e todos os outros citados nas mensagens nunca foram
interrogados sobre esses pontos nem na PF nem no Judiciário, pois todos
os e-mails permaneceram sob os cuidados sigilosos do então procuradorgeral da República Roberto Gurgel no prédio de vidros espelhados da PGR
em Brasília. É provável que tudo já tenha sido arquivado, para o conforto
dos interessados. Mas não se sabe. Procurado pelo autor ao longo de duas
semanas em 2011, por meio de sua assessoria, Gurgel não esclareceu o
que fez, se é que fez, ou o que faria com os e-mails. A assessoria
informou que Gurgel não teve tempo hábil para dar uma resposta que,
contudo, também não veio mais de dois anos depois, até o encerramento
deste livro.
Gurgel foi bastante atacado no Congresso em 2012 por não ter
tomado providências quando recebeu as primeiras informações sobre o
envolvimento do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) com o dono de
caça-níqueis Carlinhos Cachoeira. Os e-mails Dantas-Amaral ficaram
desde 2009 sob sua responsabilidade por mais de quatro anos, até que
deixou o cargo de procurador-geral da República, em meados de 2013.
Ele jamais explicou ao autor deste livro qualquer atitude que tenha
tomado sobre o assunto.
Epílogo
Após o expediente do dia 22 de junho de 2010, o juiz De Sanctis
deixou seu gabinete no fórum da Justiça Federal de São Paulo e
caminhou até a Igreja Presbiteriana do Jardim das Oliveiras, na alameda
Jaú, nos Jardins. Ele perguntou na recepção pelo pastor Mauro
Meneguelli, indicado por um amigo em comum. O juiz vivia uma
encruzilhada na carreira e queria ouvir conselhos. Novamente o TRF
abriu a possibilidade de o juiz deixar a 6ª Vara e se tornar
desembargador do tribunal. Ele já havia recusado a promoção uma vez.
Caso a aceitasse agora, o juiz deveria abrir mão de todos os processos
sob sua responsabilidade, incluindo a Satiagraha. De um lado, ele queria
continuar no cargo, pois dizia gostar da primeira instância. Por outro,
estava profundamente desgastado com as infinitas batalhas promovidas
pelo Opportunity, dentro e fora do Judiciário. O banco tentara, de todas
as formas, provocar o afastamento do juiz, levando denúncias à
imprensa, à Corregedoria do TRF e ao CNJ. Alegava suspeição,
imparcialidade, lutava pelo impedimento do juiz.
De Sanctis já havia condenado Dantas por corrupção, mas ainda
faltavam o processo principal, sobre crimes contra o sistema financeiro, e
mais três inquéritos policiais. O banco não havia vencido o mérito de seus
inúmeros pedidos, mas naquele momento o TRF havia trancado o
andamento da operação. De Sanctis estava desanimado.
“Não se pode mais julgar no Brasil. Parece que em breve pediremos
licença aos réus para condená-los.”
O juiz e o pastor conversaram por cerca de uma hora e meia. Prestes
a tomar a decisão que mudaria sua vida profissional, De Sanctis chorou.
“Talvez ele tenha chorado por causa da impotência para se fazer
justiça neste país. Ele estava fazendo algo importante, de relevância, e
passar para outro posto não era tão fácil. Se ele quisesse projeção,
status, seria muito fácil. Mas não era o que ele queria. Ele chegou à
igreja em frangalhos.”275
Ao final daquela noite, o juiz decidiu encerrar sua carreira na
primeira instância. Quase três anos depois de assumir a Satiagraha, ele
finalmente saiu do caminho de Dantas, objetivo que o banqueiro tanto
perseguiu durante dois longos anos. A última medida tomada pelo juiz na
Satiagraha foi justamente negar mais um pedido para que deixasse a
condução do processo.
Em janeiro de 2011, De Sanctis tomou posse como desembargador,
numa sessão curta e simples na sede do TRF, na avenida Paulista. A
expectativa era que De Sanctis, dada sua experiência, no TRF fosse
colocado na área que julga matérias penais. Por coincidência, naquele
momento, abriu-se uma vaga na 5ª Turma, que analisa os casos
criminais. Era um destino tão natural, que De Sanctis chegou a ser
procurado por dois colegas, que buscavam dados sobre processos que
seriam discutidos na próxima sessão da turma.
Na cerimônia da posse, contudo, De Sanctis sofreu um baque. Em
discurso, o deputado federal Arnaldo Faria de Sá informou à plateia que o
juiz iria atuar na área previdenciária, em substituição ao desembargador
Antonio Cedenho. De Sanctis não sabia, ficou espantado. No dia seguinte,
o primeiro ofício que assinou foi direcionado à presidência do TRF:
“Aparentemente, haveria algum equívoco, uma vez que me foi afiançado,
categoricamente, pelos funcionários dessa egrégia presidência, de que
não havia interessados na vaga disponível na 5ª Turma”. A presidência
respondeu que um desembargador mais antigo, que pediu para ocupar o
gabinete, tinha preferência, conforme previsto no regimento interno do
tribunal.
Assim, o juiz que atuou nas principais investigações de crimes
financeiros e lavagem de dinheiro da história recente do país, que
determinou a prisão de dois banqueiros e de um megatraficante e que
deu seguidas palestras sobre esses temas na Europa e nos Estados
Unidos a partir de fevereiro de 2011 passou a decidir sobre recursos de
pessoas que tiveram seu benefício recusado pelo INSS.
Em setembro de 2010, De Sanctis lançou um livro de ficção,
protagonizado por um juiz com as mesmas iniciais do seu nome. Ele
escreveu:
Fernando Montoya Di Sorrento muitas vezes pensou em desistir,
abandonar seu ideal. Muitas vezes sentira dor pelo sentimento de
injustiça e o peso de responsabilidade [...] Muitas vezes se emocionou
sentindo o gosto de derrotas inexplicáveis [...] Tinha, como muitos, um
desejo: ser feliz, sem se valer de desgraças alheias. E ter paz. Só isso.
O 7 de junho de 2011 foi um dia estranho para De Sanctis. Trouxelhe um pouco da paz que o personagem do seu livro pedia, mas muito
desassossego. O CNJ reuniu-se em Brasília para julgar a última
representação apresentada por Dantas contra o juiz no conselho. O
banqueiro e seu braço direito, Dório Ferman, acusaram De Sanctis de ter
“sonegado” informações ao TRF e ao STF. Essa argumentação já havia
sido analisada e rejeitada pelos desembargadores do TRF de São Paulo,
após seis horas de uma extensa análise dos fatos. Consideraram que De
Sanctis não cometeu nenhuma falha disciplinar ao defender o sigilo da
Operação Satiagraha. Dantas recorreu ao CNJ.
O conselho é presidido pelo presidente do STF e funciona num anexo
do STF na Praça dos Três Poderes, a poucos metros do plenário e dos
gabinetes dos ministros do tribunal. Dos catorze carros oficiais usados
pelos conselheiros em 2011, cinco foram adquiridos e doados pelo
Supremo. Suspeitas ou acusações contra ministros do STF não podem ser
investigadas pelo CNJ, por lei.
De Sanctis se sentou na primeira fila da plateia. O juiz só podia se
manifestar por meio de seu defensor, o advogado Pierpaolo Bottini, que
ficou à sua esquerda. O lugar à direita foi ocupado pelo presidente da
Ajufe (Associação dos Juízes Federais), Gabriel Wedy, que, ao falar por
dez minutos ao microfone para os conselheiros, ecoou a nota oficial que
soltara um dia antes em defesa do juiz.
“A sociedade precisa ter um juiz que não tenha medo de julgar um
político, o banqueiro mais poderoso do país. Não se pode esconder o
elefante atrás de uma cadeira.”
Em seguida, falaram os advogados de Dantas e Ferman, Luciano
Feldens e Antônio Pitombo. O juiz teve de ouvir, calado, várias acusações
dos representantes das mesmas pessoas que ele mandara prender três
anos antes. Como uma trama kafkiana, agora o réu era o acusador, e o
juiz, o acusado.
A conselheira encarregada de relatar a representação, Morgana
Almeida Richa, não poderia ter um currículo mais distante da realidade
de uma operação policial de grande envergadura na área de ilícitos
financeiros. Morgana atuava na área trabalhista, tendo sido indicada ao
cargo no CNJ pelo TST (Tribunal Superior do Trabalho). Os seus dezoito
anos na área trabalhista não impediram que a juíza proferisse um
violento voto contra De Sanctis. Sobre a possível sonegação de dados ao
TRF, Morgana disse não ver nenhum indício, mas, quando passou a
analisar o mesmo em relação ao STF, seu voto acompanhou as suspeitas
lançadas pelo Opportunity. Ela recorreu à gravação da reunião na PF que
determinou o afastamento de Protógenes da Satiagraha para afirmar que
o segundo pedido de prisão já havia sido tramado com antecedência,
sugerindo que o juiz se rebelou contra o Supremo. A mesma versão que
o TRF e o ministro do STF Marco Aurélio Mello já haviam descartado.
Morgana passou ao largo das evidências recolhidas no dia da deflagração
da operação e do depoimento de Hugo Chicaroni. Ao final do voto,
contudo, Morgana pediu o arquivamento da representação, sob a
alegação de que a legislação não permitia a aplicação de uma pena de
censura contra um desembargador federal. O voto foi aprovado por
unanimidade.
Para De Sanctis, a vitória teve um gosto de derrota. Ele custava a
entender como uma colega podia “julgar o julgamento” de um colega da
área criminal. E os advogados de Dantas passaram a dizer aos jornalistas
que “houve um crime, mas sem castigo”. O juiz não conseguiu
comemorar nem mesmo no dia em que se livrou da última suspeita.
Outro protagonista da Satiagraha também começou uma vida
inteiramente nova em 2011. Com o voto de 94.906 paulistas, Protógenes
assumiu em Brasília o mandato de deputado federal pelo PCdoB. Foi uma
eleição difícil, na esteira da votação de 1,35 milhão de votos do palhaço
Tiririca. Os eleitores parecem ter relevado a informação, divulgada na
campanha, de que o delegado guardava R$ 284 mil em sua casa, uma
prática no mínimo estranha. Protógenes alegou que não confiava no
sistema financeiro, pois mafiosos poderiam clonar seus cheques e usar
sua conta bancária.
O delegado gastou R$ 897 mil em sua campanha, bancada
majoritariamente pelo comitê financeiro do PCdoB, que por sua vez foi
alimentado com R$ 2,8 milhões de grandes doadores, como usineiros e
um grande banco, o Alvorada, um canal usado pelo Bradesco para fazer
doações eleitorais. Numa das muitas ironias que enfrenta ao entrar na
política, Protógenes foi eleito com ajuda do mesmo setor econômico de
Daniel Dantas.
Há outra contradição. Protógenes integrava o arco de alianças do PT,
pois o diretório nacional petista, que ajudou a eleger a presidente Dilma
Rousseff (PT), foi apoiado nas eleições por ninguém menos que Dantas.
Duas empresas do Opportunity doaram R$ 1,5 milhão para o diretório, na
chamada doação oculta, quando o dinheiro cai na conta partidária e é
redistribuído para vários comitês e candidatos para ser usado na compra
de camisetas, impressão de folhetos e produção de programas de tevê. Já
que o PCdoB paulista e seus candidatos, como Protógenes, se aliaram ao
PT, não é demais imaginar que Dantas possa ter, indiretamente, ajudado
a eleger o delegado.
No início do seu mandato, Protógenes apresentou um projeto de lei
que equipara a pena prevista para o crime de corrupção à de homicídio.
Foi aplaudido. Mas sofreu um revés logo em seguida, ao chamar o então
presidente da CBF, Ricardo Teixeira, de “incansável lutador”. O deputado
recebeu uma torrente negativa de e-mails e comentários nas redes
sociais da internet. “Você é mais uma grande decepção na política
brasileira. Exaltar publicamente Ricardo Teixeira e João Havelange foi
demais!”, escreveu o internauta Andrew Porto, da Austrália. Pela
primeira vez, Protógenes experimentou a repulsa dos eleitores que
entenderam que o seu mandato não iria compactuar com figuras tão
controversas quanto os maiores cartolas do futebol.
O procurador Rodrigo De Grandis permaneceu na Procuradoria da
República em São Paulo. Ricardo Saadi mudou-se para Brasília em 2010,
onde passou a chefiar o DRCI, departamento do Ministério da Justiça
voltado para cooperação internacional em matéria de ilícito financeiro e
recuperação de ativos. Depois do caso Banestado, o perito da PF Renato
Barbosa passou a trabalhar na PGR (Procuradoria-Geral da República),
em Brasília, onde ajudou a montar um setor de análise e apoio ao
trabalho de procuradores em todo o país. De Grandis, Saadi e Renato
contornaram as tensas condições dos inquéritos que trataram dos
negócios do Opportunity e puderam seguir adiante naquilo que
aprenderam a fazer.
Em 2011, o Opportunity voltou com força total ao tema da suposta
presença ilegal de agentes da Abin na Satiagraha. A alegação já havia
sido derrotada na 5ª Turma do TRF da 3ª Região (SP e MS). Ali, o banco
também havia pedido a nulidade de todas as provas colhidas ao longo da
Satiagraha, como se o fato de um araponga ter olhado ou transcrito
conversas telefônicas pudesse pulverizar a própria existência da escuta,
esta obtida por ordem judicial, copiada pela empresa de telefonia e
repassada à PF dentro dos trâmites legais.
Por unanimidade, os desembargadores da turma do TRF acolheram o
relatório da colega Ramza Tartuce e concluíram que a ação da Abin “deuse de forma secundária, incapaz de justificar qualquer alegação de
nulidade de prova”. Os juízes disseram ainda que “o Estado, para o
aprimoramento do sistema de inteligência e combate ao crime,
notadamente aquele organizado, deve promover o compartilhamento de
dados entre as instituições, que integram o [Sisbin] Sistema Brasileiro de
Inteligência”.
Criado em 1999, o Sisbin é gerido pela Abin e coordena as ações de
“planejamento e execução das atividades de inteligência no país”. A lei
explica que por inteligência se compreendem a obtenção, análise e
disseminação de conhecimentos sobre “fatos e situações de imediata ou
potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental
sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado” — uma
“influência” que não se pode negar à corrupção.
O Sisbin tem como integrantes a Casa Civil, o GSI e a Abin,
vinculados à Presidência da República, e mais onze ministérios. Os
representantes do Ministério da Justiça são seis, dentre os quais,
justamente “a Diretoria de Inteligência Policial do DPF” (decreto
presidencial nº 4.376/2002), o mesmo local onde corria a Satiagraha.
A mesma discussão também já havia passado pela 2ª Câmara de
Coordenação e Revisão da PGR. O subprocurador-geral da República
Wagner Gonçalves deu um contundente parecer favorável à ação da
Abin. Ele explicou que o poder de polícia na Satiagraha foi sempre
exercido pela PF na operação. De acordo com a Constituição, à PF cabe
“exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União”.
Não veio à tona nenhuma prova de que os arapongas tenham exercido
atividade que significasse a usurpação do poder da polícia, como tomada
de depoimentos, obtenção de ordem judicial para quebra de sigilos ou
interceptações telefônicas. Os arapongas da Abin serviram como analistas
de informações obtidas regularmente no Judiciário, além de seguir e
fotografar algumas pessoas na rua.
Concluiu o subprocurador:
Todas as medidas cautelares, busca e apreensão, interceptações
telefônicas etc., deferidas judicialmente, não foram solicitadas pela Abin,
mas pela Polícia Federal [...] ou pelo Ministério Público. O cumprimento
de mandados do juízo, decisões, ordens etc. foi executado pela Polícia
Federal, entrando os agentes cedidos [da Abin] como meros
coadjuvantes, em questões pontuais e determinadas, sob ordens da
Polícia Federal, muitos deles desconhecendo o objetivo maior da
operação.
As decisões apoiam uma prática que é comum no mundo todo: o
serviço secreto se dedica a identificar e combater potenciais ameaças ao
país. Há notícia de que o poderoso chefe da Camorra napolitana, Paolo di
Lauro, foi preso em 2005 com a ajuda sigilosa do Sisde (hoje Aisi),
responsável pelo serviço secreto doméstico na Itália.276 Ameaças ao
Estado, na forma de células terroristas, são a investigação prioritária de
agências de inteligência como a americana CIA e a alemã BND, ou sua
parte doméstica, BfV. Uma das atribuições da mexicana Cisen é “propor
medidas de prevenção, contenção, dissuasão e desativação de riscos e
ameaças à segurança nacional”. Segundo a lógica de Protógenes, a
corrupção em altos escalões da República era uma ameaça tão específica
e real quanto um homem-bomba.
Em 2011, os advogados do Opportunity Andrei Zenkner Schmidt e
Luciano Feldens, um ex-procurador da República, impetraram habeas
corpus para anular a decisão do TRF. À causa no STJ somou-se o
advogado Tiago Cedraz, filho do ministro do TCU Aroldo Cedraz. (A
armada dos advogados dos réus da Satiagraha incluiu, depois de 2010,
Márcio Thomaz Bastos, o poderoso ex-ministro da Justiça no governo
Lula. Ele passou a defender o ex-sócio de Dantas no Opportunity, Pérsio
Arida, indiciado no inquérito sobre o fundo nas ilhas Cayman.)
O subprocurador-geral da República Eduardo Antônio Dantas Nobre
foi o responsável por atuar no HC. Contrário à posição anterior do seu
colega Wagner Gonçalves, Nobre disse que a Satiagraha deveria ser
anulada desde o princípio. O ministro relator do caso foi o juiz do
Tribunal de Justiça do Rio convocado, Adilson Macabu. Ele concordou com
a posição de Nobre e deu voto no sentido de anular todas as provas da
investigação, o que incluiria cancelar a condenação de Dantas, em
primeira instância, por corrupção ativa no caso do oferecimento de
dinheiro aos delegados da operação.
Ao ler nos jornais sobre o voto de Macabu, o delegado Protógenes
peticionou no HC para pedir a suspeição do juiz. Apontou que o filho do
ministro trabalhava como advogado do escritório de Sérgio Bermudes, no
Rio. Para o delegado, havia “nítida existência de amizade íntima e
interesse no julgamento”. Após analisar o pedido do delegado, a quem
chamou de “aético, parcial, agressivo, desarrazoado e antijurídico”,
Macabu não se considerou impedido. “Não sou amigo íntimo nem inimigo
capital de quaisquer das partes, [nem] sequer as conheço,
pessoalmente.” O juiz disse que é “fato público e notório que o escritório
de advocacia Sérgio Bermudes nunca advogou para o paciente Daniel
Valente Dantas, pessoa física, mas para o Opportunity, em causas cíveis,
e isto, há mais de cinco anos, entre 2001 e 2005”.
Como vimos, entretanto, na investigação sobre o leilão das
companhias telefônicas, Bermudes acompanhou Dantas em depoimento
no Ministério Público Federal. Também não ficou clara a diferença entre
advogar para um réu e advogar para uma empresa pertencente ao réu.
Macabu disse ainda que “desde 2007” o escritório de Bermudes “litiga
judicialmente contra os interesses do Opportunity”, citando uma causa
que a Bradesplan moveu contra “Elétron S.A., empresa controlada pelo
Opportunity Anafi Participações”.
Quando o HC foi levado à 5ª Turma do STJ pela primeira vez, em
março de 2011, o ministro Gilson Dipp pediu vistas do processo.
Devolveu-o em maio, opinando pela manutenção da Satiagraha. Explicou
que a participação dos agentes da Abin não envolveu atividades típicas da
polícia judiciária, como tomada de depoimentos e formulação de pedidos
de interceptações telefônicas. A ministra Laurita Vaz pediu vistas aos
autos, devolvendo-os a 7 de junho.
Por volta das 18h20 daquele dia, os cinco ministros da 5ª Turma do
STJ começaram a definir o julgamento do HC. Na plateia, havia onze
advogados do grupo Opportunity.
Laurita anunciou que era contrária à anulação da Satiagraha,
acompanhando o entendimento de Dipp. Ela afirmou que o voto do
relator, Adilson Macabu, havia ultrapassado o próprio pedido do
banqueiro.
“Eles [Dantas] queriam tão somente a nulidade dos procedimentos
acima proferidos [uma sessão do TRF contrária à anulação da
Satiagraha]. Nem mesmo os impetrantes vislumbraram, a princípio, a
nulidade da ação penal. Não foi trazido a debate pelos impetradores.”
Laurita relatou que não estava claro o trabalho desenvolvido pela
Abin:
Mesmo que se admita que houve a participação [de agentes da Abin],
tal participação não estaria bem delineada, não esclarecida de que forma,
finalidade, grau de tarefas [...] Haveria, sem dúvida, a necessidade de
um exame aprofundado dos fatos e provas para se aferir os exatos
contornos dessas investigações e seus personagens.
O ministro convocado Macabu já havia lido seu relatório, em março.
Mesmo assim, ele novamente pediu a palavra e fez vários ataques à
Satiagraha.
“Foram ultrapassados os limites da lei e da Constituição. É
inquestionável o prejuízo [ao andamento da ação].”
Com o empate por dois a dois, a decisão sobre o julgamento caberia
ao catarinense Jorge Mussi, de cinquenta e nove anos, ministro do STJ
desde dezembro de 2007. O ministro fez inúmeras referências à ação
judicial da 7ª Vara Federal Criminal de São Paulo, na qual o juiz Ali
Mazloum condenou Protógenes por fraude processual e violação de sigilo
funcional.
Para ligar aquela condenação ao HC em discussão, Mussi indagou:
“Os funcionários da Abin prestaram informação sigilosa a algum
jornalista?”. O próprio ministro respondeu que sim, que dois funcionários
da agência, “Thélio Braun e Luiz Eduardo de Melo”, teriam “possibilitado
à jornalista” — cujo nome ele não citou, mas certamente se referia à
Andréa Michael, então na Folha — “dados para a veiculação” de uma
reportagem.
Mussi, contudo, não esclareceu que o inquérito por ele citado jamais
indiciou qualquer servidor da Abin por vazamento de informações. As
alegações constaram apenas de um relatório da PF, mas não se
traduziram em indiciamento ou condenação. Ficaram no inquérito do
delegado Amaro como uma mera possibilidade. O suposto vazamento de
informações pelo qual Protógenes foi condenado não tinha relação com
funcionários da Abin, mas, sim, com os produtores da TV Globo, no
restaurante El Tranvía — o que Mussi novamente deixou de explicar. O
HC em discussão no STJ não tratava do vazamento da TV Globo, mas da
ação da Abin. Andréa Michael nunca disse ter recebido dados de qualquer
servidor da Abin. Thélio Braun e Luiz Melo nunca foram acusados ou
condenados por suposto vazamento. Ao decidir os destinos da Satiagraha,
o ministro do STJ valeu-se de uma suspeita que jamais ficou provada.
Mas Mussi foi adiante. Citando a controversa teoria do “fruto
envenenado que contamina toda a árvore” — a mesma argumentação
oriunda dos Estados Unidos tantas vezes levantada pela defesa do
Opportunity, na Justiça e em entrevistas de seus advogados à imprensa
—, o ministro mandou cancelar todas as provas da Satiagraha. O ministro
afirmou: “Se a prova que deu origem à persecução, [que] deu origem ao
persecuto, se ela é natimorta, é preferível que demos desde logo o
atestado de óbito, para que amanhã não seja usada [...]”.
À decisão coube recurso. Em março de 2012, a PGR anunciou ter
entrado com recurso extraordinário, que não havia sido julgado até o
encerramento deste livro. O ministro do STJ Felix Fischer determinou o
envio do recurso ao STF. A subprocuradora-geral da República Lindôra
Maria Araújo afirmou, no recurso, que as medidas cautelares, como a
interceptação telefônica, foram requisitadas ao Judiciário não pela Abin,
mas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. É uma informação que
pode ser facilmente verificada pela consulta aos autos. Segundo a
subprocuradora, não houve ilicitude na colheita das provas, o que “pode
ter havido foi colaboração e auxílio, dentro de uma operação que nunca
saiu do controle da Polícia Federal”.
O sonho de toda pessoa condenada na Justiça por um ilícito é receber
a notícia de que todas as provas contra ela, todas as interceptações
telefônicas, todos os depoimentos incriminadores, enfim, todo o processo
foi anulado, zerado, fulminado por uma mão divina. Seria como entrar
imundo num lava a jato e sair limpo do outro lado. Naquele 7 de junho
de 2011, foi o que ocorreu com Daniel Dantas. As muitas horas de
gravações sobre o suborno, a apreensão do dinheiro na casa de
Chicaroni, os relatórios do Banco Central, os depoimentos de doleiros
sobre o Opportunity Fund, as operações de mútuo entre as empresas
ligadas ao Opportunity, ou seja, toda e qualquer evidência coletada
durante a Satiagraha foi, pelas mãos de três ministros do STJ, incinerada.
Em fevereiro de 2012, Daniel Dantas teve outra vitória retumbante.
A juíza substituta da 5ª Vara Federal Criminal de São Paulo, Adriana
Freisleben de Zanetti, absolveu onze pessoas da acusação de “formação
de quadrilha” feita pelo Ministério Público no caso da Operação Chacal,
dentre as quais Dantas, Carla Cico, Eduardo Sampaio e Charles Carr. Os
únicos condenados, que ainda poderiam recorrer em liberdade e tiveram
as penas de dois anos de reclusão substituídas por penas restritivas de
direitos, foram Eduardo Gomide, Thiago Carvalho dos Santos, William
Goodall, Tiago Verdial e Júlia Marinho Leitão da Cunha. Segundo a juíza,
embora “haja várias passagens no processo em que a acusação afirma
que Carla e Daniel conheciam e sabiam dos métodos ilícitos da Kroll,
nada há de concreto nesse sentido”. A juíza se ateve a verificar se a
dupla soube que algum crime foi cometido durante as ações da Kroll, e
entendeu que não. A decisão não disse que a investigação privada não
ocorreu, tanto que condenou cinco pessoas.
Entre 2010 e 2011, o Opportunity denunciou as supostas “ilegalidade
e fraude” na Satiagraha e “parceria privada”. Voltou a retratar o
banqueiro como vítima de uma espécie de conspiração do governo
petista. Segundo essa teoria, Dantas, ao tentar proteger os direitos de
seus investidores, acabou destituído por grupos do PT incrustados nos
fundos de pensão e foi perseguido pela PF. Para que seja plausível, a tese
deve desconsiderar todas as diversas brigas que Dantas já travara em
vár i os fronts com pessoas e instituições que já haviam sido seus
parceiros, como a TIW, a Telecom Italia, Demarco e, principalmente, os
fundos de pensão ainda no governo FHC. Em 2005, a lista seria
engrossada com o Citibank, principal apoiador das ações de Dantas no
Brasil. Resta acreditar que todos esses personagens e empresas
integravam, na verdade, um único vasto esquema contra o Opportunity,
a envolver dezenas e dezenas de pessoas, e principalmente que o
esquema envolvesse membros do Executivo, do Ministério Público e do
Judiciário.
As novas teses contra a Satiagraha, como a equivocada alegação de
que a Abin conduziu inquérito policial, vêm se somar, como estratégia
jurídica e jornalística, às teses da “montagem italiana” na Operação
Chacal, da “decisão plagiada” da juíza Márcia Cunha, das “contas
secretas” de Lula, Paulo Lacerda e outros, do “grampo no STF”, da
“fraude” da gravação da TV Globo no restaurante El Tranvía, da
“espionagem ilegal” de Protógenes e da “suspeição” de De Sanctis.
Entre janeiro e fevereiro de 2010, procurei com insistência o
Opportunity — por e-mail, telefone e em conversas mantidas com suas
assessoras de imprensa, incluindo dois encontros em cafés de São Paulo
— para que Daniel Dantas me recebesse, por quanto tempo julgasse
necessário, para dar sua versão sobre os acontecimentos narrados neste
livro. Nessa época, certamente por uma enorme coincidência, o
Opportunity peticionou na Justiça Federal para que a PF abrisse um
inquérito para investigar um suposto vazamento de informações
relacionado a uma reportagem de minha autoria, divulgada na Folha no
dia 5 de janeiro, que abordava uma decisão no caso Chacal. No final de
2010, já morando em Brasília, tomei um avião e tive que prestar
depoimento no inquérito aberto na PF paulistana. O delegado que me
ouviu se disse surpreso ao verificar que a fonte da minha matéria não era
outra senão o Diário de Justiça eletrônico. A juíza do caso, cumprindo a
Constituição, havia divulgado publicamente sua decisão, de onde retirei
os dados para a minha reportagem.
Em fevereiro, por fim, uma executiva do banco me informou por email que Dantas não me receberia para este livro e acrescentou:
As informações que recebemos é que o sr. está comprometido com
um projeto contra Daniel Dantas e o Opportunity, do qual o livro faz
parte. Se essas informações são verdadeiras ou não, não sabemos. O fato
é que o senhor escreveu 83 matérias, entre 2008 e 2010, com viés
contra o sr. Daniel Dantas e o Opportunity.
Perplexo, protestei por escrito. Pedi que o banco apresentasse provas
do que afirmou. Observei ainda que, na maioria das reportagens
produzidas por toda a imprensa entre 2008 e 2010, certamente houve
“viés contra” o banco, já que ele foi alvo da Satiagraha, e isso se traduziu
no noticiário. O banco, então, pediu desculpas “se porventura fizemos um
juízo incorreto a seu respeito”. Jamais apresentou qualquer prova do
suposto “projeto” do qual eu faria parte. Nem poderia, pois ele não passa
de uma invenção.
De acordo com o ranking semestral das instituições financeiras,
divulgado pelo Banco Central, o Opportunity manejava, em junho de
2008, um mês antes da Satiagraha, R$ 16,6 bilhões em recursos de
terceiros. Seis meses depois, o valor caiu para R$ 8,5 bilhões, uma
sangria brutal, mas é preciso lembrar que a Satiagraha coincidiu com
uma grande crise econômica mundial, que provocou perdas em todos os
fundos de investimento. Contudo, com o passar do tempo, o Opportunity
se recuperou. No final de 2010, com R$ 11,1 bilhões, o Opportunity era o
nono maior grupo na administração de recursos de terceiros. Em relação
ao ranking de junho de 2008, galgou três posições.
Mas o grande negócio do Opportunity desde 2008 é o conjunto de
pelo menos vinte e uma fazendas que formam a Agropecuária Santa
Bárbara Xinguara, no Pará, que cria para abate mais de 500 mil cabeças
de gado. A agropecuária tocada pelo ex-cunhado de Dantas, Carlos
Rodenburg, recebeu cerca de R$ 1,5 bilhão em investimentos entre 2005
e 2008 e virou alvo de um inquérito sob suspeita de lavagem de dinheiro,
também paralisado após a decisão do STJ. As propriedades, adquiridas de
diversos clãs paraenses ao longo dos últimos anos, se estendem por
quinze municípios, que se fossem reunidas comporiam um formidável
latifúndio de “mais de 500 mil hectares”.277
No Pará, essa região é marcada por conflitos armados e denúncias de
trabalho escravo, quadro que deu origem a uma intensa mobilização de
entidades de trabalhadores rurais sem-terra.
Três semanas após a deflagração da Satiagraha, o MST (Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) invadiu uma fazenda da Santa
Bárbara, a Maria Bonita. Em 2009, o MST também invadiu a Espírito
Santo, em Xinguara, e a Cedro, em Marabá, num total mobilizado de 800
famílias. Em 18 de abril de 2009, seguranças da Santa Bárbara e semterra entraram em conflito armado, resultando em ferimentos de seis
colonos e um vigilante.
As denúncias sobre o uso de seguranças armados em fazendas da
região chegam ao Congresso Nacional desde 2001, mas a prática
persiste, tornando essas regiões um barril de pólvora, agora colocado sob
os pés do banqueiro. Dantas trocou o império das telecomunicações pelas
grandes fazendas no interior do país. Como nota irônica, a mesma
atividade do seu trisavô, Cícero, que, em vez do MST, teve como
adversário o beato Conselheiro, fazendo ecoar a sentença do Instituto
Genealógico da Bahia, fundado em 1945 por um avô de Daniel Dantas:
“Os descendentes colherão os teus frutos”.
Agradecimentos
O editor da Geração Editorial, Luiz Fernando Emediato, teve papel
fundamental na divulgação deste livro. A ele sou grato por ter acreditado
no valor jornalístico e no interesse público desta narrativa. Sua coragem
tornou a Geração Editorial um dos principais pontos de apoio hoje no país
às liberdades de expressão e de informação. Também sou grato ao diretor
da Geração Willian Novaes, que se dedicou com grande entusiasmo à
tarefa de tornar pública esta história.
Este livro também não teria sido possível sem o programa sabático da
Folha, que concede a seus funcionários folga remunerada para a
realização de projeto de aperfeiçoamento pessoal ou profissional. O
programa, criado em 2000 pela Direção de Redação e por anos sob
comando da jornalista Ana Estela, da Editoria de Treinamento, já atendeu
a mais de 120 jornalistas. Devo agradecimentos ao meu antigo editor da
ex-editoria de Brasil, hoje Poder, Fernando de Barros e Silva, à sua
sucessora no cargo, Vera Magalhães, ao ex-subeditor de Brasil Marcelo
Diego e a Melchiades Filho, ex-diretor da Sucursal da Folha em Brasília,
pelas manifestações de incentivo ao projeto e a compreensão pelo tempo
que dediquei ao assunto.
Agradeço a todos os entrevistados que deixaram suas agendas de
lado para me fornecer esclarecimentos e informações.
Diversos amigos e colegas generosamente compartilharam arquivos e
informações, sugeriram fontes e indicaram caminhos. O amigo Chico
Otávio facilitou-me contatos no Rio. André Guilherme deu-me a cópia de
um notável arquivo de áudio. Flávio Ferreira, que também cobriu o caso
Satiagraha em São Paulo, socorreu-me com dicas e informações
preciosas. Leonardo Souza cedeu-me documentos que faltavam sobre
determinado tema. Iran Alves, colaborador da Folha especializado em
pesquisas em fontes abertas, obteve num cartório do Rio a íntegra de um
acordo societário fechado em 2008 e deu-me uma cópia.
Algumas vezes, tomei o tempo de talentosos jornalistas, tais como
Mário Magalhães, Tiago Ornaghi, Mario Cesar Carvalho, Leonêncio Nossa,
Amaury Ribeiro Júnior, Donizete Arruda, Frederico Vasconcellos, João
Carlos Magalhães, Rodrigo Lopes, Jailton de Carvalho, Lucas Ferraz,
Matheus Leitão, Ana d’Angelo, Catia Seabra, Ana Flor e Andreza Matais,
muitos dos quais meus amigos.
A ex-diretora da PubliFolha Ana Busch e a ex-editora responsável
Luciana Maia me incentivaram desde o primeiro minuto.
Na Bahia, pude contar com a atenção do jornalista Luiz Francisco e
dos historiadores Consuelo Novais Sampaio e Álvaro Pinto Dantas de
Carvalho Júnior. No Arquivo Nacional, em Brasília, recebi o apoio para
pesquisa da coordenadora regional Maria Esperança de Resende, de Paulo
Augusto Ramalho, Pablo Endrigo, Camila, Vera, Tereza e Raynes. Os
assessores de imprensa da Procuradoria da República em São Paulo
Marcelo Oliveira e Frederico Antonio Ferreira, da Procuradoria no Rio,
Gabriela Weiterschan Levy, da direção-geral da PF em Brasília, Flávia
Diniz, José Gomes Monteiro Neto e Bruno Ramos Craesmeyer, e da
Secretaria de Segurança Pública do DF, Vasconcelos Quadros, procuraram
facilitar o contato com autoridades. Também devo ressaltar que a
assessora de imprensa do grupo Opportunity, Elisabel Benozatti,
procurou, na medida do possível, fornecer a posição do banco sobre
dúvidas que apresentei. As respostas estão registradas ao longo desta
narrativa.
O livro é dedicado à minha mãe, Yolanda, às irmãs Lígia e Diva, aos
irmãos e familiares. Em memória, ao irmão Francisco e ao sobrinho
Eduardo Ducatti Soares, que faleceram no período em que eu trabalhava
neste livro.
1 Interrogatório da testemunha nos autos da OPS (Operação Satiagraha).
2 Informação 01-08 VH, de 11 de junho de 2008, nos autos da OPS.
3 Termo de depoimento ao juízo nos autos da OPS.
4 Para esse trecho e seguintes, áudio da conversa de 18 de junho de
2008, nos autos da OPS.
5 Procurados em Brasília para este livro, os responsáveis pelo Sagres não
receberam o autor.
6 O laudo da transcrição feito pela PF não registra o “trânsito político
ferrado”, perfeitamente audível na gravação.
7 Nesse trecho, o laudo de transcrição atribuiu a fala a Chicaroni, mas é
perceptível que o autor da frase é Victor Hugo. De qualquer forma, a
essência não muda, pois Chicaroni confirma a fala do delegado.
8 Auto de apreensão datado de 18 de junho de 2008.
9 “O barão de Jeremoabo”, jornal A Tarde, 1º de agosto de 1939. Citado
por Álvaro Pinto Dantas de Carvalho Júnior.
10 “Cícero Dantas Martins, de barão a coronel: Trajetória de um líder
conservador na Bahia” (1838-1903), do historiador Álvaro Pinto Dantas
de Carvalho Júnior (2000), dissertação de mestrado pela UFBA. Álvaro é
primo de Daniel Dantas.
11 Entrevista ao autor, em Salvador, do ex-delegado de polícia Álvaro
Dantas, 77, que se disse primo de Daniel.
12 Joana Medrado Nascimento, em sua dissertação de mestrado pela
Unicamp “Terra, Laço e Moirão” (2008).
13 Vaudeville, de Ricardo Amaral (Ed. Leya, 2010).
14 Entrevista ao autor em 19 de janeiro de 2010, em Salvador (BA).
15 Convite de formatura da turma de engenharia civil da Politécnica,
1978.
16 Trecho do depoimento da economista Maria Conceição Tavares para o
livro Mario, de Luiz Cesar Faro e Coriolano Gatto, da empresa Insight.
Faro e Gatto foram por um tempo assessores de imprensa do
Opportunity. Conceição também elogia a capacidade de Simonsen no
mesmo depoimento.
17 Atas do Conselho de Segurança Nacional, Arquivo Nacional,
coordenação regional de Brasília.
18 Mario Henrique Simonsen, um homem e seu tempo (FGV Ed., 2002,
Org. Verena Alberti, Carlos Eduardo Sarmento e Dora Rocha).
19 Idem.
20 FMI e países em desenvolvimento: políticas e alternativas (John
Williamson, Fred Bergsten e William R. Cline, Ed. Nórdica, RJ, 1986).
21 Entrevista ao autor, por e-mail.
22 Latin American Adjustment: How Much Has Happened? (ed. Institute
for International Economics, 1990), John Williamson (editor).
23 O Consenso de Washington (1994), do economista Paulo Nogueira
Batista (1929-1994).
24 Fórum Nacional: ideias para a modernização do Brasil (ed. José
Olympio, 1990).
25 Entrevista concedida ao autor no Senado em 2010.
26 Mario Henrique Simonsen, um homem e seu tempo (FGV Ed., 2002,
Org. Verena Alberti, Carlos Sarmento e Dora Rocha).
27 Folha de S.Paulo, 7 de janeiro de 1990, “Daniel Dantas foge de
jornalista ao desembarcar no Rio”.
28 Depoimento de Kati Braga ao livro Mario.
29 Folha de S.Paulo, 6/01/1990.
30 Folha de S.Paulo, 11/01/1990.
31 Zélia, uma paixão (1991), pág. 109, de Fernando Sabino.
32 Revista IstoÉ, 29/10/2002, Luiz Fernando Sá e Leonardo Attuch.
33 “Divórcio Milionário”, em Veja, 31/08/1994. Procurados pelo autor,
Braguinha e filha não confirmaram nem negaram o conteúdo da
reportagem da revista Veja.
34 “Todos contra Daniel Dantas”, revista piauí de maio/junho de 2007.
35 Artigo do ex-senador transcrito no livro Mario, de Luiz Fernando Faro
e Coriolano Gatto.
36 Mario Henrique Simonsen, um homem e seu tempo (FGV Ed., 2002,
Org. Verena Alberti, Carlos Eduardo Sarmento e Dora Rocha).
37 Transcrição do pronunciamento do senador ACM na sessão do Senado
de 26/09/2005.
38 Entrevista concedida ao autor em janeiro de 2010, em Salvador,
Bahia.
39 Entrevista ao autor em 4 de março de 2010.
40 Entrevista ao site especializado em propaganda e publicidade Rádio
Agência.
41 Idem.
42 Relatório final da CPI do Proer, Câmara dos Deputados.
43 Entrevista ao autor em 19/02/2010.
44 Entrevista ao autor por e-mail em 21/01/2010.
45 “A Longa Marcha dos Insensatos”, Veja de 23/08/1995.
46 Entrevista de Dantas à Folha em 16/08/1995.
47 Relatório citado no trabalho final da CPI do Proer, Câmara dos
Deputados (2002).
48 Entrevista ao jornal O Globo de 21/02/1999.
49 Petição ajuizada pelo Opportunity e Elena Landau em ação ordinária
contra a Editora Glasberg, em 1999.
50 Sobre as primeiras aquisições, Memorando Confidencial e Privado do
Fundo CVC/Opportunity, de 1997, anexado a processo na Justiça de Nova
Iorque.
51 Testemunho juramentado feito por Daniel Dantas à Justiça dos EUA
em 12/05/2006.
52 “Saindo da Sombra”, revista Veja de 19/08/1998.
53 Gravação em vídeo da sessão de 19 de novembro de 1998, Arquivo da
TV Senado.
54 Apenso ao caso nº cv-02745, na Justiça de Nova Iorque.
55 Depoimento de Daniel Dantas para o livro Mario, de Luiz Fernando
Faro e Coriolano Gatto.
56 “Fluxograma de Relacionamento e Investimentos Opportunity Fund”,
documento apreendido nos autos da OPS.
57 Áudio de gravação nos autos da OPS do dia 13/12/2007. A PF
transcreveu esse trecho equivocadamente como “ajudou a persuadir o
governo a simular”.
58 Depoimento prestado por Dantas à CPI dos Correios em 21/09/2005.
59 Entrevista ao autor em 19 de fevereiro de 2010.
60 “Uma Missão Especial”, revista Veja, de 25/11/1998.
61 Para as transcrições dos telefonemas, “Segredos do Poder”, série de
reportagens dos jornalistas Fernando Rodrigues e Elvira Lobato, na Folha
(25/05/1999).
62 Folha, edição de 6/05/2002.
63 Entrevista ao autor em fevereiro de 2010.
64 O Estado de S. Paulo, de 2/12/1998.
65 Depoimento prestado à CPI dos Correios em 21/09/2005.
66 Para os três depoimentos, transcrições contidas na ata nº 47 de
27/10/1999 de sessão plenária do TCU.
67 Entrevista ao autor em fevereiro de 2010.
68 Ação de Improbidade Administrativa ajuizada em 23/06/1999 na 16ª
Vara Federal do Rio de Janeiro.
69 Revista Veja, edição de 7/03/2001.
70 Capitalismo de laços (Elsevier Editora, 2010), de Sérgio G. Lazzarini.
71 Carta enviada pela assessoria da Petros à Editora Três e apreendida
nos autos da OPS.
72 Folha, em 13/08/2000.
73 “Histórico do trabalho de apoio à BrT na aquisição do controle da
CRT”, memorial assinado por Salles em 9/06/2003.
74 Depoimento à CPI dos Correios em 21/09/2005.
75 Memorando “confidencial” do Citigroup, de 9/09/2004.
76 Relatório de auditoria na BrT feito pela ICTS em 10/10/2005.
77 Idem.
78 Representação feita à CVM pelos novos gestores da BrT em
1/08/2005.
79 Folha, entrevista a Janaína Leite, em 16 de maio de 2006.
80 Dirceu foi procurado pelo autor de novembro/2010 a março/2011,
mas não houve resposta a uma série de perguntas, enviadas por escrito à
sua assessoria, sobre esses e outros tópicos relacionados a ele e tratados
neste livro.
81 Depoimento prestado por Daniel Dantas à CCJ do Senado em 7 de
junho de 2006.
82 Depoimento prestado por Dantas à CPI dos Correios em 21 de
setembro de 2005.
83 Apenso ao caso nº cv-02745, na Justiça de Nova Iorque.
84 Carta apreendida em 2008 pela Operação Satiagraha na casa de
Nahas.
85 Depoimento de Cassio Casseb prestado, em 1/12/2009 gravado em
vídeo, nos autos da OPC (Operação Chacal).
86 Para as contratações e o apelido, “The Secret Keeper”, em The New
Yorker, 19/10/2009.
87 Relatório preliminar da Operação Chacal, de 14/04/2005.
88 Processo nº 2002.80.00.002311-7.
89 Veja, de 6/06/2001.
90 Autos da petição nº 3.849, STF (Supremo Tribunal Federal).
91 E-mail interceptado pela OPC.
92 Auto de qualificação e interrogatório de Daniel Dantas em
13/04/2005, na OPC.
93 Depoimento prestado por Dantas à CPI dos Correios em 21/09/2005.
94 Depoimento gravado em vídeo na 5ª Vara Federal Criminal de SP, nos
autos da OPC.
95 Depoimento prestado por Dantas à CCJ do Senado Federal em 7 de
junho de 2006.
96 Documento transcrito na decisão do caso nº 48 da Corte de Apelação
das Ilhas Grand Cayman, de 3 de outubro de 2006.
97 Idem.
98 Interrogatório de Vicioso à Corte de Grand Cayman em 29/04/2002.
99 Revista CartaCapital, de 22/07/2008.
100 Relatório parcial do delegado Ricardo Saadi nos autos da OPS, pág.
72, em 5/11/2008.
101 Denúncia protocolada em 30/03/2009 pela promotora Alexandra
Milaré Toledo Santos, da 93ª Promotoria de Justiça de São Paulo.
102 Idem.
103 Depoimento prestado por Marinho à Polícia Federal nos autos da OPC
em 5/11/2004.
104 Anexo 406 do laudo 675/02-INC/DPF.
105 Entrevista ao autor em 5/03/2010.
106 Depoimento prestado em 24/03/05 ao Projeto História Oral da
Procuradoria-Geral da República.
107 Idem.
108 Laudo financeiro nº 1354/2008 ¨C INC/DPF.
109 Auto de qualificação e interrogatório de Judite de Oliveira Dias, autos
da OPC.
110 E-mail de 9/04/2004 interceptado na OPC.
111 E-mail interceptado em 16/04/2004 nos autos da OPC.
112 Entrevista ao autor em 21/11/2010.
113 Idem.
114 Depoimento prestado por Glasberg à OPC em 11/11/2004.
115 Depoimento prestado por Paulo Lacerda em 16/03/2009 ao delegado
Amaro Vieira no IPL 2-4447/2008.
116 Ofício do 1º semestre de 2004 que consta dos autos do processo
aberto pela Procuradoria de Milão, Itália.
117 Depoimento prestado por Antonius Gonzalez, diretor da Kroll para a
América Latina, nos autos do processo italiano, em 7 de julho de 2007.
118 Depoimento prestado por Giuliano Tavaroli à Procuradoria de Milão.
Sobre a dica da fonte na Sisde, depoimento prestado por Fabio Ghioni no
mesmo procedimento.
119 “Transcrição de áudio do diálogo entre Angelo Jannone e Tiago
Verdial, gravado por aquele [Jannone] e apreendido no PCD”, autos da
OPC.
120 Procurado pelo autor para falar sobre as acusações da OPC, Verdial
afirmou por e-mail em 4/02/2010: “Não perca seu tempo comigo, não
temos nada para conversar”.
121 Depoimento prestado à CPI dos Grampos em 13/08/2008.
122 Depoimento prestado por Carla Cico à CPI dos Correios em 16 de
novembro de 2005.
123 Depoimento prestado por Daniel Dantas à CPI dos Correios em 21 de
setembro de 2005.
124 “Relatório Interno ¨C Contratação Espaço Digital”, da auditoria ICTS
Global, de 23 de novembro de 2005.
125 “Gamecorp também foi alvo da Brasil Telecom”, Folha, 17/07/2005.
126 Íntegra da entrevista concedida ao repórter Flávio Ferreira, da Folha,
em 2009.
127 Depoimento prestado por Dantas à CPI dos Correios em 21/09/2005.
128 Diálogos com o poder, de Ney Figueiredo (2004).
129 Nota enviada ao autor pela assessoria do Opportunity.
130 Auto de apreensão na residência de Dantas, de 29/10/2004, autos
da OPC.
131 Depoimento prestado à CPI dos Grampos em 13/08/2008.
132 Depoimento prestado por Shemesh à CPI dos Grampos em
27/08/2008.
133 Auto de apreensão e análise de dados nos autos da OPS, em
9/04/2005.
134 Auto de apreensão na residência de Shemesh nos autos da OPC, em
9/04/2005.
135 “Correspondências trocadas entre Daniel Dantas e Naji Nahas”,
distribuídas a jornalistas pelo Opportunity em 2009.
136 Conf. tradução dos autos da petição nº 3.849, STF.
137 Interrogatório de Giuliano Tavaroli nos autos do processo italiano,
em 13/04/2007.
138 Interrogatório de Marco Bernardini em 12/12/2006.
139 Interrogatório de Fabio Ghioni nos autos do processo italiano, em
19/02/2007.
140 Depoimento prestado por Carla Cico nos autos do processo italiano
em 2/08/2007.
141 Interrogatório de Rocco Lucia, prestado nos autos do processo
italiano em 24/01/2007.
142
Site
de
Lacerda
na
internet:
http://eloylacerda.com.br/portugues/home.html.
143 Interrogatório de Giuliano Tavaroli nos autos do processo italiano em
9 de maio de 2007.
144 Interrogatório de Tavaroli em 19/04/2007.
145 Interrogatório de Tavaroli em 9/05/2007.
146 Relatório de atividade da Comissão de Finanças do Comitê Lula
Presidente.
147 Depoimento de Daniel Dantas prestado ao Senado em 7/07/2006.
148 Idem.
149 Termo de declarações feitas por Delúbio à Polícia Federal em 8 de
julho de 2005.
150 Depoimento de Marcos Valério à CPI dos Correios em 6 de julho de
2005.
151 Termo de declarações prestadas por Marcos Valério à Polícia Federal
em 29 de junho de 2005.
152 Relatório da PF de 18/02/2011 no inquérito 2474/STF.
153 Depoimento de Carvalho à CPI da Venda de Sentença da Alerj, no
Rio, 20/04/2010.
154 Entrevista ao autor em 22/02/2010.
155 Acórdão constante das Peças de Informação 07/2006, do TJ-RJ.
156 Depoimento prestado à CPI da Venda de Sentença da Alerj.
157 Relatório Final da CPMI dos Correios, aprovado por 17 votos a 4.
158 Degravação de depoimento anexada ao processo do mensalão no STF
em 19/02/2010.
159 Entrevista ao autor em 6/03/2009.
160 Entrevista ao autor em 1º de outubro de 2009.
161 11 gols de placas (Abraji, Ed. Record, 2010).
162 Entrevista concedida ao autor por Protógenes em 1/10/2009.
163 Entrevista concedida a blogueiros, no Planalto, em 24/11/2010.
164 Depoimento de março de 2009 no inquérito policial 2-4447/2008. O
episódio foi omitido por Lacerda no depoimento que prestou à CPI dos
Grampos, em agosto de 2008. Ele disse que Protógenes nunca havia
reclamado com ele sobre a Satiagraha.
165 Depoimento de setembro de 2008 no inquérito policial 2-4447/2008.
166 Depoimento prestado à CPI dos Grampos em 15/10/2008.
167 Depoimento prestado em agosto de 2008 no inquérito policial 24447/2008.
168 Idem.
169 Entrevista ao autor, por escrito, com policial da OPS.
170 Caderno Brasília, edição nº 556, de 30/12/2007 a 5/01/2010.
171 Entrevista concedida ao autor em março de 2010.
172 Depoimento prestado por Lorenz em agosto de 2008 no inquérito
policial 2-4447/2008.
173 “Informação de acesso” à sede da Abin, confidencial, no IPL 24447/2008.
174 Depoimento prestado por Lacerda à CPI das Interceptações
Telefônicas em 20/08/2008.
175 Para os números, depoimento de José Ribamar à CPI das
Interceptações Telefônicas em 3/12/2008.
176 Depoimento à CPI das Interceptações Telefônicas em 3/12/2008.
177 Depoimento de Nery Kluwe prestado ao IPL 964/08, da PF, em 4 de
novembro de 2008.
178 Depoimento à CPI das Interceptações Telefônicas em 15/10/2008.
179 Sobre as explicações para o nome, Autobiografia, de Mohandas K.
Gandhi (2009, Palas Athena Editora).
180 Manual de Inteligência Policial da Diretoria de Inteligência Policial.
181 Relatório de passagens aéreas emitidas, inquérito 2-4447/2008.
182 Gravação em voip de 15/11/ 2007, arquivo sonoro nº 4435.
183 Diálogo em voip interceptado em 15/11/ 2007, arquivo sonoro nº
5728.
184 Contrato reproduzido no relatório final da OPS, de 30/04/2009.
185 Depoimento prestado por Greenhalgh nos autos da OPS.
186 Depoimento prestado por Dantas à CPI dos Grampos em
16/04/2009.
187 Comentários do analista de inteligência da PF sobre interceptação
telefônica, nos autos da OPS.
188 O Estado de S. Paulo, em 27/04/2008.
189 Nota divulgada por Greenhalgh em 25 de julho de 2008 e postada no
site do PT .
190 Depoimento de Flávia Mendes Diniz no inquérito 2-4447/2008.
191 Idem.
192 Interceptação telefônica nº 364109 com ordem judicial nos autos da
OPS.
193 Para os números, Combate à lavagem de dinheiro: teoria e prática
(Millennium Editora, 2008), de Fausto Martin De Sanctis.
194 Entrevista ao autor em fevereiro de 2010.
195 Entrevista ao autor em março de 2010.
196 Anúncio on-line do Superior Tribunal de Justiça, em 31/10/2003.
197 Idem.
198 Revista Veja, coluna de André Petry, de 20 de dezembro de 2006.
199 Sentença condenatória que refere depoimento prestado por Braz às
fls. 1.311/1.320.
200 Declarações prestadas pelo gerente de Relacionamento de RH da
Brasil Telecom em auditoria interna da BrT.
201 Documento que integra a auditoria interna da BrT feito pela ICTS
Global em 2005.
202 Áudio de interceptação telefônica nos autos da OPS.
203 Versão difundida na reportagem “Protógenes e Eu”, da piauí, e no
livro Os escândalos de Daniel Dantas (Manifesto Editora, 2010), ambos de
autoria de Raimundo Rodrigues Pereira, que se declarou publicamente
amigo de Luiz Greenhalgh, advogado do Opportunity.
204 “Relatório sobre reunião com dois investigados ligados a Daniel
Dantas”, de Victor Hugo, em 23 de junho de 2008.
205 Entrevista ao autor em 22/04/2009.
206 Para os diálogos, transcrição de vídeo apreendido e armazenado em
pen drive do delegado Protógenes Queiroz.
207 Termo de depoimento prestado por Victor Hugo à PF em 18 de
agosto de 2008.
208 A PF transcreveu esse trecho erroneamente como “o ponto de honra
do Daniel é entregar essa semana”. A sequência do diálogo também
demonstra que Chicaroni falava do desafeto de Dantas.
209 Auto de apreensão de 25 de junho de 2008.
210 Para este diálogo e seguintes, interceptações telefônicas judiciais
arquivadas nos autos da OPS.
211 Transcrição da reunião realizada na superintendência da PF de São
Paulo no dia 14 de julho de 2008.
212 “Análise de diálogo” interceptado na OPS.
213 Interceptação telefônica no dia 10/07 na OPS.
214 Parecer 5.903 do subprocurador-geral da República Wagner
Gonçalves, de 7 de julho de 2008.
215 Entrevista de Protógenes ao autor em 19/02/2010.
216 Idem.
217 Termo de depoimento prestado por Hugo Chicaroni à OPS no dia
8/07/2008.
218 Entrevista concedida à Folha, edição de 7/12/2008.
219 Para essa afirmação e seguintes, termo de depoimento prestado por
Suzana de Camargo Gomes à PF no dia 9 de setembro de 2009.
220 Termo de depoimento prestado por Marli Marques Ferreira à PF no
dia 25 de setembro de 2009.
221 Inteiro teor de sessão que julgou HC 95009 no STF em novembro de
2008.
222 Depoimento de De Sanctis à Polícia Federal no IPL 964/08 em 25 de
setembro de 2008.
223 Relatório Policial 02/2008 BSB-STG, autos da OPS.
224 E-mail enviado ao autor em 1/04/2011.
225 Autos do HC 95.009, fls. 819, consultados no Arquivo do STF.
226 Conversa com o autor na sede da Superintendência da PF no Distrito
Federal em 2006.
227 Relatório de execução da OPS.
228 Entrevista ao autor em setembro de 2010.
229 Entrevista ao autor em 9/12/2010.
230 Depoimento à CPI dos Grampos, em 17/09/08.
231 Idem.
232 Gravação de palestra proferida aos servidores da Abin pelo general
Félix em novembro de 2008.
233 Entrevista ao autor em 3/10/2009.
234 Entrevista a Fernando Rodrigues, na Folha, em 22/03/2010.
235 Depoimento prestado por Coelho a José Walter Nunes em
17/03/2005 no Projeto História Oral da PGR.
236 Idem.
237 Sessão do Senado que sabatinou Gilmar Mendes em 15 de maio de
2002.
238 Procurado por e-mail e por telefone entre o final de fevereiro e o
início de março de 2010, e novamente em outubro do mesmo ano, Gilmar
Mendes não recebeu o autor para entrevista. Em março, a assessoria do
STF alegou excesso de agenda, mas não marcou nova data. Na segunda
ocasião, nenhuma resposta foi dada.
239 “O dedo da lei”, revista Veja de 22/09/1992.
240 Sessão do Senado que sabatinou Gilmar Mendes em 15/05/2002.
241 “Ações por improbidade ameaçam futuro de 40 autoridades federais”,
jornal Valor Econômico de 5/01/2001.
242 “O empresário Gilmar”, reportagem de Leandro Fortes na
CartaCapital de 4/10/2008.
243 Entrevista de Erival ao autor em 29/11/2010.
244 Eleições na estrada (PubliFolha), de Eduardo Scolese e Hudson
Corrêa.
245 Parecer nº 123.732/GB no inquérito nº 1.674-8/140-PA, de
30/07/2001.
246 Entrevista ao autor em 2/12/2010.
247 “Insegurança jurídica”, artigo de Reginaldo de Castro na Folha em
3/11/2000.
248 Inteiro teor da Reclamação 2.138-6/DF, sessão de 1/03/2007.
249 Depoimento de Daniel Dantas à CCJ do Senado em 7 de junho de
2006.
250 Anexo ao relatório da auditoria interna na BrT, feito pela ICTS em
2005.
251 Sessão do Senado que sabatinou Gilmar Mendes em 15 de maio de
2002.
252 Edição 1.548 da revista IstoÉ, de 2/06/1999.
253 Edição 722 da revista Exame, de 6/09/2000.
254 O Estado de S. Paulo On Line, de 11/03/2005.
255 “Memorial sobre a atuação do banqueiro Daniel Dantas e do grupo
Opportunity”, da Anapar (Associação Nacional dos Participantes dos
Fundos de Pensão).
256 Procurada, Elena respondeu ao autor, por e-mail: “Meu último
contato com o Opportunity foi em 1998, anos antes da operação que você
investiga. Além disso, trabalhei lá como consultora. Não vejo em que eu
poderia ajudar”.
257 Transcrição de vídeo da sessão do STF do dia 6 de novembro de
2008.
258 Entrevista de René ao autor em 1/04/2011.
259 Entrevista ao autor em abril de 2011.
260 Entrevista concedida ao autor em 14 de julho de 2010.
261 Folha, 14 de setembro de 2008, coluna Mônica Bergamo.
262 Entrevista concedida ao autor em 14/07/2010.
263 Entrevista ao autor em janeiro de 2010.
264 Depoimento prestado nos autos da OPS em 21/08/2008.
265 Sobre as amizades, petição de Amaral em ação de indenização
ajuizada contra a jornalista Mônica Bergamo, em São Paulo. Sobre o
curso do neto de Jânio, e-mail de Amaral nos autos da OPS.
266 Sobre os bens, hábitos e concertos, e-mails de Roberto Amaral nos
autos da OPS.
267 Relatório final da PF sobre a OPS, pág. 217.
268 “Contrato com advogados abre crise em tele”, de Elvira Lobato, na
Folha, 3/06/2002.
269 Revista Exame de 11/09/2002.
270 Entrevista ao autor em 3/03/2011.
271 Entrevista ao autor em 8/02/2011.
272 Parecer do BC datado de 17/12/2004, nos autos da OPS.
273 Entrevista ao autor em 11/02/2011.
274 E-mail enviado ao autor em 10/03/2011.
275 Entrevista de Mauro Meneguelli ao autor em 29/12/2010.
276 Gomorra, de Roberro Salviano (Ed. Bertrand Brasil, 2006).
277 Slide distribuído no Pará em 2008 à imprensa pela agropecuária.
Índice Onomástico
Abraham, Wilson Mirza
ACM (Antônio Carlos Magalhães)
Aith, Marcio
Almeida, Luís Roberto Demarco
Almeida, Rafania
Alzugaray, Domingo
Amaral, Ricardo
Amaral, Roberto
Amorim, Paulo Henrique
Andrade, Sérgio
Araújo, Idalberto Matias de
Arcanjo, Luiz Paulo
Arida, Pérsio
Attuch, Leonardo
Azevedo, Daniel Lorenz de
Azevedo, Otávio
Balbino, Antônio
Barbosa, Joaquim
Barbosa, Renato Rodrigues
Barros, Antonio Fernando
Barros, Luiz Carlos Mendonça de
Bastin, Richard
Bastos, Márcio Thomaz
Batista, Eliezer
Batochio, José Roberto
Beira-Mar (Luiz Fernando da Costa)
Bellomusto, Ranieri
Berezovsky, Boris
Bermudes, Sérgio
Bernardini, Marco
Berzoini, Ricardo
Bilachi, Jair
Bittar, Jacó
Boechat, Ricardo
Bonera, Marco
Borges, Pio
Bornhausen, Jorge
Bornhausen, Paulo
Braga, Antônio Carlos de Almeida (Braguinha)
Braga, Carlos Henrique Ferreira
Braga, Kátia Almeida
Branco, Castello
Braz, Humberto José Rocha
Brochado, Manoel Rodrigues
Browne, Rosângela
Bush, George
Cagne, Casemir
Calabi, Andréa
Calazans, José
Calmon, Pedro
Camanho, Alexandre
Campana, José Milton
Canabrava, Barão de
Cardoso, Eliana
Cardoso, Fernando Henrique
Carlos, Juan (rei de Espanha)
Carr, Charles
Carta, Mino
Carvalho, Arthur
Carvalho, Clóvis
Carvalho, Edilson Pereira de
Carvalho, Gilberto
Carvalho, Luis Mariano de
Carvalho, Luiz Maklouf de
Carvalho, Márcia Cunha Silva Araújo de
Carvalho, Olavo Egydio Monteiro de
Carvalho, Sérgio Antônio de
Cascudo, Luís da Câmara
Casseb, Cassio
Castro, Antônio Carlos de Almeida
Castro, Fidel
Castro, Paulo Rabello de
Castro, Reginaldo de
Cedraz, Tiago
Cerântula, Robinson Braios
Cesar, Arnaldo
César, Moreira (coronel)
Chaer, Márcio
Chicaroni, Hugo Sérgio
Chong, Law Kin
Cico, Carla (CC)
Cipriani, Antonio
Cipriani, Emanuele
Clemenceau, Georges
Colannino, Roberto
Collor, Fernando
Comfort, William
Conselheiro, Antônio
Constance
Corrêa, Hudson
Corrêa, Luiz Fernando
Costa, João Bosco Madeiro da
Costa, Miguel António Igrejas Horta e
Coutrim, Maria Amália
Cubas, Eduardo Luiz Rocha
Cunha, Euclides da (escritor)
Cunha, Júlia Marinho Leitão da
Dalcanale, Luiz Alberto
Dale, Guilherme
Daniel, Celso
Danilovich, John
Dantas, Daniel Valente (DD)
Dantas, João Carlos Tourinho
Dantas, José Augusto Tourinho (Gute)
Dantas, Luiz Raymundo Tourinho
Dantas, Verônica
De Grandis, Rodrigo
Dias, Judite de Oliveira
Diniz, Flávia Mendes
Dipp, Gilson
Dirceu, José
Dornbusch, Rudiger
Dornelles, Francisco
Duarte, Luis Antonio
Ducharme, Bruno
Eid, Leonardo Badra
Elias, Marcelo de Oliveira
Emediato, Luiz Fernando
Erginsoy, Omer
Estevão, Luiz
Esteves, Terezinha Aparecida Marques
Faivre
Falcão, João
Félix, Jorge
Ferman, Dório
Fernandes, Luciano José Porto
Ferreira, Alcides
Ferreira, Amaro Vieira
Ferreira, Edemar Cid
Ferreira, Eloy de Lacerda
Ferreira, Flávio
Ferreira, Frederico Antonio
Ferreira, Marli
Ferreira, Victor Hugo Rodrigues Alves
Ferrer, Juliana
Ferro, Luiz Tarquínio Sardinha
Figueiredo, João
Figueiredo, Ney
Filho, Artur Watt
Filho, Dario Morelli
Filho, Euclides Rodrigues da Silva
Filho, Luiz Viana
Filho, Raymundo Aleixo
Filho, Vicente Ernani
Fortes, Heráclito
Fraga, Armínio
Franco, Itamar
Freire, Nelson
Freisleben de Zanetti, Adriana
Friedman, Milton
Furci, Carmelo
Furtado, José Alencar
Galego Jr., José
Garotinho, Anthony
Gaspari, Elio
Geisel
Gennari, Giuseppe
Genro, Luciana
Genro, Tarso
GG (Giani Grisendi)
Ghandi, Maganlal
Ghandi, Mahatma
Ghioni, Fabio
Gioia, Ângelo
Giordano, Vander
Glasberg, Rubens
Glat, Moysés
Godoy, Luiz Roberto Ungaretti de
Gomide, Eduardo
Goodall, Bill
Goodall, William Peter
Gordilho, Pedro
Gracie, Ellen
Gramacho, Wladimir
Grau, Eros
Greenhalgh, Luiz Eduardo
Guanaes, Nizan
Guedes, Paulo (Patolino)
Guerra, Walter
Guimarães, Ivan Gonçalves Ribeiro
Guimarães, José Ribamar Reis
Guimarães, Protógenes Pereira
Gushiken, Luiz
Haddad, Ucho
Harris, John
Holder, Frank
Howard, Carl
Hughes, Howard
Ismael, Fábio Hassen
J. Kellock (juiz de Cayman)
Jannone, Angelo
Jefferson, Roberto
Jereissati, Carlos (CJ)
Jereissati, Tasso
Jeremoabo, barão de
Jorge, Eduardo
Jungmann, Raul
Júnior, Amaury Ribeiro
Júnior, Flávio Paixão de Moura
Júnior, Francisco Ferreira Mendes
Júnior, João da Costa Pinto Dantas
Júnior, José de Araújo Barbosa
Júnior, Romeu Tuma
Junior, Yon Moreira da Silva
Justus, Roberto
Kalil
Kissinger, Henry
Kolmar, Vesna
Konder, Paulo
Kroll, Jules B.
Lacerda, Paulo
Laden, Bin
Landau, Elena
Leitão, Miriam
Leite, Janaína
Lemann, Jorge Paulo
Leonard, John
Lima, Arnaldo Esteves de
Llosa, Mario Vargas
Loyola, Gustavo
Luis, Fábio
Machado, Nélio
Maciel, Lysâneas
Maciel, Marco
Madeira, Luiz Carlos Lopes
Magalhães, Luís Eduardo
Malan, Pedro
Maluf, Paulo
Marcelo, Mauro
Maria, Nícia
Mariani, Matteo
Marin, Vicencia Talan
Marinho, Paulo
Martins, Cícero Dantas
Martins, Enio
Martins, Guilherme Sodré (Guiga)
Matalon, Marco
Matarazzo, Andrea
Mazloum, Ali
Medeiros, Luiz Antônio
Mello, Ana Lúcia
Mello, Cecília
Mello, Celso de
Mello, Marco Aurélio
Mello, Zélia Cardoso de
Melloni, Alfredo
Melo, Adriana Zawada
Melo, Luiz Eduardo de
Mendes, Gilmar
Mendes, João
Mendonça, Duda
Mexia, Antonio Luis Guerra Nunes
Michael, Andréa
Michelone, José Maurício
Millani, Márcio Rached
Modiano, Eduardo Marco
Molina, Ricardo
Mônica (Dantas)
Monteiro Neto, José Gomes
Montenegro, Eurico Monteiro
Moraes, Sebastião José Vasques de
Motta, Sérgio
Murra, João
Müzel, Fabio Rubem David
Nahas, Naji (NN)
Nascimento, Francisco Ambrósio do
Nascimento, Rogério Soares do
Neto, José Castilho
Netto, Delfim
Nóbrega, Maílson da
Nogueira, Elpídio
Nogueira, Hélio Egydio de Matos
Olinto, Antonio
Oliveira, Emmanuel Henrique Balduínode
Oliveira, Luís Flávio Zampronha de
Oliveira, Luiz Renato Pacheco Chaves de
Oliveira, Ricardo Sérgio de
Oliveira, Sílvio Martins
Ornaghi, Tiago
Ortolani, Atílio
Osório, Anamara
Osório, José Luiz
Otavio, Chico
Oviedo, Lino
Pacheco, Elizon
Paes, Antero
Palocci, Antonio
Pascoal, Hildebrando
Pascowitch, Joyce
Patury, Felipe
Paula, Rita Francisca de
Paulo, Luiz
Pedro II, imperador D.
Pellegrini, Carlos Eduardo
Pellegrino, Nelson
Peluso, Cezar
Pereira, Ricardo Dominguez
Peres, Renato Eugênio de Freitas
Pertence, Sepúlveda
Piacente, Nicola
Pimentel, Anna Maria
Piñeiro, José Muiños
Pino, Paolo Dal
Pinto, Ronan Maria
Pompilli, Andrea
Presioto, Gregorio Marin
Prete, Renata Lo
Provera, Marco Tronchetti
Pugliese, Adelson
Putin, Vladimir
Putney, Mary Lynn
Queiroz, Felippe Pinheiro de
Queiroz, Protógenes Pinheiro de
Quixadá, Valquíria
Raschkovsky, Eduardo
Reed, John
Resende, André Lara
Rhodes, William
Ribeiro, Alberto Pavie
Ribeiro, Marcos Lino
Rizek, André
Roberto, José
Roberto, Luiz
Rocha, Martha
Rocha, Silvia Maria
Rockefeller, David
Rodenburg, Carlos
Rodrigues, Denys
Rodrigues, Fernando
Roman, Ana Carolina Alves Araújo
Rosa, Sérgio
Rotta, Pedro
Rousseff, Dilma
Sá, Ângelo Calmon de
Saad, Paulo
Salles, João Moreira
Salles, Mauro
Salvatti, Ideli
Sampaio, Claudia
Sampaio, Consuelo Novais
Sampaio, Eduardo
Sanctis, Fausto Martin De
Santos, Alexandra Milaré Toledo 95,
Santos, Roberto
Santos, Thiago Carvalho dos
Santos, William José dos
Sarmento, Daniel
Sarney, José
Sarney, Roseana
Schelb, Guilherme
Scordamaglia, Adriana
Seltz, Márcio
Sena, Bruno
Serra, José
Serra, Verônica
Servo, Nilton
Seta, Giorgio Della
Shemesh, Avner
Sicupira, Carlos Alberto
Silbergleid, Danielle
Silva, Élzio Vicente da
Silva, Fernando Neves da
Silva, Genival Inácio da (Vavá)
Silva, Jorge Luiz Bezerra da
Silva, Luiz Inácio Lula da
Simonsen, Mario Henrique
Soares, Anilton
Soares, Delúbio
Somaggio, Fernanda Karina
Souza, Antonio Fernando Barros e Silva de
Souza, Karina Murakami
Souza, Leonardo
Souza, Luiz Francisco de
Souza, Marcos Valério Fernandes de
Souza, Paulo Renato
Steinbruch, Benjamin
Tanure, Nelson
Tanzi, Calisto
Tanzi, Stefano
Tartuce, Ramza
Tavaroli, Giuliano
Teixeira, Roberto
Telles, Marcel
Tognolli, Claudio Julio
Toron, Alberto Zacharias
Tres, Celso
Trevisan, Antoninho Marmo
Trezza, Wilson Roberto
Troncon, Roberto
Tuma, Romeu
Unger, Roberto Mangabeira
Vaccari Neto, João
Valdez, Luiz Raphael
Valente, Sérgio
Vargas, Getúlio
Veiga, Pimenta da
Velloso, João Paulo dos Reis
Verdial, Tiago Nuno
Vicioso, Victor
Vilar, Antônio Carlos Souza
Wernesbach, Marilisa Azevedo
Williamson, John
Wilson, Presidente
Wilson, Robert E.
Wolfe, David
Yazbek, Maria Regina
Yu, William
Zylberstejn, David