“O futebol feminino na Austrália é maior do que no Brasil porque aqui os homens não atrapalham”, diz jornalista esportivo ao comparar seleção brasileira com Matildas

Marta and Australian players

Marta entre as jogadoras da seleção australiana, as Matildas, em amistoso no sábado, 23 de outubro, no CommBank Stadium em Sydney. Source: Thais Magalhães/CBF

Aproveitando a passagem da seleção brasileira de futebol feminino pela Austrália para dois jogos amistosos contra as Matildas no mês de outubro, ouvimos a opinião de três mulheres e um jornalista esportivo brasileiros que vivem no país, sobre as condições e incentivos oferecidos aos times femininos no Brasil e na Austrália.


Edu Vieira é jornalista esportivo especializado em futebol e nasceu no mesmo estado que a maior jogadora de futebol feminino de todos os tempos, Marta, artilheira da seleção e eleita por seis vezes pela FIFA como a melhor jogadora do mundo. Ele diz que no Brasil o futebol é tão grande para os homens que as meninas crescem ouvindo que é um esporte masculino e que elas não devem jogar.
Edu Vieira
O jornalista esportivo Edu Vieira diz que as Matildas são maiores do que a seleção feminina brasileira porque na Austrália os homens não atrapalham as mulheres. Source: Supplied
Edu diz que “na Austrália os homens focam no Footy e no Rugby. Os homens deixaram o futebol de lado e as mulheres cresceram, não tiveram ninguém que as atrapalhasse, e por isso o futebol feminino foi se desenvolvendo desde os anos 60, 70 na Austrália, e ganhou força após as Olimpíadas de 2000 em Sydney, com a criação da liga nacional e mais investimento nos times de base."

Ele também destaca que a educação na Austrália é muito voltada para o esporte em geral, o que ajuda nesse sentido.

A jornalista e instrutora de pilates Carol Saldanha, que mora na Austrália há 15 anos, concorda com Edu sobre a cultura do esporte de um modo geral no país e o fato de o futebol não ser um esporte tão popular na Austrália, daí haver um espaço maior para as mulheres.

“A Austrália é um país que incentiva mais o esporte de modo geral. E me parece que há mais espaço para o futebol feminino na Austrália do que no Brasil. Pode ser que haja um incentivo maior para que as mulheres joguem futebol na Austrália porque aqui o futebol não é o esporte nacional. Os esportes nacionais na Austrália, que são o Footy e o Rugby, são muito mais praticados pelos homens”, opina Carol.
Pode ser que haja um incentivo maior para que as mulheres joguem futebol na Austrália porque aqui o futebol não é o esporte nacional. Os esportes nacionais são muito mais praticados pelos homens.
Oportunidades iguais desde cedo 

A estudante internacional Bruna Oliveira joga futebol desde que era criança no Brasil. Quando chegou na Austrália, ela diz que não teve dificuldade de encontrar times para jogar. Bruna integra um time de futsal e um de futebol.

Ela destaca o incentivo para que crianças pratiquem o esporte na Austrália e cita algo que considera importante: “o bom da Austrália é que até uma certa idade, as meninas e meninos treinam futebol juntos, e isso na minha opinião faz muita diferença, porque assim eles são treinados e tratados da mesma forma, com as mesmas oportunidades.”
Na Austrália, até uma certa idade, meninas e meninos treinam futebol juntos. Isso faz muita diferença, porque assim eles são tratados da mesma forma, com as mesmas oportunidades.
Sobre a soberania do futebol masculino no Brasil, Bruna explica que “no Brasil há mais investimento no futebol masculino porque ele dá muito mais retorno financeiro, pela história, conquistas e pela cultura brasileira de consumir futebol masculino, que é o esporte nacional. Aqui na Austrália não há uma seleção masculina forte que “apague” a seleção feminina.”

Carol destaca um fator que acaba gerando mais estímulo à prática do esporte por mulheres e o incentivo por parte dos órgãos responsáveis, empresas e até mesmo da mídia aos times profissionais femininos na Austrália: o sucesso das Matildas, maior que o dos Socceroos, no futebol mundial, diferente do que acontece no Brasil quando comparadas as seleções masculina e feminina de futebol, já que a trajetória do time masculino é muito mais longa.
Carol
A jornalista Carol Saldanha, na Austrália há 15 anos, acredita que o fato de as Matildas serem mais reconhecidas mundialmente do que os Socceroos as beneficia. Source: Supplied
A jogadora profissional Mariel Hecher, que atua no Lions FC e no Brisbane Roar, onde tem inclusive algumas das Matildas como companheiras de equipe, destaca o que ela considera uma vantagem das jogadoras profissionais brasileiras sobre as australianas.

“No Brasil, muitas jogadoras profissionais vivem do trabalho delas nos times, com salários e direitos trabalhistas. Já na Austrália, pelo fato de a A-League Women ter duração menor do que a A-League Men, o trabalho das jogadoras não é considerado de tempo integral, então eu e várias outras jogadoras temos que ter outros empregos além de jogar profissiolnalmente, o que não é bom para quem quer se dedicar exclusivamente ao futebol”, explica Mariel.

Importância da transmissão dos jogos

Mariel também chama a atenção para algo que pode impulsionar muito o interesse do público pelo futebol feminino: a transmissão dos jogos pelas emissoras de tv aberta.

Ela diz que "na Austrália uma emissora de tv aberta vai transmitir os jogos femininos e masculinos da A-League toda semana igualmente. No Brasil também há emissoras de tv aberta que transmitem os jogos femininos. Mas em horários em que não há muita audiência. Isso precisa melhorar para que o futebol feminino ganhe mais patrocínio, o que vai acontecer quando mais pessoas assistirem as partidas.”
Mariel Hecher
Mariel Hecher, jogadora profissional que atua no Lions FC e no Brisbane Roar, diz que a transmissão dos jogos femininos na tv gera mais público e patrocínios. Source: Supplied
Edu acredita que no Brasil a tv aberta deve buscar audiência através da transmissão. Deve dar espaço para os jogos femininos serem transmitidos, pois a partir daí o esporte vai ganhar um público maior. “Se o futebol feminino tem espaço, é mostrado e transmitido em tv aberta, vai ter público para assistir. Não só a seleção nacional mas os times femininos dos clubes estaduais. Assim as jogadoras passam a ser conhecidas.”
Se o futebol feminino é transmitido na tv, tem público para assistir. Não só a seleção, mas os times femininos dos clubes estaduais. Assim as jogadoras passam a ser conhecidas.
Edu diz ainda que o investimento deve ser feito pensando que é algo importante e que funciona, e não como uma obrigação de ter que dar espaço para as mulheres pela questão da igualdade entre homens e mulheres. “O futebol feminino é um esporte legal de se acompanhar e vai ter audiência.”

Bruna conta que mesmo interessada por futebol desde criança, não acompanhava o futebol feminino professional porque os jogos não eram exibidos na tv. “As minhas referências sempre foram masculinas porque a gente não tinha muita divulgação de futebol feminino. Só nos dois últimos anos isso tem mudado um pouco. Agora já são transmitidos jogos dos campeonatos estaduais, nacional e a atuação da seleção feminina brasileira fora do país.

Mulheres sabem jogar 

A tradição do futebol masculino no Brasil também acaba interferindo no futebol feminino no país quanto à comparação entre homens e mulheres. Bruna diz que nunca sofreu preconceito por jogar futebol, “mas quando eu falava para alguém que não conhecia que eu jogava futebol, essa pessoa me perguntava se eu realmente sabia jogar, se sabia das regras.”
Quando eu falava para alguém que não me conhecia que eu jogava futebol, essa pessoa me perguntava se eu realmente sabia jogar, se sabia as regras.
Sobre isso, Edu destaca que no Brasil ainda há um preconceito no sentido de algumas pessoas acharem que as mulheres não são tão boas jogadoras de futebol quanto os homens, que os jogos femininos não tem a mesma qualidade, o que na opinião dele não é verdade. “Eles são apenas diferentes.”

Apesar das desvantagens que as mulheres tem em relação aos homens no futebol, Bruna diz que o incentivo ao futebol feminino está aumentando no Brasil. Algumas marcas grandes estão começando a patrocinar o futebol feminino, mas isso ainda acontece pouco. Ela destaca que “precisamos de ferramentas e incentivos para o futebol feminino crescer. Caso contrário, não chegaremos ao mesmo patamar do futebol masculino.”

Condições e pagamentos iguais

Mariel considera que o caminho está sendo trilhado para que se chegue à igualdade no esporte para homens e mulheres, e diz que tudo deveria ser igual para as seleções masculina e feminina, desde alojamento, hotel, comida, voo, tratamento médico, aspectos contemplados em um acordo coletivo de trabalho anunciado este ano na Austrália. No Brasil foi anunciado em 2020 a igualdade no pagamento de diárias e premiações para as seleções feminina e masculina.

Para Bruna, homens e mulheres que jogam futebol devem ser tratados da mesma forma. “Não adianta cobrar os mesmos resultados se não são oferecidas as mesmas ferramentas a ambos.”
Bruna Oliveira
Para a estudante internacional Bruna Oliveira, "não adianta cobrar os mesmos resultados se não são oferecidas as mesmas ferramentas a homens e mulheres.” Source: Supplied
E apesar das conquistas já alcançadas, na opinião de Mariel, chegar a uma equiparação de salário é algo que deve demorar mais a acontecer. “A Marta é a maior jogadora da seleção brasileira de todos os tempos. Fez mais gols pela seleção do que o Neymar ou o Pelé, e não tem o mesmo reconhecimento financeiro que os grandes jogadores do futebol masculino.” E conclui: “A gente merece ter os mesmos salários que eles porque fazemos as mesmas coisas que eles fazem.”

Rainha Marta

Sobre a Marta, maior artilheira da história das Copas do Mundo entre homens e mulheres, recordista em gols com a camisa da seleção brasileira e um dos maiores nomes do futebol mundial e todos os tempos, Carol diz que ela abriu caminho e está deixando um legado.
Marta
Marta, eleita seis vezes melhor jogadora do mundo, maior artilheira de copas do mundo entre homens e mulheres, e quem mais fez gols com a camisa da seleção. Source: Thais Magalhães/CBF
E Bruna completa: "a Marta é única e tão importante que não deveria ser comparada com grandes jogadores do futebol masculino. Ela é a Marta, e não o Neymar ou o Pelé do futebol feminino”.
A Marta é única e tão importante que não deveria ser comparada com grandes nomes do futebol masculino. Ela é a Marta, e não o Neymar ou o Pelé do futebol feminino.
Para Mariel, “a Marta é um exemplo de atleta na qual ela se espelha. Ela faz muito pela modalidade. Para quem está começando hoje poder vislumbrar um futuro como uma jogadora de futebol que pode viver da prática do esporte. Ela é uma pessoa do bem que quer usar o sucesso dela para ajudar os outros.”

Na opinião de Bruna, para que haja igualdade no futebol feminino e masculino, “a educação para que homens e mulheres sejam tratados da mesma forma em qualquer setor ou sob qualquer aspecto deve ser o início de tudo.”

E Mariel conclui: “que o futebol feminino continue evoluindo e que as pessoas mudem a mentalidade de que futebol é só para homem e lugar de mulher é na cozinha. Não. Lugar de mulher é onde ela quiser.”


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