Na terra dos campeões mundiais de rúgbi, o futebol é um esporte sem grande apelo, ainda praticamente amador e seguido por poucos torcedores. Mas isso não significa que inexistam histórias incríveis para serem contadas, muito pelo contrário. Talvez a mais fascinante delas tenha sido a classificação da seleção da Nova Zelândia para a Copa de 1982, percorrendo 88 mil km em 15 partidas nas Eliminatórias, enfrentando todo tipo de adversidade até realizar o sonho de jogar contra as melhores equipes do planeta (incluindo o Brasil de Telê Santana). Essa epopeia é o tema do documentário 82 and All That, um filme já pronto, porém impedido de ser comercializado por questões de direitos autorais.
Sa’id Milton, responsável pelo projeto, tenta arrecadar 270.000 USD (cerca de R$ 1 milhão) para levar a produção aos cinemas neozelandeses. No caso de um lançamento global, seria necessário aproximadamente o dobro do valor, a maior parte com licenças pelo uso de arquivos de 10 diferentes países, materiais da Fifa e trilhas sonoras. Na primeira tentativa, através de uma página no site Kickstarter (aberta a doações até o final de 2014), conseguiu levantar 1/4 da quantia, porém não teve acesso ao dinheiro por não completar a meta. Desde então tem apenas atualizado o Facebook com teasers da sua obra e considera a ideia de iniciar uma nova campanha por contribuições no próximo ano.
“O dinheiro necessário não é muito para a indústria cinematográfica, um estúdio poderia facilmente recuperar o investimento. Estou certo que muitos no Brasil também se interessariam, é um filme único, que mostra mais do que a história de superação de um país sem tradição futebolística para disputar a primeira Copa. Também aborda muito da política e sociedade da época”, explica Milton.
Um verdadeiro obcecado pelos All Whites (apelido da seleção neozelandesa de futebol), ele conversou com o Última Divisão em Auckland. O papo foi tão produtivo que está dividido abaixo em duas partes: detalhes sobre o documentário e a atual situação do futebol na Nova Zelândia.
Confira os principais momentos da entrevista:
PARTE 1 – O DOCUMENTÁRIO
UD: Qual a sua trajetória antes e depois de 82 and All That?
Tenho 40 anos e atualmente trabalho como professor em uma escola em Auckland, mas sempre fui muito interessado em produção cinematográfica. Em 2000 produzi meu primeiro programa de TV, chamado Off The Bar, exibido por seis meses no Canal 9 na cidade de Dunedin. Era tudo voluntário, não ganhava para isso, mas adorava, pois falávamos sobre futebol e aprendi muito com Ross Johnstone, diretora da emissora.
Depois retornei a Auckland e fui assistente na Sky TV antes de me mudar para Inglaterra por um período… Tinha o sonho de trabalhar com esporte lá, mas nunca tive chance. Quando voltei fui convidado a produzir edições dos melhores momentos das partidas da liga neozelandesa de futebol na Sky. Foi uma dura missão, pois não tínhamos estrutura, porém conseguimos entregar bons materiais. Uma pena que as autoridades de futebol tenham parado de nos financiar depois e forçado o fim do projeto. Desde então fiz alguns outros trabalhos na área, inclusive às vezes ajudo o Auckland City FC. Em meio a tudo isso, por dez anos, produzi paralelamente 82 and All That, meu grande sonho.
UD: Pelas informações prévias, o seu documentário possui vídeos raros e entrevistas inéditas. Quais os números da produção até aqui?
Até aqui já entrevistei 13 ex-jogadores daquela seleção, seus dois treinadores e outras 8 pessoas relevantes ao tema. Estou ainda correndo atrás de três entrevistados que realmente acrescentariam à história, mas, mesmo que não seja possível, do jeito que está já é um filme completo, em uma maneira diferente de abordar o assunto. É mais do que a história de um time de futebol, é um filme que mostra a realidade da Nova Zelândia dos anos 80 e nossas dificuldades políticas na época. Eram tempos difíceis e os All Whites foram capazes de colocar um sorriso no rosto da população.
Em termos de arquivos, o material inclui muitas raridades que certamente não foram vistas desde 1981/82. Muitos vídeos extra-campo, de bastidores e partes de jogos que haviam sido perdidas anteriormente. Tenho muita coisa interessante!
UD: O que falta para finalizar o projeto?
O documentário está basicamente pronto, exatamente da maneira que o imaginei quando tive a ideia de produzi-lo.
UD: Como foi chegar até os entrevistados?
Há muitas histórias sobre isso e eu levaria um dia inteiro para contá-las. Aliás, metade delas você nem acreditaria! Foi um grande teste para as minhas habilidades como detetive, tentando localizar tantas pessoas.
A princípio, os jogadores estavam muito cautelosos. Alguns deles foram entrevistados para um livro anos antes e não gostaram do que foi publicado. Isso os deixou defensivos e relutantes. Quem me ajudou muito nessa aproximação foram o técnico John Adshead e o capitão Steve Summer. Depois que conversaram comigo, conseguiram convencer os outros sobre a importância do projeto. Devo muito a esses dois, não seria possível sem eles.
UD: Pode contar uma dessas grandes histórias dos bastidores?
Acho que a história mais interessante foi a minha busca por um garoto que, durante as Eliminatórias, em 1981, atirou um rojão no árbitro para protestar contra um pênalti, além de invadir o campo. Ele foi detido na época, mas não haviam grandes registros. Consegui encontrá-lo, já adulto e tantos anos depois. Ele ficou chocado quando expliquei o que queria dele. Se tornou um pai de família respeitado e manteve aquela história em segredo por muito tempo, mas no final aceitou conversar e deu uma excelente entrevista sobre o incidente.
UD: Possui algum jogador favorito daquela equipe?
Uau, muitos deles eram ótimos, mas por razões diferentes! Steve Summer era a força condutora fora de campo e Seve Wooddin tinha um talento incrível. Wynton Rufer (considerado o melhor jogador neozelandês de todos os tempos, artilheiro de uma Liga dos Campeões pelo Werder Bremen) ainda era um adolescente, já mostrando sua capacidade. E muitos outros tinham importância, é difícil eleger um preferido, a equipe era muito equilibrada e jogava coletivamente.
UD: Como acredita que o filme será recebido, caso um dia possa ser lançado?
É um filme diferente, conta essa história de um jeito nunca feito antes, abordando sociedade, política e futebol. Fiz uma exibição privada para os jogadores e treinadores e muitos deles se emocionaram, o que mostra que acertei em cheio em muitas das coisas que fiz.
UD: Como os jogadores estão atualmente? São reconhecidos na Nova Zelândia?
Muitos estão contentes com o reconhecimento que recebem. Apesar do futebol não ser tão popular, há quem saiba valorizar o feito deles até hoje. É um grupo especial, eles seguem amigos e torcem pelo futebol do país. Ficaram muito felizes com a classificação em 2010, pois queriam ver um novo grupo de atletas passando pelas mesmas experiências. Claro que, às vezes, alguns se queixam de esquecimento, mas no geral são respeitados. Mais do que fazer o público relembrá-los, o principal objetivo do filme foi preservar e compartilhar a história da grande façanha que alcançaram.
UD: Li sobre a doença de Steve Summer…
Sim, o grupo está ficando envelhecido, 1982 foi há muito tempo! Foi um grande choque para todos quando Duncan Cole morreu (em 2014, vítima de um mal súbito, aos 55 anos). Agora, nosso capitão Steve Summer está lutando contra um câncer de próstata e usando sua situação para chamar a atenção de todos sobre a doença. São situações difíceis, problemas de saúde começam a aparecer, mas a vida segue e todos estão muito felizes com suas memórias dos dias de seleção.
UD: O que os jogadores comentaram sobre a partida contra o Brasil? (NR: o Brasil goleou a Nova Zelândia por 4 a 0 no encerramento da primeira fase da Copa de 1982, jogando com o time titular mesmo com a classificação já garantida)
O jogo contra o Brasil foi o grande momento da história do futebol neozelandês. Telê Santana concedeu uma grande honra ao nosso time por usar sua força máxima, com todos aqueles jogadores incríveis: Sócrates, Éder, Toninho Cerezo, Falcão, Júnior, Zico… Simplesmente inacreditável! Os jogadores neozelandeses ficaram muito felizes e orgulhosos de estar no mesmo campo que eles. Descreveram os brasileiros como autênticos cavalheiros, muito amigáveis e gentis.
Para o filme tive a oportunidade de entrevistar o ex-zagueiro brasileiro Oscar, que esteve em campo naquela partida. Ele me contou lembranças muito interessantes sobre o jogo. Para a maioria dos neozelandeses aquilo foi o ponto alto da carreira, por isso eles contavam sobre o dia com brilho nos olhos… Zico fez um gol brilhante e o estádio tinha uma atmosfera incrível. O jogo com o Brasil é sem dúvida o grande momento do documentário também.
https://www.youtube.com/watch?v=Z1YY5oVsSuY
UD: Além do futebol, o filme busca abordar também política e temas sociais. Que tipo de período a Nova Zelândia atravessava na época?
Tínhamos um governo muito polêmico e controverso. Economicamente também enfrentávamos tempos difíceis, a população tinha pouco dinheiro e muitas dificuldades. E, claro, nossas ligações esportivas com a África do Sul do Apartheid, especialmente no rúgbi, fizeram a Nova Zelândia se tornar impopular em todo o mundo, além de causar muitos protestos no nosso país em 1981. Eram tempos difíceis e isso torna mais especial o feito daquele time de futebol, que trouxe notícias boas ao país.
UD: Você ainda acredita que o filme possa ser lançado? Por que tem sido tão difícil levantar recursos?
Acredito que ainda é possível lançá-lo. O valor que necessito para os direitos autorais não é muito grande em termos de cinema, mas estão além do que posso financiar sozinho. Futebol ainda é algo menor na Nova Zelândia e isso torna difícil conseguir financiar um projeto assim, embora eu esteja certo que, se lançado, atrairia uma grande audiência.
UD: Está aberto a apoio internacional?
Sim, estou aberto a contribuições de qualquer lugar, só quero compartilhar a história. Acredito que amantes do futebol de qualquer parte do mundo vão gostar, é uma história fantástica de um time azarão que conseguiu chegar até a Copa do Mundo e jogar contra o melhor time do planeta, o Brasil! Quem sabe algum fanático por futebol ou estúdio brasileiro tenha interesse em tornar isso realidade. Me alegrará muito conversar com qualquer um
UD: Quais seus planos futuros? Envolvem futebol?
Os próximos planos são bem simples no momento. Estou feliz sendo um professor e um homem de família. Adoraria que 82 and All That fosse lançado, mas já estou orgulhoso do time do meu país e sua incrível história. Em termos de projetos futuros, bom, estou sempre aberto a novas possibilidades… Quem sabe até alguma grande história sobre o Brasil.
PARTE 2: O FUTEBOL NA NOVA ZELÂNDIA
UD: Quais são as suas primeiras lembranças de futebol? Como começou a se interessar pelo esporte em um país como a Nova Zelândia? Sofreu com brincadeiras dos fãs de rúgbi?
Me interesso por futebol desde criança. Me lembro muito bem da Copa do Mundo de 1986, das cores fantásticas dos jogos na TV e como fiquei impressionado pelo time brilhante da Dinamarca, além da habilidade de Diego Maradona. Na Nova Zelândia o rúgbi é muito forte e é incomum gostar de futebol, mas no meu colégio até que o esporte era popular. Claro que fui provocado por outros garotos, mas me acostumei com isso e nunca parei de acompanhar os jogos.
UD: Você torce para algum time?
Quando era criança me tornei um grande fã de dois clubes estrangeiros, o Nottingham Forest, da Inglaterra, e a Internazionale, da Itália. Tive muita sorte de poder conhecer as cidades de ambos e assistir a partidas no estádio. Na Nova Zelândia eu era torcedor do Football Kingz (primeiro representantes neozelandês no futebol australiano), até o clube ser extinto. Agora acompanho o Wellington Phoenix na A-League (campeonato australiano) e, claro, aprecio também a liga doméstica neozelandesa, sempre sigo os resultados do time de Dunedin (Southern United).
UD: Como é a sua relação com os All Whites?
Não estou certo sobre quantos jogos dos All Whites já assisti no estádio, foram muitos. Me lembro que o primeiro foi contra a Austrália, no Mt. Smart Stadium, em Auckland, em 1985! Me tornei um grande fã e desde então já fui a partidas de todos os tipos, muitas com arquibancadas vazias, mas também alguns grandes jogos… Como contra a França em Paris, Escócia em Edimburgo e Bahrein em Manama (jogo que valeu a vaga para a Copa do Mundo de 2010).
UD: Acha que o esporte está crescendo no país?
Gostaria de achar que sim, algumas coisas estão evoluindo. A maior diferença entre hoje e os meus tempos de criança é que o futebol agora é considerado um esporte de valor e credibilidade. Muitos neozelandeses não seguem futebol, mas atualmente respeitam o jogo e, em grandes eventos, torcem pelos All Whites. Não era assim no passado! Isso mudou bastante em 2010, quando fizemos uma grande Copa do Mundo e muita gente se envolveu. Foi algo fantástico para o esporte.
UD: Suas primeiras recordações futebolísticas são posteriores a 1982, como se tornou tão interessado na seleção neozelandesa daquele ano?
Era muito criança em 1982, realmente não me recordo dos jogos. Mas cresci ouvindo histórias sobre os feitos daquele time, afinal, por muito tempo aquela havia sido nossa única participação em Copas. Quanto mais velho, mais interessado ficava…
UD: Por que a Nova Zelândia passou tanto tempo (28 anos) sem voltar a uma Copa?
Não há apenas uma razão, foram diferentes fatores: falta de financiamento, administrações fracas, pouca experiência, adversários fracos que dificultam uma evolução, entre outros. E, claro, a Austrália deu saltos muito maiores em seu desenvolvimento, tornando muito difícil que os vencêssemos enquanto eram nossos rivais na Oceania. Dito isso, tivemos alguns times bons em épocas diferentes e talvez fosse possível ter mais sucesso em outras circunstâncias.
UD: Qual seleção neozelandesa acredita ter sido melhor, a de 1982 ou 2010?
É impossível compará-las. Um time era basicamente amador, o outro já tinha um nível profissional. São equipes separadas por 30 anos, o que faz a comparação ainda mais difícil. As duas seleções foram excelentes nas suas épocas e alguns jogadores de 82 certamente poderiam jogar em 2010! Ambos os times são ótimos e únicos e não vale a pena discutir o melhor, apenas apreciar os dois de forma igual.
UD: O que espera do futuro dos All Whites? Vê algum grande talento na atual geração?
É difícil prever o futuro. Ainda temos problemas de verbas e dificuldade em agendar partidas contra grandes equipes, coisas assim. Nossa localização geográfica, bastante isolada do resto do mundo, certamente não nos ajuda. Espero que alguns talentos estejam surgindo, a chave é levá-los para se desenvolver em ambientes profissionais no exterior. Acredito que para sermos competitivos precisamos ter a base da seleção jogando em um nível decente na Europa, mas isso é um objetivo difícil de alcançar.
UD: Gosta da ideia da Oceania passar a ter uma vaga permanente em Copas?
Em Copas do Mundo de seleções de base, sim. Mas na Copa propriamente dita, não. Pessoalmente, preferia que as nossas Eliminatórias fossem ligadas com as da Ásia, então teríamos chances justas, conseguimos ir ao Mundial de 82 desta maneira. Prefiro ganhar uma vaga por merecimento e não que ela seja “dada” pela Fifa.
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