Localizada na zona do Monte Branco, a comuna de Chamonix estaria sempre destinada a fazer parte das rotas turísticas dos que gostam da neve. Entalada nos Alpes franceses que interligam Itália e Suíça, a futura estância de neve começou por exercer um fascínio entre aventureiros e alpinistas amadores no século XVIII – ingleses maioritariamente, que olhavam as grandes cordilheiras montanhosas europeias com o mesmo fascínio e zelo que mais tarde alguns mais arrojados dedicariam aos Himalaias. De certo modo, as aldeias alpinas em redor de Chamonix exalavam o mesmo mistério que levaria ao desalento e à ruína os viajantes que tentaram e falharam entrar em Lhasa, capital do Tibete, até Francis Younghusband ter liderado uma coluna militar britânica ao interior da mais misteriosa das cidades em 1904.

Ao contrário de Lhasa, Chamonix rapidamente revelou os seus segredos nevados e já durante o século XIX, a afluência turística levou a alguma sofisticação no planeamento de visitas guiadas e usufruto dos seus prazeres brancos. No entanto, boa parte das pessoas que trabalhavam no sector era amadora e perante algum caos que invadiu a zona, o governo francês, em 1892, decidiu que apenas guias com diplomas, passados por entidades civis e Serviços Alpinos, poderiam criar companhias turísticas, e que estas seriam dominadas por iniciativas nacionais. Chamonix ficou absolutamente dependente do turismo como modo de vida, o que acontece a muitos locais que abraçam as suas vantagens naturais. Quando, em 1924, os Jogos Olímpicos de Verão se realizaram em Paris, a ideia de criar um congénere invernal surgiu naturalmente.

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Na modalidade de hóquei no gelo, a victória foi disputada por equipas de oito países, entre eles a França (na fotografia). Na edição inaugural dos Jogos Olímpicos de Inverno, o Canadá levou para casa a medalha de ouro e os EUA a de prata. 

Um evento percursor

Na verdade, desde 1912 que se tentava criar uma evento desportivo olímpico dedicado à modalidades de Inverno. Estava claro que seria impossível que fosse paralelo ao seu irmão mais velho, realizado entre os meses de Julho e Agosto. Com as suas especificidades climáticas, não seria qualquer país com condições de organizar ambas as competições. No entanto, calhou que 1912 foi o ano de Estocolmo, capital sueca, receber a Olimpíada. Com a sua tradição de neve e temperaturas baixas durante a maior parte do ano, a Suécia era candidata óbvia a começar a tradição. Mas novo obstáculo se colocou: desde 1901 que se realizava uma prova envolvendo a Escandinávia chamada “Jogos Nórdicos”. Em muitos aspectos é a verdadeira antecessora das Olimpíadas de Inverno: uma competição multi-desportos, que dura vários dias, realizando-se de quatro em quatro anos, envolvendo diversos países.

A diferença estava num certo espírito mais nacionalista, mais regionalista. O seu fundador era Viktor Balck, que fora um dos cinco membros fundadores originais do Comité Olímpico Internacional (COI). Porém, esta competição, com excepção de um ano em Oslo (então a Noruega era parte dos Reinos Unidos da Suécia e da Noruega e Oslo chamava-se Kristiania), decorrera sempre na sueca Estocolmo, e os países envolvidos mostraram-se contra um novo acontecimento desportivo que roubasse protagonismo à sua amada competição de fanáticos invernais.

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Poster desenhado por Ernst Küsel para promover os Jogos Nórdicos ("Nordiska Spel") de 1901. 

Balck, fazendo a ponte entre as duas organizações rivais, fez lobby para que, no mínimo, os Jogos Olímpicos tradicionais permitissem uma modalidade mais gelada. Uma simples. Como patinagem no gelo. E assim aconteceu em 1908, quando Londres viu a modalidade reconhecida e com o sueco Ulrich Sachlow a vencer – Sachlow foi, é preciso dizer, dez vezes campeão mundial da disciplina, logo era o grande favorito. Em 1912, ideias mais elaboradas surgiram, mas os países envolvidos nos Jogos Nórdicos cortaram a iniciativa à partida. Planos para 1916, com a cidade de Berlim a ser sede olímpica, estabeleceram uma semana com mais algumas modalidades, como patinagem de velocidade, hóquei no gelo ou esqui nórdico, mas a Primeira Guerra Mundial colocou a vida na Europa em modo de pausa.

Quando os Jogos regressaram em 1920, na belga Antuérpia, o hóquei no gelo foi acrescentado ao programa. Era inevitável que uns Jogos Olímpicos verdadeiramente de Inverno aparecessem e assim ficou determinado, numa convenção do COI em Lausanne durante 1921, que em 1924, durante 11 dias, ocorreria... uma “Semana Internacional de Desportos de Inverno”. Seria um evento a realizar entre 25 de Janeiro e 5 de Fevereiro. Retroactivamente, o COI considerou-os os primeiros Jogos Olímpicos de Inverno.

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A pista de salto de esqui olímpico de Mont foi construída para os Jogos Olímpicos de Inverno de 1924 em Chamonix-Mont-Blanc, na aldeia de Bossons. Fonte: Bibliothèque nationale de France

Chamonix e a inauguração dos Jogos de Inverno

Como estância de Inverno mais conhecida de França, Chamonix foi escolhida para receber a edição inaugural. Para acomodar as deslocações entre as instalações onde os atletas ficariam hospedados e a área onde decorreriam as provas, esta Semana Internacional deu um impulso definitivo a um projecto que andava a ser desenvolvido desde 1910 sem conhecer grandes avanços: o teleférico que ligaria Chamonix aos Aiguilles, a zona alpina mais alta dos Alpes da Haute-Savoie. A primeira fase do projecto, chegando a La Para, 1.685 metros acima do nível do mar, ficou terminada precisamente em 1924. Devido a várias interrupções, nomeadamente devido à Segunda Guerra Mundial, o teleférico só ficaria terminado na década de 1950. Hoje chega acima dos 3.800 metros de altitude e é um dos grande emblemas da região.

O dia 25 de Janeiro amanheceu com um sol radioso, iluminando o vale. O frio, esse, era constante e carregado; mas foi com júbilo que Gaston Vidal, representante do estado francês, declarou abertos os Jogos de Inverno de Chamonix. Bandeiras de 16 países foram desfraldadas, o vento ondulando-as com vigor e as nações participantes desfilaram numa parada de apresentação. Atletas trazendo os seus instrumentos desportivos: patinadores com o seu calçado, esquiadores com os seus esquis… e a delegação de curling carregando vassouras domésticas.

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Como patinadora a título individual, a britânica Ethel Muckelt ganhou a medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1924. A diferença entre as classes desportivas masculina e feminina nesta altura eram grandes, manifestada por exemplo nos trajes que envergavam. 

Quase todos os países eram europeus, vindos das nações bálticas ou do Norte e Centro da Europa. Apenas Canadá e EUA eram de outro continente e foi deste último país que saiu o primeiro campeão olímpico invernal: Charles Jewtraw, na prova de patinagem de velocidade em 500 metros. Entre as nove modalidades inaugurais, encontramos algumas que são hoje clássicas das Olímpiadas invernais, como curlingbobsleigh ou salto de esqui. No entanto, surge outra cujo nome faz erguer sobrancelhas, tendo em conta o espírito olímpico: Patrulha Militar. Com a sua mistura de esqui de fundo e tiro ao alvo, foi vencido nesta edição pelos suíços e, com o tempo, as suas regras e funcionamento viriam a dar origem ao biatlo.

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Um dos mais icónicos desportos dos Jogos Olímpicos de Inverno, o bobsleigh é presença assídua desde 1924.

Grandes destaques atléticos

A selecção de hóquei no gelo do Canadá inauguraria aqui uma série de medalhas de ouro que a levam a ser a maior potência da modalidade ainda hoje. Outros atletas a destacar são Gillis Grafstrom, que foi o primeiro da história a defender com sucesso um título olímpico, no caso na modalidade de patinagem artística. Grafstrom vencera a competição em Antuérpia, quatro anos antes.

O finlandês Clas Thunberg dominou as provas de patinagem de velocidade, com três medalhas de ouro, uma de prata e uma de bronze. Thunberg viraria a acumular cinco medalhas de ouro em toda a sua carreira olímpica, recorde que viria apenas a ser batido em 1980. À altura dois dos grandes nomes da modalidade em campeonatos mundiais austríacas, Helene Engelmann e Herma Planck, dominaram a vertente feminina de patinagem artística. Ao contrário da actualidade, em que os atletas competem com o maior aerodinamismo possível, estas senhoras venceram as suas medalhas envergando trajes de época, no que mostra a abissal diferença entre as classes desportivas masculina e feminina nesta altura. Os países escandinavos dominaram a maior parte das provas.

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Os patinadores de velocidade finlandeses Julius Skutnabb e Clas Thunberg ganharam três e cinco medalhas, respectivamente, nesta edição. Fonte: Meurisse / Bibliothèque nationale de France

Também alguns perdedores – incluindo a França, a nação anfitriã, que venceu a bela quantidade de zero medalhas de ouro – fizeram história. Taffi Abel, da nação Ojibwe, tornou-se no primeiro nativo americano a vencer uma medalha olímpica. Já a norueguesa Sonja Hennie – a mais jovem atleta olímpica de sempre que, com onze anos, ficou em último lugar na modalidade de patinagem artística – ganhou o coração dos espectadores, crescendo em popularidade. Viria a vencer a prova nas três Olimpíadas seguintes.

No dia 5 de Fevereiro, decorreu a cerimónia de encerramento. O fundador dos Jogos Olímpicos modernos, o barão de Coubertin, esteve presente e discursou, elogiando a organização da prova e também notando que os espectadores descobriram, provavelmente, a beleza de algo que nunca teriam sonhado: a fisicalidade e agressividade positiva dos desportos de Inverno, um espectáculo a notar, um desafio à audacidade do espírito humano.

No ano seguinte, o COI oficializou a celebração olímpica dos desportos de Inverno a cada quatro anos, em conjunto com os de Verão. Em 1928, foi Saint-Moritz, na Suíça, a tornar-se a segunda anfitriã. Em 1992, as Olimpíadas de Inverno passaram a realizar-se intervalada em dois anos com as de Verão.

Em 2026, Cortina d’Ampezzo e Milão, em Itália, serão as próximas a celebrar a beleza das modalidades do gelo e da neve que Coubertin salientou no seu discurso em Chamonix, há 100 anos.