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    De ferramenta de resistência a sede da Copa Feminina: a evolução do futebol na Austrália

    O “footy” enfrentou boicotes e rejeição de conservadores no século 20 antes de se popularizar no país

    Seleção australiana comemora gol na estreia da Copa do Mundo Feminina contra a Irlanda
    Seleção australiana comemora gol na estreia da Copa do Mundo Feminina contra a Irlanda Matt King - FIFA/FIFA via Getty Images

    Marcello Sapioda CNN

    São Paulo

    Dia 20 de julho de 2023. A seleção australiana venceu a Irlanda na primeira rodada da fase de grupos da Copa do Mundo Feminina diante de 75.784 pessoas. O maior público de um Mundial das mulheres no século.

    O número é importante para a modalidade e para a consolidação do jogo feminino, mas também simbólico para o futebol australiano. Ou, como é popularmente chamado por lá, o “footy”.

    Longe de ser o esporte número um por lá, o país tem ligas profissionais que foram formadas há menos de 20 anos. O futebol ainda engatinha em terras australianas, e a Copa do Mundo Feminina, com a classificação das Matildas às oitavas de final, pode ser um importante propulsor da cultura futebolística.

    Virada após a Segunda Guerra

    A Austrália, distante da Europa e das Américas e com seus desertos, tempo seco e matas fechadas, sofria com o baixo fluxo migratório. Poucas eram as pessoas dispostas a se aventurar pela Oceania. Essa história mudou somente no século passado, mais especificamente depois da Segunda Guerra Mundial.

    Com o Velho Continente destruído e em crise, a Coroa Britânica incentivou um forte fluxo migratório para a Austrália de refugiados europeus e judeus. Dessa forma, italianos, portugueses e poloneses, entre outras nacionalidades, foram para o país.

    Mesmo com certa resistência das camadas mais conservadoras da sociedade australiana, essas comunidades se instalaram e, consequentemente, começaram a implementar suas culturas, incluindo a paixão pelo futebol — que já era praticado no país desde o século 19, mas sem muito interesse e de forma amadora.

    Times “do mundo” no Campeonato Australiano

    Segundo relata o livro “Socceroos”, escrito pelo jornalista argentino Juan Manuel D’Angelo, foi em 1947 que os primeiros clubes organizados surgiram: o Preston Lion (de refugiados macedônios) e o Adelaide City (de italianos).

    Não precisou de muito tempo para que novas agremiações ligadas a comunidades de estrangeiros surgissem. Melbourne Knights e Sydney United (ambos de origem croata), South Melbourne (comunidade grega) e Marconi Stallions (italianos) vieram logo em seguida.

    Copa de 1974 elevou popularidade do esporte

    O grande incentivo para a consolidação do futebol profissional na Austrália foi a classificação da seleção masculina ao Mundial de 1974, até então inédita, trazendo visibilidade à prática no país.

    Na Copa do Mundo, empatou com o Chile e perdeu para as duas Alemanhas (Oriental e Ocidental), ficando fora da segunda fase do torneio.

    Austrália x Alemanha pela Copa do Mundo de 1974
    Austrália x Alemanha pela Copa do Mundo de 1974 / Heinrich Sanden/picture alliance via Getty Images

    No mesmo ano da competição, a popularidade foi tão grande que a federação organizou o primeiro campeonato feminino com cinco times.

    Apenas quatro anos depois da criação da liga nacional das mulheres, a primeira equipe nacional surgiu em 1978, quando, a convite da China, disputou um torneio contra clubes e times distritais.

    Na década de 1980, o time feminino ganhou grande apelo popular por uma razão extracampo: durante uma competição nacional, em 1982, a mascote, que era uma canguru gigante, acabou ganhando a simpatia de torcedores e a seleção passou a ser conhecida como “as Matildas”, mesmo nome da personagem.

    Desde 1995, as Matildas são figurinhas carimbadas em todas as edições, ganhando o reconhecimento como uma das seleções mais tradicionais do mundo.

    “É muito significativo uma Copa do Mundo na Austrália, mesmo a feminina. A Austrália é mundialmente conhecida por abrir as portas a muitos imigrantes e ter essa mistura. Pode ser uma virada de chave para o futebol”, diz Marcelo Silva, jornalista e especialista em futebol australiano, à CNN.

    A liga sofreu uma enorme perda em 2004, com o campeonato sendo desfeito (assim como o masculino). Porém, as participantes, em 2005, se recusaram a ficar sem jogar e organizaram um torneio de uma semana para manter o esporte.

    Em 2008, foi criada a A-League feminina, nos mesmos moldes da administração da masculina, trazendo estabilidade e perspectiva de desenvolvimento para a modalidade. Atualmente, a liga conta com dez equipes, tendo como maior vencedora o Melbourne City, com quatro títulos.

     A criação da A-League e o veto a clubes “estrangeiros”

    Apesar do futebol na Austrália estar intrinsecamente ligado às raízes estrangeiras, durante o processo de criação da Liga Australiana de Futebol (A-League), em 2004, sucessora da tradicional National Soccer League, foi determinado pela federação nacional que as equipes de futebol não poderiam carregar origens ou referências das comunidades que os fundaram.

    A ideia era criar uma identidade australiana, em um movimento de oposição ao que os dirigentes consideravam “o antigo futebol”, consolidado nas equipes de imigrantes. Assim, clubes neutros surgiram e as agremiações ligadas a outros povos foram rebaixadas para divisões estaduais.

    Marcelo Silva, prefaciador do livro “Socceroos”, acredita que o intercâmbio cultural presente na Copa do Mundo Feminina deste ano pode ser um fator para que a medida, que está em vigor há mais de duas décadas, seja revista.

    “Consigo imaginar a comunidade portuguesa, que é muito forte no país, se juntando para ver os jogos de Portugal, assim como os tantos irlandeses e ingleses descendentes dos primeiros habitantes do país. Pode ser um choque de realidade definitivo para que a federação australiana de futebol considere, de fato, convidar os clubes históricos de imigrantes a fazer parte mais uma vez do cenário profissional, uma briga que nunca cessou”, afirma.

    O futebol feminino como uma vitrine

    Em meio à disputa por holofotes com esportes locais, como o rugby e o futebol australiano (com regras distintas às do futebol originado na Inglaterra), além do críquete, sediar a maior edição de um Mundial feminino pode ser estratégico para a consolidação definitiva do futebol como um dos esportes mais populares do país.

    “Até hoje, mesmo após o país ter sido definido como uma das sedes da Copa, jornais de veiculação nacional e canais de televisão ainda dão muito mais atenção a esses outros esportes”, diz Marcelo, que morou na Austrália.

    “Vejo a falta de regularidade como o principal problema para a demora no desenvolvimento do futebol por lá. A emoção de uma Copa do Mundo, com alguns jogos definidos nos instantes finais, a disputa para se classificar no grupo e a emoção do mata-mata podem ajudar para que a federação australiana, atendendo ao desejo de muitos torcedores de times menores, adote o sistema de rebaixamento, dando espaço outra vez para os clubes tradicionais históricos de imigrantes”, completou.

    A Copa do Mundo Feminina vai até o dia 20 de agosto, com a final marcada para ocorrer em Sydney, no Accor Stadium.


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